Temática livre
Recepción: 15 Febrero 2023
Aprobación: 13 Abril 2024
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2025.17.40.7523
Resumo: O presente artigo realiza um resgate histórico da legislação brasileira, no que tange à criança e ao adolescente, desde o Brasil Colônia até a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), documento internacionalmente reconhecido por se tratar de uma lei avançada na garantia dos direitos das crianças e adolescen-tes. Aborda, ainda, o Sistema Nacional de Socioeducação (SINASE), política pública destinada à inclusão do adolescente em conflito com a lei, que traz a possibilidade de práticas de Justiça Restaurativa como uma novidade de ação no sistema, se comparado ao referido Estatuto, bem como elege-a como prioridade na execução das medidas socioeducati-vas. Sua metodologia documental repassou por textos e fotos, do modelo centralizado e do descentralizado, ilustrado pelo Centro de Socioeduca-ção (CENSE) de Foz do Iguaçu (PR), cujos dados são significativos para fazer dialogar com a percepção das formas arquitetônicas, agindo na afetividade humana, bem como as diferentes atmosferas sociais numa perspectiva interdisciplinar.
Palavras-chave: Direitos fundamen-tais, Estrutura física, Projeto de segregação humana, Estatuto da Criança e do Adolescente.
Abstract: This article reviews the history of Brazilian legislation regarding children and adolescents, from Colonial Brazil to the enactment of the Child and Adolescent Statute (ECA), a document internationally recognized as an advanced law that guarantees the rights of children and adolescents. It also addresses the National System of Socio-Education Care (SINASE), a public policy intended for the inclusion of adolescents in conflict with the law, which brings the possibility of Restorative Justice practices as a novelty of action in the system when compared to the Statute, as well as elects it as a priority in the execution of socio-educational measures. Its documental methodology went through texts and photos of both the centralized and decentralized model, illustrated by the Socio-Education Center (CENSE) of Foz do Iguaçu (PR), whose data are significant to establish a dialogue with the perception of the architectural forms, acting on human affectivity, as well as the different social atmospheres in an interdisciplinary perspective.
Keywords: Fundamental rights, Physical structure, Human segregation project, Child and Adolescent Statute.
Resumen: Este ensayo hace una revisión histórica de la legislación brasileña en materia de niñez y adolescencia, desde el Brasil Colonial hasta la promulgación del Estatuto de la Niñez y la Adolescencia (ECA), documento reconocido internacionalmente por ser una ley avanzada en la garantía de los derechos de la niñez y la adolescencia. También aborda el Sistema Nacional de Socioeducación (SINASE), política pública dirigida a la inclusión de adolescentes en conflicto con la ley, que trae como novedad de actuación en el sistema la posibilidad de prácticas de Justicia Restaurativa, frente al Estatuto, así como lo elige como prioritario en la ejecución de medidas socioeducativas. Su metodología documental pasó por textos y fotos, del modelo centralizado y descentralizado, ilustrado por el CENSE de Foz do Iguaçu (PR), cuyos datos son significativos para establecer un diálogo con la percepción de las formas arquitectónicas, actuando sobre la afectividad humana, así como los diferentes ambientes sociales desde una perspectiva interdisciplinar.
Palabras clave: Derechos fundamentales, Estructura física, Proyecto de segregación humana, Estatuto del Niño y del Adolescente.
Introdução
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Sistema Nacional de Socioeducação (SINASE) trazem em si uma profunda distinção dos demais e antigos Códigos de Menores, pois concedem direitos às crianças e adolescentes, independentemente de sua condição social, familiar e econômica e elencam medidas socioeducativas como forma de responsabilização ao adolescente, quando autor de ato infracional, através de práticas preferencialmente restaurativas, em controverso a práticas punitivas, correcionais e higienistas.
No cumprimento da lei, o Estado do Paraná, através de cursos de formações, tem investido em ações, capacitações e incentivos que vão ao encontro do cumprimento da lei, na perspectiva de que as práticas restaurativas, entre outras ações interdisciplinares, podem ser colaborativas no processo socioeducativo do adolescente em conflito com a lei.
Este estudo recupera o texto dos Códigos de Menores, cuja índole punitiva foi a característica da política estatal direcionada a crianças e adolescentes, no atendimento às necessidades sociais. Passando pelo advento da Democratização e da Constitucionalização de direitos fundamentais de crianças e adolescentes, em 1988, culminou com o Estatuto da Criança e do Adolescente e, posteriormente, a sistematização da socioeducação em nível nacional.
O projeto segregacionista, sob a égide da punição, tem o legado de grandes complexos correcionais, hoje, abandonados, mas que, no imaginário e nos preconceitos sociais, ainda resta vivo, mesmo vivenciando décadas do novo paradigma legislativo do tema: a proteção integral da criança e do adolescente.
O estudo refere-se à arquitetura em transição de projetos centralizados de centro de “detenção” para instituições descentralizadas de cunho socioeducativo, com norte à socialização e à recuperação de vínculos psicológicos abalados pela violência, através de ações restaurativas.
Dividido em três subitens, retrata-se os Código de Menores, a socioeducação e as contribuições da Constituição Federal de 1988, em ambos, denotando a importância da Criminologia e seus paradigmas a partir do desenho arquitetônico das instalações institucionais, para, na terceira parte, trabalhar dados específicos da unidade de Foz do Iguaçu (PR), que está consolidando sua mudança para o sistema restaurativo, como chave interdisciplinar relevante no processo socioeducativo institucionalizado.
Dos códigos de menores de 1927 e 1979
No Brasil, desde a chegada dos colonizadores até o início do século XX, não há registros de ações que se caracterizem como políticas sociais específicas para crianças e adolescentes. O atendimento às necessidades da população era entregue exclusivamente à Igreja Católica, que, através das Casas de Misericórdia, atendia doentes, pobres, idosos, órfãos, viúvas e outros desamparados1 (Brasil, 1994).
Desde sua descoberta, em 1500, no foco da criança e do adolescente em conflito com a lei, várias políticas e formas de atendimento foram instituídas na tentativa que não infringissem a lei. Inicialmente, na época do Brasil Imperial, as autoridades propunham, como alternativa para resolver o problema da criminalidade infantil, o encaminhamento da criança delinquente para as casas de correção2.
Com a Proclamação da República, foi necessário estabelecer uma legislação condizente com as transformações que aconteciam no Brasil. Em 11 de outubro de 1890, publicou-se o Código Penal Republicano, mas poucas mudanças foram propostas, no que diz respeito à menoridade e à sua imputabilidade. A resposta para o enfrentamento da criminalidade infantojuvenil permanecia a mesma, porém as instituições eram identificadas como de caráter industrial, ou seja, precisavam preparar as crianças para o trabalho nas fábricas, em colaboração para a produção de riqueza (Brasil, 1890).
Críticas surgiram às práticas identificadas com o enclausuramento de crianças e adolescentes com adultos. Eles eram chamados de “menores vadios, vagabundos, viciosos e delinquentes”, passam a ser apreendidos pelas ações policiais de “limpeza” das ruas das cidades” (Schueler; Rizzini, 2007; Vianna, 1999; Rizzini; Gondra, 2014). O debate sobre a clausura e o modelo desses “depósitos” sem as finalidades de regeneração, recuperação e reeducação dos internos, de modo que os tornassem “úteis” à sociedade, foi objeto de reformadores juristas e médicos higienistas.
Esses profissionais pela sua importância social desenharam, a partir de então, ideais de educação/regeneração da infância em perigo e pressionaram o Estado a mudar sua política. Foi o que aconteceu no Rio de Janeiro, com o chefe de polícia que fundou, em 1899, uma “escola” dirigida especialmente às crianças recolhidas diariamente nas ruas da cidade3. Na escola Quinze de Novembro, os internos aprendiam:
a gramática portuguesa, matemática, desenho, noções de artes e música, além dos exercícios ginásticos, ofícios mecânicos e trabalhos agrícolas. Tratava-se de uma formação centrada nas atividades laborais, como o trabalho nas oficinas e no campo, tendo em vista a “gente desclassificada” a que se destinava a instituição. Ao lado do caráter preventivo, a formação de trabalhadores também visava às demandas incipientes de industrialização. Nesse cenário, a colocação mais elevada para o “menor” implicava obter o estatuto de operário.
Esse projeto geral, de sua parte, supunha estratificações internas ao prever que os “menores” que revelassem “dotes superiores” poderiam continuar a formação em nível secundário ou no ensino artístico em estabelecimentos mantidos pela União, como se pode ver no que se encontra delineado no regulamento da Escola Correcional Quinze de Novembro (Rizzini; Gondra, 2014, s./p.).
Na sequência, apresentamos algumas fotos de época desse instituto (Imagens 1 e 2):


Com o intuito de retirar as crianças infratoras das cadeias, o jurista Cândido Motta e outras autoridades, em 9 de maio de 1900, encaminharam à Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo o projeto de criação do Instituto Educativo Paulista - instituto correcional industrial e agrícola para os “menores” moralmente abandonados. O instituto era voltado aos filhos de condenados, os vagabundos, os maiores de nove anos e menores de 14 anos que obrassem sem discernimento, conforme preconiza o Código Penal de 1890, e os criminosos que obrassem com discernimento (Motta, 1909).
A instituição, com capacidade para abrigar no máximo 200 menores, tinha como objetivo incutir hábitos de trabalho e educar, oferecer instrução literária, profissional e industrial, de preferência agrícola. Naquele mesmo período, no Pará, entrou em funcionamento o Instituto Orfanológico do Outeiro, responsável por acolher a infância desvalida. Na sequência, duas fotos de 1908 (Imagens 3 e 4):

Com a promulgação do Código Penal brasileiro em 1890, fixou-se a inimputabilidade aos 14 anos. Em 1908, entrou em vigor a lei que estabelecia a criação de colônias correcionais para a internação de adolescentes, mas eles ainda permaneciam com adultos. Em 1912, apresentou-se um projeto de lei que alterou a perspectiva do direito de crianças e adolescentes, afastando-o da área penal (Brasil, 2010b). O processo crescente de especialização de tribunais e juízes, gerou nova interpretação sobre a criança e o adolescente, posto a necessidade de proteção (Amin, 2009, p. 6).
Como decorrência do avanço civilizatório modernizador capitalista e do agravamento do problema dos menores abandonados e delinquentes no Brasil, em 1927, foi promulgada a primeira legislação formal específica para menores de idade no país, o Código de Menores (Micali, 2009). À época, não havia distinção entre crianças e adolescentes e todo indivíduo com idade inferior a 18 anos era considerado como “menor” e sujeito ao Código de Menores4.
O único direito estabelecido no Código de Menores de 1927 era a assistência religiosa (Brasil, 1994). O Código apresentava-se como lei para todos os menores, independentemente de condições sociais, étnicas e ideológicas dos menores e/ou de seus familiares. A lei estabelecia, como responsabilidade do Estado, a situação do “menor” abandonado ou delinquente. Para tanto, fazia-se uso dos corretivos necessários à assistência, à proteção e à vigilância à criança ou adolescente que estivesse abandonado (carente ou que apresentasse desvios de conduta).
Surgiu, desse modo, a categoria “menor”, conceito estigmatizante e pejorativo, inclusive ainda muito usado, que acompanhou a criança e o adolescente até 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Micali, 2009). O Código de Menores de 1927, elaborado para o controle estatal da infância abandonada e delinquente, não se ocupa do bem-estar das crianças, que era reduzido aos serviços sociais prestados por entidades públicas ou privadas.
Ao poder Judiciário, diferente da descentralização determinada pelo ECA em 1990, cabia controlar as omissões, abusos e violências, não raras. Assim, cabia ao Juiz de Menores atuar nos segmentos da sociedade, caso houvesse a existência de alguma irregularidade que pudesse causar “prejuízo” ao menor (Brasil, 1979). De fato, até o advento do ECA as políticas públicas brasileiras podem ser sintetizadas, do seguinte modo:
Durante a era Vargas (1930-1945), governo baseado no populismo e no paternalismo, onde o líder político se apresentava como pai do povo, o Estado adota a política do Estado do Bem Estar Social e, baseados nessa política, são criados também vários estabelecimentos de assistência e proteção ao menor.
Na ditadura de Vargas (1937-1945) são instaurados reformatórios denominados SAM (Serviço de Assistência a Menores), mas tais espaços, como os anteriores, não contavam com diferenciação: jovens delinqüentes, abandonados e vagabundos, continuavam na mesma instituição.
Nas décadas de 1950 e 1960, época do regime liberal populista, as denúncias da imprensa revelam os problemas estruturais dos estabelecimentos para menores. Essa época foi marcada por denúncias de torturas e maus tratos no SAM o que levou ao grande número de revoltas e motins nas instituições do Rio de Janeiro, por exemplo.
Com o início da ditadura militar em 1964, o SAM é extinto e é criada a FUNABEM - Fundação de Amparo ao Bem Estar do Menor. Essa surge baseada na ideologia de segurança nacional contra a ameaça comunista que marca a ditadura e se reveste do propósito de reeducar os jovens e de pôr ordem na situação de maus tratos e torturas que se encontravam as instituições para menores.
Nessa época foram criados vários estabelecimentos no Brasil para abrigo desses adolescentes, no lugar da SAM, surgem, na década de 1970, as FEBEMs - Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, mas ao que parece, a mudança, mais uma vez, é na nomenclatura, pois o espaço apresenta a mesma estrutura física e ainda é caracterizado pela repressão e assistencialismo (Souza, 2011, s./p.).
As concepções que interligavam a moral com o problema da delinquência, progressivamente, sofreram mudanças, dada a inclusão de concepções ditas científicas, da influência do locus social e do entendimento da influência da hereditariedade daqueles que desviavam a ordem vigente.
Para além das fronteiras nacionais, o mundo, em 1948, por intermédio da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), deu um passo decisivo para concretização dos direitos humanos. Naquela data, o Brasil tornou-se signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, traduzida em mais de 500 idiomas, cujo conjunto de princípios e valores morais, elaborados sob o impacto da II Guerra Mundial, é pautado nos direitos fundamentais, na dignidade e igualdade humana. O documento impactou o tratamento de crianças e adolescentes no Brasil e no mundo, ao expressar e formalizar, em seu artigo primeiro, que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos (Bobbio, 2004). Já na década seguinte, com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1959, fundamentou-se a Declaração Universal dos Direitos da Criança, a qual se tratava de um conjunto de princípios embasados na Doutrina da Proteção Integral das Nações Unidas para a Infância.
Nessa nova perspectiva política, de entendimento do melhor interesse da criança e do adolescente, em 1964, criou-se a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), em substituição ao Serviço de Assistência aos Menores (SAM), pois, para este, eram tecidas muitas críticas, em razão de suas instalações físicas inadequadas, superlotação e sua forma de atuação, punitiva, para a recuperação do menor infrator, assim chamado naquela época. Através dessas mudanças, apontava-se uma diversidade de outros fatores como produtores de candidatos ao crime, como raça, clima, tendências hereditárias, condições de vida familiar e social, ociosidade, vícios e até fatores inspirados na obra de Cesare Lombroso, que relacionava características físicas e fisionomias ao crime (Rizzini, 2008).
À FUNABEM competia a função de formular e implantar a Política Nacional do Bem-Estar do Menor em todo o território nacional (Brasil, 1989). A partir daí, criaram-se as Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor, as conhecidas FEBEMs, com responsabilidade de observarem a política estabelecida e de executarem, nos estados, as ações pertinentes a essa política (Amin, 2009).
De acordo com Assis, Constantino e Avanci (2010), os desvios de conduta e a marginalidade, na época, eram entendidos como desvio de caráter, para os quais se recomendava a institucionalização para o isolamento social e o tratamento intensivo, o qual era realizado em educandários, patronatos, centros de reeducação ou recuperação. O propósito da institucionalização era possibilitar serem “disciplinados” e “renovados” para que voltassem ao convívio social adaptados e integrados à ordem social. Muito embora a proposta, as instituições apresentavam os mesmos problemas das políticas anteriores como superlotação, violência e falta de recursos.
No Paraná, de acordo com Colombo (2006), em 1965, a Escola para Menores Professor Queiroz Filho, localizada no município de Piraquara, marcou a história ao separar presos adultos de adolescentes, assim como adolescentes em situação de abandono e adolescentes em conflito com a lei. A tentativa de separar infratores dos presos adultos iniciou-se com o Instituto Disciplinar em 1918; depois a criação da Escola de Reforma Masculina em 1926, que veio se unir ao Instituto Disciplinar na Estação Experimental do Bacacheri, em 1928; mais tarde, a Escola de Reforma do Canguiri, em 1933 e, por fim, a Escola para Menores Professor Queiroz Filho, em 1965, que, posteriormente, passou a ser Educandário São Francisco e, hoje, é o Centro de Socioeducação São Francisco.
A instituição, muito embora não fosse chamada ou conhecida como FEBEM, tinha, como proposta, os mesmos objetivos. Recebia internos de todo o estado paranaense e trabalhava com grande número de adolescentes, sendo que, em 24 de setembro de 2004, totalizava 237 internos (Zimmermann, 2004). Acabou por tornar-se evidente que uma vida formalmente administrada, através do processo de institucionalização, além de apresentar efeitos trágicos, tais como o rompimento dos laços familiares, sociais e comunitários, trazia consequências na (trans)formação de subjetividades, pela constatação de violências de todas as ordens que ocorriam, culminado com a proposta, o movimento contrário, isto é, a desinstitucionalização (Goffman, 2008).
A questão da não institucionalização é princípio da lei hoje vigente. A medida socioeducativa de internação, a exemplo, aplica-se como último recurso, em caráter de brevidade e excepcionalidade (Brasil, 2012), isto é, só é determinada em último caso, o que sugere o reconhecimento dos efeitos negativos da institucionalização, as quais foram fundamentados por Erving Goffman (2008).
Pelo que percebemos através da história, durante o processo de internação de adolescentes não se levava em consideração as questões sociais geradoras ou favorecedoras dos entendidos desvios de conduta. Fatores econômicos, culturais, sociais e históricos eram irrelevantes, o que é contraditório aos fundamentos que autoridades na análise e desenvolvimento da infância à época afirmavam necessários para o estudo de fatores de vulnerabilidade ao envolvimento de ato infracional.
A exemplo, Arminda Aberastury e Maurício Knobel, ambos psicólogos, apontam que a análise e concepção da adolescência deve partir do seu meio social, visto que toda adolescência tem, além de características individuais, características do meio cultural, social e histórico em que vivem (Aberastury; Knobel, 2003).
Porém, dada crescente pressão social para que a legislação fosse atualizada, pois se mostrava altamente ineficiente no cumprimento dos objetivos que se propunha, que envolvia ação, profissão e estudo ao adolescente em conflito com a lei, em 1979, houve a promulgação do Código de Menores - Lei n. 6.697, de 10 de outubro (Brasil, 1979). Instauraram-se poucas mudanças no novo código e a mesma perspectiva de situação irregular permanecera vigente, pois foi mantida a abordagem correcional e punitiva nas questões ligadas à área da infância e adolescência.
Em 1987, foi criada, por entidades da sociedade civil, a emenda popular “Criança - Prioridade Nacional”, que seria apresentada aos constituintes pelo Fórum dos direitos das crianças e dos adolescentes, formado no primeiro semestre de 1988, para fazer parte da Constituição5. Essa emenda representava um consenso entre os defensores da causa infantojuvenil, consagrando os pontos básicos da Carta da Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança, que seriam sintetizados nos artigos 203, 204, 227 e 228 da Constituição Federativa do Brasil, promulgada em cinco de outubro de 1988 (Bandera, 2013).
A partir de então, o Brasil começou mais substantivamente a apresentar legislações que tomam, como orientação, a Proteção Integral da criança e do adolescente, com um giro paradigmático expressivo em 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal, que, dentre inúmeros avanços legislativos, investiu no princípio da prioridade absoluta para acesso de crianças e adolescentes a direitos sociais.
A socioeducação a partir do texto constitucional de 1988
A Constituição dedica seu título primeiro, exclusivamente, aos princípios fundamentais, dentre os quais resta elencado o princípio da dignidade da pessoa (Brasil, 1988). O texto do artigo 227 da Constituição resume, em seu corpo, o elenco de direitos que configuram a Doutrina da Proteção Integral à criança e ao adolescente, alinhado ao ordenamento jurídico brasileiro com as perspectivas dos Direitos Humanos internacionais quando explicita em seu texto:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Brasil, 1988, s./p.).
Os objetivos estratégicos dos enunciados do artigo 227 obedecem aos princípios gerais dos direitos humanos quando tratam da universalidade, da indivisibilidade, direitos interdependentes e correlacionados (políticos, civis, econômicos, sociais e culturais), da participação do cidadão em todas as esferas e responsabilidade do Estado por todos os cidadãos, sem exceção.
Elencados na Constituição6 estão os deveres da família, da sociedade e do Estado em relação à criança e ao adolescente, no entanto, foi necessário criar uma legislação especial destinada à criança e ao adolescente, a desdobrar um olhar detalhado sobre a proteção integral em razão de sua condição específica de pessoas em desenvolvimento.
Para a infância e adolescência, a criação do ECA, em 1990, chegou como fonte de um novo modelo social, traz princípios inovadores, amplia e divide as responsabilidades na Proteção Integral, deslocando também para seu centro o Princípio da Dignidade Humana como valor fundamental dos direitos humanos. Segundo Costa (2006), o Estatuto foi elaborado com bases conceituais antagônicas à doutrina de situação irregular. As crianças e adolescentes passaram a ser encarados como detentores de direitos: à sobrevivência (saúde, vida e alimentação), ao desenvolvimento pessoal e social (educação, cultura, lazer e profissionalização) e à integridade física, psicológica e moral (respeito, dignidade, liberdade, convivência familiar e comunitária)7.
A chamada Doutrina de Proteção Integral, concepção sustentadora do Estatuto, confirma o valor intrínseco da criança e do adolescente como ser humano, a necessidade do respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento e seu valor prospectivo da infância e da juventude como portadoras da continuidade da espécie e do seu povo. O reconhecimento da sua vulnerabilidade torna as crianças e adolescentes merecedores de respeito, dignidade humana e proteção integral (Ciríaco, 2014). Diferente dos antigos Códigos, o modelo de proteção Integral não se restringe ou limita apenas à atenção após os direitos serem violados, pois há todo um aparato jurídico e de políticas públicas de cunho preventivo e protetivo.
Dessa forma, o ECA também inaugura uma nova forma de atendimento, a qual se procede através da articulação de um Sistema de Garantia de Direitos, que engloba ações de prevenção, promoção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes, caracterizada pela articulação entre a sociedade e o poder público, com intervenções pautadas no princípio de cooperação e proteção integral aos direitos infanto juvenis, alçados à condição de prioridade absoluta (Tavares, 2011, p. 12).
Para adolescentes autores de atos infracionais, o ECA estabelece medidas socioeducativas, o que contempla sanções específicas e reconhece, em seus destinatários, a capacidade de responder pelos atos praticados de acordo com sua etapa de desenvolvimento. Considerados para o efeito da lei pessoas entre 12 e 18 anos de idade, excepcionalmente até 21 anos, as medidas socioeducativas têm como objetivos a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando sua reparação; a integração social do adolescente e a garantia dos seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento e a desaprovação de conduta infracional (Brasil, 1990).
Percebemos que o antigo modelo oferecia o mesmo tratamento institucional, corretivo e punitivo, para os abandonados, delinquentes e órfãos. Já o ECA deu lugar a um modelo de garantias que diferencia as medidas de proteção, garantidoras e reparadoras de direitos violados, das medidas socioeducativas para responsabilização, destinadas, a partir de então, especificamente, aos autores de atos infracionais. Para Frasseto et al. (2012), a ideia de responsabilização é algo distinto de uma assistência protetiva e não se limita aos contornos retributivos da pena criminal. Já Antônio Carlos Gomes da Costa (1949-2011) propunha a ideia de responsabilização como a integração de aspectos penais e educativos.
Em outro viés, a ideia de responsabilização pode ser apresentada como possibilidade de resposta não meramente punitiva a uma transgressão. Esse aspecto ganhou espaço a partir do ideário da Justiça Restaurativa, pois a resposta restaurativa seria responsabilizadora, sem ser punitiva.
Enfatizada essa discussão, Rizzini (2005) e Machado (2016) apontam que o jurista e pedagogo Antônio Carlos Gomes da Costa foi o pioneiro em procurar uma resposta conciliatória à problemática epistemológica da necessidade de ação do Estado em face do cometimento do ato infracional por crianças e adolescentes, o que contribuiu para a construção das políticas socioeducativas, tanto que:
O caminho encontrado foi aliar responsabilização e proteção social, apresentando uma concepção de socioeducação subordinada a “desenvolver o potencial de ser e conviver, prepará-lo [o adolescente] para relacionar-se consigo mesmo e com os outros sem quebrar as normas de convívio social tipificadas na Lei Penal como crime e contravenção” (Costa, 2006, p. 449).
Somam seis as medidas socioeducativas previstas no Estatuto, as quais podem ser aplicadas de forma individual ou cumulativamente com medidas protetivas. São elas: a) advertência; b) obrigação de reparar o dano; c) prestação de serviço à comunidade; d) liberdade assistida; e) inserção em regime de semiliberdade; f) internação em estabelecimento educacional (Brasil, 1990). Nesta última, há um contraditório quando se aponta estabelecimento educacional, pois, como se trata de medida privativa de liberdade, a realidade enquadra-se muito mais a estabelecimento prisional. Em outras palavras, partindo da concepção de educação social, entendemos que a “socioeducação é um conjunto articulado de programas, serviços e ações desenvolvidos a partir da articulação entre práticas educativas, demandas sociais e direitos humanos com o objetivo de mobilizar nos jovens novos posicionamentos sem, contudo, romper com as regras éticas e sociais vigentes” (Bisinoto, 2015, p. 584).
A condição de privação da liberdade aplicada de forma indiscriminada a menores abandonados e delinquentes até 1990, observada na época dos Códigos de Menores, passou a ser ilegal, hoje admitida somente nas hipóteses de flagrante de ato infracional, ordem judicial escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente e na hipótese de atos infracionais graves, cometidos com violência, grave ameaça à pessoa ou reiteração no cometimento de outras infrações graves. Assim, a medida só é aplicada legalmente quando o adolescente evidenciar um comprometimento fundamentado com o ilícito ou que outras medidas não tenham tido êxito.
A execução das medidas socioeducativas, a que se refere o Estatuto da Criança e do Adolescente, deve ter conteúdo predominantemente pedagógico, ou seja, o fato de um adolescente cumprir uma medida socioeducativa não faz com que ele deixe de ser credor de diretos relativos a ele, em razão de sua condição peculiar de desenvolvimento.
Os termos socioeducação e medidas socioeducativas eclodiram no Brasil com o advento do ECA e, hoje, fazem parte dos diálogos, quando tratado o tema adolescente em conflito com a lei.
Na busca da origem do termo medidas socioeducativas, constatamos ainda que Antônio Carlos Gomes da Costa cunhou o termo socioeducação no Brasil, quando convidado para colaborar com a redação do ECA. Com sua experiência como diretor da FEBEM, defendia a ideia de que as medidas socioeducativas poderiam educar o adolescente autor de ato infracional para a não reincidência. Assim, utilizou a fusão do termo “medidas”, constado nos antigos Códigos de Menores, com o termo utilizado pelo pedagogo soviético Anton Semionovich Makarenko no livro Poemas Pedagógicos, o qual relata sua experiência durante o tempo que foi diretor de uma instituição soviética responsável pela reintegração social de jovens marginalizados (Bisinoto, 2015).
A partir da criminologia crítica, forma-se uma nova perspectiva do crime e do criminoso. Essa nova corrente criminológica, pautada no processo crítico e emancipatório, influenciou o direito penal em vários lugares do mundo, inclusive no Brasil, pois ajudou a solidificar o direito penal mínimo, a possibilidade de progressão de regime e a instituição de penas alternativas, entre elas, a justiça restaurativa (Canto, 2019).
Já no Estado do Paraná, o aprofundamento do tema com as contribuições da Justiça Restaurativa e dos trabalhos de Pranis (2010) e Zehr (2008), o Tribunal de Justiça começou, no ano de 2014, através da Lei Estadual n. 18.374, de 15 de dezembro de 2014, a implantar práticas restaurativas, de acordo com a Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (Paraná, 2015). Para tanto, o Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (NUPEMEC) instituído pelo CNJ, por meio da Portaria n. 11/2014, de 18 de setembro de 2014, criou a Comissão Paranaense de Práticas Restaurativas do Tribunal de Justiça do Paraná.
Entre as funções do NUPEMEC, estão incluídas, entre outras, a deliberação sobre a política de autocomposição e métodos consensuais de solução de conflitos no âmbito estadual; a instalação dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania; o estabelecimento de normas para a celebração de convênios e parcerias com entes públicos e privados para atender os fins da Resolução 125 do CNJ, o incentivo e promoção de capacitação, treinamento e atualização permanente de magistrados, servidores, conciliadores e mediadores acerca dos métodos consensuais de solução e conflitos (Brasil, 2010a).
Apenas a título de esclarecimento, a Justiça Restaurativa é um processo para envolver, tanto quanto possível, todos aqueles que possuem interesse em determinada ofensa ou conflito, num processo que, coletivamente, identifica, dialoga e trata os danos, as consequências, os desdobramentos, as necessidades e as obrigações, em nível macrossocial, decorrentes da ofensa, a fim de promover o restabelecimento dos relacionamentos entre os envolvidos e melhorar aquela situação ocorrida, na medida do possível.
Assim, o castigo, como forma de punição e arrependimento, tendeu a ser substituído pela ideia de reabilitação, dado o paradigma tutelar/correcional vigente na época e decorrente da efervescência em torno dos conceitos como alma, psiquê, subjetividade e personalidade. Progressivamente, teorias, técnicas e campos do saber edificavam-se, sinalizando para um ser humano sondável e com possibilidade de ser reabilitado (Foucault, 1987).
O CENSE de Foz do Iguaçu e o desafio de práticas menos estigmatizantes
Foz do Iguaçu situa-se no oeste do Paraná, na fronteira com o Paraguai e com a Argentina. É conhecida internacionalmente pela Usina Hidrelétrica de Itaipu, que, até 2008, era a maior hidrelétrica do mundo, e pelas suas belezas naturais como as Cataratas do Iguaçu e o Parque Nacional, este reconhecido pela Unesco, em 1986, como patrimônio da Humanidade.
Muito provavelmente, a escolha do município de Foz do Iguaçu, pelo estado, para a implantação de uma instituição que atendesse adolescentes em conflito com a lei em consonância com o ECA, deu-se devido ao aumento da criminalidade na cidade, que se sucedeu, expressivamente, com a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, nos anos 70. Segundo Catta (2002), com a construção da Usina:
Foz do Iguaçu passou a abrigar um crescente número de marginalizados, excluídos dos meios formais de trabalho, dos quais muitos tornaram-se criminosos, pessoas que migraram de outras cidades por problemas legais e que, pelas facilidades de tráfego entre as fronteiras, encontraram aí maiores facilidades em atuar, e todo um grupo de pessoas desajustadas em meio social original, ou que vieram a se desajustar face às condições apresentadas naquela fronteira (Catta, 2002, p. 50).
O CENSE de Foz do Iguaçu começou suas atividades em 1998 com a execução do programa de internação provisória (Paraná, 2023), apesar da construção da entidade ter sido controvertida na época, por se tratar de “minipresídio” indesejado ao espaço urbano local, como retrata o jornal A Gazeta do Iguaçu, de 1998. Na época, era chamado de Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Infrator - CIAADI, respondendo ao artigo 88 do ECA, que prevê integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública e Assistência Social (Brasil,1990).
Mesmo diante das críticas8, a construção foi a termo e, com a estrutura física pronta desde agosto de 1997, teve sua inauguração oficial datada de 20 de março de 1998, sendo que os primeiros adolescentes foram transferidos da delegacia local para a Unidade em 25 de março de 1998. Mas, antes da primeira quinzena de trabalho, pela estrutura inadequada e frágil da Unidade, projetada para outro fim, os adolescentes danificaram várias estruturas do patrimônio e quebraram todas as janelas de vidros, que serviam para minimizar o frio nos alojamentos e a entrada de insetos. A situação colocou um freio inicial nas atividades que seriam propostas (Costa, 2014).
Aproximadamente um ano após a inauguração do CIAADI, as instalações físicas passaram por reforma, uma ampla piscina em desuso foi aterrada e a instituição começou também a atender adolescentes no cumprimento da medida socioeducativa de internação por sentença, os quais, anteriormente, eram encaminhados para o Educandário São Francisco (unidade masculina) ou para o Educandário Joana Richa (unidade feminina), ambos localizados na capital do estado do Paraná, Curitiba (Colombo, 2006). Era o fim da centralização na capital do estado dos “menores”, daí em diante, instituições locais, mais próximas do território e dos laços familiares foram, quase simultaneamente, inauguradas em todo o estado, sendo que a unidade de Foz do Iguaçu é parte desse processo de descentralização do sistema socioeducativo paranaense. O CIAADI, em 2005, com as reformas políticas do Paraná, Decreto Estadual n. 7.663, passou a ser chamado Centro de Socioeducação - CENSE (Paraná, 2010).
Com gestão e equipes diferenciadas dos Programas de Internação Provisória e Internação por sentença, em 09 de abril de 2009, foi inaugurada a Casa de semiliberdade de Foz do Iguaçu, em espaço físico anexo ao CENSE. O projeto arquitetônico foi desenhado pelo estado, em concordância com as diretrizes do SINASE, para contemplar os objetivos do programa e atender 14 adolescentes.
Atualmente, a estrutura física do CENSE está localizada num espaço de três mil oitocentos e um metros quadrados de área construída, de acordo com a imagem 5, erguida em terreno até então pertencente ao Colégio Agrícola de Foz do Iguaçu. Sua arquitetura foi adaptada e reformada para o trabalho com adolescentes em conflito com a lei, uma vez que até então o espaço estava cedido pelo estado para a prefeitura, que realizava trabalhos de escola oficina e atendia adolescentes carentes em contraturno escolar

Hoje, a instituição tem capacidade de atendimento de 40 adolescentes do sexo masculino e três adolescentes do sexo feminino no Programa de Internação Cautelar Provisória e diminuição da capacidade de atendimento de 54 para 40 adolescentes do sexo masculino no Programa de Internação por sentença, em razão de ação civil pública (Paraná, 2020).
Sua estrutura física atual ainda requer adequações, reformas e ampliações para a qualificação do trabalho desenvolvido num âmbito global, todavia, a sua própria localização, no corredor turístico de Foz do Iguaçu, caminho para o marco das três fronteiras e Argentina, assim como o número reduzido de internos e uma equipe interdisciplinar formada por psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, enfermeira, terapeuta ocupacional, entre outros profissionais, indiscutivelmente, distancia-o dos modelos das antigas instituições destinadas ao atendimento do adolescente em conflito com a lei. As torres de vigilância ainda existentes, que se assemelham às instituições dos antigos códigos, estão inativadas e foram muito pouco utilizadas.
O CENSE, após ter transitado pela gestão de várias Secretarias de Estado, desde 1 de janeiro de 2023, Lei n. 21.352, está sob coordenação da Secretaria da Justiça e Cidadania do Paraná, que gerencia as ações e a política através da Coordenação de Gestão do Sistema Socioeducativo (Paraná, 2023).
Ao ser traçado o perfil dos adolescentes atendidos, apontamos, de acordo com o plano político pedagógico da instituição (Paraná, 2023), que a maioria é usuário de drogas, tem baixo nível escolar, demarcado por desistências e reprovações, oriundo de uma população de classe menos privilegiada e com histórico de violências sofridas e praticadas nos seus mais diversos níveis, o que, indiscutivelmente, requer uma política pública efetiva, pois os adolescentes atendidos, utilizando as palavras de Costa (2001), situam-se no final de uma linha de omissões e transgressões.
A proposta política pedagógica implantada no CENSE busca estar cada vez mais alinhada em transpor a teoria do Estatuto da Criança e do Adolescente e do SINASE em prática. Outras normativas nacionais e internacionais também balizam e referenciam as ações socioeducativas e o Plano Político Pedagógico do CENSE de Foz do Iguaçu, dentre elas, como principais, podem ser apontadas as Regras Mínimas das Nações Unidas para Jovens Privados de Liberdade, Regras de Beijing, Regras de RIAD e a Resolução n. 265/2021 DEASE/SEJUF, que institui o código de normas e procedimentos vigentes para as Unidades socioeducativas do Paraná (Paraná, 2023).
Anualmente, a equipe interdisciplinar elabora um plano de ação, em acordo com o Plano Político Pedagógico da instituição, o qual contempla ações socioeducativas diárias, envolvendo atividades escolares, esporte, uso de biblioteca, participação em Projetos, visitas familiares, atendimentos interdisciplinares, intervenções na área da saúde, oficinas. Dentre alguns projetos que os adolescentes participam no Programa de Internação, merece menção o Projeto Violências, que prevê diálogos mensais sobre diversos tipos de violências; o Projeto Sofia, que envolve terapia com animais; o Projeto Sociomultiplicadores, que oportuniza os próprios adolescentes compartilharem suas habilidades e conhecimentos partilhados com outros adolescentes e ações de Justiça Restaurativa (Paraná, 2023).
As ações de cunho restaurativo assumem importância diferenciada no âmbito socioeducativo, até mesmo em razão ao SINASE. Segundo Boyes-Watson e Pranis (2011), as práticas restaurativas contribuem para o desenvolvimento de competência emocional, construção de relacionamentos, exploração de relações mais saudáveis, tomada de decisões ou resolução de problemas, portanto, essas habilidades, entre outras, precisam ser estimuladas e desenvolvidas pelos adolescentes, pois contribuem com o processo de ressocialização.
Dentre as práticas de Justiça Restaurativa, no plano de ação do CENSE de Foz do Iguaçu, é proposta a realização de Círculos de Diálogos e Círculos de Conflito. Estes exploram o acontecimento lesivo do conflito e os participantes são estimulados e encorajados a falar sobre suas experiências, histórias, sentimentos, perdas e fazer perguntas que esclareçam aquilo que lhes incomoda, a evitar e prevenir novos incidentes danosos. Já o Círculo de Diálogo objetiva promover a discussão de temas, a propiciar reflexão de valores ou assuntos que se avaliem relevantes no processo socioeducativo como respeito, ética, família, relacionamento, violência, conflitos etc. (Pranis, 2010).

Mesmo com diversas lacunas a serem preenchidas, as propostas esforçam-se para não se restringirem a um mero cronograma de atividades. O clima institucional, os vínculos estabelecidos, os espaços de diálogo, as ações desenvolvidas, os cuidados com a saúde mental, o respeito às diferenças e a exigência de postura ética daqueles que atuam junto ao adolescente fazem parte do Plano Político Pedagógico da instituição e integram-se à operacionalização da Unidade, que se aprimora pelo esforço da gestão e pelo engajamento da grande maioria de seus funcionários (Paraná, 2023).
Com embasamento em documentos históricos, mesmo diante de condições, contradições, uma gama de dificuldades e resistências, o CENSE possui, em suas propostas, um caráter humanista e até então nunca pretendeu ser apenas um lenitivo dos males sociais. Há instrumentos que direcionam e embasam o trabalho realizado como estudos de caso, plano individual de atendimento de todos os adolescentes internados, conselhos deliberativos interdisciplinares e conselho disciplinar, instrumentos que consolidam e transpõem a teoria em prática, embora ainda haja um longo caminho a avançar.
Considerações finais
O contexto paradoxal dos Códigos de Menores até o advento do princípio de Proteção Integral, com o ECA em 1990, fundamentado por sistema complexo de garantia constitucionais de direitos fundamentais, as práticas socioeducativas flutuaram da punição para a restauração.
O presente estudo possibilitou amadurecer um novo olhar, a partir da recuperação de documentos, materiais bibliográficos e de visitas às instalações em Foz do Iguaçu, sobre a engenharia social que segue sendo reinventada, tornando-se mais evidentes as violências estruturais tanto do ordenamento jurídico quanto da forma arquitetônica de prédios estatais.
Educandários, que lembram muito mais “casas de detenção”, são exemplos concretos do aparato ideológico da sociedade, que numa inclusão excludente, reafirma os primados da biopolítica e biopoder nos moldes estudados por Michel Foucault. Nesse processo higienista, juristas e médicos, já na virada do século XX, implantaram transformações socioeducativas significativas. Enquanto o trabalho de pedagogos restara ofuscados pelas mais diferentes teorias da criminologia.
A oferta de condições adequadas, formas arquitetônicas apropriadas, ações estruturantes e estruturadas que possibilitem e favoreçam o adolescente em conflito com a lei afastar-se de práticas infracionais, é transpor o adolescente do processo e condição de exclusão e culpa e colocá-lo envolvido no processo como pertencente a ele. Coerente a proposta socioeducativa com ações inclusivas, colaborativas e restaurativas, oportunidades de ressignificar seus valores, reparar seus danos, ser responsabilizado por suas ações de uma forma digna, é possibilitar que o adolescente transite do discurso e de ações punitivas, retributivas e discriminatórias, para uma perspectiva educacional que, de fato, contribua, faça sentido, motive e permita a reintegração satisfatória ao seu convívio social.
A grande contribuição esperada da pesquisa é ampliar o debate, tanto sobre o meio físico quanto sobre o viés cultural, que impregnam toda problemática de garantia de direitos a crianças e adolescentes em situações de conflito com a lei. Por isso, focando luzes sobre o passado, espera-se ter mais bem compreendido o presente, ainda marcado por estigmatizações e preconceitos não confessos.
A violência estrutural é, sobretudo, conjuntural e politicamente correta para significativa parcela da população nacional. E, por que motivo, pesquisas sobre a temática exigem especial sensibilidade no sopesar a amplitude da máquina governamental, em seu tempo e espaço, no seu projeto ideológico (legal) e material (desenho arquitetônico de prédios públicos)?
Do Brasil colônia aos dias atuais, o debate sobre o reconhecimento de direitos no Brasil é “sempre” atual e pertinente, na medida em que desafia a hegemonia do discurso higienista, nem sempre sensível aos laços afetivos abalados ou rompidos por experiências existenciais humanas insólitas. Por certo, novas reformas estruturais (na legislação e nos prédios) vão ocorrer, pois é imperioso reconhecer a condição especial da criança e do adolescente como pessoa em situação peculiar de desenvolvimento, sujeito de direitos.
A esperança é que se consolide a socioeducação como forma de responsabilização através da educação para o social, bem como que a sociedade deixe de rejeitar crianças e adolescentes em situação de conflito com a lei. A tomada de consciência de todos os atores sociais no assumir suas responsabilidades, de fato, contribuirá para o sucesso desse processo, pois, segundo ensina a psicologia, ao encontrar arestas, o adolescente torna-se vulnerável a sucumbir, pelas próprias características e fragilidades que apresenta.
No texto, buscamos confrontar a política pública estruturada e organizada no que tange ao adolescente em conflito com a lei à realidade teórica e prática. Foram problematizadas as questões de reincidência, sobretudo, para questionar a viabilidade e os benefícios das práticas restaurativas. Novos estudos, mais aprofundados, poderão melhor avaliar em que parcela as medidas socioeducativas protetivas, enquanto parte de um modelo arquitetônico estatal, não se sustentam de per si. O fato é que os dados (institucionais estatais) indicam que tais iniciativas carecem da convivência solidária da família (pessoal) e da sociedade (coletivo), pois todos são protagonistas importantes e politicamente não neutros. A relevância deste trabalho em rede é possibilitar aos participantes do processo operarem juntos e em consciência e consonância com a dignidade humana como valor fundamental.
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Notas