Dossiê
Recepción: 18 Mayo 2020
Aprobación: 13 Agosto 2020
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2021.13.28.65-85
Resumo: Trata da função da universidade em nossa contempo-raneidade, em especial nas primeiras décadas do século XXI, a partir da interface entre Educação Superior e Educação do Campo. Explora questões acerca da universidade no Brasil e analisa seu caráter excludente, mesmo quando tangenciada por movimentos de democra-tização. Coloca em evidência a inserção dos setores populares na universidade pública, sobretudo, os vinculados à luta por uma Educação do Campo. Volta-se para a constituição e realização da política pública de Educação do Campo e sua incidência na Educação Superior. Compreende a efetividade dessa ação, produzida na luta dos povos trabalhadores do campo e a afirma como uma ação contundente de tensionamento da função da universidade pública brasileira.
Palavras-chave: Educação Superior, Educação do Campo, PRONERA, PROCAMPO.
Abstract: This work aims to discuss the role of the University in our contemporaneity, especially in the first decades of the 21st century, from the interface between Higher Education and Countryside Education. It explores issues related to the University in Brazil and analyzes its exclusionary character, even when touched by democratization movements. In addition, it highlights the inclusion of popular sectors in the public university, mainly linked to the struggle for Countryside Education. It turns to the constitution and fulfillment of the public policy on Countryside Education and its impact on Higher Education. It comprehends the effectiveness of this action, originated in the struggle of the countryside workers and affirms it as a pointed action of tensioning of the Brazilian public University function.
Keywords: Higher Education, Countryside Education, PRONERA, PROCAMPO.
Resumen: Este artículo trata del papel de la universidad en nuestra contemporaneidad, especialmente en las primeras décadas del siglo XXI, desde la interfaz entre la educación superior y la educación del Campo. Se abordan cuestiones relativas a la Universidad en Brasil y se analiza su carácter excluyente, incluso cuando se relaciona a logros de los movimientos de democratización. Se destaca la inserción de sectores populares en la universidad pública, especialmente aquellos vinculados a la lucha por la Educación del Campo. Se examinan la constitución y realización de políticas públicas de Educación del Campo y su impacto en la Educación Superior. Se comprende la efectividad de esta acción, producida en la lucha de los trabajadores del campo y se la afirma como una acción contundente de tensar la función de la Universidad pública brasileña.
Palabras clave: Educación Superior, Educación del Campo, PRONERA, PROCAMPO.
Introdução
A função da universidade pública necessita ser continuamente problematizada, dado o perfil eminentemente excludente delegado a essa importante instituição pela elite dominante em terras brasileiras. Na maior parte de sua existência, a universidade pública no Brasil esteve voltada unicamente à formação dessas mesmas elites dirigentes. Desse modo, registra-se a existência de variados estudos historicamente situados, mas que mantêm sua atualidade analítica. Dentre esses estudos, destacam-se as elaborações de Álvaro Vieira Pinto (1994) e de Marilena Chauí (2001), as quais nos dão lastro para identificar elementos relacionados ao papel da universidade no contexto do Brasil e, ao mesmo tempo, pontuar de forma inequívoca seu perfil altamente excludente.
Contudo, nas primeiras duas décadas do século XXI, são verificadas contundentes ações no âmbito das políticas educacionais no Brasil que questionam e confrontam essa concepção elitista e conservadora da universidade. Isso foi evidenciado na existência de processos agregadores de setores das classes populares que, até então, tinham seu acesso à Educação Superior negado e que nessa quadra histórica alcançaram importantes conquistas vinculadas à instituição de cotas para estudantes afrodescendentes e indígenas e para estudantes advindos de escolas públicas.
Considerando as ações efetivadas no âmbito das políticas públicas, destacam-se ainda as reivindicadas e produzidas a partir da luta por uma Educação do Campo. Essas tiveram importantes realizações também junto às universidades, impulsionando a incorporação e a efetivação de ações endereçadas aos povos trabalhadores do campo, dando corpo e intensificando a interface entre Educação Superior e Educação do Campo.
No contexto da luta por uma Educação do Campo, no sentido de problematizar a função da universidade no Brasil, foram tomados aqui, como referenciais empíricos, a efetividade do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) e do Programa de Apoio à Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO), considerando sua incidência na formação de professores do campo, tendo em conta a realização do Curso de Pedagogia da Terra e do Curso de Licenciatura em Educação do Campo no Brasil.
A análise desses dois Programas que dentre outras ações constituem a política pública de Educação do Campo, parte da compreensão produzida coletivamente na própria luta por uma Educação do Campo, a qual entende que, é a partir da organização dos trabalhadores do campo que o Estado, por meio das políticas públicas, responde às demandas protagonizadas por diferentes setores sociais frente às suas reinvindicações (Verdério, 2018). Dessa forma, as políticas públicas colocam-se como ações mediatizadas e tensionadas continuamente, ora pautadas pela orientação hegemônica do Estado, ora pautadas pelas lutas dos trabalhadores, no caso aqui posto, os povos trabalhadores do campo e suas organizações.
A análise dos dados pertinentes à realização do PRONERA e do PROCAMPO permitiu pontuar a efetividade dessas ações na interface entre Educação Superior e Educação do Campo, e que tem gerado importantes tensionamentos relacionados à função da universidade pública brasileira.
Problematizações acerca da universidade pública
Na reflexão e no processo de problematização contínua acerca das funções e do lugar ocupado pela universidade pública em nossa contemporaneidade, sobretudo nas primeiras décadas do século XXI, coloca-se como imprescindível tomar a própria configuração dessa instituição como um espaço que se abre para poucos, mesmo quando apreciadas as várias lutas para que isso seja diferente.
Tendo por referência os estudos de Marilena Chauí (2001) e Álvaro Vieira Pinto (1994), podem ser sublinhados elementos relacionados ao papel da universidade no contexto do Brasil com destaque para seu caráter excludente, mesmo quando consideradas as tentativas de inclusão. Para tanto, cabe registrar a perspectiva de “considerar o nosso caso particular à luz da história da nossa formação nacional, onde, [...] em época recentíssima, se configuraram os primeiros organismos com pomposo nome de universidades” (Pinto, 1994, p. 18).
Ao voltar-se para o debate relativo à universidade pública em nossa contemporaneidade, sobretudo a partir da década de 2000, de acordo com Verdério (2018), é possível recolocar a perspectiva anunciada por Álvaro Vieira Pinto (1994), quando de sua análise sobre a Reforma Universitária nas décadas de 1950 e 1960.
Vieira Pinto, naquele momento específico da sociedade brasileira, que colocava na ordem do dia as Reformas de Base, e dentre elas a Reforma Universitária, verificou que a universidade no Brasil foi chamada a assumir um papel fundamental, seja ele, o de “criar a força social capaz de realizar a mudança projetada” (Pinto, 1994, p. 13) e posta como demanda notável nas décadas de 1950 e 1960.
Ao examinar a existência da universidade no Brasil, Pinto (1994), em seu estudo historicamente situado, revela algumas das características que ainda podem ser identificadas na realização da universidade contemporânea:
tinha que caber à universidade do país atrasado e em regime de colonização imperialista ser o principal instrumento de alienação cultural inevitável em tal fase histórica. Nesse sentido, desempenhou suas funções nas únicas condições objetivas que lhe eram então oferecidas, procriando as gerações componentes das classes econômica e culturalmente dominantes, moldando-lhes o raciocínio e provendo-as dos parcos conhecimentos então exigidos para o sucesso social. Como era frequentada, na sua imensa maioria, por estudantes enviados pelas famílias abastadas, o ensino alienador das realidades do país que recebiam pouco mal lhe fazia, uma vez que seu papel social já se achava predeterminado pela posição de classe que iria futuramente ocupar. Deste modo, a alienação de que a universidade há pouco era o principal foco irradiante não só se explicava por sua situação no contexto social, como não podia ser curada pelas exigências eventualmente nascidas de alguns reduzidos grupos de alunos menos favorecidos. Fabricar doutores era sua única e natural função, cumprindo-a a contento. A universidade não era motivo de reclamações, porque os poucos que a procuravam sabiam antecipadamente que nela conseguiriam entrar e encontrariam o ensino que os habilitaria ao que desejavam ser (Pinto, 1994, p. 14).
Ao examinar tais características no âmbito da universidade brasileira, o autor recupera a própria especificidade dessa instituição no contexto do país e destaca que “a universidade é um órgão social recente, só instalado oficialmente quando sua presença se faz necessária. Nada tem de comum com os similares estrangeiros, cuja fundação se conta por séculos” (Pinto, 1994, p. 17). O autor registra ainda, que no Brasil, “Só com a instalação da sede do poder colonizador no território da própria colônia, o que iria facilitar, como ocorreu, a independência política, vieram a ser fundadas as primeiras escolas superiores” (Pinto, 1994, p. 18).
Assim, em sua atualidade analítica, Vieira Pinto constata um elemento essencial na definição da universidade pública brasileira, compreendendo-a como “uma peça do dispositivo geral de domínio pelo qual a classe dominante exerce o controle social, particularmente no terreno ideológico, sobre a totalidade do país” (Pinto, 1994, p. 19).
Corroborando essa compreensão, Marilena Chauí identifica a universidade como uma instituição social que “realiza e exprime de modo determinado a sociedade de que é e faz parte. Não é uma realidade separada e sim uma expressão historicamente determinada de uma sociedade determinada” (Chauí, 2001, p. 35). De acordo com Verdério (2018, p. 39), considerando essa condição de existência “da Universidade que se produz em conexão com o contexto econômico, social e cultural em que está inserida, cabe destacar como os problemas da sociedade contemporânea se expressam nessa instituição”.
Nesse aspecto, Chauí (2001, p. 40) identifica que as universidades no Brasil colocam-se como “parte integrante e constitutiva do tecido social oligárquico, autoritário e violento” e têm sua institucionalização organizada de forma a reproduzir os aspectos autoritários presentes na sociedade brasileira.
Em síntese, a partir dos elementos pontuados por Chauí (2001), é possível elencar como elementos que reproduzem na universidade pública no Brasil os padrões autoritários, oligárquicos e violentos presentes na sociedade de modo geral: i) a carência e o privilégio; ii) a perda da identidade e da autonomia; iii) os privilégios e as desigualdades; iv) a heteronomia; v) o poder burocrático; vi) a perda da ideia de serviço público aos cidadãos; vii) a submissão aos padrões neoliberais, e; viii) consequentemente a subordinação dos conhecimentos à lógica do mercado, a privatização do que é público, a submissão à ideologia pós-moderna (Verdério, 2018).
Ao identificar, a partir de Chauí (2001), esse conjunto de elementos que evidenciam o caráter “oligárquico, autoritário e violento” instituinte da universidade pública brasileira, é pertinente ainda registrar seu caráter excludente, mesmo quando tangenciada pelas propostas e pelos dificultosos - e reconhecidos - esforços para sua democratização, evidenciados, sobretudo, nas duas últimas décadas. Contudo, mesmo esse movimento tímido de ampliação do acesso à Educação Superior, figurado na última quadra histórica no Brasil, apresenta-se sustentado na ideologia da igualdade educacional que, por sua vez, revela,
seus limites reais, pois a partir do momento em que a maioria [sic] adquiriu a possibilidade de receber os estudos superiores, estes perderam sua função seletiva e se separaram de seu eterno corolário, isto é, a promoção social. Se todos podem cursar a universidade, a sociedade capitalista se vê forçada a repor, por meio de mecanismos administrativos e de mercado, os critérios de seleção. Isso implicou, [...] a desvalorização dos diplomas, o aviltamento do trabalho e dos salários dos universitários, e finalmente, o puro e simples desemprego. [...] e como consequência, a universidade se mostrou incapaz de produzir uma “cultura útil” (não fornecendo, na realidade, nem emprego nem prestígio) (Chauí, 2001, p. 44).
Essa constatação evidencia uma tarefa pouco fortuita para a universidade - quando alinhada às perspectivas postas por Vieira Pinto (1994) -, bem como para os que dela participam e que não compactuam com a realidade disposta por Chauí (2001) e que tão bem caracteriza a universidade em nossa contemporaneidade e, em especial, nas duas últimas décadas.
Desse modo, são evidenciados e reforçados padrões autoritários, oligárquicos e violentos da sociedade brasileira, que colocam a universidade na condição de excludente, mesmo quando anunciados movimentos de inclusão timidamente efetivados. Nessa esteira, a realização da universidade na sociedade brasileira participa efetivamente da divisão social do trabalho, intensificando a separação entre trabalho intelectual e manual. De acordo com Chauí (2001, p. 56), cabe à universidade realizar “em seu próprio interior uma divisão do trabalho intelectual, isto é, dos serviços administrativos, das atividades docentes e da produção de pesquisas”. Portanto, no interior da universidade pública,
a fragmentação não é casual ou irracional, mas deliberada, pois obedece ao princípio da empresa capitalista moderna: separar para controlar. [...] a fragmentação do ensino e da pesquisa é o corolário de uma fragmentação imposta à cultura e ao trabalho pedagógico pelas ideias de especialização e competência, e, sobretudo, que a reunificação do dividido não se fará por critérios intrínsecos ao ensino ou à pesquisa, mas por determinações extrínsecas, ou seja, pelo rendimento e eficácia (Chauí, 2001, p. 56).
Outro aspecto que diz respeito à problematização do lugar e da função da universidade está relacionado ao seu fazer cotidiano, que anunciado no plano discursivo, deveria estar afirmado na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Nesse aspecto, é importante resgatar essa pretensa relação intrínseca entre ensino, pesquisa e extensão, que, de acordo com a legislação que regulamenta a universidade brasileira, são colocadas como funções indissociáveis. Contudo, de acordo com Garcia e Schmidt (2011), apesar da objetividade expressa no marco legal, as práticas que dão sustentação ao ambiente universitário, por vezes, revelam um desequilíbrio entre as funções anunciadas e a relação entre elas.
Com isso, de modo geral, é possível identificar a efetivação de certa naturalização da desarticulação entre as atividades de ensino, de pesquisa e de extensão na realidade da universidade brasileira. Tal realidade apresenta obstáculos quase que instransponíveis para os que buscam concretizar a indissociabilidade almejada e referendada no marco legal. Essa não concretude da relação intrínseca entre ensino, pesquisa e extensão anunciada é expressa na heteronomia econômica, educacional, cultural, social e política da universidade pública no Brasil.
Podemos [...] caracterizar a universidade pública brasileira como uma realidade completamente heterônoma. A heteronomia é econômica (orçamentos, dotações, bolsas, financiamentos de pesquisa, convênios com empresas não são decididos pela própria universidade), éeducacional (currículos, programas, sistemas de créditos e de frequência, formas de avaliação, prazos, tipos de licenciaturas, revalidação de títulos e diplomas, vestibulares e credenciamento dos cursos de pós-graduação não são decididos pela universidade), écultural (os critérios para fixar graduação e pós-graduação, a decisão quanto ao número de alunos por classe e por professor, o julgamento dos currículos e títulos, a forma da carreira docente e de serviços são critérios quantitativos determinados fora da universidade), é social e política (professores, estudantes e funcionários não decidem quanto aos serviços que desejam prestar à sociedade, nem decidem a quem vão prestá-los, de modo que a decisão quanto ao uso do instrumental produzido ou adquirido não é tomada pela universidade). A afirmação da autonomia universitária ora é uma burla safada, ora um ideal impossível (Chauí, 2001, p. 58, grifos nossos).
Assim, de acordo com Verdério (2018), no domínio de uma autonomia constantemente burlada e, que por vezes, apresenta-se impossibilitada, têm-se como instrumentos e processos de concretização:
as diferentes formas de financiamento, cada vez mais alinhadas à lógica de mercado;
a privatização e a terceirização como matrizes fundantes na concretização de serviços públicos;
a efetivação de uma gestão cada vez mais burocratizada e distanciada dos objetivos primeiros da universidade, dispostos na articulação entre ensino, pesquisa e extensão;
a constante falta de infraestruturas, expressa na inexistência ou debilidade evidente de laboratórios, bibliotecas, bolsas e auxílios para atividades de cunho acadêmico-científico;
a contínua descaracterização, precarização e falta de reconhecimento do magistério superior;
a superposição de algumas áreas em detrimento de outras;
o frágil perfil socioeconômico e cultural dos acadêmicos, que tem implicações contundentes nos processos formativos desencadeados;
a produtividade insana como mecanismo de hierarquização e fragmentação no interior das universidades;
a intensificação de relações pautadas pela competitividade e pelo brilhantismo, impulsionadas, sobretudo, pelos mecanismos de avaliação, em suma, externos à realidade das universidades e desconexos das especificidades das diferentes áreas de conhecimento.
Contudo, na contramão da naturalização da desarticulação entre ensino, pesquisa e extensão na universidade pública brasileira, expressa nos instrumentos e processos elencados, ainda de acordo com Chauí (2001), verifica-se
a liberdade de ensino e de pesquisa como defesa da liberdade de opinião (o que, neste país, é uma tarefa gigantesca, diga-se de passagem), de modo que a universidade é defendida por nós muito mais como espaço público (porque lugar da opinião livre) do que como coisa pública (o que suporia uma análise de classes). A universidade, se fosse entendida como uma coisa pública, nos forçaria a compreender que a divisão social do trabalho não exclui uma parte da sociedade apenas do espaço público, mas sim do direito à produção de um saber e da cultura letrada. Como coisa pública, a universidade não torna os produtos mais rigorosos da cultura letrada imediatamente acessíveis aos não iniciados - isto seria reproduzir o ideal da gratificação instantânea do consumidor, própria da televisão - mas torna clara a diferença entre o direito de ter acesso à produção dessa cultura e a ideologia que, em nome das dificuldades teóricas e das exigências de iniciação, faz dela uma questão de talento e aptidão, isto é, um privilégio de classe (Chauí, 2001, p. 67, grifos da autora).
Na continuidade de sua análise e na perspectiva de problematizar a situação identificada, Chauí (2001) evoca uma dupla vocação para a universidade brasileira, seja ela uma vocação política e uma vocação científica. A autora destaca ainda a sobrepujança da primeira em relação à segunda em diferentes momentos da história da Educação Superior no Brasil. Contudo, mesmo afirmando essa sobreposição, a autora pontua a possibilidade de convergência entre ambas as vocações.
A articulação das duas vocações da universidade, quando feita a partir dela mesma e por iniciativa dela, tende a nos oferecer a face luminosa das duas vocações, pois a universidade assume explícita e publicamente tal articulação como algo que a define internamente. A articulação das duas vocações da universidade, quando feita do prisma da reprodução sociopolítica e da formação de um grupo social específico - o que chamo de intelectuais orgânicos da classe dominante -, tende a oferecer a face sombria, pois a articulação é tácita, implícita e, muitas vezes, secreta e, frequentemente, determinada pela via indireta do modo de subvenção e financiamento das pesquisas como se fossem “ciência pura” (Chauí, 2001, p. 118-119).
Considerando essa dupla vocação indicada por Chauí,
verifica-se no ambiente universitário a atuação de forças distintas, expressas, sobretudo, nas ações dos sujeitos que constituem esse espaço. Da mesma forma, verifica-se ainda a ação de outras instâncias da sociedade, externas à Universidade, que atuam sobre os sujeitos e as ações que constituem o fazer da Universidade (Verdério, 2018, p. 44).
Assim, nos últimos anos a função atribuída à universidade passou a ser questionada de maneira evidente por movimentos agregadores de parcelas da população brasileira que até então tinham seu acesso à Educação Superior negado. Esse novo cenário se fortaleceu a partir dos novos acordos políticos firmados na sociedade brasileira, que produzidos na correlação entre as forças sociais presentes na sociedade, culminou em importantes conquistas, sejam as cotas para estudantes afrodescendentes e indígenas, a inserção de estudantes que sempre frequentaram as escolas públicas, as ações de inserção para imigrantes refugiados e o acesso dos povos trabalhadores do campo à universidade (Loss et al., 2018; Loss; Vain, 2018)1. Tais ações, materializadas nos embates e contradições que as constituem, produziram importantes mudanças no perfil dos estudantes das universidades públicas brasileiras (Verdério, 2018).
Contudo, é fundamental, ainda, registrar o movimento conservador e excludente reafirmado por parcelas da sociedade brasileira, sobretudo, a partir de 2013 e que foi impulsionado pelo golpe de 2016, pela Emenda Constitucional n. 95/2016 e incidiu no resultado das eleições presidenciais de 2018.
Considerando esse fortalecimento paulatino das forças conservadoras, Leher (2020) adverte que o núcleo dirigente do governo eleito em 2018 tem total convicção de que o projeto ultraneoliberal e fundamentalista ao qual adere somente será viável com o total silenciamento das universidades. Pois, de acordo com o autor, “com instituições públicas autônomas, comprometidas com a ética na produção do conhecimento, dedicadas à produção de conhecimento original, validado pelo campo científico, não será possível submeter a ciência brasileira aos dogmas que sustentam as bases culturais e “científicas” do projeto em curso no país” (Leher, 2020, p. 117).
Portanto,
O estrangulamento orçamentário [imposto às Universidades] impõe inadmissíveis retrocessos na democratização lograda nos últimos quinze anos: embora incipiente, o arejamento democrático é de extraordinária importância, pois permitiu o acesso e a permanência de estudantes provenientes das frações mais exploradas e expropriadas da sociedade brasileira (Leher, 2020, p. 109).
É nesse contexto de tensionamento acerca da função da universidade, que está colocado o movimento de inserção dos setores populares em seu interior, evidenciado nas primeiras duas décadas do século XXI, a partir da interface entre Educação Superior e Educação do Campo.
Nesse processo de afirmação e realização prática da Educação do Campo, conforme indicação de Santos e Silva (2016, p. 137-138), verifica-se a possibilidade concreta de os “movimentos sociais organizados enfrentarem o conservadorismo de parte da sociedade brasileira” e que tem seus sustentáculos também no interior da universidade.
Leher (2015), por sua vez, amparado nos estudos de Zibechi (2005), pontua “um intenso e, em certo sentido, surpreendente protagonismo social de movimentos do campo, indígenas, de juventude e de periferias dos grandes centros urbanos verificado a partir dos anos 1990 alteraram significativamente o lugar ocupado pelos movimentos no debate universitário” (Leher, 2015, p. 2).
No que se refere à interface entre Educação Superior e Educação do Campo, isso tem sido impulsionado, sobretudo, pela força e mobilização dos povos trabalhadores do campo organizados em Movimentos Sociais e Organizações Populares do Campo, o que tem sido traduzido e encontrado materialidade num conjunto de ações e na concretização da política pública de Educação do Campo no Brasil.
Assim, ainda de acordo com Santos e Silva (2016), o Estado, sendo continuamente pressionado pela força social organizada dos povos trabalhadores do campo, foi tensionado a reconhecer algumas experiências produzidas no contexto da luta por uma Educação do Campo e passou a desenvolver políticas públicas específicas para o campo, inclusive no âmbito educacional.
A luta por uma Educação do Campo e a constituição do aparato normativo no âmbito da política educacional
A luta por uma Educação do Campo no Brasil tem seu marco constituinte na realização do I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (I ENERA), organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1997.
Em decorrência do I ENERA, várias Organizações e Movimentos Sociais Populares do Campo, juntamente com o MST, propuseram no ano de 1998 a realização da I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo.
Assim, a Educação do Campo, em suas mais de duas décadas de realização, tem sido efetivada pela força e organização dos povos trabalhadores do campo, incidindo, sobremaneira, na constituição de um aparato normativo e orientador que a sustente no âmbito das políticas públicas.
De acordo com Verdério (2018), a luta por uma Educação do Campo constitui-se como expressão da articulação
de diversos sujeitos comprometidos com a educação dos povos trabalhadores do campo no Brasil, tendo como elemento central os sujeitos a que se refere como protagonistas na proposição e na realização de uma educação que atenda seus interesses e, estando conectada a processos educacionais contra-hegemônicos, se coloca na perspectiva da transformação social e da emancipação humana.
Assim, a luta por uma Educação do Campo parte da própria diversidade dos sujeitos trabalhadores do campo no Brasil e das práticas e perspectivas educativas forjadas nas lutas sociais de tais sujeitos. A luta por uma Educação do Campo se faz diversa na unidade de classe. Não é homogênea e nem uniforme, mas possui uma materialidade de origem que a identifica e lhe confere unidade (Verdério, 2018, p. 66-67).
A materialidade da luta por uma Educação do Campo no Brasil expressou-se, num primeiro momento, por meio da Articulação Nacional por uma Educação do Campo (ANEC), que foi constituída em 1997 em decorrência do I ENERA e em função da organização da I Conferência Nacional.
Essa mobilização a favor da educação básica do campo liderada por entidades do porte da [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] CNBB, do MST, do [Fundo das Nações Unidas para a Infância] UNICEF, da [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] UNESCO e da UnB conseguiu sensibilizar importantes setores da sociedade. [...] Imediatamente após o momento nacional da conferência, as cinco entidades promotoras assumiram o compromisso de dar continuidade à mobilização “Por uma Educação Básica do Campo”, estabelecendo uma articulação similar a um fórum nacional. Essa continuidade engloba, entre outras propostas, reuniões periódicas dos representantes das cinco entidades promotoras; uma coleção de cadernos para fomentar a reflexão; a realização de alguns seminários; o estudo de uma possível segunda conferência nacional, e mesmo de uma conferência latino-americana; a constituição de um grupo de trabalho para acompanhar tanto a tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE), no Congresso Nacional, como a elaboração de políticas públicas específicas para a educação básica do campo (Kolling; Nery; Molina, 1999, p. 18).
No processo de afirmação e realização da luta por uma Educação do Campo no Brasil, registra-se que a ANEC teve uma atuação mais incisiva até 2008. A partir de 2010, o processo organizativo desencadeado dá sustentação e passa a ser articulado com a constituição do Fórum Nacional de Educação do campo (FONEC), que
caracteriza-se, antes de tudo, como uma articulação dos sujeitos sociais coletivos que o compõem, pautados pelo princípio da autonomia em relação ao Estado configurado em qualquer uma que seja de suas partes. Não obstante, essa autonomia não impede que participem como membros efetivos do Fórum: institutos de educação e universidades públicas e outros movimentos/entidades que atuam na educação do campo, bem como na condição de convidados, órgãos governamentais cuja função é pertinente à Educação do Campo (FONEC, 2010, p. 1).
Ao registrar o momento e o perfil de constituição do FONEC, verifica-se que a luta por uma Educação do Campo no Brasil tem buscado afirmar sua autonomia em relação ao Estado, às instituições e aos organismos multilaterais, reafirmando uma compreensão já posta, mas não tão evidente na ANEC.
Contudo, conforme já indicado, mesmo nessa afirmação da autonomia política e pedagógica, as forças articuladas a partir dos Movimentos Sociais e Organizações Populares do Campo que dão sustentação à Educação do Campo têm incidido sobremaneira na reivindicação e configuração de uma política pública de Educação do Campo. Nesse processo, entre os anos de 1998 e 2014, verificou-se um avanço considerável na constituição de um marco normativo acerca da Educação do Campo no Brasil. Esse processo esteve amparado no protagonismo e nas lutas dos povos trabalhadores do campo na busca pelo seu direito à educação.

As ações apresentadas na tabela acima evidenciam a consolidação de um aparato normativo e orientador da Educação do Campo no que tange à política educacional no Brasil. Dentre esse considerável conjunto de normas e definições, destaca-se a instituição do Decreto 7.352/2010, que demarca a Educação do Campo como política pública, e ao mesmo tempo mantém conexão direta com o PRONERA, instituído em 1998 e com o PROCAMPO efetivado em 2008. Ambos os programas, como bem evidenciado por Molina e Antunes-Rocha (2014), foram gestados e são implementados no território tenso e contraditório das disputas de projeto societário e colocam-se como importantes ações no questionamento e na contraposição dos padrões autoritários, oligárquicos e violentos da sociedade brasileira em geral (Chauí, 2001) e do caráter excludente presente na universidade.
PRONERA e PROCAMPO na interface entre Educação Superior e Educação do Campo
O PRONERA é um programa de educação vinculado ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e foi instituído em abril de 1998, por meio da Portaria n. 10, do extinto Ministério Extraordinário da Política Fundiária (Santos, 2012), tendo sua divulgação efetivada no ambiente da I Conferência Nacional de Educação do Campo e em decorrência da realização do I ENERA.
O PRONERA assume o objetivo de
Fortalecer a educação nas áreas de Reforma Agrária estimulando, propondo, criando, desenvolvendo e coordenando projetos educacionais, utilizando metodologias voltadas para a especificidade do campo, tendo em vista contribuir para a promoção da inclusão social com desenvolvimento sustentável nos Projetos de Assentamento de Reforma Agrária (Brasil, 2016, p. 18).
E coloca-se como primeiro importante marco na projeção e na construção da Educação do Campo no Brasil. De acordo com Verdério (2018, p. 96), o PRONERA “além de se constituir como a primeira ação de envergadura do Estado brasileiro na perspectiva de constituir uma resposta enfática à luta por uma Educação do Campo, ele demarca uma nova apreensão acerca da ação governamental na relação direta com as reinvindicações sociais”.
Com o Decreto Presidencial 7.352/2010, já mencionado na tabela 1, o PRONERA passou a integrar a política pública de Educação do Campo. Dessa forma, por meio de convênios e dotação orçamentária específica para as instituições parceiras, o Programa tem possibilitado o acesso dos povos trabalhadores do campo à Educação Superior.
Conforme informações publicadas pelo INCRA (2016), até agosto de 2016, o PRONERA havia possibilitado “acesso à educação formal a mais de 185 mil pessoas. O Programa é destinado principalmente a jovens e adultos das famílias que vivem em assentamentos criados ou reconhecidos pelo Incra” (INCRA, 2016, p. 1).
Na sequência, no mapa 1, é apresentada a disposição geográfica dos cursos de graduação ofertados no âmbito do PRONERA, no período entre os anos de 1998 e 2011. Esse dimensionamento demonstra a efetividade do PRONERA, sendo que sua distribuição e ocorrência em todo o território nacional expressa a inegável abrangência territorial do Programa no Brasil.

Ainda conforme dados sintetizados na II Pesquisa Nacional sobre a Educação na Reforma Agrária (IPEA, 2015), entre os anos de 1998 e 2011, constata-se a realização de 54 (cinquenta e quatro) cursos de graduação realizados no âmbito do PRONERA.
Dentre os cursos de graduação ofertados pelo PRONERA, estão os cursos para formação de professores do campo. A título de exemplo, é apresentada na sequência a oferta do curso de Pedagogia da Terra2 pelo PRONERA, sendo consideradas as turmas realizadas entre os anos de 1998 e 2014 (Horácio, 2015).

A partir das informações sintetizadas por Horácio (2015) e dispostas na tabela 2, constata-se que entre 1998 e 2014 foram realizadas 19 (dezenove) turmas do curso de Pedagogia da Terra, efetivadas por meio do PRONERA, envolvendo 12 (doze) universidades públicas. Isso evidencia, ainda, como a formação de professores do campo passa a ser impulsionada a partir da instituição do PRONERA.
De acordo com Molina e Antunes-Rocha (2014, p. 229-230),
Um dos mais importantes resultados do Pronera tem sido sua capacidade de viabilizar o acesso à educação formal a centenas de jovens e adultos das áreas de Reforma Agrária. Se não fossem as estratégias de oferta de escolarização adotadas pelo Programa - a partir das práticas já acumuladas pelos Movimentos, entre as quais se destaca a Alternância, com a garantia de diferentes tempos e espaços educativos.
Em suma, os cursos de graduação ofertados pelo PRONERA, entre os quais estão os cursos para formação de professores do campo com especial destaque para o curso de Pedagogia da Terra, são organizados no regime de alternância, entre tempo universidade e tempo comunidade, incidindo sobremaneira na organização da forma em que são ofertados os cursos de graduação.
O tempo universidade diz respeito ao período de “tempo presencial em que os estudantes estão juntos na universidade ou em outro local, onde se desenvolvem as aulas e orientações para trabalhos práticos nas comunidades de origem” (Almeida; Antonio, 2008, p. 28). Já o tempo comunidade
é o tempo em que os estudantes estão em suas comunidades, desenvolvendo suas práticas, bem como outras atividades do Curso, de estudo e pesquisa. Entendemos esse tempo tanto para trabalhos individuais de cada estudante como tempo reservado para os coletivos regionais, com acompanhamento de assessoria pedagógica (Almeida; Antonio, 2008, p. 28).
De acordo com Verdério (2018), e adjacente à reinvindicação elaborada no contexto da luta por uma Educação do Campo, a realização do regime de alternância na formação de professores do campo concretiza a possibilidade de “atuar e incidir diretamente na formação do educador que já vem desenvolvendo trabalho junto às comunidades do campo, seja em espaços escolares e não escolares ou formais e não formais de educação, mas que ainda não possuem a formação e a certificação necessárias para o exercício dessa função” (Verdério, 2018, p. 114).
Considerando a efetividade e as experiências realizadas por meio do PRONERA, registra-se que a partir de 2008 o PROCAMPO assumiu certa centralidade na efetivação da formação de professores do campo no Brasil, promovendo a realização do curso de Licenciatura em Educação do Campo em Instituições de Educação Superior de todo o país.
O PROCAMPO, já em sua gênese, afirmou duas prerrogativas que embasariam a realização dos cursos de Licenciaturas em Educação do Campo no Brasil, sejam elas: a organização em regime de alternância e a formação de professores do campo por áreas de conhecimento. Assim, a Licenciatura em Educação do Campo colocou-se como
Cursos ofertados pelas Universidades Federais e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, com organização curricular cumprida em regime de alternância entre tempo-escola e tempo-comunidade e habilitação para docência multidisciplinar nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio em uma das áreas do conhecimento: linguagens e códigos, ciências humanas, ciências da natureza, matemática e ciências agrárias. A proposta pedagógica de formação do PROCAMPO, construída com a participação social, tem como base a realidade dos povos do campo e quilombola e a especificidade da organização e oferta da educação básica às comunidades rurais (Brasil, 2018).
A proposição do PROCAMPO e a construção do curso de Licenciatura em Educação do Campo, ancoradas na experiência do PRONERA, tiveram como espaço propositivo fundamental o Grupo Permanente de Trabalho em Educação do Campo, “instituído no âmbito do MEC, pela Portaria n. 1.374 de 03/06/03, com a atribuição de articular as ações do Ministério pertinentes à Educação do Campo” (Ramos et al., 2004, p. 5). Como resultado da atuação desse Grupo de Trabalho, em abril de 2006, o MEC apresentou a minuta original do curso de Licenciatura (Plena) em Educação do Campo (MEC, 2006), que posteriormente sustentou a realização de experiências-piloto do curso em 4 (quatro) universidades federais, sendo elas: a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade Federal de Sergipe (UFS).
A partir da realização das experiências-piloto, em abril de 2008, o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), publicou o primeiro edital para implementação do curso de Licenciatura em Educação do Campo nas universidades que se propunham a apresentar propostas. Naquele primeiro edital do PROCAMPO, foram selecionadas 27 (vinte e sete) propostas de curso em todo o Brasil. De acordo com Verdério (2018), as instituições que tiveram suas propostas selecionadas localizam-se em quinze Estados brasileiros mais o Distrito Federal, sendo 11 (onze) propostas apresentadas por universidades federais, 1 (uma) por Centro Federal de Educação Tecnológica, 8 (oito) por universidades estaduais e 7 (sete) propostas elaboradas por Autarquias Educacionais.
O segundo edital do PROCAMPO, publicado em abril de 2009 como Edital de Convocação n. 9, vinculou mais 5 (cinco) instituições de Educação Superior na realização do curso. De acordo com Verdério (2018, p. 106), a edição do primeiro e do segundo edital do PROCAMPO viabilizou a constituição de 56 (cinquenta e seis) turmas de Licenciatura em Educação do Campo, “e um total de 3.358 vagas disponibilizadas para formação de professores do campo no curso de Licenciatura em Educação do Campo, em alternância e por áreas do conhecimento”.
Como expresso na tabela 1, com a instituição do Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO) em 2013, anunciado como “um conjunto articulado de ações de apoio aos sistemas de ensino para a implementação da política de educação do campo, conforme disposto no Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010” (Brasil, 2013, p. 1), a Licenciatura em Educação do Campo promovida pelo PROCAMPO passou a integrá-lo.
Assim, já fazendo parte do PRONACAMPO, o terceiro edital do PROCAMPO foi divulgado em setembro de 2012, direcionando a chamada apenas para as Universidades Federais. De acordo com Verdério (2018), esse terceiro edital contemplou um conjunto de 44 (quarenta e quatro) universidades federais, distribuídas em dezenove estados brasileiros mais o Distrito Federal. O desdobramento do terceiro edital do PROCAMPO desencadeou um significativo aumento na oferta de cursos de Licenciatura em Educação do Campo em todo o país.
A partir da análise acerca da efetividade do PROCAMPO - em seus três editais - e da realização do curso de Licenciatura em Educação do Campo em todo o Brasil, Verdério (2018) verificou um total de 53 (cinquenta e três) Instituições que desenvolveram e/ou desenvolvem experiências com o curso no país. Essa expressividade pode ser verificada no mapa 2, que apresenta a distribuição territorial do curso até o ano de 2017.
Os números relacionados à realização da Licenciatura em Educação do Campo, somados à amplitude do PRONERA na realização de cursos de graduação - com especial atenção para os voltados à formação de professores do campo - evidenciam a capilaridade e o potencial aberto por meio da interface entre Educação Superior e Educação do Campo.
Desse modo, vale destacar a efetividade dessas duas ações - PRONERA e PROCAMPO - que estruturadas e estruturantes da política pública de Educação do Campo no Brasil impulsionaram a inserção de setores populares que até então tinham seu direito à Educação Superior negado e negligenciado pelo Estado brasileiro. Conforme Martins (2012), dado o caráter em que se estabelecem tais ações, fundamentalmente projetado pela luta por uma Educação do Campo, essa inserção de parcelas dos setores populares na universidade pública reflete uma “ação coletiva de acesso ao ensino superior, na qual os sujeitos sociais do campo, a partir de demandas específicas e de acordo com as condições particulares da sua realidade social, constroem um processo formativo, apropriando-se dos tradicionais espaços universitários” (Martins, 2012, p. 105).
Juntamente a essa ampliação de acesso que é efetivada de maneira coletivizada pelos povos trabalhadores do campo, se processam também importantes problematizações relacionadas ao conteúdo, ao método e à forma dispostos tradicionalmente nas universidades.
Em acordo com a proposição de Frigotto (2011), verificam-se aspectos relacionados ao conteúdo, ao método e à forma da Educação do Campo que, quando colocados na interface com a Educação Superior, por meio dos cursos de graduação realizados pelo PRONERA e pelo PROCAMPO, “podem, no espaço das contradições, construir processos educativos e de conhecimento emancipatórios e, enquanto tal, são portadores de mediações que qualificam a práxis na luta contra-hegemônica pela superação do projeto societário de capitalismo dependente e das relações sociais capitalistas” (Frigotto, 2011, p. 20).
No que tange à forma e ao método, os cursos de graduação realizados no âmbito do PRONERA e do PROCAMPO têm evidenciado novas maneiras de fazer a Educação Superior, promovendo sua realização a partir do regime de alternância e no vínculo concreto com as questões, problemáticas e possibilidades presentes no campo brasileiro. E é neste vínculo com a realidade concreta que é verificada a incidência sobre o conteúdo trabalhado na universidade, pois, tais experiências têm buscado no aprofundamento científico as contribuições necessárias para afirmar o campo como espaço de vida e relações. Isso passa pela problematização da questão agrária brasileira e das mazelas produzidas pelo capitalismo no campo, e ao mesmo tempo, evidencia a capacidade de resistência e de formulação de alternativas dispostas nas lutas dos povos trabalhadores do campo.
Assim, a efetividade da política pública de Educação do Campo, forjada e tensionada na luta por uma Educação do Campo no Brasil, de maneira inequívoca, coloca-se como umas das ações mais contundentes no questionamento da função da universidade pública na última quadra histórica, situada nas duas primeiras décadas do século XXI. Isso é evidenciado por meio da interface entre Educação Superior e Educação do Campo que possibilita problematizar de maneira incisiva os padrões autoritários, oligárquicos e violentos (Chauí, 2001) presentes na universidade brasileira.
Na contramão desse processo democratizante, expresso na instituição e na efetivação da política pública de Educação do Campo no Brasil - dentre outras ações que possibilitaram o acesso das classes populares à universidade - verifica-se um intencional movimento de retrocesso frente às conquistas obtidas nas últimas décadas.
De maneira vinculada ao projeto ultraneoliberal e fundamentalista capitaneado pela “fração local do Estado Maior do Capital - liderada pelos operadores das finanças e commodities - e pelo tosco empresariado de serviços que apoia o governo” (Leher, 2020, p. 109), verifica-se um intencional movimento conservador intentado sobre a universidade e a educação pública de modo geral. Nesse aspecto, à revelia das reivindicações, da mobilização e da luta dos Movimentos Sociais e Organizações Populares do Campo, bem como, das conquistas obtidas, registra-se o esvaziamento e as paulatinas tentativas de extinção das políticas públicas que deram impulso à Educação do Campo nas últimas décadas. A respeito disso, registram-se os constantes ataques sofridos pelo PRONERA desde o governo Temer, a partir de 2016.
De acordo com FONEC (2020a; 2020b), no que tange à ação do atual governo - eleito em 2018 - as ameaças e a fragilização do Programa têm sua expressão no decreto n. 10.252/2020, de 21 de fevereiro de 2020, com o qual o governo federal pretendeu extinguir o PRONERA da estrutura organizativa do INCRA. Tal encaminhamento só foi revogado a partir da pressão e do posicionamento do FONEC, que ao mobilizar parlamentares, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), conseguiu que o governo federal tornasse sem efeito o referido Decreto com a publicação do novo Regimento Interno do INCRA, em 23 de março de 2020, que mencionou o PRONERA, dentre as atuais atribuições da referida autarquia federal.
Outro aspecto relevante diz respeito à falta de recursos para realização dos Termos de Execução Descentralizada (TED) já pactuados ou para efetivação dos projetos já aprovados no âmbito do PRONERA. De acordo com o FONEC, em julho de 2020,
O Pronera tem hoje, em vigência, de acordo com dados do próprio INCRA, 40 cursos, com 2.644 educandos (previsão de 556 formandos em 2020). O financiamento destes cursos em andamento para o corrente ano é de R$ 11.391.660,07. Porém, estão previstos na LOA para o INCRA somente R$ 2.942.131,00, o que impõe ao Pronera um déficit de R$ 8.449.529,07 (FONEC, 2020b, p. 1).
Esse estrangulamento orçamentário, como já expresso por Leher (2020), exemplifica de maneira inequívoca tentativas contundentes para o alcance de um retorno à elitização da Educação Superior no Brasil, como já registrado em momentos históricos anteriores. Essa característica, como evidenciado por Vieira Pinto (1994) e Chauí (2001), esteve posta na própria gênese da universidade pública no Brasil, e fomentou os questionamentos e as ações de democratização experienciadas na última quadra histórica.
Considerações sobre a inserção dos setores populares e a função da universidade pública
No novo cenário instituído na sociedade brasileira, de um lado são evidenciados movimentos obscurantistas e de retirada de direitos e de outro, por sua vez, parcelas dos setores populares reivindicam diretrizes democráticas afirmando continuamente a luta por direitos. Nesse contexto é crível a necessidade de problematizar a função da universidade pública.
Essa função é tangenciada e está imersa nos contínuos embates presentes na sociedade e isso nos leva a verificar alguns processos realizados na controversa entre conquistas e retrocessos, rupturas e conservadorismos, nos quais a universidade pública é tensionada, no contexto da luta de classes, à manutenção do velho e à projeção do novo.
Se por um lado a universidade pública é contingenciada a expandir sua capilaridade, abrindo-se para a possibilidade de inserção de sujeitos diversos que até então não a frequentavam, ao mesmo tempo, ela vê-se eivada pelos padrões autoritários, oligárquicos e violentos da sociedade brasileira e capitalista em geral (Chauí, 2001).
Nesse contexto complexo, destacam-se ainda os atuais ataques sofridos pela educação pública, nos diferentes níveis, seja por movimentos consistentes com vistas a sua mercantilização ou pela redução de sua capacidade formativa junto aos setores populares. Essa conjuntura requer uma atuação incisiva das classes populares em meio às contradições atuais, forjando em sua resistência processos formativos conectados às dimensões humanistas e emancipatórias.
É nessa perspectiva que está colocada a interface entre Educação Superior e Educação do Campo promovida por meio da realização da política pública de Educação do Campo que, impulsionada pelo PRONERA e pelo PROCAMPO, tem possibilitado importantes experiências que se vinculam ao acesso de parcelas das classes populares à Educação Superior, inclusive redimensionando o próprio perfil de estudantes presentes na universidade pública no Brasil, que passou a contar cada vez mais com uma maior parcela de sujeitos oriundos dos setores populares, dentre eles os povos trabalhadores do campo. Assim, o PRONERA e o PROCAMPO, bem como o arcabouço normativo e constituinte da política educacional brasileira no que tange à Educação do Campo, colocam-se como alvos primeiros de um projeto ultraneoliberal e fundamentalista que é assumido sem nenhuma omissão pelo atual governo.
Destaca-se, portanto, a importância do PRONERA e do PROCAMPO, no marco da política pública de Educação do Campo, que adjacente à luta dos povos trabalhadores do campo no Brasil, contribuem para o fortalecimento do campo enquanto espaço de vida e relações, promovendo o acesso às riquezas culturais produzidas pela humanidade, em suas dimensões política, científica, teórica e pedagógica. Isso tem materializado fecundas práticas que, somadas ao esforço coletivo de ressignificação da função da universidade pública, evidenciam e reivindicam como central a concretização de seu caráter popular por meio da democratização do acesso à educação, incidindo também no seu conteúdo, método e forma.
Fontes
BRASIL. Portaria n. 86, de 1º de fevereiro de 2013: Programa Nacional de Educação do Campo - PRONACAMPO. Ministério da Educação. 2013. Disponível em: http://pronacampo.mec.gov.br/. Acesso em: 20 dezembro 2020.
BRASIL. PRONERA: manual de operações. Ministério do Desenvolvimento Agrário. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3paZ9wo. Acesso em: 20 dez. 2020.
BRASIL. PRONACAMPO: Programa Nacional de Educação do Campo. Ministério da Educação. 2018. Disponível em: https://bit.ly/2EWQewM. Acesso em: 08 maio 2020.
FONEC. Carta de Criação do Fórum Nacional de Educação do Campo. Laboratório de Educação do Campo e Indígena. 2010. Disponível em: https://bit.ly/2QUVS57. Acesso em: 08 maio 2020.
FONEC. FONEC lança nota em defesa do PRONERA e do direito à Educação do Campo. Assesoar. 2020a. Disponível em: https://bit.ly/2EZyDV7. Acesso em: 24 jul. 2020.
FONEC. Residência Profissional Agrícola: mais um ataque ao PRONERA. Brasília: FONEC, 2020b.
INCRA. Formação por meio do PRONERA beneficia 12,5 mil pessoas em todo o País. Portal do INCRA. 05 set. 2016. Disponível em: https://bit.ly/2YXCKYY. Acesso em: 08 maio 2020.
IPEA. II PNERA: relatório da II Pesquisa Nacional sobre a Educação na Reforma Agrária. Brasília: IPEA, 2015.
MEC. Minuta original da proposta da Licenciatura em Educação de Campo. In: MOLINA, Mônica Castagna; SÁ, Laís Mourão (Orgs.). Licenciaturas em Educação do Campo: registros e reflexões das experiências-piloto. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 357-364.
MST. Formação de educadores nos cursos formais: documento elaborado a partir do Seminário realizado em novembro de 2007. In: MST. Educação no MST: Documentos 1987-2015. São Paulo: Secretaria Nacional do MST, 2017, p. 131-142.
PAZZETTI, Estevan Aquiles; FARIAS, Maria Isabel. Localização das Universidades Federais com Licenciatura em Educação do Campo. In: Seminário Nacional da Licenciatura em Educação do Campo. Caderno de Estudos. Laranjeiras do Sul: MEC, 2015, p. 12.
Referências
ALMEIDA, Benedita; ANTONIO, Clésio Acilino. O curso de Pedagogia para educadores do campo - experiência da Universidade Estadual do Oeste do Paraná: história e prática. In: ALMEIDA, Benedita; ANTONIO, Clésio Acilino; ZANELLA, José Luiz (Orgs.). Educação do Campo: um projeto de formação de educadores em debate. Cascavel: EDUNIOESTE, 2008, p. 21-37.
CHAUÍ, Marilena. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Projeto societário contra-hegemônico e educação do campo: desafios de conteúdo, método e forma. In: MUNARIN, Antônio et al. (Orgs). Educação do Campo: reflexões e perspectivas. Florianópolis: Insular, 2011, p. 19-46.
GARCIA, Tania Braga; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Em debate (ainda): por que e para que fazer extensão universitária? Boletim de Extensão e Cultura - CEC/UFG/CAC, v. 1, n. 1, p. 2-2, out./nov. 2011.
HORÁCIO, Amarildo de Souza. Licenciatura em Educação do Campo e movimentos sociais: análise do curso da Universidade Federal de Minas Gerais. 156f. Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Viçosa. Viçosa, 2015.
KOLLING, Edgar Jorge; NÉRY, Irmão; MOLINA, Mônica Castagna (Orgs.). Por uma educação básica do campo: Memória. Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 1999.
LEHER, Roberto. Movimentos Sociais, padrão de acumulação e crise da universidade. In: Reunião Nacional da ANPED. Anais... Florianópolis: UFSC, 2015, p. 1-16.
LEHER, Roberto. Guerra cultural e Universidade pública: o Future-se é parte da estratégia de silenciamento. In: GIOLO, Jaime; LEHER, Roberto; SGUISSARDI, Valdemar (Orgs.). Future-se: ataque à autonomia das instituições federais de educação superior e sua sujeição ao mercado. São Carlos: Diagrama Editorial, 2020, p. 106-149.
LOSS, Adriana Salete et al. (Orgs.). Ensino Superior “em movimento”: aproximações da inclusão pelos princípios da educação popular. Curitiba: Editora CRV, 2018.
LOSS, Adriana Salete; VAIN, Pablo Daniel (Orgs.). Ensino Superior e inclusão: palavras, pesquisas e reflexões entre movimentos internacionais. Curitiba: Editora CRV, 2018.
MARTINS, Fernando José. A pedagogia da terra: os sujeitos do campo e do Ensino Superior. Revista Educação, Sociedade & Culturas, n. 36, p. 103-119, 2012.
MOLINA, Mônica Castagna; ANTUNES-ROCHA, Maria Isabel. Educação do Campo: história, práticas e desafios no âmbito das políticas de formação de educadores - reflexões sobre o PRONERA e o PROCAMPO. Revista Reflexão e Ação, v. 22, n. 2, p. 220-253, jul./dez. 2014.
PINTO, Álvaro Vieira. A questão da Universidade. São Paulo: Cortez, 1994.
RAMOS, Marise Nogueira; MOREIRA, Telma Maria; SANTOS, Clarice Aparecida dos. Referências para uma política nacional de Educação do Campo. Brasília: Secretaria de Educação Média e Tecnológica, Grupo Permanente de Trabalho de Educação do Campo, 2004.
SANTOS, Clarice Aparecida dos. Educação do Campo e políticas públicas no Brasil: o protagonismo dos movimentos sociais do campo na instituição de políticas públicas e a Licenciatura em Educação do Campo na UnB. Brasília: Líber Livro; Faculdade de Educação/Universidade de Brasília, 2012.
SANTOS, Ramofly Bicalho dos; SILVA, Marizete Andrade da. Políticas públicas em educação do campo: Pronera, Procampo e Pronacampo. Revista Eletrônica de Educação, v. 10, n. 2, p. 135-144, 2016.
VERDÉRIO, Alex. A pesquisa em processos formativos de professores do campo: a Licenciatura em Educação do Campo na UNIOESTE (2010-2014). 362f. Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2018.
ZIBECHI, Raúl. Os movimentos sociais latino-americanos: tendências e desafios. In: LEHER, Roberto; SETÚBAL, Marina (Orgs.). Pensamento crítico e movimentos sociais: diálogos para uma nova práxis. São Paulo: Cortez, 2005, p. 198-207.
Notas