Resumo: Este estudo, extrato de uma pesquisa em andamento, tem por objetivo analisar como um Futuro Professor de Matemática (FPM), participante do Programa de Residência Pedagógica (PRP) com Lesson Study (LS), orquestra vozes e práticas provenientes da universidade (curso de licenciatura em Matemática), de sua escolarização básica e da escola onde realiza o PRP para construir compreensões sobre si mesmo como FPM. Sob uma perspectiva sociocultural, os conceitos de “mundo figurado” e “espaço de construção de autoria” foram utilizados como ferramentas teóricas para um estudo de caso interpretativo. Os resultados indicam que este PRP se caracteriza como um “mundo figurado” em construção, onde os participantes problematizam e ressignificam práti-cas e discursos provenientes dos mundos figurados da licenciatura do ensino escolar, e autorizam-se a projetar práticas mais exploratórias aos seus alunos. O caso R1 evidencia estar em processo de reconstituição identitária, no contexto do PRP-LS, para elaborar e implementar essas práticas na escola.
Palavras-chave: Identidade Profissio-nal Docente, Residência Pedagógica, Análise narrativa, Estudo da aula.
Abstract: This excerpt from an ongoing study aims to analyze how a Future Mathematics Teacher (FMT), who is a participant in the Pedagogical Residency Program (PRP) with Lesson Study (LS), orchestrates voices and practices from the university (Mathematics Degree course), their basic education, and the school where they conduct the PRP to build understandings about themselves as an FMT. From a sociocultural perspective, “figured world” and “space of authoring” were theoretical tools for an interpretive case study. The results indicate that this PRP is characterized as a “figured world” in construction, where participants problema-tize and reframe practices and discourses from the figured worlds of the teaching degree and school education, and authorize themselves to project more exploratory practices for their students. The R1 case evidences being in a process of identity reconstitution, within the PRP-LS context, to develop and implement these practices in the school.
Keywords: Teacher Professional Identity, Pedagogical Residency, Narrative analysis, Lesson Study.
Resumo: Este estudio, extracto de una investigación en curso, tiene como objetivo analizar cómo un Futuro Profesor de Matemáticas (FPM), participante del Programa de Residencia Pedagógica (PRP) con Lesson Study (LS), orquesta voces y prácticas provenientes de la universidad (curso de licenciatura en Matemáticas), de su escolarización básica y de la escuela donde realiza el PRP para construir comprensiones sobre sí mismo como FPM. Desde una perspectiva sociocultural, los conceptos de “mundo figurado” y “espacio de construcción de autoría” fueron utilizados como herramientas teóricas para un estudio de caso interpretativo. Los resultados indican que este PRP se caracteriza como un “mundo figurado” en construcción, donde los participantes problematizan y resignifican prácticas y discursos provenientes de los mundos figurados de la licenciatura de la enseñanza escolar, y se autorizan a proyectar prácticas más exploratorias para sus alumnos. El caso R1 evidencia estar en proceso de reconstitución identitaria, en el contexto del PRP-LS, para elaborar e implementar estas prácticas en la escuela.
Palabras clave: Identidad Profesional Docente, Residência Pedagógica, Análisis narrativo, Estudio de clases.
Dossiê
Residência Pedagógica e Lesson Study: orquestrando diferentes vozes na constituição identitária de um futuro professor de Matemática
Pedagogical Residency and Lesson Study: orchestrating different voices in the identity construction of a future Mathematics teacher
Residencia Pedagógica y Lesson Study: orquestando diferentes voces en la construcción identitaria de un futuro profesor de Matemáticas
Recepción: 30 Marzo 2024
Aprobación: 11 Julio 2024
Os cursos de licenciatura em Matemática no Brasil enfrentam desafios significativos, incluindo a redução do número de ingressantes, taxas de evasão/desistência ao longo do curso e o abandono da carreira docente nos primeiros anos de atuação, conforme destacado por Gatti (2014). Esse cenário evidencia a influência direta da falta de perspectivas para o exercício do magistério, os baixos salários e as condições precárias de trabalho na escolha e permanência dos professores nesse campo.
Paralelamente, ressalta-se a necessidade premente de os cursos de licenciatura em Matemática desenvolverem propostas conjuntas, envolvendo formadores de professores, coordenadores, futuros professores e professores da escola básica. Essas propostas visam a compreender e enfrentar essa realidade complexa da prática formativa desenvolvida nos cursos de licenciatura, conforme discutido por Kuenzer (2021). Portanto, é importante que a comunidade educacional se una para criar estratégias eficazes que possam enfrentar os desafios presentes na formação e atuação dos professores de matemática no Brasil.
Em resposta a essas demandas, surgiram, nos últimos anos, algumas iniciativas de política pública federal, visando a superar o problema, como é o caso do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e o Programa de Residência Pedagógica (PRP) (Capes, 2020). Entretanto, o sucesso desses programas depende muito da forma como os formadores organizaram as ações formativas, de modo a superar a tradicional dicotomia entre teoria e prática, evitando que a prática seja reduzida a um mero campo de aplicação dos conhecimentos e teorias do mundo acadêmico. A prática deve ser vista, também, como campo de produção de conhecimentos profissionais, tendo como “objeto central de estudo a própria aula” (Fiorentini; Honorato; Paula, 2023, p. 12). Daí a importância e a necessidade de valorização do planejamento coletivo de aulas, seguidas pela reflexão e investigação do que acontece na sala de aula, sendo esta uma instância rica de problematização, de tomada de decisão e de ressignificação dos conhecimentos específicos do conteúdo e dos conhecimentos pedagógicos do conteúdo (Macedo; Pina Neves; Silva, 2023).
Nesse contexto, encontramos no Lesson Study (LS) um processo formativo de desenvolvimento profissional docente que se baseia na construção de práticas reflexivas e colaborativas entre professores e/ou futuros professores, tanto em cenários de formação inicial quanto em processos de formação continuada que podem contribuir para o desenvolvimento da Identidade Profissional Docente (IPD). O LS é um processo que questiona o Paradigma do Exercício, abrindo espaço para uma abordagem exploratória do ensino (Pina Neves; Fiorentini, 2021), contribuindo para a aprendizagem dos alunos, ao mesmo tempo que possibilita aos professores e futuros professores se desenvolverem profissionalmente.
O LS, conhecido também como “Estudo de Aula” (Ponte et al., 2023; Gonçalves; Fiorentini, 2023), representa uma abordagem colaborativa de aprimoramento profissional para educadores. Originário do Japão, o processo de LS visa a aperfeiçoar a prática profissional dos participantes através do estudo e planejamento colaborativo de aulas, execução e observação de aulas, discussões e reflexões colaborativas pós-aulas. O LS destaca-se de outras formas de desenvolvimento profissional por oportunizar a observação e análise de aulas em tempo real.
Estudos conduzidos no Brasil demonstram que, de maneira geral, os participantes dos ciclos de Lesson Study experimentam um desenvolvimento profissional, fortalecendo seus vínculos profissionais com as escolas (Paula, 2023). Ao longo do processo e em comunidade, os professores aprendem e se apropriam de conhecimentos fundamentais sobre a prática docente e sobre a investigação de sua própria prática, tais como: a habilidade de selecionar e/ou elaborar tarefas matemáticas exploratórias; a capacidade de observar e mediar os processos de raciocínio dos estudantes (Paula, 2023); “gestão colaborativa do ensino de matemática baseado em tarefas exploratórias” (Fiorentini; Honorato; Paula, 2023, p. 25); a capacidade de refletir sobre suas próprias práticas e suas influências na aprendizagem Matemática dos alunos (Macedo; Pina Neves; Silva, 2023; Pina Neves; Fiorentini, 2021; Gonçalves; Fiorentini, 2023, entre outros) que contribuem para a constituição da identidade profissional docente.
Assim, nesta pesquisa, temos por objetivo analisar de que forma um futuro professor de Matemática, participante do PRP com LS, orquestra as vozes e os discursos provenientes da universidade (curso de licenciatura em Matemática), de sua escolarização básica e da escola onde realiza a residência pedagógica para construir compreensões sobre si mesmo como futuro professor que almeja transformar qualitativamente o ensino-aprendizagem de Matemática na escola básica. A seguir, apresentamos, inicialmente, as bases teóricas e os procedimentos metodológicos deste estudo.
As pesquisas sobre identidade profissional docente na área de Educação Matemática como campo de investigação têm se tornado cada vez mais frequentes, sobretudo, a partir das últimas duas décadas. Profundamente ligada à noção de desenvolvimento profissional, a identidade tornou-se uma lente teórica crucial para investigar a formação de professores ou de futuros professores de matemática (De Paula; Cyrino, 2017a; 2017b; Losano; Fiorentini, 2018a; 2021; Meyer, 2023).
No Brasil, o estudo sobre identidade profissional docente é, relativamente, novo. Só a partir dos anos 1990, os pesquisadores da área de educação passaram a investigar como os professores entendem e exercem sua profissão de “professor”. E, para isso, segundo Losano e Fiorentini (2018a), os pesquisadores têm utilizado as mais diversas perspectivas teóricas, tais como as de: Semionovitch Vigotsky e Jaan Valsiner (Goos, 2005); Jean Lave e Étienne Wenger (Goos; Bennison, 2008; Pamplona; Carvalho, 2009); Michel Foucault (Hossain; Mendick; Adler, 2013; Walshaw, 2004); Jacques Lacan (Brown; Mcnamara, 2011; Walshaw, 2010); Bernard Bernstein (Ensor, 2001); Claude Dubar e Stuart Hall (Gama; Fiorentini, 2009); e Dorothy Holland (Losano; Fiorentini, 2018a; 2021; Meyer; Losano; Fiorentini, 2022; Brito; Fiorentini, 2023; 2024); dentre outros.
Considerando a diversidade de perspectivas teóricas disponíveis, nesta pesquisa, fundamentamos nossa conceitualização da IPD no trabalho de Holland et al. (1998), de Holland (2000) e de Losano e Fiorentini (2018a; 2021). Ancorada em teorias socioculturais que destacam as relações mútuas e dialógicas entre as pessoas e o mundo social, a abordagem desses autores proporciona ferramentas teóricas robustas para analisar indícios de desenvolvimento da IPD no contexto do PRP.
Para Holland et al. (1998), identidade é um conceito amplo que se relaciona com várias teorias da Psicologia, Psicologia Social, Antropologia, Sociologia e, agora, de campos Interdisciplinares, como os Estudos Culturais.
A identidade é um conceito que combina figurativamente o mundo íntimo ou pessoal com o espaço coletivo das formas culturais e das relações sociais. Estamos interessados em identidades, as imagens de si em mundos de ação, como produtos sociais; de fato, começamos com a premissa de que as identidades são vividas por meio da atividade e, portanto, devem ser conceituadas à medida que se desenvolvem na prática social. Mas também estamos interessados em identidades como formações psico-históricas que se desenvolvem ao longo da vida de uma pessoa, povoando o terreno íntimo e motivando a vida social (Holland et al., 1998, p. 5, tradução nossa).
A abordagem da identidade docente na perspectiva sociocultural destaca a compreensão da construção da identidade do professor ou do futuro professor como um fenômeno intrinsecamente ligado ao contexto social e cultural no qual ele está inserido. Essa perspectiva considera que a identidade profissional não é fixa, mas, sim, um processo dinâmico moldado pelas interações sociais, valores, normas e práticas culturais.
Nessa perspectiva, a identidade profissional docente é concebida como sendo coconstruída nas interações sociais, refletindo as influências do ambiente educacional, das comunidades de prática e das relações com os alunos, colegas e outros profissionais. O desenvolvimento da identidade docente ocorre, pois, num contexto social e diversificado.
Nesse sentido, compreendemos a identidade profissional docente como um construto dinâmico e socialmente construído, influenciado por interações complexas entre os professores/futuros professores, seu ambiente de trabalho, as normas sociais e as práticas culturais por eles desenvolvidas: “Assim, as identidades profissionais estão sempre em desenvolvimento e são pontos de vista continuamente negociados ao longo do tempo e do espaço de atuação profissional” (Losano; Fiorentini, 2018a, p. 1.222).
Nessa abordagem, a identidade profissional está intimamente conectada à conjuntura social e cultural em que o professor está inserido. Em especial, Holland (2000) concebe a identidade como uma noção que possui duas dimensões. De um lado, as identidades são sociais, sendo, nesse sentido, fundamentais para a organização, coordenação e controle da vida coletiva. Simultaneamente, as identidades são pessoais, representando “formas-chave pelas quais as pessoas organizam, coordenam e tentam controlar suas vidas cotidianas e experiências íntimas” (Losano; Fiorentini, 2018b, p. 5). De acordo com Holland (2000), há uma relação bidirecional entre essas duas facetas: “as identidades sociais tornam públicas partes da atividade pessoal, enquanto as identidades pessoais conferem uma dimensão íntima às identidades sociais” (Losano; Fiorentini, 2018b, p. 8).
Consideramos que a Identidade Profissional Docente (IPD) de um professor/futuro professor é construída de maneira dialógica, na interseção entre seu universo íntimo e as práticas e discursos aos quais está cotidianamente exposto. Neste artigo, nossa atenção será direcionada para as práticas e discursos provenientes do mundo social e cultural do PRP.
Sendo assim, duas noções teóricas desempenham um papel fundamental para a compreensão do desenvolvimento da IPD nessa interface entre o mundo íntimo e o mundo social. Primeiramente, destaca-se a noção de “mundo figurado”. Conforme concebido por Holland et al. (1998), os mundos figurados são reinos de atuação social e de interpretação culturalmente construídos. Em nossa leitura, os mundos figurados representam espaços de vivência e interação humana, socioculturalmente construídos, que mobilizam e constroem significações e interpretações próprias. Esses mundos proporcionam uma gama de papéis para os seus participantes, conferem importância a determinados eventos e atividades e atribuem valor diferenciado a diversos resultados.
Naraian (2010), ao corroborar o que dizem Holland et al. (1998) sobre o conceito de “mundo figurado”, o concebe como sendo:
Não são desvinculados dos acontecimentos reais, mas são continuamente produzidos e reproduzidos nas atividades cotidianas desses mundos. As atividades diárias são abstraídas pelos indivíduos para gerar expectativas sobre como determinados eventos se desenrolam nesses mundos, ao mesmo tempo que fornecem o contexto para a interpretação desses eventos (Naraian, 2010. p. 1.678, tradução nossa).
Nesse sentido, o conceito de mundos figurados tem sido adotado como uma lente pela qual podemos perceber e descrever o cenário social de identificação, especialmente, entre grupos sociais. Esse conceito, destarte, pode ser utilizado para investigar os sentidos e os significados que permeiam as práticas didático-pedagógicas dos licenciandos que participam do PRP, durante as fases do Lesson Study. Mas, para isso, é necessário documentar discursos ou episódios nos quais esses múltiplos mundos são mobilizados imaginariamente pelos licenciandos e, notadamente, o modo como eles interpretam, ressignificam e se posicionam frente a uma situação atual da prática docente na escola.
Utilizando essa conceitualização de mundos figurados, o PRP pode tornar-se, com o tempo, também um mundo figurado, onde cada residente exerce as atividades acordadas conjuntamente e validadas pelo coletivo. Participar desse mundo envolve a compreensão compartilhada do significado de determinadas ações dentro da instituição, os comportamentos considerados apropriados, os valores que guiam seus membros e a formação de identificações com as práticas estabelecidas nesse pano de fundo, embora esses entendimentos mútuos levem um certo tempo e prática conjunta para serem internalizados e consolidados por todos os participantes.
Essa perspectiva ressalta a importância do contexto do PRP como um ambiente dinâmico, no qual os residentes não apenas desempenham funções específicas, mas, também, constroem sua IPD por meio do envolvimento ativo com as normas, valores e práticas que caracterizam o mundo figurado do PRP.
Segundo Losano e Fiorentini (2021), esse mundo figurado oferece um conjunto de papéis a serem cumpridos ou seguidos por seus participantes, outorgam importância a certos fatos e atividades e valorizam mais alguns resultados do que outros:
Ao longo do tempo, esses mundos figurados produzem e legitimam oportunidades e trajetórias de aprendizagem para seus participantes. Também produzem seus próprios recursos e compreensões sobre o que significa ser um bom professor de Matemática. Assim, os mundos figurados proveem o contexto de significação para as ações e disputas de seus participantes e para as compreensões que eles chegam a desenvolver sobre eles mesmos. Portanto, eles moldam a agência e a identidade profissional dos professores (Losano; Fiorentini, 2021, p. 6).
Nesse sentido, o conceito de mundos figurados oferece uma lente poderosa que nos permite ver e entender como identidades são formadas e negociadas no âmbito educacional, especialmente, em práticas colaborativas, como é o caso específico do PRP desenvolvido na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) no Campus Cuité, Paraíba. Permite, também, explorar como residentes, preceptores e coordenadora posicionam-se e interagem dentro de contextos sociais e culturais específicos, e como essas interações podem ser utilizadas para promover práticas educativas mais relevantes e eficazes.
Um outro aspecto relacionado à identidade, na perspectiva sociocultural, é o espaço de construção de autoria. Losano, Fiorentini e Villarreal (2018, p. 295, tradução nossa) dizem que o espaço de autoria “enfatiza que uma pessoa está continuamente sendo interpelada por diferentes vozes, carregadas de intenções sociais e significados sobre sua identidade”.
No caso dos alunos do PRP, essas vozes podem vir de membros do próprio grupo, da comunidade escolar, da licenciatura em Matemática ou até mesmo de suas experiências escolares pretéritas como estudantes. Um professor de Matemática está constantemente envolvido em um processo de diálogo ao responder a essas vozes para produzir significado para elas ou para problematizá-las. Quando um residente se submete à voz de alguém em uma posição superior, ele começa a reorganizar suas ideias e pensamentos, questionando suas crenças, valores e intenções.
Por meio desse processo de reorganização das ideias, o residente vai construindo sua própria voz, pela qual ele passa a ser o autor. Mas esse processo pode levar algum tempo, pois as ideias e a internalização dessas vozes precisam ser organizadas, na medida em que estão associadas a grupos sociais, tais como outros colegas residentes, preceptores, coordenadores, matemáticos, alunos da escola onde faz residência, aos pais etc.
Sendo assim, o residente está, continuamente, envolvido num processo dialógico, ao tentar produzir sentidos a essas vozes para respondê-las, questioná-las, podendo ressignificá-las ou, até mesmo, adaptá-las às suas próprias necessidades: “O desenvolvimento da identidade profissional envolve, assim, orquestrar vozes e discursos provenientes de diversos mundos sociais e do presente ou do passado -para produzir compreensões sobre ele mesmo e para se imaginar em novos mundos sociais vinculados com o ensino e a aprendizagem da Matemática” (Losano; Fiorentini, 2021, p. 1.222).
Entretanto, não são apenas as identidades que estão sempre em desenvolvimento e transformação. Os mundos figurados são, também, continuamente, criados e recriados pelos seus participantes. Certas práticas culturais, especialmente, aquelas produzidas fora dos tempos e espaços regulados, “são ocasiões nas quais mundos alternativos podem ser imaginados e experimentados e, também, oportunidades para que as pessoas representem a si mesmas dentro desses novos mundos” (Losano; Fiorentini, 2021, p. 1.223).
Nessa perspectiva, certas práticas, tais como participar do programa de residência pedagógica, pode ser uma oportunidade de imaginar novos mundos vinculados ao ensino de Matemática e à profissão ser professor de Matemática e à modificação/construção/reconstrução de novas IPD dos FPM.
Essa explicação das noções-chave desenvolvidas por Holland et al. (1998) oferece uma justificativa para a escolha desta perspectiva entre as diversas teorias sobre a identidade. Na nossa visão, é correta a postulação de Losano e Fiorentini (2018a), quando defendem que as concepções de “mundo figurado” e “espaço de construção de autoria” destacam uma das dimensões mais fecundas da ideia de identidade: sua habilidade para articular o desenvolvimento das pessoas, no caso específico, futuros professores, com os mundos sociais nos quais estão inseridos - neste caso, o PRP vinculado a uma escola e a Matemática do curso de licenciatura. Portanto, o desenvolvimento da identidade, por meio da participação em um PRP, não pode ser interpretado como um processo simples de reprodução das identidades sociais projetadas nesses mundos figurados. Pelo contrário, compreendemos que os futuros professores estão envolvidos em um processo complexo e sempre em evolução de orquestração e arranjo de vozes e discursos frequentemente contraditórios e originados tanto do PRP quanto da universidade (licenciatura em Matemática) onde atua para construir compreensões sobre si mesmos, como futuros educadores e sobre suas próprias práticas pedagógicas em Matemática.
Com base nessas noções teóricas, a investigação do desenvolvimento da identidade, no âmbito da participação em um PRP, requer, em primeiro lugar, a descrição e o estudo do mundo figurado deste processo formativo. Em segundo lugar, é essencial analisar como um FPM, participante do PRP-LS, orquestra, neste espaço formativo, as vozes e os discursos provenientes da universidade (curso de licenciatura em Matemática) e da escola básica (pretérita onde estudou ou atual onde faz a residência pedagógica) para construir compreensões de si mesmo ou para planejar e implementar tarefas exploratórias na escola básica, durante o PRP, como FPM. No bojo deste estudo, tais aspectos serão analisados e discutidos, tanto em relação ao PRP quanto ao estudo de caso específico do residente R1.
Considerando que nosso campo de pesquisa são as práticas formativas de professores de matemática em contexto específico que é o PRP, desenvolvido sob um processo de Lesson Study, e nosso objeto de estudo é a constituição da identidade profissional dos futuros professores que participam desta conjuntura, a melhor opção que vislumbramos, para investigá-lo, é mediante uma pesquisa de natureza e abordagem qualitativa. Caracteriza-se como qualitativa, porque, na perspectiva de Bogdan e Biklen (1994):
1) “A fonte direta de dados é o ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento principal” (Bogdan; Biklen, 1994, p. 48). Nosso ambiente natural é o próprio PRP, o qual já existia antes de iniciar a pesquisa de campo. A coleta de dados, neste ambiente, deu-se, de um lado, com base em documentos oficiais do PRP (Regulamentos, Resoluções, Editais de Seleção, Página web) e, de outro, mediante: relato de experiência produzido pelo Residente 1 (R1), ao final do primeiro módulo; entrevistas semiestruturadas e observações que aconteciam com frequência dentro do PRP; áudio-gravações dos encontros semanais; registros do pesquisador (primeiro autor) que esteve presente, acompanhando todas as etapas do projeto.
2) “A investigação qualitativa é descritiva” (Bogdan; Biklen, 1994, p. 48), já que esses dados foram, em parte, transcritos, constituindo um material descritivo, que serviu de base para as nossas compreensões a respeito do objeto de estudo. Tendo por base os dados coletados e transcritos, o pesquisador descreve com detalhes os processos vividos e experienciados pelos participantes durante as ações do PRP, sendo este material descritivo objeto de análise posterior.
3) “Os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que simplesmente pelos resultados ou produtos” (Bogdan; Biklen, 1994, p. 49). Considerando que adotamos um referencial sociocultural, na perspectiva de Holland et al. (1998; 2000) e de Losano, Fiorentini e Villarreal (2018), para investigar a identidade profissional do participante do PRP com LS, não estamos interessados apenas nos resultados (aprendizados do FPM ou aspectos/elementos/mudanças evidenciados da IPD, ao final de cada ciclo formativo do PRP-LS). Temos interesse, sobretudo, em narrar e interpretar analiticamente como o futuro professor de matemática participa do PRP; como ele se transforma durante esse processo formativo, principalmente, como molda sua identidade profissional; como orquestra e problematiza as vozes e os discursos provenientes da universidade e da escola (pretérita e presente) para construir, de um lado, compreensões sobre si mesmo e, de outro lado, modos de planejar tarefas exploratórias e de implementá-las na sala de aula da escola básica, projetando como poderia ser sua futura prática profissional.
4) “Os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus dados de forma indutiva” (Bogdan; Biklen, 1994, p. 49). Porém, nesta pesquisa, ao utilizarmos a análise narrativa como modo de interpretação e análise das evidências de constituição identitária do FPM, empregamos o raciocínio abdutivo, conforme as postulações de Ginzburg (1989). Para o autor, esse raciocínio é composto pela interação entre o pensamento indutivo e o pensamento dedutivo. Entendemos que o raciocínio abdutivo objetiva a melhor explicação narrativa da emergência e significação de um determinado evento ou fenômeno. Em nossa pesquisa, os dados recolhidos foram narrativamente agrupados e inter-relacionados no decorrer de nossas análises de modo que pudessem inferir interpretativamente os aspectos específicos e relevantes acerca da constituição identitária do FPM, sem perder de vista os sentidos que ele atribui às experiências vividas.
5) “O significado é de importância vital na abordagem qualitativa” (Bogdan; Biklen, 1994, p. 50). Durante a análise dos dados, buscamos respeitar e destacar o ponto de vista dos residentes. Além disso, o significado que os participantes de nossa pesquisa deram às experiências de suas participações no PRP por eles vivenciadas recebeu especial atenção, tanto que, ao longo de todo o trabalho, sempre ressaltamos que pretendíamos investigar a identidade profissional docente desses futuros professores de Matemática que participam do programa de residência pedagógica que utilizam o LS como processo formativo.
Por outro lado, tendo em vista a limitação de espaço deste artigo, não podemos analisar o desenvolvimento da identidade profissional, no âmbito da PRP-LS, de todos os participantes. Optamos, então, por investigar com profundidade um dos residentes participantes (R1) quando participou do primeiro módulo do PRP, no período de setembro de 2022 a abril de 2023.
Trata-se, portanto, de um estudo de caso. Yin (2001, p. 39) define estudo de caso como “uma investigação empírica que tem por objetivo investigar um fenômeno dentro do seu contexto, quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos”.
A escolha do residente R1 ocorreu porque participou de todas as etapas dos seis ciclos de LS desenvolvidos durante o primeiro módulo. Ele se mostrou muito colaborativo, trazendo material para discutir com os demais membros do grupo e encorajando-os a se engajarem nas atividades. Isso nos motivou a querer conhecer mais profundamente as contribuições do PRP com LS na constituição de sua Identidade Profissional Docente (IPD).
A seleção do PRP como campo de investigação é respaldada por sua significativa importância no cenário nacional de formação inicial de formação de professores, pela amplitude de sua abrangência e pelos substanciais investimentos públicos, expressos em recursos financeiros, dedicados à sua concepção, implementação e manutenção ao longo do período.
Para compilar a descrição do PRP, reunimos os dados resumidos no quadro 1. O processo de elaboração e análise desse mundo figurado ocorreu em duas etapas distintas. Inicialmente, desenvolvemos uma descrição com base na leitura e análise dos documentos oficiais do PRP. Posteriormente, aprimoramos e aprofundamos essa descrição ao incorporar citações provenientes da entrevista com R1 e da preceptora de R1. Em ambas as etapas, os três enfoques analíticos foram fundamentais como direcionadores da análise. Dessa forma, a decisão de incluir ou excluir uma determinada temática na nossa análise esteve condicionada à sua relação com os nossos focos analíticos.

A análise do mundo figurado do PRP do subprojeto matemática da UFCG, Campus Cuité (PB), foi desenvolvida considerando os seguintes descritores analíticos: a visão do professor respaldada pelo ambiente figurado, abrangendo discursos acerca das necessidades formativas dos residentes, sua condição ao ingressar no PRP e o perfil almejado ao término de sua participação nesse programa; a perspectiva de desenvolvimento profissional sustentada pelo programa, incluindo as aprendizagens valorizadas e as oportunidades proporcionadas para aprimorá-las; e as possibilidades oferecidas pelo PRP para conectar as práticas e os discursos do mundo figurado com as atividades docentes na escola.
Para descrever e analisar narrativamente o processo de aprendizagem, especialmente, de constituição de sua IPD, ao longo do módulo 1, utilizamos basicamente duas fontes de dados, conforme o quadro 2.

O Residente R1 tem 24 anos. Sempre foi aluno de escola pública, tendo demonstrado proficiência em Matemática ao longo de sua escolarização, o que lhe instigou a ingressar no curso de licenciatura em Matemática. A opção por essa graduação em específico deve-se à sua paixão pela disciplina e ao seu desejo de se tornar professor de Matemática.
Atualmente, como aluno do curso de licenciatura em Matemática da UFCG, Campus Cuité (PB), participou dos três módulos do PRP do edital 01/2022 da CAPES. R1 sempre manifestou um forte desejo de atuar como professor na Educação Básica, motivado pela percepção da carência de educadores qualificados na área de Matemática nesse nível de ensino. Ele almeja fazer a diferença nesse cenário, construindo uma ponte entre a Matemática da universidade (conhecida como Matemática pura) e a Matemática de sala de aula da escola básica.
Em relação às projeções futuras, R1 expressa o desejo de promover mudanças na prática escolar, afastando-se das abordagens tradicionais de ensino que considera pouco significativas para os alunos. Ele optou participar do PRP para ampliar sua experiência em sala de aula, aprimorar sua formação e, adicionalmente, a bolsa oferecida pelo programa contribui para custear suas despesas diárias na universidade e, até mesmo, ajudar nas despesas de casa.
Aproveitando a concepção do “espaço de construção de autoria”, este caso representa um terreno propício para examinar como um futuro professor coordena, no âmbito do PRP, as vozes e os discursos veiculados no PRP àqueles derivados de suas crenças e experiências sobre o que é ser um bom professor de Matemática diante das diferentes vozes produzidas e incorporadas por R1 no mundo figurado da universidade. Nessa situação, R1 destaca elementos da Matemática pura, integrando-os ao mundo figurado do PRP, com foco no ensino da Matemática vinculado à escola básica.
E, por ser o processo de constituição da identidade um fenômeno diacrônico, que se elucida ao longo do tempo e mediante participação dos futuros professores em práticas formativas e colaborativas do tipo LS, optamos pela análise narrativa, na perspectiva de Riessman (2005; 2008) e Cristovão e Fiorentini (2021). Para isso, procedemos à transcrição da entrevista e, posteriormente, escolhemos um conjunto de episódios ocorridos dentro e a partir do universo concebido do PRP nos quais R1 coordenou vozes e discursos originados do PRP para construir entendimentos sobre sua identidade como futuro professor.
De acordo com Losano e Fiorentini (2018a), um episódio é um acontecimento ou evento que se destaca por sua relevância informativa e elucidativa do fenômeno a ser investigado. Todo o episódio possui um contexto que lhe proporciona significação e compreensão e um grupo de participantes que interagem, criam e negociam significados em torno de um evento. Em última análise, conduzimos uma análise narrativa performativa (Riessman, 2005) dos episódios.
A análise narrativa, na perspectiva de Riessman (2005), é uma metodologia qualitativa que examina as histórias que as pessoas contam sobre suas vidas e experiências. Riessman enfatiza que essas narrativas não são apenas relatos de eventos, mas construções ativas que revelam como os indivíduos compreendem e dão sentido às suas ações. Essa perspectiva considera a narrativa como um recurso fundamental para explorar a identidade, pois as histórias que contamos sobre nós mesmos e sobre nossas experiências refletem e moldam nossa percepção de quem somos.
Quando nos referimos à constituição da identidade profissional docente, a análise narrativa é particularmente relevante. A perspectiva sociocultural sugere que a identidade profissional é constituída através da dimensão íntima e das interações sociais e culturais. Ao analisar as narrativas dos residentes, podemos entender como interpretam suas experiências ao longo do PRP, como se veem em relação ao processo formativo do LS, as ações vivenciadas ao longo da participação do PRP e como constroem suas identidades profissionais em resposta às influências culturais e institucionais nas quais estão inseridos.
Riessman (2008) argumenta que as narrativas permitem aos pesquisadores capturar a complexidade da vida humana, incluindo as contradições e ambiguidades. Para os residentes, contar suas histórias permite que eles reflitam sobre suas práticas, revelem suas crenças e valores, e articulem suas aspirações e desafios. A análise dessas narrativas pode revelar como os residentes negociam suas identidades no contexto do PRP e como lidam com as tensões entre suas crenças pessoais e as experiências sociais e suas expectativas com relação à profissão docente.
Portanto, a análise narrativa, na perspectiva de Riessman (2008), é uma ferramenta poderosa para investigar a constituição da identidade profissional docente. Ela nos permite compreender como os residentes constroem e reconstroem suas identidades ao longo de sua participação do PRP, influenciados por suas experiências pessoais, interações sociais e contextos culturais. Ao dar voz aos residentes e examinar suas histórias, a análise narrativa contribui para uma compreensão mais profunda e holística da identidade profissional docente de futuros professores de matemática no campo educacional.
Ainda em conformidade com as postulações de Losano e Fiorentini (2018a), esse tipo de análise contempla tanto o conteúdo de uma narrativa quanto a sua forma, destacando não apenas o que foi expresso, mas, também, a sequência dos eventos, ênfases, tom, ou seja, todos os elementos relacionados à maneira como a história foi narrada (Kaasila, 2007). Para efetuar essa análise, segundo Losano e Fiorentini (2018a), são levados em consideração os seguintes elementos: as posições dos participantes no episódio, o contexto envolvente, os diálogos entre eles, os sinais paralinguísticos e a audiência do interlocutor (Riessman, 2008).
Dessa forma, a análise narrativa do caso de R1 foi orientada pelos seguintes enfoques analíticos: quem são seus principais interlocutores dentro do PRP subprojeto matemática? Quais são os discursos e vozes do PRP que R1 incorpora? Como R1 coordena ou orquestra esses discursos com os provenientes do passado e/ou de outros contextos concebidos para desenvolver entendimentos sobre si mesmo?
Conforme Clandinin e Connelly (2000), uma análise narrativa deve atender a critérios, como autenticidade, adequação, plausibilidade, além de apresentar qualidade explicativa e convidativa à exploração da experiência examinada. Com base nisso, elaboramos descrições minuciosas de cada episódio, assegurando que a voz do professor fosse devidamente “amplificada”; destacamos a capacidade da narrativa em esclarecer os fenômenos e as vivências (Kaasila, 2007); incorporamos diversas fontes de dados para enriquecer nossas análises.
A seção seguinte tem como propósito apresentar a análise dos dados, começando pela descrição e análise do PRP do subprojeto de matemática da UFCG, Campus de Cuité, enquanto mundo figurado e prosseguimos com a análise narrativa da constituição da identidade do caso R1.
O PRP é um programa de apoio à formação inicial de professores de Matemática e visa, sobretudo, a aprimorar o estágio na escola básica, de modo que o futuro professor tenha oportunidade de planejar e implementar aulas, fazer ensaios de aula e experimentações em aula e, principalmente, refletir e investigar sobre essa prática.
Os objetivos desse programa são:
I - fortalecer e aprofundar a formação teórico-prática de estudantes de cursos de licenciatura; II - contribuir para a construção da identidade profissional docente dos licenciandos; III - estabelecer corresponsabilidade entre IES, redes de ensino e escolas na formação inicial de professores; IV - valorizar a experiência dos professores da educação básica na preparação dos licenciandos para a sua futura atuação profissional; e V - induzir a pesquisa colaborativa e a produção acadêmica com base nas experiências vivenciadas em sala de aula (Capes, 2022, p. 2, grifo nosso).
O PRP, conforme Capes (2020, p. 2), é formado por um docente orientador (formador de Instituição de Ensino Superior - IES “responsável por planejar e orientar atividades dos residentes”), três preceptores (professores de escola básica responsáveis por “planejar e orientar as atividades dos residentes na escola”) e 15 bolsistas residentes (“discentes com matrícula ativa em curso de licenciatura que tenha cursado o mínimo de 50% do curso ou que estejam cursando a partir do 5º período”).
No mundo figurado do PRP, portanto, é esperado que o residente atue na escola de maneira ativa e se engaje às práticas escolares, assumindo uma postura crítico-reflexiva e investigativa em relação a essas práticas, perspectivando novas formas de intervenção e melhoria do ensino.
Os residentes do subprojeto de matemática do PRP da UFCG (Campus de Cuité) são, dessa forma, futuros professores que têm oportunidade de atuar em escolas públicas na Educação Básica ao mesmo tempo em que ainda são alunos do curso de licenciatura em Matemática. Muitos desses residentes são alunos vindos de outras cidades e de zona rural, que possuem baixa renda, que saem de suas casas pela manhã e só voltam à noite, porque veem no curso superior uma oportunidade de mudar de vida e proporcionar aos seus familiares uma condição melhor de vida. Assim, dentro desse mundo figurado, o futuro professor de matemática deve se engajar e coordenar sua participação no PRP, estabelecendo interlocução com outros mundos figurados (família, universidade, sua escola básica pretérita etc.).
“Este processo, que envolve conciliar diferentes identidades, não é simples” (Losano; Fiorentini, 2018b, p. 11) e acaba causando algumas dificuldades e tensões aos residentes durante a participação do PRP. Isso porque o futuro professor que chega ao mundo figurado da PRP chega com suas crenças, valores, costumes e concepções sobre a Matemática e seu ensino que foram construídas ao longo de sua vida estudantil, desde a Educação Básica até a Matemática que é vista no curso de licenciatura. Espera-se que essas crenças e concepções sejam confrontadas, problematizadas e ressignificadas a partir das ações que são desenvolvidas no mundo figurado do PRP, fundamentalmente, se os residentes são desafiados a experienciar um ensino exploratório, colaborativo e reflexivo, diferente daquele geralmente vivenciado no mundo figurado da escola tradicional ou tecnicista que tem por base o paradigma do exercício (Fiorentini, Honorato; Paula, 2023).
Em relação ao modo como é entendido o desenvolvimento profissional dentro desse mundo figurado, os objetivos do PRP do subprojeto matemática que é desenvolvido na UFCG, Campus de Cuité, são:
Contribuir para construção de conhecimentos dos residentes em relação ao conteúdo específico da Matemática da Educação Básica e o conhecimento didático do conteúdo que será ensinado a partir da vivência de ciclos de LS com o ensino exploratório; e construir relações colaborativas (professor - aluno, professor - professor, professor - futuros professores, professor - gestão escolar etc.) que são essenciais para o processo de ensino e de aprendizagem (Docente orientadora, Entrevista, mar. 2023).
Desta forma, dentro desse mundo figurado, ter uma formação que vai além do conteúdo específico e da didática do conteúdo significa que o futuro professor deve conhecer os diferentes elementos que contribuem para o processo de ensino e de aprendizagem da Matemática. Portanto, as aprendizagens docentes valorizadas dentro desse mundo figurado estão relacionadas não só ao conhecimento matemático e didático do conteúdo, mas, também, às interações sociais e culturais que são desenvolvidas no processo de ensino-aprendizagem.
Formar futuros professores com conhecimento específico da Matemática e da metodologia do conteúdo, juntamente com as relações sociais colaborativas, possui uma importância central dentro deste mundo figurado, porque:
O professor que sabe muito do conteúdo específico da Matemática e não sabe didática do conteúdo acaba sendo aquela aula mecanizada, parece que ele está dando aula para ele mesmo. Quantas vezes a gente não escuta os alunos falarem por aí: “Poxa! Prof. Fulano de tal é tão inteligente, mas na hora de ensinar... é um Deus nos acuda! Ninguém entende nada”. Isso muitas vezes se dá por falta dessa didática, da falta de conversar com os alunos e entender o que tá acontecendo. E isso acaba desmotivando os alunos. Por isso a importância de programas como o PRP, pois eles ajudam a formar professores mais reflexivos que se preocupam com a aprendizagem do aluno (Preceptora de R1, Entrevista, mar. 2023).
Com essas palavras, a preceptora destaca o papel da professora orientadora e, até mesmo, o dela como preceptora de motivar e estimular o desenvolvimento profissional dos residentes, de modo que eles possam incorporar à sua identidade profissional docente essa preocupação para com o processo de ensino e de aprendizagem da Matemática pelos alunos. Desta forma, este é um mundo figurado que foi construído visando, principalmente, ao desenvolvimento profissional de futuros professores de matemática de modo que suas práticas e ações possam contribuir de maneira significativa para aprendizagem Matemática dos alunos da Educação Básica.
No PRP, as ações que são desenvolvidas de maneira a produzir essas aprendizagens são baseadas no ciclo do LS (Planejamento colaborativo, regência realizada por um residente e observada pelos demais residentes do grupo, reflexão pós-regência e replanejamento da aula quando necessário). O residente deve participar de todas as ações propostas que estão em consonância com os objetivos do PRP e com as necessidades formativas desse mundo figurado. No próximo tópico, a propósito, vamos aprofundar essa discussão, mediante análise narrativa do caso do residente R1, destacando como ele coordena as diferentes vozes provenientes de diferentes mundos figurados para construir e modelar sua própria identidade profissional docente.
Ao iniciar a narrativa de seu percurso educacional, R1 compartilhou na entrevista três experiências formativas em três mundos figurados distintos e que revelam mudança de identidade de matemática e do que é ser um bom professor de matemática. A primeira foi como aluno do Ensino Médio e, a segunda, como estudante da Licenciatura em disciplinas relacionadas à Matemática pura:
O cara [referindo-se ao professor de Matemática do Ensino Médio] chegava na sala só com uma caneta para escrever no quadro e pronto! A aula acontecia de boa! Aí eu pensava, né: então, para ser um bom professor, eu só preciso saber o conteúdo. E como eu gostava de Matemática, aí entrei para o curso de Matemática e os professores da Matemática pura eram quase tudo assim, sabe? Aí o cara [o aluno] vai meio que absorvendo aquilo (R1, Entrevista, mar. 2023).
A terceira experiência formativa ocorreu ao participar do PRP:
Tipo, foi meio que um choque, porque lá [no PRP] eu fui perceber que ser um bom professor não é só saber o assunto tem também que saber como ensinar o assunto. Tipo, tem que pesquisar, planejar, refletir, pensar se faz sentido ou não para o aluno. Aí a gente começa a perceber que ser um bom professor é ir além do conteúdo, é se colocar no lugar do aluno também (R1, Entrevista, mar. 2023).
R1, diante dessas experiências, tenta orquestrar vozes provenientes desses diferentes mundos figurados para explicitar sua mudança de identidade e sua posição atual, ainda em transição, em relação à Matemática e do que é ser um bom professor de Matemática.
É possível a gente notar que existe uma certa valorização da Matemática pura e detrimento da educação Matemática. Eu já vi até professor da universidade dizer que quem vai para a educação Matemática é porque não sabe Matemática e acho que isso não é verdade! Tipo, hoje eu tenho maturidade para entender que o curso de licenciatura é para formar professores de Matemática para trabalhar na Educação Básica, então só saber Matemática não é suficiente e a participação no PRP deixou isso muito claro, pra mim! Aí hoje eu fico meio que no meio sabe entre a Matemática pura e o ensino de Matemática (R1, Entrevista, mar. 2023).
R1 tenta coordenar discursos veiculados em diferentes mundos figurados para construir sua própria compreensão como futuro professor: ele é um professor em formação que está no “meio entre a Matemática pura e o ensino de Matemática” e, consequentemente, atribui valor tanto à Matemática como disciplina em si quanto à matemática vista como conhecimento a ser ensinado. Portanto, podemos inferir que R1 se percebe como um futuro professor comprometido com dois universos figurados: o da Matemática pura e o do ensino da Matemática.
Para expressar suas expectativas em relação ao PRP, R1 começou a estabelecer conexões entre os discursos originados nesses dois mundos figurados:
De início eu achava que a gente ia fazer igual faz no estágio, preparar aula e ministrar e tal. De fato, é isso, mas não é só isso. A gente conheceu o LS, as etapas do LS e começamos a estudar muito, muito mesmo cada conteúdo que a gente ia ministrar aula. Então, a gente se sentava, pesquisava, estudava, discutia entre os colegas residentes, com a coordenadora e as preceptoras cada ação que seria feita na aula, discutia as situações problemas, possíveis dúvidas e dificuldades que os alunos poderiam ter, o cuidado com a linguagem utilizada, de modo que o aluno possa entender e isso era muito bom, porque nos dava mais segurança na hora de dar aula (R1, Entrevista, mar. 2023).
R1 começa o episódio falando de suas expectativas com relação ao PRP, achando que ia ser parecido com o que foi feito na disciplina de Estágio Curricular Supervisionado (ECS), e considera que foi bem diferente do que ele pensou. Aqui, vale ressaltar que, durante a entrevista, R1 mencionou “n” vezes como o planejamento colaborativo contribuiu para a construção de uma boa aula, utilizando frases como: “a gente tirava dúvidas uns dos outros durante o planejamento”; “pensava em conjunto se uma situação problema seria adequada ou não”; “muitas vezes até a questão da linguagem a gente pensava como falar porque uma coisa é explicar para um colega de curso, e outra coisa é explicar para os alunos” (R1, Entrevista, mar. 2023).
Essas frases mostram que R1 tenta organizar as diferentes vozes vindas do mundo figurado do PRP para mostrar a importância de como um planejamento colaborativo desenvolvido em um ciclo de LS contribui para o desenvolvimento profissional do futuro professor de Matemática e, consequentemente, para o desenvolvimento da identidade profissional docente.
Ainda durante o episódio, R1 (Entrevista, mar. 2023) fala da diferença que é explicar para outro residente e a diferença que é falar para um aluno: “Quando estou explicando um conceito matemático para um outro colega eu posso usar o rigor matemático, tipo a linguagem de símbolos”, ou seja, uma linguagem mais aprofundada. “Quando explico para os alunos, nem sempre essa linguagem de símbolos vai ser o suficiente para que eles entendam, aí vem outras formas de explicar”, referindo-se ao conhecimento pedagógico do conteúdo.
R1 parece capaz de coordenar, sem grandes conflitos, os discursos originados nos dois mundos figurados, a fim de construir sua própria compreensão como futuro professor de Matemática.
Na entrevista, R1 destacou a importância do LS apresentado pela professora coordenadora do PRP para seu desenvolvimento profissional. Para ele, “o LS é voltado para a aprendizagem do aluno, mas quem mais aprende somos nós, com certeza!”. Trata-se de uma “forma de ensinar que visivelmente você vê mudanças” tanto para quem aprende como para quem ensina (R1, Entrevista, mar. 2023).
Assim, na sua fala, o processo formativo LS gera um espaço onde se pode estabelecer conexões entre o mundo figurado do PRP e o mundo figurado da Matemática pura. Quando solicitamos uma explicação mais aprofundada dessas ideias, R1 compartilhou o seguinte episódio, no qual trouxe à tona uma considerável porção de seu passado:
Minha avó era professora, tenho uma tia que também é professora. Então, eu acho que ser professor está no sangue já (risos)... Então, eu quis ser professor também e como sempre gostei de Matemática, de ajudar meus colegas de classe que tinham dificuldades com a Matemática, então percebi que poderia ser uma boa ideia ser professor de Matemática (R1, Entrevista, mar. 2023).
O depoimento permite inferir que R1 compartilha um pouco da origem de seu desejo de se tornar professor, apresentando personagens significativos que o inspiraram, como sua avó e sua tia. Ele ilustra como, ao longo do tempo, sentiu-se estimulado a seguir a carreira docente. No início do episódio, o foco parecia estar primariamente em tornar-se professor, com os exemplos da avó e da tia como verdadeiras “portas de entrada” para o mundo do ensino, conforme expresso por R1. Contudo, ao final do episódio, a atenção volta-se para a materialização desse desejo de se tornar professor de Matemática. Essa busca pessoal, que teve início muito antes de ingressar no PRP, encontrou eco e conexão com a história de sua família em relação ao magistério. Sua participação no PRP permitiu-lhe, de um lado, religar com seu passado e, de outro, ampliar sua identificação e aspiração de tornar-se professor de Matemática.
Seu desejo de tornar-se professor de Matemática e os conhecimentos mobilizados e adquiridos no contexto do mundo figurado do PRP foram fatores decisivos para a escolha do tema do relato de experiência escrito por R1 (Entrevista, mar. 2023), ao término do módulo do PRP: “experiências vivenciadas com aplicação do lesson study, pelo edital 2022, no primeiro módulo da residência pedagógica”. A principal base teórica do relato faz referência a textos amplamente valorizados no âmbito do PRP e que tratam das contribuições do LS para o desenvolvimento profissional docente (Nascimento et al. 2023; Baldin, 2009; Ponte et al. 2016), e a resolução de problemas como uma ferramenta metodológica dentro do LS (Duarte, 2000).
Utilizando esses recursos, R1 escreve em seu relato de experiência como essas ferramentas foram utilizadas durante o módulo e como elas contribuíram para seu desenvolvimento profissional:
Hoje eu tenho uma outra visão do que é ser um bom professor. Tipo: a gente tem que ter cuidado na linguagem que utiliza. Não pode ser uma linguagem muito rebuscada, como se diz. Tem que ser uma linguagem que o aluno entenda [...]. Antes, eu nem pensava nisso. O cuidado com o planejamento também é fundamental e antes nem pensava nisso. Pra mim, era só ver que conteúdo era a aula e mandar ver... (Risos) Mas aqui a gente vê que o negócio é bem diferente (R1, Relato de experiência, 2023).
Neste episódio, R1 delineia uma percepção de si mesmo como um educador que desempenha o papel de “tradutor” entre a linguagem técnica da Matemática, repleta de simbolismos, e uma linguagem mais acessível aos alunos. A ênfase atribuída à tradução destaca o distanciamento entre o mundo figurado da Matemática pura privilegiada no curso de licenciatura na universidade e o mundo figurado da prática escolar, cuja conexão ou contrataste com esses dois mundos foi viabilizada e autorizada pelo PRP. Esse distanciamento, conforme expresso por R1, é percebido como uma distância linguística, cujo desafio do professor é tentar traduzir a linguagem técnica da Matemática, rica em simbolismos, para “uma linguagem compreensível ao aluno”.
No que diz respeito às atividades destinadas à sala de aula, desenvolvidas durante o ciclo de LS no primeiro módulo do PRP, elas podem ser consideradas como o resultado desses esforços de tradução ou de diálogo/conexão entre os mundos figurados da escola e da universidade. Cada atividade vem acompanhada de um conjunto de “Orientações para o residente que irá ministrar a aula”, nas quais são delineados os objetivos da tarefa, sua posição na sequência didática, o tempo de investigação e a previsão de possíveis dúvidas e dificuldades dos alunos. Em alguns casos, são mencionados possíveis raciocínios dos alunos. R1 descreveu o processo de elaboração das atividades como “difícil, porém de muito aprendizado”:
O processo eu chamei de difícil porque houve a necessidade de sentar, pesquisar, discutir com os outros residentes, com a preceptora, com a professora orientadora, refletir, refazer muitas vezes, ouvir os alunos, as dificuldades que eles tinham, e transportar para a linguagem mais do dia a dia dos alunos, e isso não é fácil. A gente apanha muito no início, porque muitas vezes a linguagem Matemática que a gente aprende na universidade não faz sentido para os alunos. Aí, tem essa necessidade de tentar tornar mais acessível aos alunos (R1, Entrevista, mar. 2023).
Neste depoimento, R1 parece estar profundamente envolvido em uma batalha para coordenar os discursos e práticas derivadas da Licenciatura em Matemática e suas estratégias de ensino na escola. Como mencionado anteriormente, dentro do mundo figurado do PRP relacionado ao ensino de Matemática, R1 se percebe como um futuro professor dedicado a mediar a construção de conhecimentos de maneira acessível e próxima aos seus alunos, utilizando uma linguagem compreensível.
R1 concluiu a entrevista defendendo a necessidade de uma aproximação entre esses dois universos figurados:
Eu acho que a universidade precisa se aproximar mais da sala de aula da Educação Básica, reduzir um pouco o nível para investigar o que está acontecendo no dia a dia da sala de aula. Quando utilizamos uma linguagem mais dura da Matemática, como a linguagem acadêmica, estamos gerando um conhecimento crucial que precisa ser preservado para as gerações futuras. Mas, assim, essa linguagem muitas vezes não é entendida por quem mais precisa desse conhecimento, que são os professores que atuam diretamente na sala de aula da educação básica e que devem ensinar, sabe? Assim, eu acho que seria mais eficaz uma comunicação mais direta e colaborativa entre a academia e os professores (R1, Entrevista, mar. 2023).
Nessa declaração, R1 reitera as tensões presentes em sua experiência no curso de licenciatura em Matemática. Embora resgate alguns discursos típicos do curso voltado para a matemática pura, como o interesse em produzir um conhecimento formatado para a posteridade, ele destaca a necessidade desse universo abstrato se aproximar da realidade da sala de aula.
Ao utilizar a linguagem estabelecida no Programa de Residência Pedagógica (PRP), R1 percebe que suas intervenções pedagógicas, ainda que fruto de considerável esforço, acabam sendo acessíveis para o público-alvo desejado: os professores de Matemática. Uma vez que todo o material desenvolvido durante o PRP está sendo estruturado na forma de e-book para futuras publicações. Mais uma vez, reafirma em seu discurso que a linguagem desempenha um papel crucial, acreditando ser este o principal fator que separa esses dois universos figurados. O desejo de estabelecer uma “conversa efetiva” entre esses dois mundos figurados requer, inevitavelmente, a construção de uma linguagem comum, na qual as preocupações diárias da sala de aula possam não apenas ser expressas, mas, também, compreendidas e abordadas.
Do ponto de vista de alguém que passou pelo Programa de Residência Pedagógica, R1 finaliza a entrevista enfatizando a necessidade de aproximação do mundo figurado abstrato do curso de matemática com o contexto prático da sala de aula.
A análise narrativa da participação de R1 no PRP - subprojeto de Matemática da UFCG, Campus de Cuité - evidencia que este também é um novo “mundo figurado”, mas ainda em construção, pois os participantes podem trazer, problematizar, discutir e ressignificar os discursos e práticas tanto do mundo figurado da Universidade em seu curso de licenciatura em Matemática como, do mesmo modo, do mundo da escola, sobremaneira, da prática de ensinar e aprender Matemática. Outros resultados e conclusões relevantes podem, igualmente, ser destacados e sistematizados, a partir dos questionamentos e reflexões de R1 e confrontados com resultados de outros estudos:
1) Desafios da relação ou transição entre os mundos figurados da universidade e da escola básica: R1 destaca as dificuldades de conciliar os discursos e práticas provenientes da Licenciatura em Matemática (Matemática pura) com as demandas do ambiente escolar. Ele considera que a linguagem acadêmica é a principal barreira, apostando na necessidade de fazer uma tradução cuidadosa de modo a tornar o conhecimento matemático acessível aos alunos e professores.
Embora R1 tenha identificado este problema, graças às atividades no âmbito do PRP, ele, de certa forma, naturaliza como legítimas as práticas matemáticas privilegiadas nos cursos de licenciatura, cabendo a responsabilidade de os formadores e professores do campo da Educação Matemática fazerem a transposição didática desses conteúdos, numa linguagem mais acessível, para facilitar a aprendizagem pelos alunos da escola básica. O estudo de Moreira e David (2005) mostra que a Matemática Acadêmica é diferente da Matemática Escolar, e que uma não deve ser imagem e semelhança da outra. Entretanto, a formação Matemática do futuro professor de Matemática não pode ser a mesma do matemático profissional ou do engenheiro. O futuro professor precisa conhecer, segundo Fiorentini e Oliveira (2013, p. 932), “os processos e significados conceituais e epistemológicos fundamentais da matemática enquanto cultura humana, não para depois transpô-los didaticamente a seus alunos da escola básica, mas, para analisá-los criticamente, avaliando seus limites e as possibilidades formativas de seus alunos”.
2) A complexidade da aprendizagem e da identidade profissional docente: a identidade profissional docente de R1 do que seria um bom professor de matemática adquirida durante a escola básica e reforçada pelas disciplinas específicas relativas à Matemática pura, durante os primeiros anos de licenciatura, foi posta em questão e problematizada no contexto do PRP, cujas atividades possibilitaram estabelecer conexões entre os mundos figurados da escola e da universidade. Se, inicialmente, acreditava ser suficiente o professor saber bem a Matemática para ensiná-la, ao ser desafiado a ensinar Matemática que fizesse sentido aos alunos da escola básica, percebeu, provavelmente devido à experiência com Lesson Study, a necessidade de ir além do conhecimento matemático, incorporando, também, estratégias de ensino, planejamento colaborativo de tarefas exploratórias e reflexão ou análise sobre a implementação das tarefas e a gestão da aprendizagem, bem como dos resultados obtidos etc. Isso evidencia o quão complexa é a constituição da identidade do professor de Matemática.
Vale ressaltar que resultados semelhantes a esses foram evidenciados, igualmente, pelo estudo de Acevedo Rincón e Fiorentini (2017) que investigaram a aprendizagem e a identidade docente de futuros professores de matemática, em uma disciplina denominada Práticas Pedagógicas em Matemática, do último ano, e na qual experienciaram um processo de Lesson Study Glocal. Os FPM demonstraram que tomaram conhecimento e se identificaram com uma prática educativa relevante para ensinar Matemática. Isso correu ao longo de um processo que foi desde o momento da escolha e estudo de um tópico do currículo escolar, passando pela discussão conjunta do planejamento de uma tarefa exploratória, implementação da tarefa aos colegas e depois aos alunos da escola, culminando com a reflexão e sistematização da experiência vivida. Pina Neves et al. (2022), ao investigarem a aprendizagem de FPM em um contexto de estágio supervisionado, mediado pelo uso de Lesson Study, envolvendo trabalho colaborativo entre estagiários, orientadores da universidade e supervisores da escola, evidenciaram que estes se ajudaram mutuamente e aprenderam a enfrentar os desafios, problemas e adversidades da profissão docente. Ao fazerem isso, compreenderam melhor o próprio significado da docência e de uma prática matemática relevante à formação dos estudantes da escola básica.
3) O papel crucial do Lesson Study no desenvolvimento profissional: o Lesson Study (LS) é reconhecido por R1 como um processo formativo de desenvolvimento profissional, além de contribuir para a melhoria da aprendizagem dos alunos. O ciclo do LS, composto por planejamento colaborativo, regência, reflexão pós-regência, é destacado como um modelo eficaz para melhorar a prática docente, sendo um contexto potente, como constatamos em R1, para promover o desenvolvimento da IPD. Resultados semelhantes a esses foram evidenciados na pesquisa de Ponte et al. (2023), que investigaram a Formação inicial de professores de Matemática numa experiência de intercâmbio internacional com base em estudos de aula com alunos do Mestrado em Educação Matemática da Universidade de Lisboa (Ulisboa), alunos matriculados na disciplina de Estágio Curricular Supervisionado da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Nessa pesquisa, Ponte et al. (2023) apontam como resultados que o estudo de aula contribui para aprendizagens significativas por parte dos futuros professores, nomeadamente, sobre tarefas, planificação e sobre a condução de uma aula exploratória, incluindo a discussão coletiva. Brito e Fiorentini (2024) investigaram sobre Indícios de identidade docente de um licenciando em Matemática que participa de um Programa de Residência com Lesson Study, cujos resultados sinalizam que a utilização do LS no PRP, no planejamento das aulas, foi importante, tendo em vista que puderam discutir em conjunto novas ideias, pontos a serem melhorados no plano de aula, considerando a discussão promovida pela professora orientadora do PRP e pelas preceptoras do PRP, promovendo, assim, o desenvolvimento profissional de todos os envolvidos.
4) Tensões e diálogo entre os Mundos Figurados: R1 expressa a dificuldade inicial ao confrontar a realidade do ensino no PRP, saindo do ambiente mais teórico da Matemática pura. Nesse sentido, o PRP pode se constituir em um mundo figurado, em que o cruzamento de fronteiras entre a formação inicial e, especificamente, as disciplinas da Matemática pura possa existir. Entretanto, o diálogo e a interlocução entre esses dois mundos reverberam ou podem contribuir para melhorar ou transformar os mundos de origem. Por exemplo, melhorar a formação inicial do professor na Universidade e otimizar o ensino e a aprendizagem da Matemática dos alunos na escola básica. O que R1 buscou ao longo dos encontros e das aulas ministradas foi utilizar uma linguagem mais acessível para os alunos na discussão de conceitos mais complexos, abrindo-se para esse diálogo e interlocução entre os dois mundos. A pesquisa de Losano e Fiorentini (2018a) evidencia, de um lado, tensões e contradições entre o mundo acadêmico do Mestrado Profissional (onde se valoriza um ensino exploratório e baseado na resolução de problemas) e o mundo das escolas com material apostilado e fortemente alinhado ao paradigma do exercício. Por outro lado, evidencia diálogo entre os mundos deste mesmo Mestrado Profissional e as escolas nas quais o professor tem liberdade de desenvolver um currículo mais voltado à realidade cultural de seus alunos.
5) A relevância da formação integral do professor: a formação integral do professor, proporcionada pelo LS, evidencia a importância de não apenas dominar o conteúdo matemático, mas, também, de conhecer suas possibilidades didático-pedagógicas; de desenvolver habilidades de ensino e de gestão da aprendizagem; de compreender as relações sociais na sala de aula; e de empreender uma linguagem matemática mais apropriada ao público-alvo.
A importância da formação integral, que vai além dos conhecimentos relativos ao ensino dos conteúdos, foi, da mesma forma, destacada por Fiorentini, Honorato e Paula (2023) no contexto do estudo colaborativo da aula, visando a promover um ensino-aprendizagem da Matemática baseado em tarefas exploratórias. Os autores perceberam que os professores e futuros professores, ao experienciarem o LS, não apenas aprendem conteúdos novos e especializados para ensinar Matemática, mas, também, aprendem: a trabalhar e problematizar suas práticas letivas; a planejar colaborativamente suas aulas; a elaborar tarefas de natureza exploratória e investigativa; a fazer a gestão do ensino baseado nesse tipo de tarefa; a negociar significados com os colegas e principalmente com seus alunos; a escrever narrativas sobre suas experiências educativas, entre outras. Pina Neves e Fiorentini (2021), por sua vez, destacam que o uso do LS durante o estágio contribuiu para que os futuros professores ampliassem a capacidade de escrita e reflexão sobre a própria prática, bem como da prática vigente nas escolas. As discussões em plenárias contribuíram para evidenciar e compreender melhor o papel, o lugar e o valor do professor na sociedade atual, assumindo os desafios da profissão docente. Os estagiários aprofundaram suas reflexões e compreensões sobre o próprio curso de licenciatura, sobre como a cisão entre teoria e prática na licenciatura é prejudicial ao desenvolvimento profissional dos futuros professores (Pina Neves; Fiorentini, 2021).
Em suma, podemos dizer que a análise narrativa da aprendizagem e da identidade docente de R1 evidencia a complexidade de seu processo de desenvolvimento da identidade profissional, ao participar de um PRP desenvolvido sob o processo reflexivo e investigativo de Lesson Study. Movimento esse que precisa ser continuado, ampliado e melhor compreendido, mediante investigação em seus estágios posteriores.
Os resultados deste estudo, portanto, não apenas reafirmam as conclusões de outros estudos similares, mas, também, trazem evidências adicionais acerca do processo de aprendizagem e de constituição da identidade docente durante a formação inicial. Com base nesses resultados, podemos inferir que os residentes, como revelou o caso R1, quando têm oportunidade de experienciar investigativa e colaborativamente o estudo de aula, eles aceleram seu processo de desenvolvimento profissional e, em consequência, reconstroem suas identidades profissionais, sobretudo, quando mobilizam, problematizam e entrecruzam vozes e práticas provenientes do mundo universitário e do mundo escolar.
Enfim, com base nesses resultados, ainda que provisórios, podemos afirmar que este estudo traz contribuições importantes para o campo de estudo do professor, principalmente, por mostrar como a integração do PRP com o LS pode incrementar a aprendizagem docente e o desenvolvimento da IPD. Assim, esta pesquisa não apenas reforça os achados de outros estudos, mas, também, oferece novas perspectivas sobre a formação de professores e o desenvolvimento da identidade profissional do professor no contexto do PRP quando mediado por um processo do tipo LS.

