Resumo: O artigo apresenta uma pesquisa que aborda as reflexões de uma professora de Matemática a respeito de sua própria prática enquanto busca transformá-la em uma prática pedagógica inclusiva. Paralelamente, observa-se a constituição de uma identidade docente como professora de Matemática de surdos. Esta pesquisa, de abordagem qualitativa, realizou-se no contexto de uma escola bilíngue voltada para surdos. Fundamentada na literatura sobre Educação Matemática Inclusiva, envolveu a produção de um diário de campo da pesquisadora, subsidiado por observações e gravações em vídeo de aulas ministradas em uma classe do oitavo ano do Ensino Fundamental. Os resultados evidenciam a potência das reflexões sistemáticas sobre a própria prática como catalizadoras do desenvolvimento profissional e da constituição de uma identidade profissional associada ao ensino de surdos.
Palavras-chave: Educação Matemá-tica Inclusiva, Pesquisa sobre a própria prática, Ensino de Matemática para surdos, Identidade profissional docente.
Abstract: The article is grounded in a Mathematics teacher’s reflections about her practice while seeking to transform it into an inclusive pedagogical practice. Through this process, the formation of a teaching identity as a Mathematics teacher for deaf students was also observed. This qualitative research was carried out in the context of a bilingual school focused on deaf students. Based on the literature on Inclusive Mathematics Education, the researcher produced a field diary, supported by observations and video recordings of Mathematics classes for the 8th grade of the Brazilian Middle School Education level. The results highlight the power of systematic reflections on one’s own practice as catalysts for professional development and the constitution of a professional identity associated with the teaching of deaf students.
Keywords: Inclusive Mathematics Education, Research into one’s own practice, Teaching Mathematics for deaf students, Teacher professional identity.
Resumo: El artículo presenta una investigación acerca de la propia práctica en la cual una profesora de Matemáticas refleja acerca de su práctica pedagógica en cuanto busca transformarla en una práctica pedagógica inclusiva. Paralelamente, se observa la constitución de una identidad docente como profesora de Matemáticas para sordos. Esta investigación, de abordaje cualitativa, se realizó en el contexto de una escuela bilingüe para sordos. Basada en la literatura sobre Educación Matemática Inclusiva, implicó la elaboración de un diario de campo por parte de la investigadora, subsidiado por observaciones y grabaciones en vídeo de lecciones impartidas en una clase del 8º año de la Educación Primaria. Los resultados muestran la potencia de las reflexiones sistemáticas sobre la propia práctica como catalizadoras del desarrollo profesional y de la constitución de una identidad profesional asociada a la enseñanza de sordos.
Palabras clave: Educación Matemática Inclusiva, Investigación acerca de la propia práctica, Enseñanza de Matemáticas para sordos, Identidad profesional docente.
Dossiê
Tornando-me uma professora de Matemática de surdos: uma investigação sobre a própria prática
Becoming a Mathematics teacher for deaf students: an investigation about one’s own practice
Convirtiéndome en profesora de Matemáticas de sordos: una investigación sobre la propia práctica
Recepción: 10 Abril 2024
Aprobación: 19 Julio 2024
O interesse pela cultura surda vem desde minha infância, quando assistia a eventos da escola bilíngue para estudantes surdos(as) de minha cidade. Era costume a realização de apresentações artísticas com os alunos em uma praça pública central da cidade e no teatro municipal. Além dessa exposição, uma das professoras que realizavam os eventos faz parte de minha família. Ela levava os estudantes surdos(as) para passear em sua casa, vizinha à minha, e me convidava para estar com eles(as). Eu era a diferente naquele ambiente, não sabia me comunicar com eles(as), mas, mesmo assim, era acolhida e incluída em suas brincadeiras.
O tempo passou, a vida tomou novos rumos; por alguns anos, não tive contato com pessoas surdas. Após o Ensino Médio, cursei o Magistério e, para cumprir as horas de estágio, procurei cursos variados na área da Educação. Nesse percurso, tive a oportunidade de realizar um curso de Libras oferecido pela prefeitura de minha cidade. A partir dele, vieram outros e voltei a ter contato com os(as) surdos(as) que conheci no passado e muitos(as) outros(as). Assim como em minha infância, o carinho, a receptividade e o acolhimento da parte deles(as) foram demonstrados.
Dessas interações, surgiram oportunidades de lecionar para estudantes surdos(as) na Educação Básica, no Ensino Superior e na preparação para concursos públicos, por meio de aulas particulares. Em junho de 2019, comecei a lecionar Matemática para duas turmas (sexto e oitavo anos) do Ensino Fundamental em uma escola bilíngue para surdos(as). Para as primeiras aulas, preparei-me da mesma forma como fazia para trabalhar com as turmas de alunos(as) ouvintes: elaborei uma lista de atividades de revisão para sondar os conhecimentos das turmas e propus exercícios envolvendo a escrita por extenso, cálculos, expressões, desafios com as quatro operações, números inteiros e equações. Foi ali que vivenciei meu primeiro impacto. Muitos(as) estudantes tiveram dificuldades para realizar as tarefas que exigiam interpretação, escrita por extenso dos números e cálculos básicos. Percebi que não bastava substituir a língua oral pela de sinais. Saber Língua Brasileira de Sinais (Libras), apesar de essencial, não era o suficiente para ensinar Matemática a meus(minhas) alunos(as) surdos(as). Para aprender o que eu ensinava, eles tinham outras necessidades que, até então, eram-me desconhecidas.
Comecei a fazer tentativas, buscando formas mais adequadas de ensinar Matemática. Produzi materiais coloridos e jogos de raciocínio. Nesse “novo formato” de aulas, alguns(algumas) alunos(as) pareciam compreender os(as) conceitos e auxiliavam os colegas. Ao final da aula, sentia-me satisfeita, acreditando que minhas iniciativas haviam sido bem-sucedidas. Porém, no dia seguinte, ao corrigir os deveres, novamente, surpreendia-me. Muitos nem tentavam realizá-los e afirmavam que não haviam entendido ou não sabiam resolver. Alguns(Algumas) resolviam as tarefas, mas com erros. Em alguns momentos, pensava que o problema eram os(as) alunos(as), que não conseguiam aprender Matemática por causa da surdez, pois meus(minhas) estudantes ouvintes costumavam se sair bem na disciplina. Em outros, questionava se o fracasso não era meu, pois eram crianças e adolescentes como quaisquer outros. Conversavam, expunham suas ideias e sentimentos, eram prestativos, espertos e dedicados.
Passei, então, por um intenso processo de reflexão acerca de minha formação docente, buscando compreender melhor minha prática pedagógica e o que a movia. Também recordei experiências profissionais e percebi que minha prática em sala de aula era extremamente tradicional. Na maioria das vezes, usava o quadro para explicar a matéria, passava alguns exemplos e, em seguida, propunha vários exercícios para a fixação do conteúdo. Essas experiências eram semelhantes às que havia vivenciado como estudante da Educação Básica e do Ensino Superior, todas marcadas pelo tradicionalismo1. Os(as) professores(as) que eu mais apreciava eram os(as) tradicionais2, o que contribuiu em minhas escolhas metodológicas para ensinar Matemática, pois, de acordo com Teixeira e Cyrino (2014), na formação da identidade profissional docente pode haver a incorporação de aspectos da prática pedagógica observada enquanto estudante.
Todo esse movimento interno, de refletir e repensar minha trajetória, levou-me a perceber a importância de me aproximar da Cultura Surda3, bem como de conhecer a Educação Matemática Inclusiva e suas contribuições para o ensino de Matemática para sujeitos surdos, para aprimorar minha prática pedagógica. Assim, o ingresso no Mestrado em Educação Matemática da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), em 2020, representou um passo importante nessa direção. Nele, desenvolvi uma pesquisa sobre minha própria prática por entender que esse caminho seria interessante por contribuir para meu desenvolvimento profissional quanto por inspirar outros(as) professores(as). Além disso, percebi a possibilidade de contribuir teoricamente para a área de Educação Matemática Inclusiva, ao detalhar meu processo de aprendizagem da docência para pessoas surdas.
Hoje, percebo que se tratou de um movimento intencional, de dentro para fora, na direção de meu desenvolvimento profissional. Como Ferreira (2003), entendo que o(a) professor(a) desenvolve-se, profissionalmente, ao longo de toda a sua carreira, motivado pelo desejo/necessidade de aprimorar sua prática docente. Desenvolver-se profissionalmente é “aprender e caminhar para a mudança, ou seja, ampliar, aprofundar e/ou reconstruir os próprios saberes e práticas e desenvolver formas de pensar e agir coerentes” (Ferreira, 2003, p. 36). Nesse sentido, a construção da identidade docente caminha paralelamente ao desenvolvimento profissional. Segundo Cyrino (2017, p. 702),
o professor que cada um é, ou que irá se tornar, não depende simplesmente dos conhecimentos matemáticos e didáticos, trabalhados nos processos de formação. O movimento de construção/desenvolvimento da IP de PEM implica em uma transformação pessoal, e se dá a partir da sua biografia, das suas crenças e concepções, das várias experiências formativas, da sua atuação profissional (ou em contexto da sua futura prática profissional aos quais são submetidos no processo de formação inicial), sendo, portanto, influenciado por diversos sistemas de mediação.
Assim, é essencial reconhecer que tanto o desenvolvimento profissional quanto a construção da identidade docente são processos dinâmicos e interligados, que vão além da profissão e se estendem para outras áreas da vida. São movimentos amplos que incluem aspectos pessoais, profissionais, intelectuais, morais e políticos, todos entrelaçados nas experiências individuais e nas interações com diversos contextos. Essa jornada implica não apenas a percepção externa dos outros sobre nós, mas, também, na nossa própria autopercepção e na capacidade de reflexão sobre nossas experiências. É, portanto, um ciclo contínuo de aprendizado, autoconhecimento e evolução que enriquece não apenas a prática docente, mas a totalidade da pessoa (Cyrino, 2017).
No presente artigo, apresento um recorte dessa pesquisa de Mestrado e analiso alguns momentos do processo vivido, buscando evidenciar suas contribuições para meu desenvolvimento profissional e constituição de minha identidade profissional enquanto professora de Matemática de surdos. Para isso, situo brevemente a Educação Matemática Inclusiva como base teórica que amparou a análise aqui apresentada. Em seguida, descrevo as opções metodológicas e analisar três momentos do processo vivido. Finalmente, concluo com algumas considerações.
Como professor devo saber que sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino (Freire, 2019, p. 83).
A Declaração de Salamanca salienta que as características individuais dos(as) alunos(as), sejam eles(as) pessoas com deficiência ou não, devem ser respeitadas, e chama a atenção do ensino regular para o desafio de atender às diferenças (Unesco, 1994). Nesse contexto, uma Educação Inclusiva contemplaria necessidades de todos os alunos em um mesmo ambiente escolar, onde todos(as) são ensinados(as) em juntos (Mantoan, 2003). Para se chegar à visão de Educação Inclusiva, torna-se necessário refletir sobre o que existe de mais comum na humanidade: as diferenças. Segundo Skovsmose (2017, p. 25), “diferenças fazem parte da condição humana universal e diferenças podem ser esperadas em todas as esferas da vida”. Somos de diferentes etnias, culturas, crenças e tantas outras características. Assim, incluir não é inserir/integrar um grupo em outro, mas estabelecer encontros entre as diferenças existentes em sala de aula (Skovsmose, 2017).
Nessa perspectiva, uma Educação Matemática Inclusiva considera a diferença como valor que enriquece o grupo e não como deficiência ou prejuízo, e busca promover uma Matemática que não se reduza “a um tipo de sistema de símbolos amodal que representa uma experiência descorporificada do cérebro”, mas que se desenvolva por meio de “cor, som, música, movimento e texturas, para que a matemática escolar possa ser experienciada por meio de diferentes canais sensoriais” (Healy; Fernandes, 2020, p. 80). Logo, uma Educação Matemática que inclua os surdos demanda do professor compreender a surdez para além do fator biológico e envolve entender que “o desaparecimento de uma das funções da percepção, a falta de um órgão, se compensa com o funcionamento elevado e o desenvolvimento dos outros órgãos” (Vygotsky, 1997, p. 75).
Entre outras coisas, uma Educação Matemática que inclui os(as) surdos(as) precisa considerar o papel da visão no ensino. A compensação por meio da visão representa uma das formas que a surdez usa para responder aos desafios que lhe são impostos. A pessoa surda aprende por caminhos diferentes da ouvintes. Levar em consideração estratégias visuais no ensino de Matemática colabora para seu aprendizado, “pois o sujeito surdo explora o mundo, faz suas indagações e encontra suas possíveis respostas pelo olhar” (Alberton, 2015, p. 14).
Conhecer cada estudante, sua personalidade, sua história e o meio em que vive é outro ponto importante para o(a) professor(a) de Matemática. Segundo Moreira (2016, p. 752), “ao conhecer seus alunos, os professores ajudam na construção das ideias e elaboração de conceitos de uma forma mais esquematizada. Também contribui para uma melhor atuação profissional e, consequentemente, um melhor ensino”. Ao conhecer seus(suas) alunos(as) e sua percepção visual do mundo, o(a) docente pode planejar aulas que favoreçam sua aprendizagem. Alberton (2015, p. 23) sugere a utilização de metodologias que priorizem “os aspectos relevantes do conteúdo trabalhado com exemplos claros, com recursos e materiais apropriados (atividades concretas, jogos, livros e figuras, dramatizações e histórias)”. Além disso, é interessante utilizar “explicações detalhadas em Libras, mostrar atividades, exercícios e trabalhos” (Alberton, 2015, p. 51). Essa forma de ensinar Matemática abandona a ideia de que o ensino dessa disciplina é “situado em estratégias e procedimentos mecânicos, sem sentido para o aluno” (Alberton, 2015, p. 51), e estimula o(a) professor(a) a criar estratégias e recursos adequados às necessidades de seus(suas) estudantes que favoreçam a compreensão das noções matemáticas.
Ao apresentar atividades de Matemática para estudantes surdos(as), o(a) professor(a) pode, também, levar em consideração as diferentes habilidades criando distintas oportunidades, com objetivos semelhantes, aos(às) distintos(as) alunos(as). Quando os(as) estudantes compreendem o conteúdo matemático apresentado, percebem-se capazes de aprender, passam a confiar em si mesmos(as), pensam em diferentes situações da Matemática no cotidiano, sem esperar respostas prontas do(a) professor(a), desenvolvendo o raciocínio e chegando a resolver problemas do cotidiano por si mesmos(as).
Como Araújo (2015, p. 85), entendo que “podemos produzir muito em sala e temos o poder da transformação dentro e fora dela. Um poder por meio do conhecimento que rompe as barreiras da sala e invade a sociedade alertando e desejando mudanças”. Assim, estudar e refletir sobre o ensino de Matemática para surdos(as) em uma perspectiva inclusiva, bem como buscar aprimorar minha prática a partir disso, faz parte do processo de desenvolver-me profissionalmente enquanto me constituo uma professora de Matemática de pessoas surdas. Ou seja, esse processo articula o desenvolvimento profissional e a constituição de uma identidade profissional.
A meu ver, um caminho interessante e fecundo para o desenvolvimento profissional docente é transformar a reflexão sobre a própria prática em pesquisa sobre essa experiência. Nesse sentido, o(a) professor(a) pode “experimentar formas de trabalho que levem os seus alunos a obter os resultados desejados” (Ponte, 2002, p. 2), pois elas poderiam propiciar “reflexões constantes do(a) professor(a) sobre sua prática, seus saberes e sua gestão da aula de Matemática. Tais experiências, quando registradas e sistematizadas, podem contribuir para que o(a) professor(a) se torne investigador(a) de sua própria prática” (Lima; Nacarato, 2009, p. 242). Para Ponte (2008, p.154), “este campo de investigação, essencialmente profissional, tem como grande finalidade contribuir para clarificar os problemas da prática e procurar soluções”.
Conforme Cochran-Smith e Lytle (1999 apud Lima; Nacarato 2009, p. 246), a investigação da própria prática pode ser concebida como “um estudo sistemático e intencionado dos professores sobre seu próprio trabalho na sala de aula e na escola”. É sistemático por referir-se às formas de registro e de documentação das experiências que ocorrem dentro e fora da sala de aula, e intencionado por indicar uma atividade planejada e intencionada pelo(a) próprio(a) professor(a), conforme Lima e Nacarato (2009). Os conhecimentos construídos nessas investigações mostram a realidade vivida pelos(as) professores(as) em sala de aula e podem provocar transformações e melhorias na qualidade do ensino e da aprendizagem dos(as) alunos(as). Podem, também, ser de “interesse para uma comunidade profissional mais alargada do que a dos actores que viveram directamente o processo” (Ponte, 2002, p. 18), pois as angústias e aflições enfrentadas em sala de aula não são de um(a) único(a) profissional, muitos(as) outros(as) têm as mesmas dificuldades, e um trabalho sobre a própria prática, mesmo sendo de caráter particular, quando socializado e compartilhado possibilita o acesso a novos saberes para outros(as) professores(as).
A pesquisa foi realizada em minha própria classe em uma escola bilíngue para estudantes surdos(as) de uma cidade do interior de Minas Gerais. A instituição, fundada em 1979, atendia, na época da pesquisa, a 33 alunos(as) surdos(as), provenientes de várias cidades da região, oferecendo da Educação Infantil ao nono ano do Ensino Fundamental. A faixa etária dos(as) alunos(as) dos Anos Finais do Ensino Fundamental, atualmente, varia de 11 a 18 anos. A maioria deles(as) vem de famílias carentes, que recebem auxílio das prefeituras para o transporte.
O estudo se desenvolveu na classe de oitavo ano em que eu lecionava. Ela era composta por cinco estudantes para os(as) quais adotei os seguintes pseudônimos: Fernanda, Lucas, Jorge, Raul e Ana. A ideia, a princípio, era observar minhas aulas no espaço escolar, presencialmente. Contudo, a pandemia de Covid-19 demandou grandes mudanças em todos os aspectos de nossas vidas e com a pesquisa não foi diferente. Tornou-se necessário desenvolvê-la em um ambiente novo para mim e para meus(minhas) alunos(as): o ambiente virtual. Infelizmente, nem todas as famílias tiveram condições de oferecer recursos e acompanhamento para seus(suas) filhos(as) participarem das aulas on-line, por isso, apenas esses cinco alunos participaram da pesquisa.
Dos(as) cinco alunos(as) que frequentaram as aulas on-line, quatro foram assíduos e participantes e um raramente aparecia. Posteriormente, quando as aulas voltaram para o modo presencial, todos(as) compareceram. No período remoto, utilizavam o celular para assistir às aulas, a internet era estável e somente em alguns dias éramos prejudicados por instabilidades. Dos(as) cinco alunos(as), três são oralizados(as), mas utilizam a Libras o tempo todo nas aulas e têm boa compressão do português escrito. Destes(as), dois têm facilidade na interpretação de problemas matemáticos, quando atentos(as).
Apresento aqui uma análise de alguns momentos vividos ao longo do processo de estudar-agir-refletir sobre a ação, a partir, principalmente, das anotações feitas em meu diário de campo, no período de março a setembro de 2021, acerca do planejamento, desenvolvimento e avaliação de minhas aulas no oitavo ano do Ensino Fundamental. Porém, ele contempla muitas outras vozes, ao incorporar trechos das gravações das aulas síncronas e registros produzidos pelos(as) estudantes, assim como minhas leituras e reflexões.
As gravações das aulas síncronas subsidiaram a produção do diário de campo, permitindo um olhar mais detalhado sobre as interações em sala de aula. E os registros produzidos pelos(as) estudantes forneceram perspectivas sobre sua experiência a partir das tarefas propostas. Além disso, minhas leituras e reflexões pessoais foram incorporadas à análise na forma de insights e ponderações críticas sobre as práticas pedagógicas adotadas. A combinação dessas diversas fontes de dados constitui o corpus de análise que favoreceu a interpretação dos dados e, simultaneamente, contribuiu para meu processo reflexivo.
Adotei dois eixos na análise das aulas: práticas pedagógicas tradicionais e práticas pedagógicas inclusivas, entendendo a noção de prática pedagógica tal como a define o dicionário do Gestrado, ou seja, como uma prática social complexa que
acontece em diferentes espaço/tempos da escola, no cotidiano de professores e alunos nela envolvidos e, de modo especial, na sala de aula, mediada pela interação professor-aluno-conhecimento. [...] não só expressa o saber docente como também é fonte de desenvolvimento da teoria pedagógica, pois, ao exercer a docência, de acordo com suas experiências e aprendizagens, o docente enfrenta desafios cotidianos - pequenos e grandes - que o mobilizam a construir e reconstruir novos saberes num processo contínuo de fazer e refazer. Como ocorre em um determinado contexto, pressupõe limites e possibilidades. Nesse sentido, a prática pedagógica se apresenta em constante estado de tensão (Caldeira; Zaidan, 2010, s./p.).
Ela abarca tanto as ações efetivamente realizadas na sala de aula quanto o estudo, as reflexões e as ações relacionadas ao planejamento. Assim, as práticas pedagógicas tradicionais seriam aquelas em que: “o professor apresenta uma definição matemática, realiza alguns exemplos e, na sequência, pede para que os alunos repitam o mesmo procedimento, com exercícios semelhantes aos exemplos” (Borges; Nogueira, 2016, p. 486), não realizando caminhos diferentes dos comumente apresentados na escola. Nesse tipo de prática, o(a) professor(a) só se preocupa em ensinar os conteúdos e não em como fazer para o(a) aluno(a) realmente aprender.
As práticas pedagógicas inclusivas seriam aquelas nas quais a aprendizagem acontece com experiências relacionais, participativas, que façam sentido para os(as) alunos(as) e que sejam construídas no coletivo da sala de aula (Mantoan, 2013). Isso significa que as aulas de Matemática são pensadas de forma contextualizada, a partir do que é conhecido e vivido pelos(as) alunos(as), e envolvem trocas entre estudantes e docente, e dos(as) estudantes entre si. Nessa perspectiva, Matemática para surdos(as) também engloba “considerar os aspectos que se apresentam como de fundamental importância no tratamento de alunos surdos, como uma diversificação de metodologias de ensino”, destacando as experiências visuais “que não fiquem presas à dependência da compreensão de textos em enunciados matemáticos” (Borges; Nogueira, 2016, p. 499).
Apresento, a seguir, três momentos vividos ao longo da pesquisa de Mestrado, esperando ilustrar uma caminhada que iniciou em 2021 e que ainda não se encerrou. Optei por privilegiar uma descrição reflexiva de episódios que ilustram como, gradativamente, avancei em direção a uma prática pedagógica inclusiva.
O primeiro desafio ao transformar minhas aulas foi ensinar os conteúdos matemáticos previstos no programa do oitavo ano do Ensino Fundamental a partir de aulas apoiada nos estudos e reflexões. Considerando o ano anterior atípico (pandemia de Covid-19), planejei uma revisão. A primeira tarefa proposta foi uma revisão da noção de equação do primeiro grau. O conteúdo havia sido ensinado no ano anterior. Recordo-me de, na época, ter iniciado a atividade apresentando imagens de objetos iguais que, somadas, davam um resultado numérico; juntos investigávamos o número que cada imagem representava (Imagem 1).

Aos poucos, as imagens se transformavam em letras e os cálculos se formalizavam. As equações desenvolvidas pelos(as) alunos(as) eram simples e parecidas umas com as outras, facilitando a resolução. Com a revisão, constataria que se recordavam da matéria, para prosseguir com os conteúdos do oitavo ano. Para tal, organizei slides coloridos em PowerPoint, com pequenos textos explicativos e exemplos de equações do primeiro grau e resoluções. Detalhei passo a passo, matematicamente, o que era uma equação, como resolvê-la e coloquei também alguns problemas escritos em português. Além de se constituírem em um recurso visual preparado para a aula, planejei os slides foram planejados de forma que se tornassem um material de estudos para eles(as). A intenção era que pudessem consultá-los sempre que fosse necessário, favorecendo alguma autonomia.
Em um dos slides, coloquei uma imagem que continha a palavra equação e seu sinal em Libras, pensando que auxiliaria na visualização e memorização do sinal e da palavra (Imagem 2):

Lemos a palavra equação, sinalizamos juntos e, nos slides seguintes, apresentei exemplos de equações do primeiro grau. Com isso, eu esperava que relembrassem o conteúdo e que a revisão acontecesse em duas aulas. No momento de relembrar a resolução de equação, usei o quadro branco para explicar passo a passo. Após cada explicação, propunha uma equação para que tentassem resolver. Quando a equação era semelhante ao exemplo dado, a turma conseguia resolver, mas, quando era um pouco diferente, manifestava dificuldades e dizia que precisava exercitar.
Apesar de afirmarem que compreendiam a tarefa e que só precisavam “repeti-la mais vezes”, percebia em suas feições um total descontentamento e um grande esforço para dar sentido ao que era apresentado. Evidentemente, quando diziam que a repetição de exercícios era necessária, expressavam que não compreendiam a resolução, mas que, se treinassem, conseguiriam resolver mecanicamente as equações, o que significa que não estariam realmente aprendendo o conteúdo. Ao analisar esse momento da aula, percebi a importância que o grupo atribuía ao treino, porém, de uma forma inadequada, pois buscavam apenas decorar o passo a passo da resolução sem qualquer compreensão. A meu ver, treino tem seu valor nas aulas, mas de uma forma que contribua para o aprendizado da turma.
Contudo, talvez, por estar preocupada com o desenvolvimento do conteúdo proposto, não atentei para o fato de os(as) alunos(as) não estarem acompanhando a matéria de forma satisfatória, e insisti em dar continuidade à apresentação dos slides. Quando chegamos aos problemas, apresentei um exemplo no qual escrevi o texto, destaquei em vermelho as palavras que julguei pertinentes para sua compreensão, mas a dificuldade deles foi ainda maior (Imagem 3):

O problema não fez sentido algum para eles(as), mas segui em frente. Acreditei que, talvez uma imagem favorecesse a compreensão do problema e da noção de equação. Pensava que as cores e traços seriam facilmente entendidos pelos(as) estudantes (Imagem 4):

Como não haviam compreendido sequer o que era equação do primeiro grau, relacioná-la a um problema matemático com palavras em cores diferentes, traços em alguns trechos que levavam à letra x, ao sinal de mais, igual, a números e, ainda, sem qualquer contextualização, não fez sentido algum para a turma. Após as explicações, atrevi-me a propor exercícios e problemas envolvendo equação do primeiro grau; eles(as) começariam a resolvê-los em sala e finalizariam em casa. O resultado é expresso por um trecho do diário de campo:
Como fomos fazendo as questões uma a uma, não terminamos as atividades durante a aula e ficaram para tarefa de casa. Foram muitas mensagens de dúvida de dois alunos. Os demais não perguntaram nada e não fizeram a atividade. Como percebi que era uma dúvida geral e que os slides e a aula fazendo um siga o modelo de cada equação não foi satisfatória, tentei fazer um vídeo explicando algumas equações novamente para que os alunos pudessem assistir em casa e, através disso, fazer as atividades propostas, porém, apenas um aluno deu retorno do vídeo e das atividades (Simões, Diário de campo, 08 mar. 2021).
Ao analisar a aula, percebi que não adiantava conhecerem a palavra e o sinal de equação, se não compreendiam seu significado matemático. Na prática, os slides eram apenas uma forma “colorida” de apresentar o conteúdo de forma tradicional e desconexa das necessidades dos(as) alunos(as).
Entendendo que a Identidade Profissional é constituída em um movimento que “se dá tendo vista um conjunto de crenças e concepções interconectadas ao autoconhecimento e aos conhecimentos a respeito de sua profissão, associado à autonomia (vulnerabilidade e sentido de agência) e ao compromisso político” (Cyrino, 2017, p. 704). Noto claramente que, apesar de existir uma disposição genuína em transformar minha prática docente (compromisso político e autonomia), ainda estava fortemente influenciada por crenças e concepções limitantes. Ideias como: desenvolver a aula até o final, “cumprir” o programa e “explicar para o aluno aprender”, estavam muito arraigadas em mim e, mesmo me empenhando em mudar, ainda era marcada por elas. Mas refletir sobre esse momento reforçou a importância do ser e de me ver sendo uma professora que ensina Matemática para sujeitos surdos.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) prevê o estudo do princípio multiplicativo no 8º ano com o propósito de desenvolver a habilidade de “resolver problemas de contagem cuja resolução envolva a aplicação do princípio multiplicativo” (Brasil, 2018, p. 13). Com isso, busquei na literatura estudos sobre o conteúdo que auxiliasse em meu planejamento. Para Segadas et al. (2015, p. 3), a “resolução de problemas combinatórios para quaisquer alunos pode requerer o uso de esquemas visuais, como diagramas e árvores. Estes esquemas mostram-se alternativas importantes para auxiliar a identificar a estratégia a ser utilizada para os casos em que a contagem direta não é possível de ser realizada”.
A visualização, para esse tipo de situação-problema, facilita o entendimento, especialmente para estudantes surdos(as), pois, conforme Carneiro (2009, p. 127), a aprendizagem é favorecida se “pautada principalmente na percepção visual e na manipulação de material concreto como elementos facilitadores, onde metodologias diferenciadas seriam importantes para atingir esta clientela”. Assim, buscando apresentar o tema de forma interessante para minha turma, assisti a uma Live4: “Atividades matemáticas acessíveis para alunos surdos e alunos com deficiência visual” (Respira Educação, 28 jul. 2020), do grupo de extensão e pesquisa “Ensino de Matemática para Deficientes Visuais e Surdos” do Projeto Fundão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nessa apresentação, chamaram-me a atenção duas sugestões para desenvolver o conteúdo utilizando material manipulativo: uma com copos plásticos encaixados, sobrepondo as combinações de calças e blusas em um bonequinho desenhado, e outra com um boneco, calças, blusas e cabelos feitos em EVA, para que o(a) aluno(a) pudesse manipular e descobrir quantas combinações diferentes de roupa e cabelo eram possíveis.
Como na época, devido à pandemia de Covid-19, as aulas aconteciam remotamente, adaptei essas ideias de modo a utilizar materiais que os(as) alunos tivessem em casa. Planejei recortar, com eles(as), calças e blusas de papel em cores variadas, para que pudessem manipulá-las (Imagem 5).

Assim, apesar das dificuldades percebidas nas últimas aulas relativas à língua portuguesa, elaborei um problema disparador da discussão. Usei frases curtas e destaquei em negrito as cores das calças e blusas, pensando que isso auxiliaria na associação com o material confeccionado (Imagem 6).

A proposta era que lessem o problema e, se quisessem, eu o sinalizaria em Libras. Logo em seguida, resolveriam o problema, desenhando um boneco no caderno para nele sobrepor as calças e blusas, confeccionadas por eles(as), e, assim, encontrar as possíveis combinações de roupa. Resolvido e discutido o primeiro problema com as peças de roupa, outros seriam apresentados para que os resolvessem por meio de desenhos. Mais adiante, formalizaríamos o conteúdo matematicamente.
Porém, a aula não saiu como eu esperava. O significado da palavra “combinar”, para os alunos(as), era próximo de harmonizar, de “vestir bem”. Entenderam que precisavam descobrir quais roupas ficariam bem em Gabriel e não todas as formas possíveis de vesti-lo com uma calça e uma blusa. O trecho abaixo do diário de campo representa parte do registro desse momento e a manifestação de alguns(algumas) alunos(as).
Uns gritavam o nome da cor que achava que combinava, outro sinalizava, um outro coçava a cabeça em sinal de não estar entendendo nada. [...]
Lucas: Branco com preto fica ótimo!
Jorge: Branco com amarelo!
Lucas: Azul com preto não combina! (Simões, Diário de campo, 07 jun. 2021).
Tentei algumas explicações, todas em vão, pois os alunos não compreendiam o sentido de combinar no problema matemático. Talvez, o formato on-line das aulas tenha dificultado a comunicação com os alunos e restringido o uso de recursos, devido ao limitado campo visual da câmera, pois, como afirma Borges (2013, p. 99), “nem sempre as dificuldades de aprendizagem dos conceitos matemáticos estão relacionadas somente à própria Matemática, mas à maneira como é estabelecida a comunicação em sala de aula, seja ela escrita, falada ou sinalizada”. Porém, pode ter sido simplesmente uma questão cultural. Em sua cultura, o termo “combinar” tinha um significado próprio e, talvez, único, e isso pode ter dificultado a percepção de que a mesma palavra poderia ser utilizada, em Matemática, com outro sentido. Contudo, percebi que estava em outro momento em termos profissionais. Ao invés de desanimar, pensei, como Ponte (1998, p. 5), que “um dos aspectos mais salientes do conhecimento profissional é a sua forte base experiencial. Ele é constantemente elaborado e reelaborado pelo professor, em função dos seus contextos de trabalho e das necessidades decorrentes das situações que vai enfrentando”.
Assim, decidi reformular o planejamento. A literatura evidencia que a aprendizagem dos estudantes surdos(as) é favorecida quando sua cultura é valorizada. Valorizar sua cultura nas aulas, para mim, envolve adequar o conteúdo a seu cotidiano. Assim, preparei outra aula, desta vez, partindo de uma vivência recente de uma aluna da turma.
Esse momento corrobora o valor da experiencialidade e da vulnerabilidade na constituição identitária. A experiência - sempre que pautada pela reflexão e pelo genuíno desejo de se desenvolver profissionalmente - proporciona receptividade e disponibilidade, ou seja, na perspectiva de Larossa (2002 apud De Paula; Cyrino, 2020, p. 7), “é ‘um estar aberto a’, inseguro de si, não um sujeito que alcança aquilo que se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera”.
A experiência, nesse sentido, demanda vulnerabilidade. Não se trata da vulnerabilidade que enfraquece, fragiliza e paralisa, mas a que permite ao professor “reconhecer seus erros e limitações, conciliar seus conflitos e dilemas decorrentes” e relacionados à sua prática docente, “para que possa superá-los” (Cyrino, 2017, p. 706).
Fernanda comentara conosco como havia comemorado seu aniversário e detalhou as comidas, bebidas e sua roupa para a festa. Elaborei uma apresentação em PowerPoint com o tema: Aniversário da Fernanda. Como o objetivo era trabalhar com os alunos a habilidade de resolver problemas sobre o princípio multiplicativo, escrevi frases curtas, de fácil compreensão, e inseri imagens relacionadas a elas. Como sugerido por Soares, Nogueira e Borges (2018), busquei o apoio de imagens relacionadas ao texto, esperando auxiliar os(as) estudantes em sua intepretação.

Durante a aula, todos estavam atentos e respondiam empolgados aos questionamentos. Com a história apresentada nos slides, compreenderam o significado da palavra “combinação” no contexto matemático. Um aluno exclamou animado: “Ah! É isso? Muito fácil!” (Simões, Diário de campo, 08 jun. 2021). Segui com a história do aniversário da Fernanda e cada aluno da sala foi convidado. Uns precisavam escolher qual roupa usar para a festa; outros, quais salgados e bebidas podiam comer. Aos poucos, foram construindo a noção de combinação em Matemática (Imagem 8).

Concluída a discussão sobre a festa da Fernanda, retomei os slides da situação apresentada na aula anterior (calças e blusas). Após relerem o problema, sinalizei usando o sinal de combinação, que agora tinha um significado diferente para eles. Manipulando suas figuras, um a um foi respondendo corretamente.
Analisando todo o processo, atribuo os resultados obtidos à forma como o conteúdo foi apresentado. Partir de uma situação recente vivenciada pela turma, usar imagens e textos de fácil compreensão parece ter favorecido a atribuição de sentido à aprendizagem da noção e à questão. A Matemática da escola veio ao encontro da história dos alunos. A prática tornou-se inclusiva ao se pautar por um olhar cuidadoso para a forma como estudantes surdos(as) compreendiam as noções em estudo, no âmbito de suas vivências, e para as necessidades da turma, bem como pelo esforço na elaboração de uma aula mais adequada, embasada em muito estudo e empenho para me aproximar da cultura surda.
Observei que o esforço despendido em todo o processo começava a proporcionar mudanças significativas em minha prática docente. Comecei a incorporar, efetivamente, valores que considero importantes para um ensino inclusivo, tais como o apreço pelas reais necessidades dos alunos e o desenvolvimento de tarefas matematicamente relevantes, mas que possuem sentido para eles. Percebia que buscava tanto ensinar quanto possibilitar que os alunos aprendessem. Como Fiorentini e Miorim (1993. p. 5), sentia, de modo intenso, que
ao aluno deve ser dado o direito de aprender. Não um “aprender mecânico”, repetitivo, de fazer sem saber o que faz e por que faz. Muito menos um “aprender” que se esvazia em brincadeiras. Mas um aprender significativo do qual o aluno participe raciocinando, compreendendo, reelaborando o saber historicamente produzido e superando, assim, sua visão ingênua, fragmentada e parcial da realidade.
Dessa forma, as práticas pedagógicas tradicionais que levam à memorização mecânica de conteúdos matemáticos não faziam mais sentido para mim. Apoiada em Borges e Nogueira (2019, p. 11), fui percebendo a importância da “diversificação de estratégias e de atividades (por exemplo, em suas maneiras de representar objetos matemáticos ou mesmo enunciados)” no ensino de Matemática para surdos. Assim, além de sinalizar o problema, escrevia no quadro registros numéricos para representá-los. Dessa forma, os alunos acompanhavam a sinalização, olhavam para o esquema representado no quadro e, utilizando ambos os recursos, pensavam e respondiam ao problema.
A partir disso, comecei a caminhar em direção às aulas em que os alunos interagiam, exploravam e desenvolviam habilidades matemáticas de forma prazerosa e compreensível. Percebi-me em um processo de transição de um ensino expositivo para o exploratório, como o citado por Ponte (2009, p. 105):
No ensino expositivo ou directo, o principal papel do aluno é ouvir e procurar compreender as “explicações” do professor. Este mostra exemplos para o aluno aprender “como se faz” [...]. Em contraponto, na aprendizagem exploratória, a aula decorre de modo diferente: os alunos têm de descobrir estratégias para resolver as tarefas propostas e o professor pede aos alunos para explicarem e justificarem os seus raciocínios.
Era apenas o começo da modificação, mas as práticas pedagógicas inclusivas ganhavam espaço à medida que eu estudava, experimentava e refletia sobre o processo. Vivenciei a afirmação de Garcia (2009, p. 16): “a mudança nos conhecimentos e crenças provoca uma alteração das práticas docentes em sala de aula e, consequentemente, uma provável melhoria nos resultados da aprendizagem dos alunos”. Entusiasmada pelos resultados das aulas, comecei a mudar a crença de que ensinar Matemática sempre envolvia “passar” no quadro - geralmente, regras e fórmulas -, depois resolver alguns exemplos e propor atividades para realizarem seguindo um modelo, sem que precisassem compreender o processo. Percebi que era possível ensinar de forma diferente, mais interessada na compreensão do processo e das noções matemáticas envolvidas que no produto (resposta correta).
Compreendi que uma mudança consistente de minhas práticas levaria tempo e esforço, mas, a cada passo dado, sentia-me vitoriosa e capaz de continuar em minha busca. Assim, fui aprendendo que priorizar a comunicação em Libras em todo o processo e procurar acompanhar o processo vivido pelos alunos, intervindo e redirecionando as propostas quando necessário, poderia proporcionar um ambiente mais adequado para a aprendizagem matemática de meus(minhas) estudantes surdos(as).
Esse processo seguiu se desenvolvendo e segue ainda hoje. Avanço um pouco a cada dia, lendo, estudando e refletindo muito sobre tudo o que aprendo na teoria e na prática pedagógica cotidiana.
Com base em estudos e aprendizagens oriundas da experiência docente com estudantes surdos, bem como em minha insatisfação com os resultados obtidos e com meu desejo de me desenvolver profissionalmente, decidi experimentar novas formas de ensinar em minha classe de oitavo ano. Porém, não existe uma receita para isso. Criar novas formas de ensinar implicam mudanças profundas que não acontecem de um dia para o outro. Minha prática pedagógica foi construída a partir de experiências vividas ao longo de minha vida pessoal, escolar e profissional. Não havia como simplesmente negá-las ou abandoná-las. Percebi que necessitava observar-me atuando para aprimorar minha prática docente.
Com o tempo, compreendi que a reflexão, quando sistemática e pautada em uma vulnerabilidade “escolhida”, contribui significativamente para o desenvolvimento profissional e a constituição da identidade docente. Como Ponte e Chapman (2008 apud Cyrino, 2017), vivencio o desenvolvimento de minha identidade docente como um processo contínuo, moldado por múltiplas influências e potencializado pela autorreflexão antes, durante e após minhas aulas. Como afirma Cyrino (2017, p. 702), “essa reflexão é valiosa, quando envolve investigação sistêmica a respeito da prática, contendo questionamento, análise de dados e resultados”.
Assim, fui ajustando minhas práticas e refletindo sistematicamente sobre elas. Aos poucos, as primeiras mudanças começaram a surgir. Inspirada pelos estudos sobre Educação Matemática Inclusiva (Healy; Fernandes, 2020), comecei a propor aulas exploratórias nas quais os alunos eram desafiados a pensar e a expressar suas ideias. Além disso, mobilizei-me no sentido de valorizar sua primeira língua, seus saberes e possibilidades, estimulando a participação de todos e respeitando seus limites. A relação entre teoria e prática foi se estreitando e potencializando as intervenções que realizava em minhas aulas, tornando-as gradativamente mais inclusivas.
Nesse sentido, ao refletir sobre minha experiência como professora de Matemática para surdos(as) percebo que, aos poucos, fui deixando de ser uma professora de Matemática que também ensinava surdos(as) para me constituir em uma professora de Matemática de sujeitos surdos(as). Minha experiência corroborava o que evidenciam estudos, como os de Lacerda (2006), quanto à importância de uma formação docente específica para o ensino de surdos(as) e de um entendimento profundo das práticas pedagógicas inclusivas. Ainda que eu reconhecesse a necessidade de adaptar minha prática para atender às necessidades específicas dos estudantes surdos(as), não tinha internalizado completamente o que significa ser uma professora de Matemática de surdos(as). Ao longo do tempo, fui percebendo que isso envolve tanto uma aproximação à Cultura Surda, bem como um trabalho intenso no sentido de tornar minha prática pedagógica inclusiva, acessível e com sentido para estes(as) estudantes. Isso implica reconhecer e valorizar suas experiências e perspectivas únicas. Também fui compreendendo melhor as barreiras enfrentadas pelos(as) surdos(as) na aprendizagem da Matemática, bem como suas necessidades, interesses, modo de ser e de se expressar no mundo (Skliar, 1998). Assim, aprendi a utilizar estratégias visuais em minhas aulas, reconhecendo que a comunicação vai além das palavras.
A relação entre teoria (literatura) e prática (planejamento e desenvolvimento de minhas aulas), permeada pela reflexão e pela necessária humildade e abertura para recomeçar a cada fracasso, transformaram-me enquanto profissional. Aprendi que a incorporação de aulas que atendam a esses requisitos demanda conhecimento aprofundado do conteúdo e dos alunos, tempo, entre outras coisas. Outro aspecto importante é a constância, ou seja, que essas estratégias façam parte da rotina da sala de aula, para que tanto o professor quanto os alunos sejam contemplados por seu potencial pedagógico.
Os estudos, as experiências desenvolvidas em sala de aula e, particularmente, as reflexões, constituíram-se em instrumentos e contexto para meu desenvolvimento profissional e para o desenvolvimento de uma identidade docente enquanto professora de Matemática de estudantes surdos(as). Nesse processo, foi preciso cuidado para não esquecer que a prática pedagógica é uma ação humana, logo, falível. A autocrítica não podia se elevar a ponto de me colocar em uma crise de identidade, no sentido de menosprezar meu conhecimento profissional. Como Garcia (2009, p. 112), eu precisava entender que minha “identidade profissional é um processo evolutivo de interpretação e reinterpretação de experiências, uma noção que coincide com a ideia de que o desenvolvimento dos professores nunca para e é visto como uma aprendizagem ao longo da vida”. Tal processo reflete não apenas uma transformação em minha prática pedagógica, mas toda uma constituição de uma identidade profissional. Hoje, percebo-me como uma professora de Matemática de surdos(as), não completa nem pronta, mas sempre aprendiz, em construção.







