Resumo: Neste artigo, em uma perspectiva insubordinada de escrita a quatro mãos, socializamos as nossas experiências - baseados na compre-ensão de Jorge Larrosa (2002) - enquanto orientador e orientando - vivenciadas no decorrer dos processos de construção de uma pesquisa vinculada a um programa de Mestrado Profissional, centrada em discutir a Identidade Profissional de Professores de Matemática. Ao iniciarmos a pesquisa, nossas emoções estavam inseridas no contexto da pandemia de Covid-19, no Brasil. O objetivo é expor, intencionalmente, as nossas vulnera-bilidades nos processos e as ações de agência profissional articuladas em conjunto para as decisões acordadas. Para tanto, construímos questões fomentadoras de discussão que subsidiaram a construção de memoriais de formação, nos quais registramos nossas experiências no processo. Entre os resultados da análise conjunta de um desses memoriais, cabe destacarmos que vivenciar o mestrado é uma experiência conjunta, sendo o mestrado profissional mais um lócus representativo do movimento de constituição da IP.
Palavras-Chave: Identidade Profis-sional, Mestrado Profissional, Experiência, Agência Profissional.
Abstract: This article has been written from a shared perspective of our experiences as both advisor and advisee, based on Jorge Larrosa’s (2002) understanding. Such experiences occurred during the research that aimed to discuss the Professional Identity of Mathematics Teachers, a study linked to a Professional Master’s Program. When we began our research, our emotions were influenced by the COVID-19 pandemic in Brazil. The purpose of this study is to intentionally expose our vulnerabilities in the processes and the professional agency articulated with the decisions we have collectively agreed upon. To achieve this, we formulated discussion questions that were the basis for structuring educational memoirs, in which we documented our experiences throughout the process. Notably, the collaborative analysis of one of the aforementioned memoirs revealed that a master's program is a shared experience, serving as yet another formative locus for professional identity.
Keywords: Professional Identity, Profes-sional Master’s Program, Experience, Professional Agency.
Resumen: En este artículo, a partir de una perspectiva insubordinada de escribir a cuatro manos, compartimos nuestras experiencias - basadas en la comprensión de Jorge Larrosa (2002) - como orientador de tesis y estudiante vividas a lo largo de los procesos de construcción de una investigación vinculada a un programa de maestría profesional con enfoque en discutir la Identidad Profesional de los Profesores de Matemáticas. Cuando empezamos la investigación, nuestras emociones se encontraban en el contexto de la pandemia de Covid-19, en Brasil. El objetivo de este estudio es exponer intencionalmente nuestras vulnerabilidades en los procesos y acciones de actuación profesional articuladas de manera conjunta para las decisiones acordadas. Para este fin, creamos preguntas promotoras de discusión que subsidiaron la construcción de memoriales de formación, en los cuáles registramos nuestras experiencias a lo largo del proceso. Entre los resultados del análisis compartido de uno de esos memoriales, es importante resaltar que vivir la maestría es una experiencia compartida, y la maestría profesional es un locus representativo del movimiento de constitución de la Identidad Profesional.
Palabras clave: Identidad Profesional, Maestría profesional, Experiencia, Actuación profesional.
Dossiê
Identidade Profissional em um Mestrado Profissional: trajetórias em busca de Parker Pyne
Professional Identity in a Professional Master’s Program: paths in search of Parker Pyne
La identidad profesional en una maestría profesional: trayectorias en busca de Parker Pyne
Recepción: 31 Marzo 2024
Aprobación: 30 Julio 2024
Barbosa (2015), em um interessante ensaio teórico publicado recentemente, apresenta o argumento da adoção do formato multipaper para a escrita de dissertações e teses no campo da Educação Matemática como decorrente de um processo de “insubordinação criativa”1 (D’Ambrósio; Lopes, 2015) intencional de seus autores. Embora existam diferenças entre os pesquisadores que adotam esse formato, de modo geral, ele se atenta à construção e à organização do relatório final de pesquisa (a dissertação ou a tese) como uma coletânea de artigos articulados e interconectados a uma questão de investigação (Duke; Beck, 1999).
Retornando aos formatos insubordinados de escrita no campo da Educação Matemática, entre os exemplos citados por Barbosa (2015), consta a tese de Vianna (2000), na qual o design do polo morfológico de sua investigação (Lessard-Herbet; Goyette; Boutin, 1994) evidencia a criatividade e a insubordinação do autor e, obviamente, de seu orientador, no processo de apresentação do texto final de sua pesquisa ser prefaciado pelo lendário veneziano Marco Polo. Compreendemos que os trabalhos de Oliveira (2015), Santos (2018) e Montoito (2019) são iniciativas de escritas que caminham na mesma direção e são temporalmente mais próximos a nós.
Com a intenção de compreender como suas próprias experiências (como estudante e como professora de matemática) de aprendizagem relacionadas à Matemática e à Educação Matemática influenciavam suas práticas docentes e sua constituição profissional, em especial, no tocante aos seus conhecimentos, crenças e identidade, Oliveira (2015) assume seu texto como fruto de uma investigação metodológica pautada em um estudo de si: “Nesta pesquisa, que usa a metodologia Self-study, opto por denominar a modalidade de investigação de estudo de si. Essa expressão contempla uma dimensão mais ampla que a investigação, pois incorpora as ações como reflexão e análise e, sobretudo, não separa o sujeito do objeto ou fenômeno de estudo” (Oliveira, 2015, p. 19, grifo nosso). A defesa dessa perspectiva metodológica, responsável, a nosso ver, pela perspectiva de escrita diferenciada do texto, é retomada pela autora mais adiante na tese, ao indicar que a adoção do termo estudo de si “por entender que esta expressão contempla melhor o sentido de investigação que realizo, incorporando ações como reflexão e análise, sem separar o sujeito que investiga de seu objeto ou fenômeno de estudo, mesmo quando estabelece interlocução com os outros” (Oliveira, 2015, p. 75, grifo nosso).
O provocativo artigo de Santos (2018) é escrito como uma ficção literária em um formato que lembra o estilo do escritor notável português José Saramago (1922-2010): parágrafos longos, pouquíssimas marcações das variações de fala de suas personagens. Ao trazer o encontro de três amigos (o narrador, Sérgio e Júlio) em espaços e tempos distintos, com problematizações a respeito da matemática e de suas articulações com as práticas e afazeres individuais e coletivos nos quais os personagens se envolvem, é impossível não lembrar também do conto “O jardim de caminhos que se bifurcam”, do argentino Jorge Luís Borges (1899-1986). O criativo artigo de Montoito (2019), pautado na ideia de “entrelugar” de Fux2 (2016), reúne o que o autor demarca, já no título do texto, “um pequeno inventário inventado sobre matemática e literatura”, por meio do qual, são apresentadas aos leitores três categorizações das produções que visam estabelecer essas articulações, a saber: (i) literatura com um viés matemático, “nas quais é possível perceber alguns resquícios de Matemática, muito embora não apareçam, explicitamente, termos ligados a ela” (Montoito, 2019, p. 902); (ii) literatura com termos matemáticos, “em que são apresentados [...] termos matemáticos de uma maneira mais clara, os quais invocam conceitos ou conteúdos matemáticos” (Montoito, 2019, p. 905); e, por fim, (iii) literatura com estrutura matemática, “caracterizadas pelos textos cujas [...] estruturas narrativas foram pensadas a partir de algum conteúdo matemático, isto é, a história se organiza e se desenvolve segundo as propriedades matemáticas do corpo teórico que o autor escolheu como modelador do seu universo literário” (Montoito, 2019, p. 909).
Inspirados nesses personagens presentes nos textos insubordinados dos pesquisadores citados até aqui, dirigimo-nos a outro, criado pela Rainha do Crime, Dame Agatha Christie (1890-1976). Com o livro “O detetive Parker Pyne”, publicado, originalmente, em 1934, já no conto de estreia, intitulado “O caso da esposa de meia-idade”, encontramos o senhor Parker Pyne, que não se vê como um detetive, mas, sim, um “médico do coração”. Ele é um funcionário público aposentado3 que anuncia seus serviços na página de classificados de um jornal com o seguinte texto: “Você é feliz? Se não for, consulte o Sr. Parker Pyne, Rua Richmond nº 17” (Christie, 2012, p. 9, grifo nosso).
E por que trazer Parker Pyne em um texto que se propõe discutir a temática da Identidade Profissional (IP)? Em que momento(s) a Felicidade está inserida em uma investigação a respeito da Identidade Profissional (IP) de professores de matemática? - alguém poderia nos questionar. Respondemos essa questão: Em todos!
Compreendemos que a IP de professores de matemática (em particular, e de professores que ensinam matemática, no geral) é caracterizada como “um movimento que se dá, tendo vista um conjunto de crenças e concepções interconectadas ao autoconhecimento e aos conhecimentos a respeito de sua profissão, associado à autonomia (vulnerabilidade e sentido de agência) e ao compromisso político” (Cyrino, 2016, p. 168), no qual suas principais características processuais são a complexidade, a dinamicidade, a temporalidade e a experiencialidade (De Paula; Cyrino, 2020).
E, justamente, por nos identificarmos com pesquisadores que (i) destacam que o papel das vivências de professores e futuros professores e suas emoções “fazem parte de um amálgama que impacta, por exemplo, no modo como compreendem sua profissão” (Rodrigues; Cyrino, 2023, p. 3) e (ii) sinalizam as potencialidades dos estudos relacionados às ideias de vulnerabilidade e sentido de agência profissional docente (Eteläpelto et al., 2013; Oliveira; Cyrino, 2011; Lasky, 2005; Kelchtermans, 2009; Hobbs, 2012; Hodgen; Askew, 2007; Rodrigues; Cyrino; Oliveira, 2022; Barreto; Cyrino, 2023) é que escrevemos este texto. O objetivo é expormos, intencionalmente, nossas vulnerabilidades (enquanto orientador e orientando) nos processos de realização de uma pesquisa sobre a IP no contexto de um programa de Mestrado Profissional e nossas ações de agência, articuladas, conjuntamente, para as mudanças de trajetórias e de perspectivas realizadas.
Aliás, vale destacar que esses dois conceitos (agência4 e vulnerabilidade5) foram amplamente divulgados no contexto brasileiro a partir do estudo de Oliveira e Cyrino (2011) e das diversas pesquisas de mestrado e doutorado desenvolvidas no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre a Formação de Professores que Ensinam Matemática (Gepefopem)6, tal como problematizam De Paula et al. (2021) ao inventariarem a produção deste grupo.
Nas próximas seções: (i) compartilhamos as características do processo de escrita; (ii) analisamos os movimentos compartilhados de nossas trajetórias enquanto orientador e orientando e, por fim, (iii) sinalizamos perspectivas que, por ainda nos incomodarem, podem sensibilizar outros pesquisadores interessados na temática, a trilharem outros caminhos.
A decisão pela escrita deste texto é fruto de mudanças de trajetórias e de perspectivas decorrentes dos desafios dos movimentos de orientação e de construção acadêmica de uma pesquisa a respeito da Identidade Profissional (IP) de Professores de Matemática, vinculada ao Programa de Mestrado Profissional em Ensino de Ciências e Matemática (ENCiMA), ofertado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, no campus São Paulo (IFSP/SPO).
Vale destacar que as atividades relacionadas ao desenvolvimento dessa ação foram realizadas entre o início dos anos de 2021 até 2024 e, portanto, ocorreram concomitantemente ao triste e complexo contexto da pandemia da Covid-19, do qual, apenas no Brasil, foram vitimadas mais de 700 mil pessoas. Frente a um cenário marcado pelas mazelas da Covid-19, em uma “escola em crise” (Tamayo; Silva, 2020), associado às tensões políticas do governo do então presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), construir um estudo a respeito da IP nos exigiu muitas mudanças de trajetórias e de perspectivas.
As mudanças de trajetórias estão relacionadas às nossas expectativas (de orientador e de orientando) diante da investigação, pois ambos eram iniciantes em suas funções: um orientador em suas primeiras orientações de mestrado profissional (e em seus primeiros contatos com essa perspectiva) e um professor experiente em suas práticas profissionais, mas que se via iniciante e inseguro em ações do campo da pesquisa.
As mudanças de perspectivas, por sua vez, referem-se às nossas percepções das intencionalidades e dos fatores motivadores para a realização do empreendimento de pesquisa. Adentrar em um mestrado profissional exige uma visão em perspectiva de ambos os caminhantes nessa trajetória - orientador e orientando - pois o encaminhamento metodológico, o design da investigação e mesmo o estilo de escrita acadêmica, não necessariamente dialogam com estilos de escrita da realidade do ambiente profissional do professor atuante na Educação (Rigo et al., 2018). Nesse sentido, a escolha da escrita da dissertação no formato multipaper, do qual este é um de seus artigos, visa, além de divulgar as análises e reflexões decorrentes da investigação, colaborar nos processos que invariavelmente conduzem o pesquisador em formação a realizar textualmente (re)escritas, sínteses e construções dialógicas, diacrônicas e dialéticas. Escrever a respeito de nossas práticas, dúvidas e anseios é uma ação articuladora do “experienciar” (Larrosa, 2002) nossos sentidos de agência frente às vulnerabilidades diárias.
Diante do exposto, alinhamo-nos a autores que defendem a perspectiva ensaística para a escrita de artigos, como meio de evitar o silenciamento daqueles que escrevem, proporcionando aos leitores o contato com o embate e a trajetória em meio às dúvidas e escolhas, características dos processos investigativos (Rodríguez, 2012). Assim, a partir de uma produção coletiva assinada pelos membros do grupo de pesquisa “Histórias de formação de professores que ensinam matemática” (HIFOPEM), coordenado pela Profa. Dra. Adair Mendes Nacarato7, são demarcadas as intencionalidades e as potencialidades do uso do memorial de formação como um aspecto metodológico voltado para a produção de dados
O foco do memorial é voltado para acontecimentos e experiências que constituem a formação profissional, podendo ser utilizado como instrumento de avaliação ou como prática de formação. Nisso reside sua natureza híbrida. É um texto no qual o autor descreve sua vida - por isso a denominação escrita de si - e assume diversos papéis: é, ao mesmo tempo, escritor, narrador e personagem de sua história. O gênero textual de um memorial é predominantemente narrativo, e é possível também perceber, em sua construção, traços acentuados de descrição e argumentação. Seu estilo abrange desde um tratamento mais literário, passando pelo reflexivo, ou ainda uma composição de ambos (Hifopem, 2018, p. 97, grifo nosso).
Como uma proposta de alinhamento, construímos algumas questões fomentadoras para as escritas de nossos memoriais. Como marcadores temporais (necessários para os limitantes formais de um artigo), delimitamos algumas “paradas” em momentos específicos, a saber: Trajetória 1/3: As intencionalidades/oportunidades de vincular-se a um Mestrado Profissional e o interesse em estudar a IP8; Trajetória 2/3: A entrada no programa: vivências, anseios e o contexto pandêmico da COVID-199; Trajetória 3/3: As considerações da banca de qualificação e os empreendimentos de agências envolvidos10.
A intenção inicial era que cada um de nós produzisse um memorial de formação que expusesse (no todo ou em parte) elementos relacionados às questões fomentadoras construídas. Contudo, embora insubordinados, para a socialização do texto, ainda há critérios limitadores e o quantitativo de páginas é um deles. Por esse motivo, optamos por centralizar as reflexões de orientador e orientando, com base em elementos presentes no memorial de Bruno.
Dessa forma, as articulações entre as escritas do memorial de Enio - advindas tanto de aspectos já presentes na escrita de sua tese11 (De Paula, 2018) quanto às reflexões dialogadas com o texto - permeiam o entrelaçar das vulnerabilidades de ambos no processo colaborativo vivenciado na pesquisa.
Como optamos por uma análise baseada nas quatro trajetórias anteriormente apresentadas, a seção seguinte será um alinhavo desses movimentos.
O refrão do poema-canção “Cantares”12, de Joan Manuel Serrat, é representativo do movimento que fizemos no decorrer da parceria de pesquisa.
Nesta seção, destacamos elementos de nossas trajetórias como orientador e orientando, em três momentos dessa caminhada.
Trajetória 1/3: as intencionalidades/oportunidades de vincular-se a um Mestrado Profissional e o interesse em estudar a IP
Ao iniciar seu memorial, Bruno aponta suas expectativas pessoais e seus desejos vinculados ao momento de ingresso no Programa ENCiMA:
As expectativas pessoais no que tange à vida são movimentos complexos, temporais e intrínsecos de cada indivíduo, afinal, o que esperar da vida? [...] Quanto à minha resposta para tal problematização, no topo da lista de desejos espero ter saúde, estabilidade financeira, reconhecimento e sucesso tanto profissional quanto acadêmico [...] acessar um programa de mestrado entra como uma porta necessária na busca de reconhecimento acadêmico e profissional. O anseio pelo acesso a um programa de mestrado foi precedido pela relação profissional que mantinha desde o ano de 2017 (quando iniciei minha atuação como coordenador pedagógico), passei a ter uma relação direta com o percurso formativo de professores dentro do ambiente escolar e a busca pela melhoria da prática profissional tornou- se uma inquietação (Bruno, Memorial13, trecho 1, grifo nosso).
Os desejos profissionais de orientando e orientador são convergentes. O que Bruno aponta como “reconhecimento acadêmico e profissional”, são coerentes com as ideias de Cyrino (2016) a respeito da IP de professores: as expectativas que temos a respeito de nós mesmos e de como os outros (do qual também figuram nossos pares, amigos e familiares) nos veem interferem nos movimentos de constituição de nossa IP. Isso ocorre, pois sua complexidade “envolve aspectos pessoais, profissionais, intelectuais, morais e políticos dos grupos nos quais os sujeitos estão envolvidos. A IP “não consiste apenas no que os outros pensam ou dizem de nós, mas de como nos vemos e da capacidade de refletirmos sobre a nossa experiência” (Cyrino, 2016, p. 168).
Enio, ao traçar seu percurso até a chegada no curso de doutorado e o acolhimento pelo grupo de pesquisa, destaca a importância das experiências:
pois acredito que todo pesquisador traz consigo características (sociais, históricas e políticas) do contexto no qual se insere. Esse ato de reconhecimento (e manifestação) é de extrema importância, pois, embora a construção da tese seja uma tarefa por diversas vezes solitária, ela é ponto de discussão, vista e validação de diversos indivíduos em múltiplas circunstâncias (De Paula, 2018, p. 24).
Ao chegar ao ENCiMA, em 2020, Enio permanece com essa percepção. Bruno destaca que o interesse em estudar a IP, ao iniciar o mestrado profissional, em 2021, emergiu de suas vivências na escola e “de um olhar curioso quanto às discussões voltadas para identidade profissional e, como não tinha experiência ou contato com pesquisadores do tema, o escrevi com base em alguns dos referenciais lidos à época” (Bruno, Memorial, trecho 2).
Entre os textos que Bruno faz referência, encontram-se materiais que articulam, em intencionalidades diferentes, aspectos da IP com: (i) a problematização de possibilidades e limitações dos docentes que atuam na coordenação pedagógica, em especial no que tange à formação de professores (Placco; Souza; Almeida, 2012); (ii) a compreensão do caráter intimista do processo formativo, na qual as subjetividades docentes, suas histórias de vida e seus anseios estejam presentes (Nóvoa, 2009); e (iii) o reconhecimento das influências individuais e coletivas, bem como a diversidade dos processos envolvidos na formação dos indivíduos e na constituição das instituições sociais (Dubar, 1997).
No tocante aos seus anseios, ao escrever a respeito da entrevista de entrada no ENCiMA, Bruno revela que:
A entrevista denotou-se como um bate papo e conseguia identificar por meio das perguntas realizadas pelos entrevistadores que uma das preocupações com o ingresso era a chance de minha permanência no programa, claramente motivado devido à minha rotina ainda vigente. Além das incertezas trazidas pelo COVID-19, à época, eu acumulava múltiplas funções profissionais: (i) Professor de Educação Básica II, na rede pública paulista; (ii) docente em um colégio privado como carga horária de 14 horas aulas; e (iii) a coordenação pedagógica na rede pública estadual, dada a vasta carga horário e acúmulo de funções, como encaixar um curso de mestrado? (Bruno, Memorial, trecho 3, grifo nosso).
Em seu memorial formativo, Enio também destaca as dificuldades de prosseguir na vida acadêmica decorrentes do excesso de atividades desenvolvidas. A partir da conclusão do mestrado acadêmico, em 2009, e de modo progressivo, sua jornada de trabalho em diferentes instituições “foram paulatinamente aumentando e, embora o desejo de realizar uma pesquisa de cunho teórico no doutorado estivesse sempre no horizonte, ele se mostrava cada vez mais distante” (De Paula, 2018, p. 22).
As dificuldades relatadas por Bruno e Enio podem ser decorrentes de uma complexa teia de impedimentos de carácter social, econômico (como a ausência de recursos financeiros ou indisponibilidade de diminuição da jornada de trabalho) e/ou também geográficos (localização dos programas). Esse fato é problematizado, entre outros autores, por Pereira e Rôças (2020) e Cyrino, Rizzatti e Rôças (2023). Essas últimas, ao denunciarem que os cortes orçamentários nas áreas da Educação e da Pós-graduação alinhados à ausência de reajustes nas ações de fomento por meio de bolsas dificultam o acesso e a permanência de estudantes nos Programas de Pós-Graduação da área de Ensino (Área 46).
Essa conjuntura desestimula, ainda mais, o interesse dos jovens pelas carreiras científica e da educação. Ainda há muito a se investir no financiamento da pós-graduação, sobretudo para os cursos de modalidade profissional [...]. Vale ressaltar que a maioria dos cursos da área 46 são destinados à formação de professores que, mesmo com as secretarias estaduais e municipais de educação como parceiras, não contam com os recursos financeiros necessários para custear pesquisas desses profissionais. E, em muitos casos, mesmo a oportunidade de fazer o mestrado ou doutorado não é viabilizada por conta do impedimento financeiro (Cyrino; Rizzatti; Rôças, 2023, p. X, grifo nosso).
Como síntese dessa trajetória, é possível construir alguns entendimentos: (i) embora, temporalmente, distantes experienciamos contextos de sobrecarga de trabalho como limitadores potenciais para prosseguirmos na pós-graduação; (ii) a ausência de subsídios (de caráter financeiro e/ou trabalhista) possibilita-nos inferir que diversos outros docentes que atuem, majoritariamente, na Educação Básica vivenciam dificuldades de mesma natureza para experienciar a pós-graduação; (iii) apesar das dificuldades potenciais, investir no empreendimento de vincular-se ao mestrado é uma ação de agência que pode ser compreendida como um compromisso político necessário e articulado ao fazer docente; e (iv) o fato de reconhecerem-se como indivíduos incompletos e em constante transformação é representativo da ação intencional de socializarem/discutirem (partes de) suas vulnerabilidades.
Parece-nos ser um consenso de que uma das principais características do trabalho docente no decorrer do período pandêmico tenha sido a exaustão pela sobrecarga de tarefas. As ausências físicas e um cenário marcado pela ansiedade, o medo e a tristeza pelas perdas humanas, também refletiram em nossas atividades:
A atraente sensação de ingressar em um curso de nível acadêmico respeitável; a felicidade de estar dando um passo importante na carreira; a insegurança diante dos desafios impostos em um curso de mestrado, sobretudo, por não saber o que lhe espera; a preocupação com a conciliação de uma jornada de trabalho esmagadora junto com sua vida acadêmica [...]; o medo de uma doença infectocontagiosa que deixou o mundo sob o caos e que ainda bateria recordes de letalidade naquele ano. Primeiro semestre do ano de 2021, os múltiplos desafios foram motivos de muita preocupação e insônia. Nada é capaz de descrever o amalgamento de emoções advindas de tantas variáveis vividas nesta trajetória. Cada escolha uma renúncia, cada passo uma vitória, cada suspiro um alívio, afinal, a Covid-19 deixou essa impressão: sintomático? assintomático? internação? incubação? (Bruno, Memorial, trecho 4, grifo nosso).
Durante todo o período de orientação, nossa comunicação sempre foi virtual. Bruno, ao relatar essa especificidade em seu memorial, destaca dois pontos condicionantes para esse distanciamento: “(i) o isolamento social não permitia que esses encontros ocorressem pessoalmente; e (ii) meu orientador possui residência em outro município, distante da capital paulistana” (Bruno, Memorial, trecho 5). Como orientador, Enio está há, aproximadamente, 600 quilômetros do programa ao qual está vinculado…
Bruno, ao continuar o registro de seus avanços nas tarefas do mestrado profissional, expressa seus sentimentos diante do avanço descontrolado da pandemia, ainda em um momento pré-vacinal:
Um mix de emoções: de um lado a felicidade por concluir o primeiro ano do curso de mestrado e avançado no cumprimento de créditos do curso com conclusão de disciplinas obrigatórias, eletivas e optativas e participação em dois eventos científicos, do outro, a aflição, a tristeza, a dor da perda de amigos, conhecidos e familiares na pandemia de Covid-19 (Bruno, Memorial, trecho 6, grifo nosso).
No segundo semestre de 2021 me inscrevi em outras quatro disciplinas, a rotina de orientação seguiu conforme cronograma, as angústias e incertezas mantinham-se as mesmas, entre a difícil tarefa de manter-se no programa de mestrado com uma intensa rotina de trabalho, havia o medo da pandemia (Bruno, Memorial, trecho 7, grifo nosso).
Com o início da vacinação e o declínio do número de mortes, no segundo semestre de 2021, a flexibilização do distanciamento social foi ampliada, em 2022. Entretanto “o medo e os desafios impostos pela pandemia ainda estavam presentes. Profissionalmente, minha rotina alternou de remota para híbrida, até que voltei a trabalhar presencialmente de forma integral” (Bruno, Memorial, trecho 8). E é nesse contexto de reorganização de vivências que Bruno concluiu os créditos acadêmicos e as demais necessidades para o agendamento de sua qualificação, que seria realizada em setembro de 2023.
A reunião das dificuldades do processo de orientação à distância e da sobrecarga de trabalho (de orientador e orientando) no decorrer do período pandêmico, redesenharam as expectativas e os itinerários da pesquisa. As ações que, inicialmente, ocorreriam no contexto da escola, foram recontextualizadas como estudos de natureza bibliográfica/teórica. Essas alterações e dificuldades foram também vivenciadas e/ou relatadas por outros pesquisadores (Miarka; Maltempi, 2020; Merli; Nogueira; Powell, 2020; Barbosa; Silva; Gomes, 2023).
Militão e Perboni (2021) inferem que, mediante as experiências brasileiras até aquele momento, os cenários de retomada das atividades escolares ampliam as desigualdades sociais e escolares de docentes e discentes:
as redes de ensino têm criado mecanismos que sobrecarregam professores, pais e estudantes. A centralidade em torno das orientações de registro de todas as ações para fins de cômputo da carga horária, intensifica fortemente a atividade docente pois além da preparação de atividades não presenciais há a interminável burocracia de registros da proposta, do seu andamento e de seus resultados (Militão; Perboni, 2021, p. 64).
É nesse cenário de múltiplas vulnerabilidades (diferentes e/ou convergentes) que Bruno e Enio se encontram. Como síntese dessa trajetória, diante de todos os desafios impetrados no contexto de se ver como um professor que ensina Matemática (PEM) na dinamicidade e organicidade de suas tarefas profissionais, percebemos que ações de agência manifestaram-se diante das vulnerabilidades encontradas por orientando e orientador, no sentido de superar os desafios impostos no processo de pesquisa.
Neste movimento, para além dos processos de acesso ao programa, cumprimento dos créditos e de qualificação, aspectos pessoais de cada indivíduo no percurso de escrita a duas mãos também se caracterizam como elementos experienciais na constituição da IP de orientando e orientador como PEM.
Em razão dos contextos que sinalizamos, Bruno não conseguiu participar de outros exames de qualificação. O fato de ser avaliado por outros docentes (conhecidos ou não) mostrou-se como um instante vulnerável. A ansiedade e as demandas necessárias para a finalização do material a ser encaminhado para a banca de avaliadores foi ponto destacado por ele no memorial:
foi uma tarefa ardente que consumiu um grande contingente de tempo e, como um jogo levado até a prorrogação, no último momento do prazo, tal tarefa foi cumprida. Mas, distante de ser alívio, pois, afinal, como seria o exame de qualificação? Que desafios estariam por vir? Que impressões meus avaliadores teriam quanto à qualidade e à relevância da minha pesquisa? Centenas de questões borbulhavam a cada sinapse que meu cérebro fazia (Bruno, Memorial, trecho 9).
Parte dessa preocupação também foi fruto da perspectiva de escrita do relatório de pesquisa sugerido por seu orientador. Enio apresentou o multipaper (Boote; Beile, 2005; Duke; Beck, 1999; Thomas; West; Rich, 2016) como uma perspectiva formativa ao pesquisador. Inferimos que os desafios da escrita da pesquisa em artigos-capítulos, embora em ascensão no campo da Educação Matemática (Barbosa, 2015), ainda seja pouco explorada nos mestrados profissionais:
O tempo não foi verdadeiro aliado e novamente, o acúmulo de tarefas fez o tão sonhado momento da qualificação parecer quase que improvável. Com uma jornada de trabalho de 69 horas semanais, família, tarefas cotidianas do lar, entre outros, se fazia necessário avançar na escrita da dissertação, cujo, formato de escrita é denominado multipaper, um formato pouco usual no programa ENCiMA (Bruno, Memorial, trecho 10).
Completados dez anos de existência do programa de mestrado profissional em que estamos inseridos, em meio às produções disponíveis no repositório ENCiMA-IFSP, só encontramos uma produção em multipaper (Libório, 2019), reafirmando nossa posição em entender esse modelo como uma insubordinação criativa.
Entre as ações de agência de Bruno para continuar as atividades no mestrado profissional, a busca por uma rede de apoio foi fundamental:
Manter-se firme no processo e no objetivo de concluir o curso não foi fácil, procurei apoio na família, nos amigos, nas ambições e objetivos que tenho como indivíduo para encontrar forças para seguir adiante, mas, por vezes, o acúmulo de tarefas foi esmagador, gerando incertezas e pensamentos angustiantes, como a possibilidade de desistência do curso (Bruno, Memorial, trecho 11).
Rodrigues e Cyrino (2023) sintetizaram algumas características que articulam três dimensões consideradas por eles como inerentes à IP, a saber: as emoções, o compromisso moral e o compromisso político. Dos itens presentes no framework (Quadro 1) de Rodrigues e Cyrino (2023), destacamos aqueles que se aproximam dos elementos presentes no memorial de Bruno:

Entendemos que os desafios que se apresentam no memorial de Bruno, como suas vulnerabilidades, trazem, de forma indissociada, a dimensão emocional. À medida que ocorrem interações sociais e que as redes de apoio manifestam seu potencial interventivo, sentimentos de angústia, insegurança, impotência e frustração são psicossocialmente substituídos por sentimentos como perseverança, confiança e determinação.
Nesta perspectiva, ao analisarmos o memorial de Bruno, observamos que as questões relacionadas à vulnerabilidade e ao sentido de agência como elementos caracterizadores da IP de PEM, alinham-se às ideias de Oliveira e Cyrino (2011). Suas vulnerabilidades não se configuram como paralisantes ou impotentes e, sim, como propulsoras de ações de agência profissional direcionadas à superação dos obstáculos.
As inferências trazidas por Bruno em seu memorial, denotam que, mesmo diante das inseguranças, das angústias e aflições, ações de agências foram mobilizadas para o cumprimento das tarefas. Neste ínterim, o processo de orientação, os encontros virtuais (ordinários e extraordinários) e o grupo virtual formado por orientandos do programa ENCiMA revelaram-se como práticas de apoio às vulnerabilidades de Bruno. Assim, concordamos com Cyrino, ao asseverar que a “construção colaborativa de uma agência mediada é fundamental para que os professores tenham um ambiente seguro e o apoio de que necessitam para se sentirem suficientemente capacitados para assumir riscos e praticar a vulnerabilidade - experiências essenciais para o desenvolvimento da identidade” (Cyrino, 2018, p. 13).
Deste modo, demarcamos como ação coerente que os espaços formativos, entre os quais o mestrado profissional, propiciem a construção de redes de apoio que amparem os professores em suas vulnerabilidades.
A realização do exame de qualificação possibilitou-nos olhares diferentes para a perspectiva de escrita da pesquisa. A articulação entre o interesse de Bruno em investigar a temática da IP, a adoção do formato multipaper e a percepção da necessidade de socializarmos as vulnerabilidades vivenciadas no decorrer de todo o processo, foram o mote para a construção deste texto.
Compreendemos que a experiência (Larrosa, 2002) vivenciada no mestrado profissional constituiu-se como um processo formativo potencializador do movimento de constituição de nossas IP, como orientando e como orientador.
Agora, podemos registrar, sem spoilers, que o detetive Parker Pyne surgiu no início deste texto para demarcar o quanto as emoções estão envolvidas nos movimentos de constituição da IP (no nosso caso) de PEM (Hobbs, 2012; Rodrigues, Cyrino, 2023).
As atividades que desenvolvemos juntos, no decorrer das experiências larrosianas - de orientador e de orientando - reafirmam o quanto as políticas públicas voltadas para a formação de professores atuantes na Educação Básica carecem de atenção. O professor, quando já em seu exercício profissional, em grande parte das vezes com uma jornada de trabalho exaustiva, compreende a oportunidade de cursar um mestrado (acadêmico ou profissional) como um movimento em prol de melhores condições de trabalho. Entretanto, ao esbarrar com os múltiplos empecilhos nessa trajetória, como a ausência de subsídios financeiros (que poderiam ocasionar uma diminuição da carga horária de trabalho) e as demandas exigidas para o efetivo cumprimento do mestrado, situações de vulnerabilidade emergem.
Para além daquelas relacionadas ao trabalho docente evidenciadas textualmente por Bruno em seu memorial, a constante possibilidade de abandonar o mestrado e as ansiedades de viver na incerteza do contexto pandêmico exigiram - de orientador e de orientando - mudanças de trajetórias e de perspectivas. (Re)combinados, (re)escritas e (re)visões alinharam o que era importante no processo: a formação docente. Compreendemos que as questões norteadoras para a construção do memorial, bem como a escrita da dissertação no formato multipaper, como já dissemos anteriormente, colaboraram para os escritos intimistas de Bruno e nos trouxeram indícios (Ginzburg, 1989) para potenciais reflexões sobre agência e vulnerabilidade. Essa característica leva-nos a crer que a construção de um memorial é um instrumento promissor para as discussões a respeito da IP, pois tem potencial de ser revelador de nuances da prática profissional (desafios, anseios e angústias). Dessa forma, julgamos pertinente articular a complexidade, a dinamicidade, a temporalidade e a experiencialidade - apresentados por De Paula e Cyrino (2020) enquanto importantes aspectos a serem considerados pelas pesquisas que se propõem a investigar os movimentos de constituição da IP de PEM - às nuances da prática profissional, em nosso caso, advindas do memorial.
As ações de agência - de orientador e de orientando -, como mencionamos no início deste texto, possibilitaram um excedente de visão. Os diversos momentos em que nos reconhecemos em nossas dificuldades e nos (re)organizamos para o cumprimento das demandas foram representativos de que vivenciar o mestrado é uma experiência conjunta. Não se faz sozinho, isolado: (i) é um reconhecer-se no outro; (ii) é praticar a alteridade; e (iii) é compromisso político.
Concluímos o presente texto com a compreensão de que as atividades de investigação da IP de professores de matemática, no contexto dos desafios de um mestrado profissional, propiciaram-nos vivenciar vulnerabilidades e agências que, embora distintas (por conta, entre outras coisas, de nossas funções no processo), foram convergentes.
O mestrado profissional deve ser compreendido como um importante espaço de formação docente e estar vinculado a ele, pelo que vivenciamos, demarca o potencial de compreendê-lo como mais um lócus representativo do movimento de constituição da IP.
