Resumo: O presente artigo apresenta resultados parciais da pesquisa Jovens cadeirantes por ferimento por arma de fogo: um estudo exploratório a partir das Narrativas Memorialísti-cas, da Pontíficia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). O estudo buscou problematizar os efeitos da violência e da criminalidade na esfera juvenil, investigar a transformação desses jovens em pessoas com deficiência e explorar os efeitos do traumatismo na forma de narração. Decidimos escutar e publicizar as vidas de três jovens brasileiros, moradores de Belo Horizonte (MG), que se tornaram paraplégicos por ferimento de arma de fogo. Para cumprir tais objetivos, adotaram-se como metodologias as narrativas memorialísticas e o diário de campo. A partir das estratégias metodológicas, foi possível, então, categorizar temas recorrentes nas falas dos jovens e analisá-los por meio de uma leitura psicanalítica.
Palavras-chave: Pessoas com deficiência (PCD), Juventude, Violência, Narrativas memorialísticas.
Abstract: This article presents partial results of the research Young wheelchair users due to gunshot wounds: an exploratory study based on Memorialistic Narratives (PUC-MG). The study aimed to explore the effects of violence and and crime on youth, investigate the transformation of these young individuals into people with disabilities, and examine the effects of trauma through narrative form. We chose to listen and publicize the lives of three young Brazilians from Belo Horizonte, Minas Gerais, who became paraplegic due to gunshot wounds. To achieve these objectives, the memorialistic narratives and the field diary were adopted as methodologies. Grounded on these methodological strategies, it was possible to categorize recurring themes in the subjects’ accounts and analyze them through a psychoanalytic approach.
Keywords: People with disabilities, Youth, Violence, Memorialistic narratives.
Resumen: Este artículo presenta resultados parciales de la investigación Jóvenes em silla de ruedas por lesiones con arma de fuego: un estudio exploratorio a partir de las Narrativas Memorialistas (PUC-MG). El estudio buscó problematizar los efectos de la violencia y la criminalidad en el ámbito juvenil, investigar la transformación de estos jóvenes en personas con discapacidad y explorar los efectos del trauma en forma de narración. Decidimos escuchar y publicitar la vida de tres jóvenes brasileños, residentes en Belo Horizonte (MG), que quedaron parapléjicos a causa de herida de arma de fuego. Para cumplir estos objetivos, se adoptaron como metodologías las Narrativas Memorialistas y el diario de campo. A partir de las estrategias metodológicas, fue posible categorizar temas recurrentes en los discursos de los jóvenes y analizarlos a través de una lectura psicoanalítica.
Palabras clave: Personas con discapaci-dad (PCD), Juventud, Violencia, Narrativas memorialistas.
Temática livre
Jovens cadeirantes por ferimento com arma de fogo: um estudo exploratório
Young wheelchair users due to gunshot wounds: an exploratory study
Jóvenes en silla de ruedas por lesiones con arma de fuego: un estudio exploratorio
Recepción: 30 Marzo 2023
Aprobación: 23 Noviembre 2023
Os homicídios são, hoje, a principal causa de morte entre jovens no Brasil e atingem especialmente aqueles pobres e negros, do sexo masculino e moradores das periferias de áreas metropolitanas dos grandes centros urbanos. De acordo com a última edição do Atlas da Violência, considerando o intervalo de 2009 a 2019, foram mais de 300 mil jovens de 15 a 29 anos vítimas de violência letal no Brasil. Em 2019, “de cada 100 jovens entre 15 e 19 anos que morreram no país por qualquer causa, 39 foram vítimas da violência letal” (Cerqueira; Ferreira; Bueno, 2021, p. 27). Dados do Ministério da Saúde mostram que mais da metade (53,3%) dos 49.932 mortos por homicídios em 2010 no Brasil eram jovens, dos quais 76,6% negros (pretos e pardos) e 91,3% do sexo masculino (Martins, 2013).
Nesse sentido, Maciel, Souza e Rosso (2016) nos lembram como o Brasil figurou na sétima posição no ranking mundial de homicídios, realizado em 2012, um dado ainda mais expressivo se considerarmos que o nosso país não enfrenta conflitos armados em decorrência de guerras e nem pode ser considerado o mais pobre da América Latina. Entre as violências fatais registradas, predominaram aquelas pelo uso de arma de fogo (81,9%) e as vítimas foram majoritariamente adolescentes, entre 10 e 19 anos, do sexo masculino (91,9%).
Dois anos antes, em 2010, nosso país foi o nono colocado mundialmente por número de homicídios por projéteis de arma de fogo (PAF), atingindo sobremaneira a população jovem e, em 2013, a arma de fogo também teve destaque enquanto um instrumento de agressão entre adolescentes de 10 a 19 anos, “sendo o meio usado para gerar lesões em 48,2% desses jovens internados no Sistema Único de Saúde (SUS). Seu uso também foi frequente entre os adultos (20 a 59 anos), referido em 20,5% das internações nessa faixa etária” (Maciel; Souza; Rosso, 2016, p. 608).
Ou seja, a arma de fogo comprovadamente tem sido um instrumento de aniquilação dos adolescentes e jovens brasileiros, mas esta também se destaca enquanto forma de agressão, podendo deixar sequelas permanentes em sujeitos que estão (ou deveriam estar) iniciando suas trajetórias. Ao considerarmos o contingente de pessoas com deficiência no Brasil, mediante os dados do Censo 2010, observa-se que estamos tratando da mesma população em situação de vulnerabilidade: são negras, com níveis menores de escolaridade, mais presentes em trabalhos precários e informais, com renda familiar inferior a um salário-mínimo per capita e nas regiões Norte e Nordeste do país (Garcia; Maia, 2014; Almeida; Pereira; Silveira, 2018).
Diante disso, pareceu-nos fundamental questionar acerca das sequelas físicas da violência armada, tão presente nas periferias brasileiras: onde estão os jovens lesionados que se transformaram em pessoa com deficiência? Qual o dispositivo estatal que os acolhe? A procura por materiais nacionais e internacionais que pudessem nos orientar nessas questões nos alerta a escassez de bibliografia sobre o tema. Pouco se questiona sobre as causas que levaram à condição de pessoa com deficiência adquirida e entendemos que estas podem ser múltiplas, mas não podemos desconsiderar as particularidades de quem atravessa essa situação a partir de um contexto de marginalização e violência.
Refletindo sobre as possíveis causas de uma deficiência adquirida, Maciel; Souza; Rosso (2016), em um estudo realizado no hospital referência da região Centro-Oeste do Brasil, concluíram que a maior parte das vítimas com ferimentos por projéteis de arma de fogo era homens jovens, negros e usuários de álcool/drogas com envolvimento no tráfico. Tal estudo foi realizado de janeiro a março de 2013 e contou com 150 participantes, dos quais 94,7% eram homens, 72% negros e 67,3% tinham menos de 29 anos. O envolvimento com o tráfico esteve presente em 45,3% das circunstâncias relacionadas aos ferimentos causados por projéteis de arma de fogo segundo relatos das vítimas.
A respeito dos fatores que causam algum tipo de deficiência, em 2017, a Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação (2017) verificou a maioria masculina entre os pacientes internados devido a lesões causadas por armas de fogo. Essa maioria compôs o segundo maior conjunto de pacientes com lesões oriundas de causas externas. Por causas externas, entendem-se as causas não naturais ou as causas violentas, as quais englobam os acidentes e as violências propriamente ditas (auto e heteroinfligidas).
Ao entrevistar os pacientes, verificou-se que 20% deles sofreram algum acidente de trânsito ou foram vítimas de agressão. Os dados obtidos mostram o quanto os jovens no Brasil são vulneráveis a essas violências: dentre aqueles, 47,6% tiveram as lesões causadas por acidentes de trânsito (especialmente com motos) e 23,8% dos casos foram causados por agressões, incluindo armas de fogo e armas brancas (Rede Sarah, 2017).
Em relação às lesões causadas por armas de fogo, a maior incidência ocorreu na faixa de 20 a 29 anos, mas vale ressaltarmos que a faixa etária de 10 a 19 anos concentrou quase ¼ dos pacientes envolvidos nesse tipo de lesão. A idade média que eles possuíam na ocasião da agressão foi de 26,8 anos. Majoritariamente, os pacientes foram feridos na rua (49,0%), em período noturno (67,5% dos casos) e entre sexta-feira e domingo (52,0%). Em relação ao agente da agressão, a maioria dos pacientes relatou ter sido vítima de bandido (38,5%) ou de desconhecido (30,7%) (Rede Sarah, 2017).
Os dados da Rede Sarah (2017) também sugerem a possibilidade de maior vulnerabilidade e/ou exposição dos homens à violência armada em geral, em especial à violência interpessoal não delitual, concentrada nos casos de brigas, discussões ou desavenças com pessoas desconhecidas, com conhecidos ou com amigos. Isso nos remete à experiência norte-americana de gangues, com a qual podemos estabelecer um paralelo, guardadas as devidas proporções, às diferentes facções que comandam o tráfico de drogas nas grandes cidades brasileiras, as quais constituem grupos e regras próprias de funcionamento. Nesse sentido, encontramos dois estudos de casos, realizados nos Estados Unidos, que analisaram a trajetória de ex-membros de gangue, que foram baleados em decorrência dessa participação e se tornaram pessoas em uso de cadeira de rodas, experiência que modificou drasticamente suas visões de mundo e, consequentemente, suas trajetórias de vida.
Wheelchair Warrior (Juette; Berger, 2008) nos relata a história real de Melvin Juette, um afro-americano, membro de uma gangue de Chicago, que foi baleado e perdeu o movimento das pernas, mas posteriormente acabou se tornando um atleta de cadeiras de rodas reconhecido mundialmente. Nesse livro, o próprio Melvin narra como o tiro que mudou sua trajetória de vida foi decorrente de desavenças advindas de sua participação na gangue. Berger analisa, a partir de um artigo, como sua adaptação individual à deficiência foi influenciada por condições estruturais e por experiências anteriores que lhe permitiram realizar a transposição para suas novas circunstâncias de vida. Além disso, Berger indica como o corpo é uma parte essencial da experiência social e o veículo através do qual agência e estrutura são promulgadas.
Em continuidade com essa perspectiva, Ralph (2010) nos apresenta uma dissertação que analisa uma gangue de Chicago e destaca, já no título do trabalho, um trecho de fala que diz: “Você nunca ouve falar da cadeira de rodas”. Segundo o autor, enquanto a causa mais comum de violência em áreas urbanas norte-americanas é a arma de fogo, vítimas de tiro possuem quatro vezes mais chances de se tornarem pessoas com deficiência do que serem mortas. Além disso, ferimentos por arma de fogo constituem a segunda maior causa de deficiências em áreas urbanas de maneira geral e a violência por arma de fogo é a principal causa de deficiências entre hispânicos e negros, os principais participantes de gangues em Chicago.
Outras pesquisas internacionais que consideraram a narrativa das pessoas com deficiência referem-se ao estudo da interseccionalidade entre gênero, raça/cor e etnia e a deficiência, como os desenvolvidos por Dossa (2006; 2008) e por Banton e Singh (2004). Em muitas dessas narrativas, os pesquisadores verificaram que as experiências de mulheres e homens com deficiência, pertencentes a uma minoria racial/étnica, são tornadas invisíveis e construídas de forma que essas pessoas se sintam estranhas, constrangidas ou restringidas. Isso seria resultado de suas múltiplas identidades (Stienstra, 2012).
No Brasil, encontramos estudos anteriores que consideraram as histórias de vida de mulheres com deficiência, com ênfase nas suas lutas para construir sua identidade e conquistar sua valorização/formação como cidadã e sujeito da história (Dantas, 2013) e de como as pessoas com deficiência auditiva convocam seus testemunhos para estabelecerem lutas pelo reconhecimento de suas identidades (Garcêz, 2008). Todavia, não encontramos nenhuma pesquisa anterior sobre jovens com deficiência física devido a lesões causadas por projéteis de armas de fogo.
Nesse cenário, voltamo-nos a pensar um dos efeitos da violência e da criminalidade na esfera juvenil: a transformações de jovens e adolescentes em pessoa com deficiência usuária de cadeira de rodas a partir de ferimentos ocasionados por arma de fogo. Sabemos que os efeitos mais debatidos e estudados da violência são aqueles que culminam no aumento da mortalidade juvenil e da população carcerária, o que justifica nossa empreitada pela escassez de estudos que se voltem para este que também se localiza como um destino para os jovens pobres, negros e moradores de periferia no Brasil.
Para tanto, apresentaremos os resultados parciais de uma pesquisa exploratória que se propôs a encontrar esses jovens, vítimas da violência por arma de fogo, os quais se tornaram usuários de cadeira de rodas, e a ouvir suas narrativas buscando localizá-los enquanto sujeitos, mas sem perder de vista o contexto sócio-histórico em que estão inseridos. Assim, apresentaremos inicialmente a pesquisa, seus aspectos metodológicos e os três jovens que conseguimos ir às suas casas e ouvir suas narrativas. Posteriormente, analisaremos os aspectos que se destacaram quando da escuta dos sujeitos: as dimensões familiar e corporal e o projetar-se para o futuro. Finalizaremos, então, refletindo acerca da invisibilidade dessa população e da importância de estudos que deem voz a esses sujeitos, a fim de alçá-los à categoria de vidas humanas passíveis de luto.
Como posto anteriormente, o presente artigo apresenta resultados parciais da pesquisa intitulada Jovens cadeirantes por ferimento por arma de fogo: um estudo exploratório a partir das Narrativas Memorialísticas, aprovada pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e registrada sob o CAAE: 24351419.0.0000.5137. Tal pesquisa teve como objetivo problematizar os efeitos da violência e da criminalidade na esfera juvenil, investigando, para além do aumento da mortalidade e dos índices de encarceramento, a transformação desses jovens em pessoas com deficiência, mais especificamente pessoas em cadeira de rodas.
Assim, o critério para inclusão dos sujeitos na pesquisa é que fossem pessoas maiores de 18 anos e usuários de cadeiras de rodas devido a ferimento de arma de fogo. A pesquisa foi produzida em Belo Horizonte (MG) e contou com a participação de três jovens, do sexo masculino, residentes na cidade ou em sua Região Metropolitana. O acesso a esses jovens ocorreu por meio da rede de contato de uma das pesquisadoras, que também é uma pessoa com deficiência e frequenta a Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação de Belo Horizonte.
Inicialmente, as pesquisadoras contataram os jovens a partir de seus números pessoais de telefone, por meio do aplicativo de mensagens WhatsApp, buscando esclarecer sobre o tema da pesquisa e fazendo o convite para o encontro presencial, no qual seria realizada a coleta de dados. Diante de uma resposta positiva dos jovens, as pesquisadoras então se deslocavam até a casa deles em dia e horário combinados, reafirmavam os objetivos da pesquisa e apresentavam o Termo de Consentimento e Livre Esclarecimento (TCLE). Após sua assinatura, tinha lugar a coleta das narrativas a partir do método das Narrativas Memorialísticas (Guerra et al., 2017), que consiste na pergunta disparadora “Conte-me sua história de vida”, seguida por uma postura de deixar os sujeitos falarem livremente, intervindo apenas para que tal fala livre possa continuar.
Segundo Guerra et al. (2017), a Narrativa Memorialística foi pensada a partir do questionamento da possibilidade de escutar o sujeito fora do setting analítico no contexto da Universidade. A realização de pesquisas de fenômenos sociais a partir da perspectiva da psicanálise implica o respeito aos seus princípios éticos e teóricos, como as concepções de sujeito, inconsciente, pulsão, gozo, pulsão e subjetividade. Acreditamos, com Moreira et al. (2022), que o convite para a fala livre se coloca para o sujeito como um enigma: como contar minha história? Qual ponto vou eleger para iniciar? Sabemos que o processo inclui dois campos, dois mundos: o mundo do sujeito que partilha a sua história e o universo de quem a escuta. O narrador reconstrói sua história a partir da memória dos fatos vividos, o que oferece à narração certos pontos de ficção; isto é, a experiência factual, vivida no passado, é reatualizada no presente com o preenchimento de cenas que se misturam ao longo da história do sujeito. E o narrador considera o receptor; ou seja, a história é contada para um sujeito específico.
Características da Narrativa Memorialística foram passíveis de serem observadas na ida à campo, quando tivemos a oportunidade de escutar três jovens com deficiência física e que fazem uso da cadeira de rodas, sendo todos os três homens que em algum momento de suas trajetórias tiveram envolvimento com a criminalidade. Estes adquiriram a lesão a partir de um ferimento causado por arma de fogo, porém de formas distintas. Usaremos nomes fictícios para os participantes e suas cidades, e não divulgaremos dados pessoais para que suas identidades permaneçam anônimas, seguindo as diretrizes éticas de pesquisas com seres humanos.
Guilherme, apesar de ter sido baleado quatro vezes em diferentes situações, acabou se tornando uma pessoa com deficiência devido a uma tentativa de autoextermínio. Daniel, por sua vez, foi baleado pela polícia durante um assalto. Gustavo, por fim, foi ferido num confronto entre grupos rivais, sendo importante ressaltarmos que, a caminho do hospital, Gustavo foi jogado pela polícia no porta-malas da viatura, tendo os agentes legais “ziguezagueado” até a chegada à emergência, fazendo com que o jovem fosse balançado dentro do veículo, batendo a cabeça e outros membros e, possivelmente, agravando a lesão.
Quanto à moradia dos sujeitos, todos habitavam áreas periféricas da capital mineira, que possuíam algum tipo de obstáculo para a locomoção com a cadeira de rodas. No caso de Guilherme, a casa onde reside fica no segundo andar de um imóvel, o qual só pode ser acessado por uma escada íngreme e sem corrimão. Em relação aos outros dois jovens, ambos moram em ruas íngremes e em bairros que possuem vários “morros” ao redor. Daniel tem outro agravante: na saída de sua casa, há um degrau em um dos lados do portão. Ele mora sozinho em uma casa pequena, dividida em apenas dois cômodos. Guilherme reside com pai, mãe, irmã e filha; e Gustavo, com pai, irmãos e esposa.
Dos três, apenas Guilherme não possui uma ocupação laboral. A única ocupação fora de casa citada por ele é a fisioterapia - à qual aparentemente atribui muita importância por acreditar que será capaz de fazê-lo andar novamente. Daniel trabalha como vendedor ambulante e dá indícios de que continua envolvido com o crime de alguma forma. Gustavo, por sua vez, é atleta e joga em um time importante do esporte que pratica, recebendo remuneração do Estado.
Além disso, parece-nos imprescindível mencionarmos que todos os sujeitos desta pesquisa demandaram mais espaço de fala depois da conclusão da narrativa gravada, levando-nos a acrescentar mais uma metodologia de registro dos encontros, a saber, o diário de campo. De acordo com Campos, Albuquerque e Silva (2021, p. 100), “o diário de campo é um documento pessoal e consiste em uma forma de registro de observações, comentários e reflexões para uso individual do pesquisador”, o que abriu a possibilidade de realizar anotações mais livres, que continham impressões pessoais sobre o ambiente, reflexões, comentários e sentimentos suscitados.
O uso do diário de campo justifica e sustenta algumas das temáticas que apareceram mais fortemente após desligarmos o gravador, instrumento utilizado para coletarmos as narrativas. Percebemos que, após este ser desligado, houve uma demanda dos sujeitos por falar mais, principalmente temas relacionados à família, corpo e futuro. Assim, o diário de campo auxilia na composição do material de análise e reflexão. Como pontuam Campos, Albuquerque e Silva (2021, p. 103), o “diário de campo facilita criar o hábito de observar, descrever e refletir com atenção os acontecimentos do dia de trabalho, por essa condição ele é considerado um dos principais instrumentos científicos de observação e registro”.
A utilização de métodos diferentes de registro dos encontros possibilitou um retorno crítico e reflexivo sobre eles, localizando, dessa maneira, certo vínculo transferencial dos sujeitos da pesquisa com as pesquisadoras, que se manifestou mais intensamente nas mensagens no WhatsApp, seja solicitando uma nova narrativa ou a partir do envio de “bom-dia” de forma escrita ou por imagens. Um dos sujeitos convidou as pesquisadoras para um almoço em um restaurante que ele costuma frequentar com a justificativa: “Agora, vocês são minhas amigas. Vamos almoçar um dia juntos...”.
Partindo, portanto, das narrativas gravadas e do diário de campo, localizamos três pontos de análise que se destacaram nos encontros e nas escutas desses três jovens: a presença da família no discurso ou na cena da entrevista, as nomeações e convocações ao corpo feitas pelos entrevistados e as posições e movimentações no mundo após a deficiência adquirida. Privilegiaremos a perspectiva psicanalítica freudiana como referencial teórico e a compilação de trechos de falas dos sujeitos, a fim de tornar mais vívida suas realidades objetivas e subjetivas, e considerando, além disso, que existe ali um saber que deve ser ouvido e compartilhado.
Antes de pensarmos o papel da família na vida desses sujeitos, faz-se necessário refletirmos sobre a definição do conceito, entendermos o que significa família para a sociedade, sobretudo para a população brasileira. Desse modo, buscamos entender esse conceito primeiramente no âmbito jurídico, mais especificamente no Capítulo VII da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 2020), que nos diz:
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
A definição dada pelo Estado nos revela, então, uma visão apenas parcial das famílias que podem ser observadas no cotidiano brasileiro, uma vez que desconsidera casais homoafetivos e outras configurações familiares como avós e netos, tios e sobrinhos, entre outras. Portanto, a legislação brasileira ainda se encontra em consonância com uma perspectiva restritiva e até mesmo preconceituosa, já que, para Felippi e Itaqui (2015, p. 106), estudos históricos, sociológicos e antropológicos apontam que “a maior parte das afirmações de senso comum relativas à família no mundo ocidental moderno referem-se às suas características dentro do universo das camadas médias, tão afins ao núcleo ideológico da cultura ocidental moderna”.
Passando do campo jurídico para o psicológico, a definição de família se modifica. Para a abordagem sistêmica, comumente associada aos estudos das relações familiares, apesar de não se limitar a eles, “a família não existe: vemos a família porque somos especialistas em vê-la” (Aun; Vasconcellos; Coelho, 2007, p. 13). Entretanto, numa definição apontada por Aun, Vasconcellos e Coelho. (2007) como aquela mais atualizada e adaptada à realidade, os teóricos chilenos Méndez et al. (1988/1998 apud Aun; Vasconcellos; Coelho, 2007, p. 21) elucidam que a família é
um domínio de interação de apoio mútuo na paixão por viver juntos em proximidade física ou emocional, gerado por duas ou mais pessoas, seja através de um acordo explícito ou porque crescem imersos nele, no acontecer de se viver. [...] Como sistema, uma família existe no âmbito biológico, através da realização do viver de seus componentes. Além disso, [...] (a família) se realiza no linguajar e emocionar de seus membros como um caso particular da configuração de conversações recorrentes (organização) que a definem como membro de tal classe.
Na perspectiva psicanalítica, segundo Roudinesco (2003 apud Felippi; Itaqui, 2015, p. 106), a família foi e está sendo reinventada sob novas bases, estando em desordem e, ao mesmo tempo, sendo “amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições”. Portanto, apesar dos conflitos e das alterações pelos quais passou ao longo dos anos, a entidade familiar segue como única, imprescindível e com a garantia de proteção da qual nenhum de nós deseja abrir mão.
Partindo desses pressupostos, podemos pensar a família como uma entidade de extrema importância e presença constante na vida da maioria dos seres humanos. Dessa forma, refletir sobre o seu papel na vida dos sujeitos que ofereceram seus relatos para esta pesquisa é, também, buscar entender um pouco mais sobre as suas próprias vivências e a maneira como se relacionam com o mundo. Todos os jovens possuem relação com a família nuclear, isto é, pai e/ou mãe e irmãos, e descrevem o relacionamento como positivo na maioria das vezes.
Em nossa ida à casa de Guilherme, observamos como a família se faz presente em seu dia a dia. Como citado anteriormente, o jovem reside em um andar que só pode ser acessado por escada. Desse modo, ele depende da família para se locomover em outros espaços para além da sua própria casa. Mesmo nesse espaço, Guilherme apresenta dificuldades, já que seus braços também foram prejudicados pela lesão que causou sua deficiência. É sua mãe quem nos recebe, lê e assina o TCLE, além de nos apresentar os documentos e laudos médicos de Guilherme. O jovem se queixa da dependência em vários pontos de sua narrativa e coloca a esperança de ser independente na possibilidade de voltar a andar: “Tô fazendo fisioterapia, voltar a ser normal de novo, depender de ninguém. Depender dos outros é ruim demais, depender dos outros. [...] Minha vida é normal, só dependo dos outros, ué. Pra tudo. Depender dos outros é ruim demais” (Guilherme, Entrevista, 17 dez. 2019).
A relação de superproteção dos pais em relação a Guilherme é anterior à sua lesão. Durante a narrativa, ele nos revela um desses momentos conflitivos com os pais:
Minha mãe foi atrás de mim lá na [nome da boate]. Anunciou no palanque lá, sabe? “Guilherme, cadê ocê? Sua mãe tá na portaria” (risos). Me caçando... É, ué. Eu era demais, viu? (silêncio). [...] Aí eu fui no finalzinho, né (risos). Esperar acabar, ué. Meu pai trancava o portão pra eu não sair de casa, o portão, eu pulava o portão pra sair de casa. Eu tinha 16 anos mais ou menos. 16 anos, eu acho. Ah, é muito tempo. (silêncio) Eu já fugi de casa um dia, um dia. (inaudível) um dia só, um dia só. Minha mãe ficou doida, um dia. Minha mãe ficou doida. É, ué. Coisa de moleque, né? Eu não tinha noção não, sô. (inaudível) noção de nada. Hoje, eu faria totalmente diferente, hoje (Guilherme, Entrevista, 14 fev. 2020).
Guilherme e sua família, especificamente seus pais, possuem uma relação próxima e intensa. É possível percebermos em sua fala e nas idas à sua casa que, após o acidente, ele vive a partir da relação que estabeleceu com a sua mãe. Fica evidente que há uma tentativa dos pais em conter Guilherme de sair de casa, uma tentativa que, de alguma forma, tenta delimitar os possíveis perigos com os quais o adolescente já se deparava. A mãe ir buscá-lo no baile funk nos mostra que havia uma preocupação com os lugares e as formas como esse corpo se colocava no mundo. Ao mesmo tempo, o pai tenta conversar e trancar o portão para barrar, talvez, mesmo que inconscientemente, uma pulsão que o fazia se deparar frequentemente com o perigo e a morte iminente. Assim, são os pais que resgatam e cuidam do Guilherme quando ele sucumbe a algumas das cenas traumáticas ao longo da vida. No entanto, esse cuidado, ou melhor, a tentativa de cuidado, não impediu que Guilherme adentrasse na criminalidade.
Para além do cuidado, percebemos nas três visitas que fizemos a Guilherme que há uma trama familiar curiosa, a qual não permite que o jovem saia de casa. Interpretamos que Guilherme fica sendo um prisioneiro da própria casa geograficamente falando, pois não há rampas, e nos atrevemos a dizer que ele seja prisioneiro da sua própria história. A tentativa de cuidado dos pais culmina em um excesso de proteção após a tentativa de autoextermínio. Em uma das nossas visitas, a mãe nos disse que, ao sair do hospital, o filho conseguiu uma vaga no hospital referência Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, mas que o recusaram, pois quem deveria acompanhá-lo seria uma enfermeira do próprio hospital, sendo esse um procedimento para todas as pessoas que estão em tratamento. A mãe ainda nos disse: “Não. Eu estava disponível. Eu podia ficar com ele o dia todo. A gente não queria alguém de fora. Então, ele não foi”. A mãe, inclusive, falou que, após o ocorrido, não voltou a procurar o hospital e a possibilidade de tratamento lá - mesmo que já tenha se passado mais de 10 anos.
Em relação à família de Gustavo, observamos que a sua relação com ela é mais harmoniosa, principalmente com o pai, de quem possui o nome tatuado em uma das pernas. De acordo com ele, é o pai quem lhe oferece proteção, acolhimento e cuidados essenciais para a sua sobrevivência após a lesão. Afinal, foi o pai quem retirou Gustavo do hospital, após uma invasão, com o objetivo de assassiná-lo, e, também, foi ele quem apresentou o esporte para o jovem, o que hoje ocupa um espaço de grande importância em sua vida:
Aí, chegou no hospital, fiquei por volta de uns, um mês, dois meses. Aí, eles foram e tentaram invadir o hospital. Aí, não teve como. Meu pai juntou junto com outros pessoais, aí, pegou uma ambulância e fui transferido lá pra Serras Gerais. Aí, fiquei em Serras Gerais mais ou menos uns dois anos. Aí, dando uns três anos, eu fui, voltei pra cá. Aí, foi, eu voltei, fiquei em casa assim quase um ano, parado, desanimado de tudo. Aí, foi nisso que meu pai foi e falou: “Não, tem um projeto ali no Vencer?” [...] E ele falou: “Vamo lá. De repente, você fica lá, cê olha”. [...] Aí, eu comecei. Aí, tô desde, entrei em 2016. E já fui convocado para a seleção e hoje praticamente sou suplente na seleção. [...] Mudou, nó, mil maravilhas na minha vida, porque nu, era complicado. Um dia de cada vez (Gustavo, Entrevista, 29 jul. 2022).
Diferentemente de Guilherme, Gustavo não estabelece uma relação de dependência da família apesar de receber proteção e acolhimento nesse espaço. A casa do jovem é adaptada para suas necessidades. Ele vai ao banheiro sozinho e dirige um carro adaptado. Portanto, tem mais possibilidades de locomoção e, consequentemente, possui uma vida mais independente.
Já Daniel, apesar de manter os laços afetivos com a família, apresenta, também, um distanciamento desta. Morando sozinho na capital mineira, ele vê sua família apenas algumas vezes por ano e relata preferir viver dessa maneira. Para ele, ir para a casa dos pais é, também, se ver mais dependente: as ruas são de terra e o município possui muitos morros. Assim, Daniel perde a possibilidade de locomoção pela cidade. Além disso, é muito cuidado pela mãe, o que intensifica o sentimento de dependência.
Eu que nem eu pro cê vê, eu fiquei preso, fui preso em 2018 saí e aí convite... fiquei quatro anos, sem, sem a minha família, a minha família mora na roça, meu pai tem um sítio lá em [nome do local]. Era, foi, esse ano eu passei lá, passei, dois mil e... nós tamo é em 2022? De 2021 pra 2022, eu passei lá. Oh, gente, parece que eu fui um remédio pra minha família, cê entendeu?! Minha mãe, minha mãe me liga todo dia, tendeu?! (Daniel, Entrevista, 07 jul. 2022).
A partir das falas dos três sujeitos, fica evidente como a família desempenha um papel fundamental ao oferecer a eles um espaço de cuidado, de proteção e, por vezes, de sobrevivência. Contudo, também é possível observarmos como essa relação pode ser marcada e atravessada pela dependência desses jovens como pessoas com deficiência em uso da cadeira de rodas, o que aparece como um ponto de conflito com as famílias ao mesmo tempo em que a independência e a autonomia aparecem como valores a serem buscados e conquistados. Evidentemente, não podemos negar as dificuldades de movimentação e efeitos no corpo que a dependência de uma cadeira de rodas impõe. Nesse sentido, iremos, agora, falar sobre o corpo.
Um dos impactos do trauma de um ferimento por arma de fogo, que provoca uma lesão medular, presentifica-se na relação do sujeito com seu corpo e com sua corporeidade. Abordar a corporeidade implica considerar a construção corporal do indivíduo, que perpassa marcas sociais, estruturais, físicas e afetivas. Todo o processo de estar no mundo em movimento é norteado pela construção da corporeidade do indivíduo, o que contempla uma organização satisfatória de uma imagem corporal. Essas construções são viabilizadas por marcas estruturais, parentais, e marcas vivenciadas nas relações com o mundo. Falar de corporeidade, portanto, significa pensar como o indivíduo se percebe e se constitui. Trata-se de compreender como constrói a imagem do corpo, como se vê e como se coloca na relação com o mundo. Esse processo implica as relações que o sujeito construiu a partir das suas vivências. Desse modo, as imagens do corpo vão sendo construídas e reconstruídas ao longo da vida do indivíduo, imbuindo-o de significações a partir das vivências que outras referências lhe apresentam.
Trata-se de um processo cíclico e gradativo ao longo da vida, no qual as mudanças físicas e psíquicas do corpo suscitam necessidades de constante reorganização da imagem. Nas suas relações com o mundo, o sujeito vai apropriando-se de significados e traduzindo-os em movimentos do seu corpo na relação com os outros. Freud (1996c) revela que o corpo se localiza como fonte de sofrimento e sabemos que o “corpo de cada um nos ensina a doutrina psicanalítica, começa no Outro, como objeto de demanda, o que faz com que a sua assunção pelo sujeito inclua necessariamente a alteridade” (Elia, 1995, p. 34). Assim, um corpo lesionado em uma ação violenta demanda trabalho psíquico para sua ressignificação.
Sabemos que a teoria freudiana, ao mesmo tempo, revela e reconhece a existência de duas concepções corporais: de um lado, temos um corpo anatômico/biológico - “corpo Bio” -, marcado pela presença de instintos, que visam a satisfazer suas necessidades; e de outro, um corpo pulsional/representacional - “corpo psíquico” -, regido pela lei do desejo, que tem por finalidade realizar as satisfações pulsionais. Assim, a proposta freudiana revela um certo “esgotamento” da antiga oposição entre a explicação psicológica e a fisiológica. Ao propor o conceito de pulsão, a teoria freudiana ultrapassa o dualismo corpo e psíquico, apresentando um conceito que se situa “entre o somático e o psíquico”. A discussão freudiana dá mais um passo quando propõe a articulação do corpo com o nosso próprio eu. Freud, em O Ego e o Id (1996a, p. 40), revela como
a dor parece desempenhar um papel no processo, e a maneira pela qual obtemos novo conhecimento de nossos órgãos durante as doenças dolorosas constitui talvez um modelo da maneira pela qual em geral chegamos à ideia de nosso corpo. O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície.
Corroborando a perspectiva de um ego corporal e de processos dolorosos que nos permitem ter uma ideia de que temos um corpo, podemos acrescentar o que Freud (1996b) revela em Inibição, sintoma e ansiedade. Segundo Freud, sabemos muito pouco sobre a dor, mas o que temos certeza é que se trata de um estímulo que incide de maneira periférica, irrompendo através dos dispositivos do escudo protetor e, assim, se transformando num estímulo instintual contínuo, ou seja, aquele contra o qual a ação muscular não pode mais afastar. Tal situação ocorre tanto quando se trata de uma dor interna ou externa, proveniente de órgãos ou uma parte da pele, sendo importante destacar suas consequências psíquicas:
Quando há dor física, ocorre um alto grau do que pode ser denominado de catexia narcísica do ponto doloroso. Essa catexia continua a aumentar e tende, por assim dizer, a esvaziar o ego. Sabe-se que quando os órgãos internos nos transmitem dor recebemos representações espaciais e outras representações de partes do corpo que de maneira comum não são absolutamente representadas em ideação consciente (Freud, 1996b, p. 196).
Encontramos aqui o ponto de analogia entre os processos dolorosos e a constatação de possuirmos um corpo que pode ser habitado por linguagens diversas. E nesse corpo que dói, pensamos escutar alguns pontos das narrativas de nossos jovens e localizar os possíveis desdobramentos dessa dor na construção do Eu de cada um.
O corpo é objeto de diversos campos do saber, constituindo-se, então, como uma questão transdisciplinar e ponto de interseção entre várias perspectivas. De acordo com Winograd e Mendes (2009, p. 212), a palavra corpo é capaz de designar um corpo-organismo, estudado pelo fisiologista, pelo médico, entre outros; um corpo-próprio, centro de existência e de inserção do sujeito no mundo e na cultura; “e, de outro lado, individual, representado simbólica e imaginariamente, absorvido e transformado pela representação, marcando e constituindo a história singular de cada um: corpo-sujeito”.
A partir dessas diferentes acepções, o corpo se coloca em cena nas narrativas corpo-organismo, corpo-próprio histórico e social e corpo-sujeito. Do ponto de vista biológico, é possível pensarmos nas lesões adquiridas pelos jovens, já que em todas as narrativas eles nos apontam as feridas no corpo, mostram onde as balas ficaram alojadas e, às vezes, nos convidam ao toque. Seria o corpo-máquina, um corpo objeto que se coloca através das relações exteriores e mecânicas, como nos colocam Winograd e Mendes (2009) e como fica evidente na fala de Gustavo: “Aí, nisso quando ele caiu, aí, as balas começou pegar ni mim. Pegou seis. Aí, a que me deixou na cadeira foi uma que pegou no pescoço, que pegou na, na vértebra C8” (Gustavo, Entrevista, 29 jul. 2022).
Por outro lado, os sujeitos também colocam em cena o corpo-próprio, que está inserido num tecido social e é veículo pelo qual o sujeito se coloca no mundo. É nesse contexto, então, que os jovens revelam o corpo como fonte de sofrimento, seja ele físico ou psíquico, como fica evidente nos trechos das falas de Daniel e Guilherme, respectivamente:
Foi 2013, 2012, eu fiz uma viagem pro Paraguai... aí, deu infecção na bunda, tive que fazer uma cirurgia. Aí, tava tranquilo. Aí, cheguei na rua, abriu a ferida, tirou dois quilos de carne, jogou eu pra rua (Daniel, Entrevista, 07 jul. 2022).
Eu sinto o corpo todo, sabe? Eu sinto tudo, só não consigo mexer o braço, eu sinto tudo, sinto as pernas… graças a Deus. [...] Tem que ficar só assim na cadeira, se não dá escara. Pode dar escara na bunda, tem que ficar só assim, balançando. Pode dar escara na bunda. Mania. [...] Fico assim o dia todo (Guilherme, Entrevista, 17 dez. 2019).
Freud (2011), em Psicologia das massas e análise do Eu, revela como realizamos uma separação no curso do nosso desenvolvimento entre um Eu, coerente, e uma parte reprimida, inconsciente. Tal separação dá origem à certa estabilidade, mas que está sujeita a abalos constantes, seja no sonho ou na neurose, quando a parte excluída “bate às portas guardadas pelas resistências, exigindo admissão, e durante a vigília e em condições de saúde recorremos a artifícios especiais para acolher temporariamente em nosso Eu o reprimido, contornando as resistências e obtendo algum prazer” (Freud, 2011, p. 74).
Levando em conta o sofrimento relatado pelos jovens, levantamos a possibilidade de que tal estabilidade citada por Freud (2011) foi abalada pelas situações traumáticas. No que diz respeito ao caso de Guilherme, podemos ir além e dizer que, ao desabafar que sente tudo, mas não consegue mexer, o sujeito não diz apenas do corpo anatômico, mas, também, do seu Eu, que parece estagnado após o incidente que lhe causou a lesão. Até mesmo na devolutiva, dois anos após a realização das narrativas, as pesquisadoras observam que o jovem permanece no mesmo lugar, na mesma posição, assistindo aos mesmos programas e repetindo o mesmo discurso, a saber, de que pretende voltar a andar através da fisioterapia.
Entretanto, Gustavo faz outro uso do corpo: o jovem relata uma história de “superação” através do esporte, na qual o corpo anatômico é, também, o corpo-sujeito. Isto é, Gustavo corta laços com a criminalidade e encontra outras possibilidades de vida a partir do esporte. Para Winograd e Mendes (2009), a pulsão é derivada do corpo e retorna sobre ele fazendo-o, ao mesmo tempo, origem e destino, e renascendo incessantemente como uma força que exige satisfação. Assim, é possível analisarmos que é pela pulsão que Gustavo continua movimentando seu corpo anatômico, o que, consequentemente, impacta na sua maneira de se colocar no mundo e constitui a sua história singular.
Guilherme, Daniel e Gustavo também nos contam sobre as perspectivas para o futuro em suas narrativas. Durante as falas dos jovens, fica evidente como cada um deles tem um projeto diferente para seguir na caminhada. Começando por Guilherme, é notável que este possui um projeto, talvez, ilusório para seu futuro à medida que afirma, diversas vezes, que almeja voltar a andar por meio da fisioterapia, para que, só aí, possa não depender de outras pessoas: “Tô fazendo fisioterapia, voltar a ser normal de novo, depender de ninguém” (Guilherme, Entrevista, 17 dez. 2019).
Em contrapartida, Daniel apresenta um projeto de vida que parece ser baseado no hoje e no agora. Em um ponto de sua narrativa, ele nos disse:
Mas, que nem eu aqui, eu vivo sozinho. Já quis casar umas duas vezes, né, mas como a gente gosta muito de... né, de farrear, de zuar, então melhor ficar solteiro. Porque se arrumar namorada pra poder ficar deixando muié dentro de casa... E outra coisa, que essa casa aqui também nem dá pra brigar, né. Então, é melhor ficar solteiro, do jeito que eu tô tá melhor. Ontem, eu tava falando com minha mãe. Eu tô com 48 anos, vou fazer 48. Já aconteceu muita merda na minha vida e muita coisa boa também. Só de eu estar vivo... entendeu? Só de eu tá aqui vivo falando com vocês... (Daniel, Entrevista, 07 jul. 2022).
Diante dessa fala, hipotetizamos que Daniel não tem exatamente um projeto, mas, sim, vive o momento presente celebrando o fato de estar vivo - quase como se tal fato fosse um milagre.
Gustavo, por outro lado, apresenta um discurso que busca se projetar na vida, o que acontece por meio do esporte. Depois que desligamos o gravador, ele chegou a relatar que, após o incidente que gerou sua lesão, sua vida começou de fato. Para ele, até os 21 anos de idade, o que se passava “não era vida”. É agora, como um atleta com deficiência física após ser vítima da violência que se instala nas capitais brasileiras, que sua vida acontece:
E já fui convocado para a seleção e hoje praticamente sou suplente na seleção. Se acontece alguma coisa com algum atleta, eles me chamam pra repor a seleção. [...] Hoje em dia, eu vivo aqui normal, ninguém me atormenta igual era antes, tentavam fazer mais coisa. Viu que eu saí desse, dessa vida, viu que eu tô praticando outras coisas, pra eles acabou, eles não têm problema comigo, eu também não tenho problema com eles. [...] Pra mim, é isso, vou tocando a vida um dia de cada vez (Gustavo, Entrevista, 29 jul. 2022).
Para além dos projetos individuais de cada sujeito, que se mostram notadamente diferentes, consideramos importante ressaltar um projeto de futuro que é um ponto comum nas três narrativas: a necessidade de se pensar a exclusão social e o futuro das políticas inclusivas. O direito de ir e vir de todos os cidadãos, sem distinções, está implicado na noção de cidadania. Nesse aspecto, é possível entendermos que as pessoas com deficiência provavelmente vão encontrar dificuldades para exercer sua cidadania, uma vez que barreiras urbanas, arquitetônicas, sociais, de transporte e de comunicação, entre outras, fazem com que tal direito não seja garantido a elas (Gomes; Francisco, 2008). Nesse cenário, a acessibilidade surge como conceito de extrema relevância, sendo entendida, de acordo com o artigo segundo da Lei n. 10.098, de 19 de dezembro de 2000, “como a possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos transportes e dos sistemas e meios de comunicação, por pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida” (Gomes; Francisco, 2008, p. 2).
Portanto, a acessibilidade é um instrumento importante para promover a qualidade de vida e garantir que esses sujeitos possam exercer, de forma plena, sua cidadania. Além disso, é crucial ressaltarmos que, muitas vezes, as maiores dificuldades de deslocamento não estão nas deficiências ou limitações, mas, sim, nos obstáculos encontrados nos espaços e no comportamento de outros indivíduos. Tais barreiras, de acordo com Gomes e Francisco (2008), dificultam que esses sujeitos possam exercer o direito de ir e vir e, para além disso, que possam comunicar-se e relacionar-se com outros, participando da vida e da dinâmica do local onde habitam.
Guilherme, por exemplo, queixa-se: “Minha vida é normal, só dependo dos outros, ué. Pra tudo. Depender dos outros é ruim demais” (Guilherme, Entrevista, 17 dez. 2019). Ao viver em uma casa com escadaria íngreme, o jovem tem seus direitos negados e é impossibilitado de exercer sua cidadania desde sua moradia. Para se mover em direção ao ambiente externo, ele precisa, impreterivelmente, da presença de outra pessoa.
Já Gustavo fala da exclusão social quando afirma ter ficado parado em casa por um ano, momento em que ele se percebeu em um quadro mais desanimador: “Aí, fiquei em Bela Vista de Minas Gerais mais ou menos uns dois anos. Aí, dano uns três anos, eu fui voltei pra cá. Aí, foi, eu voltei, fiquei em casa assim quase um ano, parado, desanimado de tudo” (Gustavo, Entrevista,29 jul. 2022). Gustavo também relata que seu pedido de uma cadeira de rodas motorizada foi negado pelo Estado e questiona como seria possível transitar empurrando a cadeira de rodas comum num bairro como o seu, que possui, em sua maioria, ruas íngremes.
Em vários momentos de sua narrativa, Daniel se queixa da dificuldade de transitar por meio do transporte público, mesmo após a implementação de elevadores nos ônibus, e relata situações de precariedade e falta de instrumentos para o cuidado de suas feridas na Unidade Básica de Saúde: “Você tinha que precisar de tudo, o posto não dá, o posto não dá nada. Quando ele te dá, vai te dá um esparadrapo, ele enrola ele num pauzinho, te dá, cê compra 10 rolo de esparadrapo, comé que o cara te dá um rolinho misturado no pau? A gazinha é a pior” (Daniel, Entrevista, 07 jul. 2022).
Além da exclusão social e geográfica de alguns espaços, Daniel nos chama a atenção com uma fala bastante assertiva enquanto uma leitura social não romantizada do que as pessoas com deficiência se deparam, além de denunciar acerca dos preços dos produtos:
Outra coisa, pra nós que é cadeirante, nós só tem especial aqui ó, no papel, cê entendeu?! [barulho de papel, pega o TCLE que estava na mão e o balança nos mostrando]. Eu sou cadeirante. Se eu vou comprar uma pomada pra mim usar, ela é mais cara que a sua. Se eu for comprar alguma coisa, tudo que eu for comprar é caro.
No tocante a circular pela casa e pela cidade, Daniel (Entrevista, 07 jul. 2022) desabafa:
Olha, pra você vê [aponta para a saída da porta em direção ao passeio: há um degrau para subir até chegar em casa] você não tem um passeio. Hoje, graças a Deus tem ônibus, hoje os ôni... a maioria dos ônibus tem elevador, né. Essa aí foi uma melhoria pra nós pra que é cadeirante. Mas em quantiss... em condições de ser, de nós ser especial é só no papel [balança o TCLE novamente].
Daniel continua dizendo sobre a relação que estabelece com a cidade ao sair de casa para se divertir, fazer compras e trabalhar, desse cotidiano que, na maioria das vezes, depende de muito esforço físico e mental para realizar tarefas diárias:
Porque se cê pega uma cadeira de roda e trepa em cima dela e for andar do jeito que cê quer, cê não vai longe, rapidinho cê tá no chão. Por causa de quê? Cê sai pro Centro numa cadeira de roda, cê chega aqui assim... porque a rua a mesma hora que cê tá fazendo força desse lado, ocê tá fazendo força aqui e maneirando aqui, porque é tudo torto. Padaria... cê chega na padaria, não tem rampa, cê chega ni loja, às vezes cê oiá uma camisa, oiá alguma coisa, cê vai oiá a rampa tá lá na sua cara... comê que o cadeirante vai entrar ali? Num tem espaço, a maioria que tá ali, não tem espaço pro cadeirante, cê entendeu?! Nós que é cadeirante não tem espaço. Nós não é tratado do jeito que eles fala. Nós tamo ali só pra dizer assim: ‘é especial’. Cê vai pá pá pra uma, cê vai fazer qualquer coisa, cê vai prum, cê vai hotel... Arruma uma namorada e vai pro motel... cê não tem um motel pra cadeirante. Será que cadeirante não pode arrumar namorada, pô?! Será que cadeirante não pode divertir?! Então, nós, a pessoa que é, tem a lesão, tem muitas coisas faltando, tendeu?! É tudo que pra nós falta. Cê pode, pra gente ir no salão... é a coisa pior que tem, é ocê precisar de ajuda (Daniel, Entrevista, 07 jul. 2022).
As situações relatadas pelos jovens nas narrativas evidenciam, então, um contexto que contribui para a dependência e diminui a qualidade de vida desses indivíduos. Pensando na acessibilidade como a eliminação dessas barreiras físicas e psíquicas que limitam o sujeito com deficiência, entendemos que é imprescindível a reformulação e/ou a implementação de políticas públicas inclusivas que possam, de fato, promover a acessibilidade.
De acordo com Costa, Maior e Lima (2005), o Brasil possui uma legislação avançada do ponto de vista científico e tecnológico, considerada por especialistas como abrangente e moderna, mas a grande dificuldade advém quando da sua implantação. O próprio termo, acessibilidade, é ainda recente, trazendo consigo o desconhecimento de como efetivá-lo na prática, uma vez que é obrigatório. Além disso, apesar de a mobilização civil estar cada vez maior, com maior consciência dos seus direitos, “a efetivação da acessibilidade não depende unicamente de mudanças estruturais, mas primordialmente de uma mudança cultural, o que é um pouco mais difícil de se alcançar” (Costa; Maior; Lima, 2005, p. 5).
Como fica claro na fala dos sujeitos da pesquisa, as dificuldades expostas por Costa, Maior e Lima (2005) persistem no contexto social brasileiro mesmo após vários anos desde sua prescrição legal. Nesse sentido, fica evidenciado como ainda há um longo caminho a ser percorrido no que diz respeito à acessibilidade e à inclusão social de pessoas com deficiência. Chamamos atenção, portanto, para a necessidade de políticas públicas que busquem reduzir e, a longo prazo, eliminar cenários que corroboram a exclusão desses indivíduos.
Provocados pelos altos índices de violência armada nas periferias brasileiras, decidimos escutar e publicizar as vidas de jovens brasileiros que se tornaram paraplégicos por ferimento de arma de fogo. Ressaltamos a importância deste recorte diante da escassez de trabalhos que tratam desse destino, o qual, também, acomete fortemente os jovens negros e periféricos, ao lado das estatísticas referentes às taxas de mortalidade e de encarceramento. São jovens, como coloca Butler (2017), que nos fazem pensar como nem todas as vidas humanas são consideradas como vidas passíveis de luto.
A condição de pessoa com deficiência que necessita de uma cadeira de rodas para se locomover traz questões específicas no que concerne ao grupo familiar, ao próprio corpo e às possibilidades de projeções futuras. A família pode tanto ser um apoio, um incentivo para uma nova vida, quanto pode limitar, infantilizar. O corpo, por outro lado, figura enquanto uma parte do Eu, em relação com o outro e com o inconsciente, que se vê em xeque na intrusão da dor enquanto pulsão incontornável. Mas, ainda assim, o projetar-se é capaz de colocar o desejo em cena, de abrir caminhos em meio à hostilidade.
Diante disso, ressaltamos a importância de mais trabalhos que deem voz a esses sujeitos e que possam destacar o saber que eles retêm quanto da violência, da exclusão, do reinventar-se. A pandemia de Covid-19, de março de 2020 a meados de 2022, se configurou enquanto uma limitação da pesquisa, dificultando o encontro com um número maior de jovens. Assim, sugerimos, como uma possibilidade de continuidade da pesquisa, a escuta de mais sujeitos que tenham passado pela experiência de aquisição de uma deficiência devido à violência armada, uma vez que as três narrativas apresentadas aqui contiveram pontos heterogêneos quando da análise dos dados.