Temática livre
Recepción: 06 Junio 2023
Aprobación: 08 Abril 2024
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2025.17.40.8645
Resumo: Este artigo examina a disputa pela memória durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), enfatizando a arte como instru-mento de resistência. O problema principal é como artistas e intelectuais enfrentaram a censura e repressão, mantendo viva a memória dos que lutaram pela democracia. O objetivo é analisar a contribuição da arte, particularmente no documentário Cadê Heleny?, que retrata a trajetória da militante Heleny Guariba. A pesquisa justifica-se pela relevância de se preservar a memória coletiva. A metodologia adotada é a análise qualitativa de fragmentos significati-vos do documentário, articulando a relação entre política da memória e arte, evidenciando algumas potencia-lidades intrínsecas do cinema documentário. Os resultados eviden-ciam que a arte não só representou o protesto contra injustiças, mas moldou a consciência coletiva, contribuindo para os esforços de democratização e justiça no Brasil pós-ditadura. A abordagem explora o cinema documental como ferramenta de resistência, oferecendo uma narrativa alternativa à história oficial.
Palavras-chave: Ditadura militar, Memória, Testemunho, Documentá-rio.
Abstract: This article examines the dispute over memory during the Brazilian civil-military dictatorship (1964-1985), with an emphasis on art as a tool of resistance. The primary issue is how artists and intellectuals confronted censorship and repression, while keeping alive the memory of those who fought for democracy. The goal is to analyze the contribution of art, particularly in the documentary Cadê Heleny?, which portrays the journey of activist Heleny Guariba. The research is justified by the importance of preserving collective memory. The methodology used is the qualitative analysis of significant fragments from the documentary, linking the relationship between memory politics and art, highlighting some intrinsic potentials of documentary cinema. The results show that art not only represented the protest against injustices but also shaped collective consciousness, contributing to democrati-zation and justice efforts in post-dictatorship Brazil. The approach explores documentary cinema as a tool of resistance, offering an alternative narrative to the official history.
Keywords: Military dictatorship, Memory, Testimony, Documentary.
Resumen: Este artículo explora la disputa por la memoria durante la dictadura brasileña (1964-1985), destacando el arte como una herramienta de resistencia. El principal problema es cómo los artistas e intelectuales enfrentaron la censura y la represión, manteniendo viva la memoria de quienes lucharon por la democracia. El objetivo es analizar la contribución del arte, centrando el estudio en el documental Cadê Heleny?, que narra la trayectoria de la militante Heleny Guariba. La investigación se justifica por la importancia de preservar la memoria colectiva. La metodología adoptada consiste en un análisis cualitativo de fragmentos significa-tivos del documental, articulando la relación entre la política de la memoria y el arte, resaltando las características del cine documental. Los resultados muestran que el arte no solo reflejó la protesta contra las injusticias, sino que también dio forma a la conciencia colectiva, contribuyendo a los esfuerzos de democratización y justicia en Brasil posterior a la dictadura. El enfoque explora el cine documental como herramienta de resistencia, ofreciendo una narrativa alternativa a la historia oficial.
Palabras clave: Dictadura militar, Memoria, Testimonio, Documental.
Introdução
Nunca mais!
O período do Regime Militar no Brasil foi marcado por uma severa repressão, censura e violações dos direitos humanos, o que gerou uma atmosfera de medo e opressão. No entanto, também foi uma época em que a resistência cultural e artística floresceu de maneira inesperada e poderosa. Artistas e intelectuais, através da música, cinema, literatura, artes plásticas e teatro, desafiaram as narrativas oficiais do regime, criando espaços de liberdade de expressão e de resistência.
A arte emerge como uma poderosa estratégia, transcendendo o papel tradicional de entretenimento e se torna um veículo para a expressão de verdades incômodas, de representação do sofrimento e de crítica social, provocando reflexões e conectando o público com as histórias que a Ditadura tentou apagar. Este artigo visa destacar essa manifestação, na atualidade, em um tempo pós-ditadura, concentrando-se particularmente no documentário Cadê Heleny? dirigido pela espanhola radicada no Brasil, Esther Vital.
O documentário utiliza a técnica de animação em stop motion para delinear a vida e o misterioso desaparecimento de Heleny Guariba. Filósofa, professora e diretora de teatro, Heleny emergiu como uma combatente vigorosa contra o regime ditatorial militar brasileiro, engajando-se profundamente na luta pela democratização cultural e artística.
Situando-se no contexto do Ato Institucional n. 5 (AI-5), que marcou o recrudescimento da repressão política no Brasil, o documentário detalha a transição de Heleny de uma influente carreira no teatro para uma ativa militância. Sua colaboração com figuras chave do Teatro do Oprimido, como Augusto Boal, e sua participação em movimentos estudantis são destacadas como partes integrantes de sua jornada de resistência.
Visualmente, o documentário se destaca pelo uso de cenários bordados e personagens animados, que não apenas enriquecem a narrativa, mas também simbolizam uma tentativa de reconstituir a memória de uma desaparecida política. Esta escolha estética reflete as arpilleras, técnica de costura empregada por mulheres chilenas, durante a ditadura de Pinochet, para denunciar violações de direitos humanos, estabelecendo um paralelo entre as experiências de resistência feminina transnacional através da arte.
Por fim, Cadê Heleny? ultrapassa uma simples narrativa biográfica, posicionando-se como um ato de resistência em si mesmo. O documentário visa não apenas contar a história de uma mulher que desafiou um regime opressivo, mas também preservar e honrar a memória daqueles que lutaram contra a injustiça e foram silenciados pela violência do Estado. É através dos relatos dos sobreviventes e vítimas de violações de direitos humanos que a memória coletiva concorre com a história oficial, no intuito de estabelecer a verdade e a justiça sobre as torturas, desaparecimentos e mortes no período (Perotin-Dumon, 2007).
A elucidação das circunstâncias que envolvem a morte de Heleny Guariba foi possível graças aos depoimentos de sobreviventes. Desaparecida desde 1971, a verdade sobre seu destino começou a ser revelada com as declarações de Inês Etienne, única sobrevivente da Casa da Morte em Petrópolis. Inês testemunhou a presença de Heleny no local, permitindo que seus familiares formulassem hipóteses sobre o paradeiro da dramaturga e as condições de seu trágico falecimento. Este caso ressoa com o registro da Comissão Nacional da Verdade (Brasil, 2014), que aponta a existência de 434 pessoas desaparecidas ou mortas sob circunstâncias similares no Brasil.
Lançando mão de uma abordagem qualitativa, de viés interpretativista, o artigo, em seu gesto de análise, primará em recortar excertos significativos do documentário em questão. A ideia é estabelecer uma análise integrada (Selligman-Silva, 2022), concatenando o teor conjuntural, pautado por uma perspectiva mais histórica, com o teor estético (Kilborne, 2022), na busca pela compreensão de como a linguagem cinematográfica, em algumas de suas ferramentas, é empregada para criar determinados efeitos de sentido.
Por meio de uma análise detalhada do documentário, este estudo busca entender como a arte-documental pode agir como uma ferramenta de resistência, oferecendo uma narrativa alternativa à história oficial e contribuindo para a construção de uma memória coletiva mais inclusiva e honesta. Além disso, o artigo reflete sobre o papel da arte em moldar a consciência coletiva e em contribuir para os esforços de redemocratização e justiça no Brasil pós-ditadura.
Contexto político brasileiro
O Regime Militar brasileiro estendeu-se por um período de 21 anos (1964 a 1985)1, durante os quais foram observados cinco governos militares e a implementação de 16 Atos Institucionais - dispositivos legais que prevaleciam sobre a Constituição Federal. Durante esse período, houve uma severa restrição às liberdades individuais, forte repressão contra os que se opunham ao Governo Militar, e a prática de censura foi amplamente adotada.
A conjuntura do Regime Militar brasileiro pode ser efetivamente resumida em três fases distintas:
1) Golpe Civil-Militar2 de 1964: a primeira fase é marcada pelo golpe de Estado em abril de 1964, que levou à consolidação de um novo governo militar. Este período inicial do regime caracterizou-se pela alteração do equilíbrio político e pela instauração de um sistema autoritário.
2) Promulgação do AI-5, os Anos de Chumbo: a segunda fase inicia-se em dezembro de 1968 com a promulgação do Ato Institucional n. 5 (AI-5), inaugurando o período conhecido como Anos de Chumbo. Este momento foi o ápice da repressão estatal, com medidas extremas como a suspensão de direitos civis, a eliminação do habeas corpus para crimes políticos, a possibilidade de interrogatórios sem direito a advogado e sem conhecimento das acusações, além do julgamento de civis por Tribunais Militares de Exceção.
3) Governo Ernesto Geisel e a transição para a democratização: a terceira fase, sob a presidência de Ernesto Geisel (1974-1979), é crucial na história política do Brasil, marcando uma transição significativa. Durante este período, observou-se um enfraquecimento gradual do Regime Militar, abrindo caminho para a democratização. Contribuíram para essa mudança uma crise econômica aguda, demandas crescentes por abertura política, resistência e oposição política eficaz, conflitos internos no regime e uma política externa afetada pela pressão internacional a favor dos direitos humanos, em um contexto de distensão da Guerra Fria.
Durante esses 21 anos do Regime de Exceção, verificou-se uma resistência significativa por parte de diversos segmentos sociais. As formas de manifestação dessa oposição foram variadas, tanto em intensidade quanto em modalidade. Notadamente no campo intelectual e artístico, observou-se uma postura crítica marcante em relação ao regime militar.
Nesse período, artistas e intelectuais empregaram suas obras como instrumentos de crítica ao Governo, articulando o descontentamento com a repressão e a censura imperantes. Assim, a arte engajada, segundo Napolitano (2001), em suas múltiplas manifestações, transcendeu o papel de veículo de protesto e resistência durante o período de repressão e conflitos no Brasil. Ela assumiu uma função vital na documentação da história e na captura dos sentimentos de uma era conturbada, contribuindo significativamente para a preservação do espírito de resistência e para a subsequente redemocratização do país.
O historiador Marcos Napolitano (2015) mostra como as diferentes formas artísticas serviram como meios de contestação e expressão sob intensa censura e repressão. Ele destaca a arte como uma forma de luta simbólica, mostrando que a resistência se manifestava não apenas no plano político, mas também no cultural e estético. Em seus estudos, é possível notar como a cultura e a arte servem como registros históricos essenciais e ferramentas de transformação social de preservação da memória histórica, transmitindo as experiências daquela época para futuras gerações e analisando as estratégias utilizadas pelos artistas para contornar a censura, revelando a complexidade da produção cultural em tempos de repressão.
Dentre as manifestações artísticas destacam-se: a música popular brasileira, especialmente a Tropicália e, posteriormente, o movimento de MPB, com artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Geraldo Vandré, que utilizaram suas letras e performances para criticar o regime e inspirar a população.
Na literatura e na poesia, autores como Ferreira Gullar e Carlos Drummond de Andrade refletiam sobre a opressão e a resistência através da escrita. Já nas artes visuais, artistas como Cildo Meireles e Antonio Manuel criavam obras desafiadoras, provocando reflexões sobre liberdade de expressão e outros temas políticos.
O teatro também se mostrou um campo fértil para críticas políticas e sociais. Grupos como o Teatro Oficina e o Teatro de Arena de São Paulo encenavam peças que criticavam a situação política do país, usando metáforas e alegorias para driblar a censura. Heleny Guariba, destacada no curta Cadê Heleny?, é expoente desse setor (Goes, 2021).
Reconhecida por sua atuação no teatro e sua participação ativa na resistência contra o Regime Militar brasileiro, Guariba utilizou o palco como uma plataforma de resistência. Suas peças frequentemente abordavam questões sociais e políticas, desafiando as normas e restrições impostas pelo regime.
Este papel da arte, sobretudo na forma de arte-documental, como é o caso do nosso corpus de análise, revela-se ainda mais relevante na contemporaneidade, ao facilitar a compreensão dos aspectos inenarráveis e iluminar os horrores do passado. Conforme explicado por Pabón (2013), as experiências traumáticas das ditaduras militares na América Latina impuseram limites ao realismo mimético. Diante dessa realidade, escritores e artistas, de modo geral, buscam novas estratégias de representação para o “indizível”, explorando abordagens inovadoras para transmitir experiências que desafiam a expressão convencional.
A disputa pela memória
Durante o estado de exceção, os atos criminosos foram sistematicamente ocultados ou protegidos sob o manto da confidencialidade pelas entidades de controle, desempenhando um papel crucial na sustentação da estrutura autoritária. Uma quantidade significativa das provas produzidas por essas entidades ainda permanece sob sigilo, revelando as complexidades e desafios no processo de elucidar e responsabilizar os autores dos crimes cometidos nesse período. Agamben (2004), em sua obra Estado de Exceção, explora profundamente esse conceito, destacando como se caracteriza pela suspensão das normas legais e dos procedimentos democráticos sob pretexto de emergências ou crises.
Agamben (2003) critica a tendência de o estado de exceção se tornar uma prática recorrente, erodindo as fronteiras entre democracia e autoritarismo. Ele argumenta que essa condição permite ao governo exercer um poder arbitrário e ilimitado, frequentemente justificado pela segurança nacional ou combate ao terrorismo. A principal preocupação do filósofo é que o uso prolongado do estado de exceção justifique a redução dos direitos individuais e a expansão do controle estatal, levando a uma sociedade onde o poder soberano opera sem as restrições impostas por leis ou mecanismos democráticos. O autor enfatiza a necessidade de compreender e contestar o estado de exceção para proteger a liberdade e a democracia, alertando sobre o risco de sua perpetuação e a importância de defender os direitos individuais e as instituições democráticas contra possíveis abusos.
No Brasil, apenas após o processo de redemocratização, impulsionado pela incansável luta das vítimas tanto no âmbito do Poder Judiciário brasileiro quanto na jurisdição internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), foi possível desvelar parte do véu que ainda encobre a maioria dos crimes de lesa-humanidade e as graves violações dos Direitos Humanos perpetradas durante o Regime de Exceção. Este movimento de revelação marcou o início do processo de Justiça de Transição no Brasil, um passo fundamental para a reconciliação nacional e a consolidação da democracia.
É relevante ressaltar que, através do Decreto 678/1992, o Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos e, por consequência, submeteu-se à jurisdição do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Tal adesão teve implicações significativas, como evidenciado no emblemático caso Guerrilha do Araguaia versus Brasil, no qual o Estado Brasileiro foi condenado.
Neste caso, o Brasil foi responsabilizado por não cumprir com o dever de investigar, processar e punir os agentes estatais envolvidos nos crimes relacionados à Guerrilha do Araguaia, bem como por não reconhecer as vítimas, em decorrência da aplicação da Lei da Anistia Brasileira n. 6.683/1979. Foi enfatizado que tal lei é incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos, pois impede a investigação e a penalização por graves violações dos direitos humanos. Como resultado, a Corte determinou que o Estado Brasileiro deveria estabelecer uma Comissão da Verdade independente para tratar dessas questões.
O caso Herzog e outros versus Brasil, também julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, representa outro marco significativo na história do Brasil. Neste processo, o Estado Brasileiro foi novamente condenado, desta vez em relação à tortura e morte do jornalista Vladmir Herzog. A lei da autoanistia foi novamente apontada como um obstáculo fundamental, impedindo a investigação, punição e julgamento dos agentes estatais envolvidos nas graves violações.
No âmbito interno, o Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil analisou a legalidade da Lei da Anistia na Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153 (Brasil, 2010). Em abril de 2010, o STF reafirmou a legalidade formal desta lei, asseverando que a autoanistia nela contida é válida e não está sujeita a revisão. Esta posição diverge daquela adotada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, criando um dilema legal de considerável magnitude e representando um desafio substancial para a Justiça de Transição no Brasil.
No Brasil, a tarefa de elaborar e trabalhar a memória sobre este passado recente ainda está em curso, podendo ser descrita como um “luto inacabado”. Após 45 anos da promulgação da Lei de Anistia (1979), que foi considerada “mútua” e equiparou a tortura cometida por agentes da repressão política às ações dos opositores do Regime Ditatorial, inúmeros eventos e delitos daquela época continuam sem ser plenamente descobertos ou esclarecidos. Esta lacuna na memória histórica do país representa uma violação evidente dos direitos garantidos pela estrutura republicana vigente no período pós-ditadura.
Teles (2005) esclarece: as medidas adotadas pelo Estado brasileiro, como compensações financeiras às famílias e sobreviventes, a Lei dos Mortos e Desaparecidos Políticos (Lei 9.140/95), ou a reestruturação da Comissão de Anistia em 2001, não garantiram, na maioria dos casos, a elucidação dos crimes, a localização dos restos mortais dos militantes mortos, nem a responsabilização dos autores de torturas, assassinatos ou desaparecimentos forçados.
O progresso na recuperação da verdade sobre esses fatos é obstaculizado pela postura do Estado, que se abstém de fornecer esclarecimentos ou realizar investigações adequadas, transferindo para as vítimas o ônus da prova quanto à autoria e às circunstâncias desses delitos em processos administrativos executivos.
Teles (2005) também ressalta que as ações judiciais que buscam informações e a devolução dos restos mortais dos desaparecidos enfrentam longas tramitações, estendendo-se por décadas devido a entraves burocráticos e manobras legais do Estado, sem alcançar uma resolução definitiva ou conclusiva.
Nesse mesmo sentido, Le Goff (1996) aclara que a manipulação da memória coletiva é uma estratégia política, onde o ato de destruir provas e rastros visa promover esquecimentos seletivos. Dominar a memória e o esquecimento é uma preocupação constante das classes e grupos que controlam as sociedades ao longo da história. Os silêncios e esquecimentos históricos são indicativos desses mecanismos de manipulação.
Os argumentos de Jarbas Passarinho e José Sarney, ilustrados em Seligmann-Silva (2022), ambos publicados na Folha de São Paulo, ressaltam a visão reacionária sobre a Anistia no Brasil. Passarinho a defende como um meio de reconciliação nacional, baseando-se na ideia de um “esquecimento recíproco das violências mútuas”, com o objetivo de “cicatrizar feridas e reconciliar a nação” (Passarinho, 28 nov. 2006, p. A3). Ele enfatiza a necessidade de superar emoções intensas e dolorosas através do esquecimento.
José Sarney, de maneira similar, também veiculado na Folha de São Paulo (17 nov. 2006, p. A2), reforça a necessidade de sepultar os fatos do passado no “silêncio da história”, defendendo igualmente a anistia e o esquecimento. Para ele, “não devemos remexer nesses infernos, porque não é bom para o Brasil”. Nas palavras dele “essa conduta nos distingue dos nossos vizinhos e, assim, o Brasil é uma sociedade reconciliada”.
Na reflexão de Seligmann-Silva (2022), a política do esquecimento é vista como benéfica para os perpetradores e vitoriosos, que percebem a história como um campo de seus triunfos. Para eles, esquecer significa manter uma narrativa histórica que favorece sua posição e minimiza as ações e consequências dos seus atos.
Em contrapartida, para aqueles que resistiram aos déspotas, que foram humilhados e perseguidos, a história representa um clamor por justiça e reparação. Para esses grupos, o esquecimento implica na negação de suas lutas e sofrimentos, além de impedir a responsabilização e reparação necessárias.
Seligmann-Silva (2022), portanto, defende a importância de encarar o passado, não como um ato de reabrir feridas, mas como um meio essencial para o estabelecimento da justiça e para a verdadeira reconciliação. Ele argumenta que o reconhecimento e a compreensão dos eventos históricos são fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa, onde as vítimas sejam reconhecidas e os perpetradores responsabilizados.
Teles (2005), analogamente, traz uma reflexão profunda sobre a impossibilidade de simplesmente “virar as páginas da história” e ignorar acontecimentos graves, como torturas e assassinatos. A autora argumenta que esses atos não podem ser esquecidos ou compensados por gestos de reconciliação, como “sorrisos, afagos, abraços, beijos, ou mesmo por compensações financeiras”. Torturas e assassinatos são fatos históricos que perduram ao longo dos séculos, exigindo esclarecimento dos crimes e identificação das circunstâncias em que ocorreram. Teles ressalta que ignorar essa necessidade é aceitar uma visão onde conceitos de bem e mal se tornam relativos, sinônimos ou mesmo perdem completamente seu significado. Essa reflexão destaca a importância da memória e da justiça na construção da história e na compreensão da nossa sociedade.
Uma democracia robusta e a construção de um verdadeiro Estado de Direito não se fundamentam na negação ou no esquecimento do passado, mas, ao contrário, no reconhecimento e na memória. O dever de memória implica na obrigação moral e social de lembrar os eventos do passado, especialmente aqueles que envolvem violações de direitos humanos, injustiças e opressão.
Simultaneamente, o dever de justiça requer que as ações e as consequências desses eventos históricos sejam analisadas e responsabilizadas adequadamente. A busca por justiça não honra apenas as vítimas, mas também funciona como um mecanismo de prevenção contra a reincidência de tais atos no futuro.
Portanto, esses deveres, tanto de memória quanto de justiça, são fundamentais para a consolidação da democracia e do Estado de Direito, pois garantem que as lições do passado sejam aprendidas e respeitadas, assegurando uma sociedade mais justa e consciente. Como nos lembra Le Goff (1996) a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.
Diante do esforço de silenciamento perpetrado pela memória oficial, evidencia-se a persistência de um passado que se recusa a desvanecer, apesar das múltiplas tentativas dos poderes estabelecidos de erradicá-lo da consciência social e forjar uma visão homogênea e consensual. Como nos lembra Jelin (2002, p. 50):
Familiares e sobreviventes tornaram-se os herdeiros e agentes da memória, buscando engajar - comprometer a - outros, provocando o debate e a atenção, tentando gerar participação. Tentando influir e mudar o sentido e o conteúdo da “história oficial” ou da história dominante, com o fim de eliminar distorções, tornar públicos e legítimos os relatos que foram silenciados, criando e elaborando rituais, comemorações e marcas simbólicas de reconhecimento e pertencimento.
Dessa forma, preservar a memória das vítimas é um ato de resistência que, rompendo o silêncio imposto primeiro pelo terrorismo de Estado e depois pelas leis de (auto)anistia, impede que os responsáveis pela repressão possam impor à sociedade a sua própria versão do passado.
Obras de arte inspiradas ou baseadas em eventos reais da ditadura podem revelar a brutalidade do regime, homenagear as vítimas e ressaltar a resistência. Além disso, a arte pode oferecer uma narrativa alternativa à história oficial, desafiando as tentativas de esquecimento e contribuindo para a construção de uma memória coletiva mais inclusiva e honesta.
Assim, a arte se torna não apenas um espelho da realidade, mas também uma ferramenta de resistência e um meio de conscientização. Ela fornece uma linguagem universal que transcende as barreiras do tempo e do espaço, permitindo que as gerações futuras tenham acesso às verdades do passado, promovendo a empatia e o entendimento e, finalmente, ajudando a sociedade a aprender com os erros da história para que não se repitam.
O cinema documentário e a representação da barbárie
Acontecimentos traumáticos materializam, em um movimento a contrapelo, diversas possibilidades de produzir manifestações artísticas. Fazendo alusão à máxima benjaminiana, segundo a qual há uma relação intrínseca entre os documentos de cultura e a barbárie, podemos pensar nesses documentos em uma mesma chave (a da barbárie), mas em um gesto profícuo de tomada de posição e de conscientização. É aqui que entra em cena uma discussão a respeito do cinema documentário, um gênero que, muitas vezes, é lido de forma pouco criteriosa, já que, em certos momentos, é pensado como um argumento irrefutável de autoridade - quando, na verdade, evocando Nichols (2014), ele é um recorte subjetivo da realidade -, ou, em uma outra direção, na qual ele seria refutado, por flertar fortemente com o componente ficcional.
Lidar com a questão de gênero discursivo (o documentário seria um gênero no interior da arte cinematográfica), leva-nos, imediatamente, em direção a Bakhtin, cujo olhar analítico privilegia a historicidade (daí a noção de enunciado como sendo algo produzido por alguém, em um determinado tempo e em um espaço específico, sujeito a deslizamentos de significações). É pertinente evocar o teórico russo em uma discussão a respeito do gênero documentário, a despeito de ele não ter se voltado, em seus estudos, para as produções cinematográficas, pois há dois princípios que nos parecem basilares para as discussões que pretendemos desenvolver neste espaço, quais sejam o primado do enunciado e o caráter relativamente estável dos gêneros discursivos.
Pois bem, é nesse sentido que pretendemos fazer uma conexão entre a representação artística de acontecimentos traumáticos e essa estabilidade relativa dos gêneros, já que tais acontecimentos conferem materialidade aos registros culturais, isto é, eles “alimentam” tais gêneros do discurso. Voltando nosso olhar para o discurso fílmico, envolto, vale dizer, a enunciados fílmicos, faz-se interessante lidar com duas possibilidades de registros, cujas fronteiras são notadamente porosas, quais sejam o cinema de ficção e o cinema documentário. Bill Nichols (2014) afirma que o documentário pode ser definido e delimitado pelo contraste com o cinema de ficção ou com o filme experimental de vanguarda. Segundo o pesquisador estadunidense, esse tipo de cinema não é uma reprodução fidedigna da realidade, mas, sim, uma representação do mundo em que vivemos, sendo, em função disso, relevante adotar a terminologia enunciado fílmico, já que tais filmes são produzidos por um sujeito e conectados pelo tempo e pelo espaço.
A respeito do caráter poroso que delimita o cinema documental, em relação ao cinema ficcional, é importante adotar um certo rigor, uma vez que há algumas particularidades interessantes nesse tipo de cinema voltado mais fortemente para a factualidade, tais como “o uso do comentário com voz de Deus (voice over), as entrevistas, a gravação de som direto, os cortes para introduzir imagens que ilustrem ou compliquem a situação mostrada numa cena e o uso de atores sociais e suas atividades e papéis cotidianos” (Nichols, 2014, p. 54). Em relação à inscrição da ficcionalidade, o cineasta brasileiro João Moreira Salles tece importantes comentários, voltados para delimitar a distância entre os gêneros:
Aqueles que negam a existência de uma diferença essencial entre ficção e documentário geralmente partem do princípio equivocado de que o documentário, caso existisse, deveria oferecer acesso direto e não contaminado à coisa-em-si. Como isso não é possível, preferem então declarar que todo filme é ficcional. Estão errados. Manipular o material não significa aproximá-lo da ficção (Salles, 2005, p. 64).
Tendo em mente as palavras de João Moreira Salles, talvez possamos pensar em teor ficcional, aplicado a obras relacionadas ao gênero documentário e, por outro lado, em teor documental, para obras ficcionais, já que esses deslizamentos acabam sendo inevitáveis, em primeiro lugar, por se tratar de um recorte subjetivo de uma realidade, e, no outro polo, pelo fato de que as produções culturais estão situadas em um universo de crenças, valores e imaginários.
Diante do expresso, é fulcral realizar uma tentativa de concatenação das ideias desenvolvidas, em relação ao documentário adotado como corpus no presente trabalho. Em primeiro lugar, devemos retomar a ideia de barbárie, inauguradora desse tópico. Ela é importante, pois, a partir do início do século XX, uma nova forma de escrita de si é colocada em cena, a partir de dois acontecimentos-limites: a Primeira Guerra Mundial, com a batalha nas trincheiras; e a Segunda Guerra Mundial, com negativo destaque para a máquina de morte do regime nazista, que implementou um modus operandi assentado no processo de desumanização, com seus guetos, campos de concentração e de extermínio.
Pois bem, não é fortuita a observação de Márcio Seligmann-Silva, segundo a qual, há a inauguração de um tempo situado após as catástrofes, que, por sinal, é o título de um belo ensaio escrito pelo pesquisador brasileiro. O fato é que esse marco temporal, após a barbárie da Segunda Guerra Mundial, traz consigo, não apenas novas formas de escrita de si, como novas formas para construir gestos de análise. Seligmann-Silva (2022) assevera, no texto em questão, a necessidade de se fazer uma abordagem analítica das produções culturais, integrando o teor histórico e o teor estético.
Interessante pensar, já no título do ensaio, na existência de algo que se inscreve após a ocorrência de um acontecimento atravessado pela barbárie. A noção de “resto”, que ele introduz, parece emergir precisamente neste “tempo após as catástrofes”. Este conceito alude a uma espécie de balanço entre o tempo experienciado e o tempo rememorado, considerando a formulação da literatura de teor testemunhal a partir da chave freudiana do trauma.
Nesse tipo de escrita, há, portanto, dois elementos a serem considerados: a inscrição do trauma, marcado pela repetição e pela emergência da dor interiorizada no sujeito que rememora, em um tempo posterior ao vivido e que gera efeitos de sentido na materialidade discursiva. Segundo Aleida Assmann, não há uma representação verbal fidedigna da vivência traumática. Diante do trauma, “a linguagem comporta-se de forma ambivalente. Há a palavra mágica, estética, terapêutica, que é efetiva e vital porque bane o terror, e há a palavra pálida, generalizadora e trivial, que é a casca oca do terror” (Assmann, 2011, p. 278). Assmann ainda complementa, ao observar que “o trauma é a impossibilidade da narração. Trauma e símbolo enfrentam-se em um regime de exclusividade mútua” (Assmann, 2011, p. 278).
Para aprofundar a discussão iniciada por Seligmann-Silva, é relevante analisar o documentário Cadê Heleny?, que exige duas considerações fundamentais. A primeira é a necessidade de contextualizar o acontecimento traumático. Neste filme, a barbárie é retratada como consequência da política autoritária da ditadura civil-militar brasileira, estabelecida em 1964. O documentário revela que a escrita testemunhal enfrenta desafios em duas frentes distintas. Primeiramente, existe a dificuldade em articular as experiências traumáticas causadas por um sistema desumanizador, exemplificado pela violência dos agentes do regime. Esse desafio é intensificado pelas limitações da linguagem em expressar completamente tais vivências, conforme apontado por Aleida Assmann. A linguagem, em sua natureza ontológica, enfrenta uma incompletude intrínseca, o que se torna especialmente evidente no esforço de traduzir o trauma em palavras.
Por outro lado, há, conforme apontamos no tópico anterior, a ausência de condições favoráveis para a recepção da rememoração das vivências daqueles que foram impactados pela máquina de violência da ditadura civil-militar. Não há, destarte, terreno fértil para esses testemunhos, com a perlaboração do passado (Robin, 2016) sendo interditada, ou pelo menos dificultada. Essa recepção refratária impacta, podemos afirmar, em duas esferas: na esfera interna, com o sobrevivente continuando em uma espécie de limbo, já que a narrativa (lembremo-nos da palavra mágica, estética, terapêutica, defendida por Aleida Assmann) funciona como uma ponte entre a não-vida (o silenciamento) e a emergência de uma nova vida (Seligmann-Silva, 2022); e na esfera externa, com o País não conseguindo fazer um trabalho de revisão crítica do passado. Nessa segunda esfera, trabalhada mais fortemente em tópico anterior, há a emergência de um processo de anistia indissociável da política de esquecimento. Para Paul Ricoeur, “a proximidade mais que fonética, e até mesmo semântica, entre anistia e amnésia aponta para a experiência de um pacto secreto com a denegação de memória que [...], na verdade a afasta do perdão após ter proposto sua simulação” (Ricoeur, 2007, p. 460).
É relevante considerar um elemento central para lidar com produções culturais voltadas para acontecimentos traumáticos, qual seja, o silêncio. Tal elemento se adentra nas duas esferas, uma vez que ele é estruturante, gerando efeitos de sentido nas escritas de si, além de ser operacionalizado externamente, podendo, no caso de sistemas políticos autoritários, tolher sujeitos que, por razões políticas, étnicas e sexuais, por exemplo, não se enquadrem em um sistema de valores privilegiados por uma classe dominante. A esse respeito, Eni Orlandi, em seu seminal As formas do silêncio, problematiza essas duas entradas, ao apresentar os conceitos de “silêncio fundante” e “política do silêncio” (o silenciamento).
A primeira nos indica que todo processo de significação traz uma relação necessária ao silêncio; a segunda diz que - como o sentido é sempre produzido de um lugar, a partir de uma posição do sujeito - ao dizer, ele estará, necessariamente, não dizendo “outros” sentidos. Isso produz um recorte necessário no sentido. Dizer e silenciar andam juntos (Orlandi, 1997, p. 55).
Tudo isso entra em jogo no gesto de recepção e de análise do documentário Cadê Heleny?, um documentário que versa sobre uma realidade política assentada no silenciamento de outros sentidos. Ao mesmo tempo, tal documentário é produzido em um determinado lugar (um tanto quanto inóspito e que, muitas vezes, relega para segundo plano memórias de vivências traumáticas dos sobreviventes da ditadura civil-militar brasileira) e por determinados sujeitos (a diretora Esther Vital, bem como alguns membros da equipe de produção), que acionam o mecanismo da memória herdada3.
A segunda observação a ser feita, que se soma à diferenciação, em relação aos dois conflitos mundiais da primeira metade do século passado, já que o evento traumático em questão, aqui, é o regime ditatorial brasileiro de 1964, é o suporte para a representação dessas memórias. Daí a importância de se pensar em teor testemunhal, uma vez que essa noção deve ser considerada como uma inscrição passível de emergir em quaisquer tipos de manifestações culturais, não se restringindo ao registro literário. Márcio Seligmann-Silva (2022, p. 133), por exemplo, observa que “o tema do testemunho [...] não se limita aos estudos literários e tem sido analisado com relação às artes visuais, incluindo o cinema e as discussões sobre o antimonumento e sobre a relação entre arte e memória”.
No entendimento de Yann Killborne, há três modelos paradigmáticos para a realização de uma análise do filme documentário: o paradigma da transparência, o paradigma do olhar e o paradigma da experimentação. O primeiro, comumente, possibilita a emergência do mencionado equívoco de se considerar documentários como argumentos irrefutáveis de autoridade de determinadas realidades, já que “a evidência do senso comum é de conceber as imagens documentárias como uma mediação fidedigna da realidade e não considerar ou minimizar a subjetividade do realizador” (Killborne, 2022, p. 61). O acionamento mais expresso desse paradigma pode incorrer em algo como uma pressuposição de princípio, que visaria à neutralização de pontos de vista destoantes. Bill Nichols (2014), em seu clássico estudo intitulado Introdução ao documentário, identificaria os documentários pautados nesse modus operandi como sendo pertencentes ao modo de organização expositivo, no qual há, ao mesmo tempo, um direcionamento forte do documentarista, na defesa de um determinado ponto de vista, intermediado por vozes que trazem, na grande maioria das vezes, um viés de confirmação.
Contudo, algo que poderia, em princípio, ser considerado negativo, pode ser visto por um outro olhar. Uma realidade silenciada como àquela vivenciada por sobreviventes do regime autoritário brasileiro, e, aqui, colocamos em cena Cadê Heleny?, pediria uma enunciação fílmica mais retoricamente empregada, já que o foco é a conscientização. Nesse sentido, e parece ser o caso do filme de Esther Vital, o que há é o acionamento de uma estrutura retórica, não voltada para a neutralização da transparência, mas, ao contrário, para a retroalimentação dos imaginários e valores circulantes. Esse é o ponto central que faz com que as primeiras informações4 em tela não sejam neutralizadoras, mas, sim, adentrem em condições de produção pautadas por disputas pela memória (Pollak, 1992). Estamos diante, portanto, de um contradiscurso em relação à memória oficial, asséptica e homogênea, lembrando o que informado no tópico anterior a respeito das contingências da Justiça de Transição. Sejamos claros: qual seria o sentido de conceder um espaço para vozes destoantes, que referendam a barbárie, já que o domínio exercido por tais vozes, em muitos anos, silenciou os torturados e os afetados, direta ou indiretamente, pelo autoritarismo militar brasileiro?
Cadê Heleny? traça um perfil, no qual os pontos de vista estão marcadamente delimitados. O que está em jogo no trabalho de Esther Vital é lançar luzes para uma realidade silenciada, cuja construção imagética sempre foi pautada por um viés negativo Heleny Guariba foi uma militante contrária ao estado de coisas autoritário, que passou a vigorar no Brasil em 1964. Com isso temos, e o filme deixa evidenciado nos primeiros minutos, um abismo entre aqueles que foram para a resistência (tidos como bandidos e terroristas) e outros que optaram, ou pela integração, ou pela anulação de si. O ponto de vista adotado pela diretora, portanto, é o da reversão da construção imagética do outro, por intermédio de um contradiscurso. Vejamos um fragmento marcante, no qual faz-se presente o abismo existente entre a militância e as pessoas que se posicionaram alheias à luta defendida por pessoas como Heleny. O mais cruel desse recorte é que o contraponto a ela foi, justamente, seu marido:
(T1)5 Dona Heleny Guariba, com seus dois filhinhos e seu marido, naquele sobradinho da rua das Acácias, sabendo muito bem o que que era ditadura brasileira, naquele momento corre risco concreto de vida. Completo. Ela começa então a querer ser militante mesmo. Ulisses não quer. Ela já começa a ficar com problemas. Naquele furacão, o Brasil naquele jeito, o homem cassado, notícias que vinham, poucas, mas vinham, né? Onde está o terrorista? Onde está? Tá comigo. Então, eu penso que aquilo já fez uma separação dela... fez uma parede com Ulisses (Vital, 2022, s./p.).
A questão “Onde está o terrorista” é sintomática, pois ela ilustra uma imputação, além de marcar uma posição discursiva. Estamos diante da construção da imagem do inimigo, de um tipo de sujeito que precisa ser eliminado para que a “paz” possa voltar a reinar. O filme parece não fazer um juízo de valor a respeito da militância armada, no sentido de não a valorar positiva ou negativamente, mas o que é interessante é ver como a contraposição é representada, ilustrando certa ambiguidade no seio da comunidade daqueles que eram contrários à ditadura civil-militar. Essa talvez seja um dos “méritos” dos governos autoritários, qual seja, dividir para governar. Mas essa é uma discussão que foge do nosso escopo.
O que vale discutir é a mise-en-scène adotada por Esther Vital para representar a barbárie, a luta e os anseios daqueles que vivenciaram e foram impactados pela máquina de morte do regime militar. Há um caráter híbrido na enunciação fílmica de Cadê Heleny?, já que temos o emprego da voice over, marca registrada do paradigma da transparência e do modo de organização expositivo, além de algumas entrevistas, que trazem um tipo de estrutura que vai ao encontro dos documentários produzidos no Brasil6 durante os anos de 1970 e 1980. Contudo, há uma diferenciação no modus operandi da diretora que suscita outros efeitos de sentido. E, nesse ínterim, chamemos a atenção para os paradigmas do olhar e da experimentação. Segundo Killborne (2022, p. 81),
Um filme documental pertence ao paradigma do “olhar”, quando contraria os clichês, hábitos e convenções audiovisuais, desenvolve uma forma singular de mostrar o real. Torna-se “outro” em razão de uma tomada de posição disruptiva do autor, em que o cineasta se põe em cena, ou desvia o carácter utilitário do filme, ou escapa ao fetichismo do real, ou opera uma inversão dos usos em matéria de narrativa.
O que torna relevante o fragmento anterior, considerando o documentário analisado, é, justamente, a maneira singularizada de representar a realidade de uma militante contrária ao governo militar brasileiro, mediante uma subversão daquilo que é, digamos, canonicamente empregado em termos de mise-en-scène. Esther Vital se municia da animação em stop motion para discursivizar a vida de Heleny Guariba. Nos primeiros minutos, vemos em cena a rotina dessa personagem, com seus filhos e maridos, em uma estrutura que inicialmente parece evocar as chamadas sitcoms7 estadunidenses. Há uma clara disjunção entre o que é apresentado em tela, impulsionadora de efeitos de sentido lúdicos, com o emprego da linguagem verbal, direcionadora dos pontos de vista suscitados pela produção e da trilha sonora, de teor melancólico. As informações iniciais dão o tom do que o espectador poderá esperar ao longo dos 28 minutos de projeção:
(T2) O golpe foi uma coisa horrível porque o Brasil passava por um momento muito interessante, né? O cinema novo, a Bossa Nova, o futebol, o Eder Jofre com o boxe, Maria Ester com o tênis, o Dener com a moda, Paulo Freire com educação, o Anísio Teixeira. Então, o Brasil vivia um momento de grande ascensão popular (Vital, 2022, s./p.).
Aqui, vemos o golpe civil-militar como um acontecimento, isto é, como algo que irrompe, provocando uma disjunção na sociedade brasileira da época. Esther Vital opta por se municiar da animação e de uma técnica inspirada nas arpilleras, uma arte de resistência surgida como oposição ao governo sangrento de Augusto Pinochet, no Chile. O que é interessante nessa técnica é o efeito de construção paulatina dos fragmentos, o que metaforiza, de certa forma, com a ideia de reconstrução memorialística. Esse dispositivo traz ainda um efeito de sentido de “costura”, algo que funcionaria como uma metáfora do próprio filme, que prima em “costurar” algo que foi arrancado, solapado da memória oficial, ao apresentar uma personagem silenciada. Nesse ponto, podemos afirmar que estamos diante de um paradigma da experimentação, que, como o próprio nome já indica, é elaborado pela desconstrução e por uma certa inventividade:
Com o paradigma da experimentação, o cinema documentário ultrapassa todas as fronteiras comumente admitidas do documentário comum, e rompe com o paradigma do olhar por sua radicalidade [...]. O documentário experimental deve ser compreendido como o traço de uma experimentação visual e sonora que se baseia em todos os registos e explora todas as vias de expressão oferecidas pelo cinema do real (Kilborne, 2022, p. 103, grifo no original).
Esse parece ser o gesto de enunciação fílmica mobilizado por Esther Vital, já que estamos diante de uma experiência visual que traz consigo certo desconforto. Inicialmente, como afirmamos, o suporte evoca um caráter lúdico e poético, ao mesmo tempo em que o componente verbal pontua o que é evidenciado em tela, com a voice over, da diretora, imiscuída em entrevistas, com destaque para a fala do antigo namorado e igualmente membro da resistência José Olavo Leite Ribeiro: (T3) “Aquilo lá era pura tortura. Aquilo lá é uma coisa horrível. Ela foi muito torturada; foi pro hospital, né? Passou muito tempo no hospital [espaço para a encenação do aparato de violência policial]. Foi pro DOPS” (Vital, 2022, s./p.).
À medida em que a história vai se desenvolvendo, aquilo que parecia uma sitcom, com cores vibrantes, inseridas para causar uma falsa sensação de conforto ao potencial espectador, vai se transformando em algo sombrio, dialogando com o triste destino reservado para Heleny Guariba.
Na fala anterior, por exemplo, a tortura verbalizada por José Olavo é representada em tela, por intermédio da animação, provocando um efeito de disjunção. Embora seja mais do que sabido que o cinema de animação, recorrentemente, lide com temas sérios (basta dar uma analisada nos filmes da produtora japonesa Studio Ghibli, ou da estadunidense Pixar, por exemplo), esse gênero cinematográfico flerta fortemente com a inocência e com a infância, algo que também não pode ser desconsiderado como efeito, já que, em regimes autoritários, uma das consequências mais evidenciadas é a perda da infância. Parece, portanto, que estamos em uma espécie de mise-en-abîme, na qual um suporte canonicamente infantil é mobilizado para representar a perda da inocência.
Considerações finais
Ao término de nosso percurso, que está longe de estancar as possibilidades de leitura do documentário Cadê Heleny?, deparamo-nos com determinados paradigmas que funcionam como norteadores para o gesto de representação da barbárie (visada estética), bem como o gesto de análise a ser empreendido (visada teórica). Por mais que seja necessária certa objetividade diante da atividade de análise, acaba sendo difícil não se sentir afetado pelo corpus, já que o documentário de Esther Vital lida com um tema sensível para a sociedade brasileira, que lamentavelmente está longe de ser devidamente elaborado, tanto estética quanto politicamente.
Uma percepção que se torna deveras inquietante é que aquelas ações nefastas, realizadas pelo aparato militar a partir de 1964, foram recentemente justificadas e valorizadas por determinadas figuras políticas, sendo uma delas alçada ao posto político de maior importância para o país. Isso comprova que, para muitas pessoas, o slogan “nunca mais”, utilizado como alerta em relação aos horrores da ditadura civil-militar, para milhões de pessoas (observemos a votação expressiva do candidato que referenda esse modus operandi nas eleições de 2022), deve ser substituído por “saudades daquele tempo”. Essa, de certa forma, é a importância de um documentário como Cadê Heleny?, que se coloca como um contradiscurso, em um cenário de disputa pela memória, disputa, essas, às vezes desigual, já que um dos lados foi, durante décadas, silenciado, em função de uma transição mobilizada pela neutralização do acerto de contas com o passado.
Em um exercício de síntese das discussões mobilizadas a respeito do cinema documentário, suporte escolhido por Esther Vital para lançar luzes à trajetória de Heleny Guariba, é interessante notar que, embora Yann Kilborne pense os paradigmas do cinema documentário de forma estanque, há uma possibilidade de deslizamento entre eles. Cadê Heleny? nos proporciona essa leitura, uma vez que há rastros do paradigma da transparência (com a defesa de um ponto de vista marcado e enunciado como verdade), do paradigma do olhar (ao singularizar o registro do real) e do paradigma da experimentação (que radicaliza esse registro). E, claro, tais empregos trazem consigo determinados efeitos de sentido, sendo alguns deles trabalhados ao longo do texto. O que mais nos chama a atenção, e que será convocado nesse espaço de conclusão, é o fim da infância, com a enunciação fílmica desconstruindo a canônica mobilização do cinema de animação para ilustrar a ideia de que não há espaço para a inocência diante da barbárie.
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Notas