Dossiê

Os primórdios da historiografia universitária no Brasil (1930-1950)

The beginnings of university historiography in Brazil (1930-1950)

Los inicios de la historiografía universitaria en Brasil (1930-1950)

José Adil Blanco de Lima
Universidade de São Paulo, Brasil

Os primórdios da historiografia universitária no Brasil (1930-1950)

Revista NUPEM (Online), vol. 13, núm. 28, pp. 121-141, 2021

Universidade Estadual do Paraná

Recepción: 27 Mayo 2020

Aprobación: 16 Diciembre 2020

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar uma descrição sintética dos primórdios da historiografia universi-tária brasileira entre as décadas de 1930 e 1950, tendo como objetos principais de análise os casos da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Distrito Federal (UDF). Para tanto, busca-se refletir sobre o contexto de fundação dessas universidades, sua organização de inspiração francesa, o corpo docente formado por professores franceses e brasileiros, além das maneiras de se lecionar a história e de se preparar os alunos para a atividade de pesquisa.

Palavras-chave: Historiografia univer-sitária, Historiografia brasileira.

Abstract: The purpose of this article is to present a synthetic description of the beginnings of Brazilian university historiography between the 1930s and 1950s, having as main objects of analysis the cases of the University of São Paulo (USP) and the University of the Federal District (UDF). To this end, we seek to reflect on the founding context of these universities, their French-inspired organization, the teaching staff formed by French and Brazilian professors, in addition to the ways of teaching and preparing students for research activity.

Keywords: University historiography, Brazilian historiography.

Resumen: El propósito de este artículo es presentar una descripción sintética de los inicios de la historiografía universitaria brasileña entre las décadas de 1930 y 1950, teniendo como principales objetos de análisis los casos de la Universidad de São Paulo (USP) y la Universidad del Distrito Federal (UDF). Con este fin, buscamos reflexionar sobre el contexto fundación de estas universidades, su organización de inspiración francesa, el personal docente formado por profesores brasileños y franceses, además de las formas de enseñar historia y preparar a los estudiantes para la actividad de investigación.

Palabras clave: Historiografía universi-tária, Historiografía brasileña.

A história na universidade

Quando foram fundadas na Idade Média, as universidades eram instituições destinadas a ensinar e a transmitir bens culturais a uma elite letrada. Essa condição se alterou a partir das grandes reformas universitárias que ocorreram na Europa e nos Estados Unidos a partir do século XIX. O século XIX, que já fora conhecido como “o século da história”, foi uma época em que as pessoas ganharam confiança nos métodos da ciência, que realizava impressionantes conquistas - por exemplo, energia elétrica, locomotivas e estradas de ferros, navegação a vapor, etc. Esse certamente foi um momento em que quase ninguém duvidava do progresso, pois era algo que parecia evidente demais para ser negado (Hobsbawm, 2012).

Durante o século XIX, as universidades europeias e norte-americanas foram reformadas para suprir as fortes exigências de produção de pesquisas científicas. Ao estabelecer a produção de conhecimento como preocupação central, elas institucionalizaram uma pluralidade de disciplinas especializadas, adotando um modelo de divisão de trabalho pelo qual professores e pesquisadores treinavam discípulos para colaborar em suas pesquisas, criando assim uma marcha regular e sistemática para o avanço de cada disciplina. Se até fins do século XVIII a maior parte do conhecimento científico era produzido em Academias Ilustradas ou em sociedades eruditas, a partir do século XIX a ciência passou a ser majoritariamente realizada no âmbito universitário. Foi durante esse momento que a história conquistou foros de cientificidade, ao lado das demais ciências naturais (Charle; Verger, 1995).

No caso específico brasileiro as coisas foram um pouco diferentes. Desde 1838, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) adotou o método histórico mais avançado que se ensinava nas universidades europeias de sua época; entretanto, o IHGB não se apropriou do modelo universitário que se impunha na Europa na mesma época. De maneira geral, todas as instituições culturais e artísticas implementadas durante o Império de D. Pedro II seguiram a lógica do funcionamento das Academias Ilustradas europeias do século XVIII. Ao contrário do modelo universitário, essas organizações não constituíam locais de competição; eram, na realidade, espaços de eleitos e escolhidos com bases em relações sociais que acabavam criando uma profunda marca elitista. Essas agremiações históricas cultivavam o hábito do elogio mútuo e do autoelogio, alimentando também a tendência à oratória e à retórica (Gontijo, 2013).

Em razão disso, diversos autores chegaram a considerar a fundação das primeiras universidades brasileiras, na década de 1930, um marco na história da historiografia brasileira, o momento em que se iniciava a superação da tradição bacharelesca do “homem de letras”1, típica das instituições culturais e artísticas herdadas do século XIX. A história universitária pretendia romper com o ecletismo de formação que vigorava entre os membros do IHGB - que eram, em sua maioria, bacharéis de Direito, médicos, engenheiros, diplomatas e literatos - e preparar novos pesquisadores mais especializados. Esse desejo de ruptura, por sua vez, estava diretamente associado ao projeto modernista de romper com os laços arcaicos e aristocráticos que marcaram a nossa tradição intelectual oitocentista, de intelectuais polígrafos, autodidatas, presos à cultura bacharelesca (Nicodemo; Santos; Pereira, 2018).

Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, em um texto de 19482, denunciou o “vício de nossa formação brasileira”: a tendência de se considerar o conhecimento e a sabedoria como um talento espontâneo, um dom natural de nascença. Sérgio Buarque saudava a criação das primeiras universidades brasileiras, considerando-as como um novo espaço que disciplinava os futuros historiadores na perseverança e na inquirição metódica, típicas do “espírito científico” (Holanda, 1996, p. 39). Em outro de texto de 19513, no qual analisava a produção historiográfica brasileira da primeira metade do século XX, o mesmo autor destacou a importância da vinda de mestres franceses para a fundação das primeiras universidades do país: “No que se refere à história, inclusive à história do Brasil, em seus diferentes setores, foi certamente decisiva e continua a sê-lo, sobre as novas gerações, a ação de alguns daqueles mestres: de um Jean Gagé, por exemplo, e de um Fernand Braudel em São Paulo; de um Henri Hauser e de um Eugène Albertini, na hoje extinta Universidade do Distrito Federal” (Holanda, 2008a, p. 615). Nessa mesma linha, Francisco Iglésias considerou o estabelecimento da Lei Francisco Campos, de 18 de abril de 1931, que antevia a criação das primeiras universidades no Brasil, um marco da historiografia brasileira. Para ele, foi apenas com os primeiros cursos universitários que a história deixou de ser “distração, lazer ou equívoco beletrista, de endeusamento de grupos, classes ou pátria, como se dava antes” (Iglésias, 2000, p. 230).

Em suma, a vinda de missões de professores franceses para colaborar com a formação das primeiras universidades brasileiras, nas décadas de 1930 e 1940, foi, sem dúvidas, um momento bastante significativo do processo de desenvolvimento das ciências humanas no Brasil. Esse momento é frequentemente identificado como o primórdio das ciências humanas contemporâneas, pois, a partir dele, os cursos universitários passaram a assumir um papel central, tanto na definição da identidade das disciplinas quanto nos processos de produção e de desenvolvimento daquilo que consideramos hoje um conhecimento científico, um saber legítimo.

A fundação da USP e a vinda da missão universitária francesa

Com a Constituição de 1891, a Primeira República adotava um modelo federalista que concedia bastante autonomia para os estados. Nessa configuração, o estado de São Paulo se transformou numa das maiores forças políticas e econômicas do país. Durante a década de 1920, quando São Paulo já era o maior centro industrial brasileiro, um grupo formado por intelectuais, jornalistas, educadores e políticos reuniu-se em torno do jornal “O Estado de S. Paulo” com o objetivo de reformar o Brasil. Entre as ambições deles estava a criação de uma universidade em São Paulo, uma instituição que funcionasse ao mesmo tempo como centro de pesquisa científica e como local de formação de quadros dirigentes e professores para o ensino secundário. Contudo, os paulistas viram seu poder político decrescer drasticamente com a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas. Como uma forma de reação, as elites políticas paulistas, profundamente insatisfeitas com o poder perdido, transformaram seu estado em foco de oposição e de resistência ao centralismo do Governo de Vargas (Schwartz; Starling, 2015).

Como observou Simon Schwartzman, “a derrota de São Paulo na Revolução Constitucionalista de 1932 foi um catalisador fundamental para a retomada da ideia de uma universidade em terras paulistas” (Schwartzman, 1979, p. 193). A elevação cultural do estado era vista como uma forma de compensar as recentes derrotas sofridas pelos paulistas. A USP, fundada em janeiro de 1934, além de formar professores para os ensinos primário e secundário, pretendia fazer ciência e preparar cientistas mediante pesquisas livres e desinteressadas do mais alto nível. Ela foi criada sob forte inspiração do modelo institucional das universidades francesas, especialmente da Sorbonne. Com os regimes nazifascistas em franca ascensão na Europa, a escolha do modelo francês fornecia aos fundadores da USP uma alternativa liberal, bastante sintonizada com a tradição cultural francesa no Brasil (Schwartzman, 1979).

Logo no início da década de 1930, o primeiro diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), Theodoro Ramos, foi à França recrutar professores para a criação dos cursos iniciais da USP. A primeira missão universitária francesa, que chegou ao Brasil, em 1934, foi composta pelos professores Robert Garric (Literatura), Paul-Arbousse Bastide (Sociologia), Étienne Borne (Filosofia), Pierre Deffontaines (Geografia) e Émile Coornaert (História). Essa foi uma espécie de delegação transitória, pois a maioria de seus membros - à exceção de Paul-Arbousse Bastide e Pierre Deffontaines - não tinha a intenção de permanecer no país mais do que os meses necessários para a inauguração dos cursos. A segunda missão, formada por jovens professores promissores ainda em início de carreira, chegou em 1935, para permanecer por três anos (o tempo do curso completo). Entre eles estavam Claude Lévi-Strauss (Sociologia), Jean Maügué (Filosofia), Pierre Monbeig (Geografia), Pierre Houcarte (Literatura) e Fernand Braudel (História). Alguns outros professores vieram mais tarde, mas, dessa vez, isoladamente. No caso específico da história, Jean Gagé substituiu Braudel em 1938 e permaneceu no Brasil até 1945, após o término da Segunda Guerra Mundial. Émile G. Léonard lecionou entre 1948 e 1949 (Lefèvre, 1993).

Interessante destacar que, seguindo o modelo universitário francês, a USP adotou o regime de cátedras, que esteve sempre presente desde a fundação das primeiras universidades europeias dos séculos XII e XIII. Nesse regime, a cátedra é regida por um titular em determinada área do conhecimento, que deve desempenhar funções administrativas, de ensino e de pesquisa. No caso do curso de História e Geografia da USP, “cada cadeira, de acordo com a existência de verbas, poderia contratar para períodos temporários, de um a dois anos, ou em regime permanente, com tempo parcial de trabalho, de 1 a 3 assistentes” (Roiz, 2012, p. 47).

O papel do assistente do professor catedrático foi fundamental, pois, ao desempenhar as funções desse cargo, os recém-formados aprendiam a elaborar e planejar aulas, disciplinas e cursos. Como assistentes, os jovens formados observavam de perto o funcionamento administrativo da cátedra e iniciavam suas primeiras pesquisas acadêmicas mais desenvolvidas. Assim, trabalhar um período nessas condições era um início de carreira bastante comum para qualquer um que almejasse um dia a posição de professor catedrático.

Os primeiros concursos para as vagas de professor catedrático da USP começaram a ocorrer no final da década de 1930, à medida que os docentes franceses retornavam a seu país natal. A partir dos anos 1940, começam a aparecer os primeiros doutores e livres-docentes formados pela USP. Para a obtenção dos títulos era obrigatória a defesa de uma tese original, orientada por um professor catedrático, diante de uma banca examinadora composta por cinco especialistas da área. Os candidatos aprovados nos primeiros concursos de cátedras de história da USP foram, em sua grande maioria, ex-alunos do curso de História e Geografia, que mais tarde se tornaram assistentes de professores catedráticos, como Eurípedes Simões de Paula, Eduardo d’Oliveira França, Astrogildo Rodrigues de Mello e Alice P. Canabrava (Roiz, 2012).

Os mestres franceses

Émile Coornaert foi o primeiro professor francês a ocupar a cátedra de História da Civilização da USP. Ele havia sido aluno de importantes nomes da história social e econômica francesa da virada do século XIX para o XX, tais como Henri Pirenne, Ferdinand Lot e Henri Hauser. Na década de 1930, Coornaert já lecionava na “École Pratique des Hautes Études” e colaborava periodicamente na revista dos “Annales d’histoire économique et sociale” com artigos sobre o trabalho industrial no período medieval (Müller, 1994). Não se sabe muito a respeito das atividades de Émile Coornaert no Brasil. Ao que tudo indica, ele não foi tão influente como os outros professores que vieram na mesma missão, como Pierre Deffontaines e Paul-Arbousse Bastide. Nos depoimentos dos ex-alunos das primeiras turmas do curso de História e Geografia da USP, seu nome foi mencionado raras vezes - geralmente como um professor que ensinava procedimentos metodológicos novos, mas que teve uma passagem sem brilho pela instituição (Roiz, 2012). Apesar de não ter causado tanto impacto em seus alunos, Coornaert aproveitou a estadia no Brasil para conhecer a historiografia local. Em um artigo de 1936, observou que já existiam algumas obras historiográficas bastante importantes no país, com qualidade igual ou superior ao que se produzia na Europa, embora de maneira muito isolada. Em função disso, estava convencido de que as missões de mestres franceses eram fundamentais para treinar, guiar e estimular futuros historiadores brasileiros.

Em 1935, Coornaert foi substituído por Fernand Braudel, um autor que veio a se tornar um dos mais importantes e poderosos historiadores do século XX. Porém, foi somente após a temporada no Brasil que a carreira de Braudel decolou. Em 1937 ele se tornou professor da “École Pratique des Hautes Études” e, dez anos mais tarde, publicou “O Mediterrâneo”, livro que se tornou um clássico da historiografia mundial, traduzido para dezenas de línguas. No início dos anos 1950, Braudel se tornou professor do Collège de France. Quando Lucien Febvre morreu, em 1956, Braudel o substituiu na direção da revista dos Annales e da VI seção da “École Pratique des Hautes Études. A partir desse momento, ele conquistou uma posição de poder institucional ímpar na França, fazendo com que os historiadores vinculados ao grupo dos Annales dominassem os principais meios midiáticos - livros, jornais, programas de rádio e televisão, etc. (Burke, 1990). Fernand Braudel obteve, assim, muitas glórias e reconhecimento vida. Criou ao seu redor importantes discípulos, como Marc Ferro, Jean Delumeau, Pierre Chaunu, Frédéric Mauro, Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie. Entretanto, na época em que foi recrutado para vir ao Brasil, ele era apenas um jovem e promissor professor de liceu, em início de carreira.

No Brasil, Braudel realizou conferências na Faculdade de Direito e no Instituto de Educação de São Paulo, publicou alguns artigos no jornal O Estado de S. Paulo”, além de ministrar seu curso regular sobre a História da Civilização, na USP (Lima, 2009). No Anuário da FFCL, Braudel (1937) deixou algumas pistas sobre quais eram os objetivos de seus cursos na USP. Ele afirmava que os futuros historiadores não deveriam limitar seu campo de observação nem se prender somente aos aspectos políticos, sociais, econômicos ou culturais da história; pelo contrário, os futuros historiadores precisavam apreender a realidade histórica como um todo. Segundo os preceitos defendidos pelo movimento dos Annales, Braudel orientava os futuros pesquisadores brasileiros a recorrer à interdisciplinaridade. As ciências sociais precisavam ser vistas como disciplinas solidárias, fundamentais para o historiador que almejasse recompor a totalidade da vida social. Reconhecendo, ao mesmo tempo, a necessidade de especialização, Braudel entendia que uma de suas principais missões como professor era encaminhar os melhores estudantes brasileiros para o aprendizado das disciplinas auxiliares da história - arqueologia, epigrafia, paleografia, numismática, etc. -, a fim de que fossem capazes de realizar pesquisas históricas eruditas e realmente científicas.

De acordo com o depoimento de um de seus discípulos, Eduardo d’Oliveira França, Braudel buscava dedicar atenção especial para aqueles que se destacassem mais, convidando esses alunos para conversas mais longas fora da universidade, em cafés ou, como ocorria muitas vezes, em almoços em sua casa. França assim descreveu o convívio com o mestre francês: “Para ele, alunos eram somente os que elegia. Tive a sorte de estar entre esses, aos quais Braudel proporcionava uma convivência a que não estávamos acostumados [...] Constantemente indicava o que deveríamos fazer quando fossemos professores [...] Foi ele quem nos informou sobre a escola dos Annales, que tanto mudara a historiografia de então” (França, 1994, p. 152-153). Entre os alunos “eleitos” por Braudel, vários se destacaram posteriormente como importantes historiadores brasileiros, como Caio Prado Júnior, Alice P. Canabrava, Eurípedes Simões de Paula e o próprio Eduardo d’Oliveira França (Rodrigues, 2013).

Em 1937, Braudel foi substituído por Jean Gagé, um especialista de história antiga, sobretudo da história de Roma. Antes de chegar ao Brasil, Gagé havia frequentado a “École Normale Supérieure”, no início da década de 1920, lecionado em alguns liceus de Paris e, desde 1928, ocupava uma cadeira de História Romana na Universidade de Estrasburgo, na França. Após ter ficado quase oito anos em nosso país, até hoje conhecemos muito pouco a respeito da atuação de Jean Gagé no Brasil. Sabemos que ele regeu a cadeira de História da Civilização entre 1938 e 1941. No ano seguinte, com a reforma universitária, repartiu a cadeira em duas: História Antiga e Medieval e História Moderna e Contemporânea - Gagé ocupou a segunda, e seu assistente, Eurípedes Simões de Paula, a primeira. Na FFCL da USP, Gagé colaborou para a criação a “Sociedade de Estudos Históricos” e da “Revista de História”, além de orientar várias das primeiras teses de doutorado em História daquela instituição, como as de Eurípedes Simões de Paula (1942), Astrogildo Rodrigues de Mello (1942), Alice P. Canabrava (1942) e Olga Pantaleão (1944) (Roiz, 2012).

A Cátedra de História da Civilização Brasileira da USP

Como vimos, os primeiros catedráticos da USP foram os mestres franceses. Apenas as cadeiras de assuntos brasileiros foram ocupadas por intelectuais nativos, como a de Etnografia Brasileira e Tupi-Guarani, assumida por longos anos por Plínio Marques da Silva Ayrosa, e a de História da Civilização Brasileira, ocupada por Afonso d’Escragnole Taunay (1934-1937), Alfredo Ellis Jr. (1939-1956) e Sérgio Buarque de Holanda (1959-1968).

Afonso d’Escragnole Taunay era um engenheiro civil, formado na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, que veio a se tornar um dos mais prestigiosos historiadores paulistas no início do século XX. Discípulo de Capistrano de Abreu, ele lecionou história por longos anos no prestigioso Colégio São Bento, em São Paulo. Em 1911, Taunay tornou-se membro do IHGB e de sua congênere paulista, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP). Em 1917, tornou-se diretor do célebre Museu Paulista, onde promoveu uma reorganização radical do Museu do Ipiranga, transformando-o de um museu de História Natural para um museu de História do Brasil. Um de seus objetivos principais foi aproveitar as comemorações do Centenário da Independência (1922) para apresentar uma versão da história do Brasil a partir do ponto de vista de São Paulo. Nesse cargo, ele estabeleceu intercâmbios com diversas instituições nacionais e internacionais, mobilizando uma rede de pesquisadores encarregados de buscar, copiar e enviar documentação de arquivos estrangeiros e nacionais. Taunay se considerava um discípulo de Capistrano de Abreu, mestre que lhe sugerira a temática do estudo das bandeiras paulistas. Em 1924, ele lançou o primeiro dos 11 volumes de sua monumental “História Geral das Bandeiras Paulistas” (1924-1950) e, em 1929, foi ele foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) (Anhezini, 2011).

De tal forma, podemos perceber que, quando foi convidado para ser o primeiro catedrático de História da Civilização Brasileira da USP, ele já era um historiador e intelectual de imenso prestígio, tanto no âmbito regional quanto nacional. Nos cursos que ministrou à frente dessa cátedra, Afonso Taunay buscou apresentar aos alunos uma história que extrapolava os limites temáticos da história militar e administrativa (aquilo que os franceses entendiam por uma histoire événementièlle). Ao tratar de temas como a história das bandeiras e a história do café no Brasil, ele ensinava aos alunos da USP uma história dos movimentos coletivos, da vida econômica, da sociedade, dos costumes e dos comportamentos humanos. Nesse sentido, Taunay seguia a trilha aberta pelos estudos de seu mestre, Capistrano de Abreu.

Descrevendo a atuação de Taunay como professor catedrático da USP, Karina Anhezini observou:

Nos anos em que ministrou as aulas de História da Civilização Brasileira, Taunay enfatizou os assuntos voltados para a história econômica, social, literária e artística, que, segundo ele, ainda precisavam de mais cultores, e recorreu às fontes iconográficas para ensinar aos alunos o valor que essa documentação desempenhava na realização dessa história dos costumes (Anhezini, 2011, p. 74).

Em 1937, em razão do impedimento criado pela Constituição de 1937, do Estado Novo, que proibia a acumulação de cargos públicos, Taunay, que também era diretor do Museu Paulista, acabou abandonando a cátedra de História da Civilização Brasileira da USP. Ele foi substituído por Alfredo Ellis Jr., que àquela altura já era um dos principais ideólogos do regionalismo paulista. Ellis Jr. fazia parte de uma das mais tradicionais famílias de São Paulo, de uma linhagem de fazendeiros, cultivadores de café, que atuavam na política regional, aqueles que são conhecidos como quatrocentões, ou de família quatrocentona. Ele foi aluno de Taunay no Colégio São Bento e, mais tarde, formou-se na Faculdade de Direito de São Paulo. Durante os anos 1920, vinculou-se ao Movimento Verde-Amarelo, encabeçado por Menotti del Pichia, Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Guilherme de Almeida. Sempre muito interessado em história, tornou-se membro do IHGSP e da Academia Paulista de Letras (APL). Membro do Partido Republicano Paulista (PRP), Ellis Jr. foi eleito deputado estadual duas vezes (entre 1925 e 1930 e, depois, entre 1934 e 1937). Nas duas ocasiões, teve de se afastar da política em razão dos esforços centralizadores de Getúlio Vargas. Com a Revolução de 1930, após ser afastado da Câmara dos Deputados, acabou substituindo Afonso Taunay na vaga de professor de história do Colégio São Bento. Em 1937, quando foi afastado de outro mandato político, em razão do golpe do Estado Novo, mais uma vez ele acabou substituindo Taunay, mas desta vez na cadeira de História da Civilização Brasileira da USP. Para o concurso de cátedra, Ellis Jr. defendeu a tese “Meio século de bandeirismo, 1590-1640”, em 1939 (Roiz, 2012).

Quando se tornou professor catedrático da USP, Ellis Jr. já era um autor de obra bastante numerosa. Àquela altura, já havia publicado dezenas de estudos históricos, abrangendo artigos na imprensa e livros de circulação nacional, além de várias obras de ficção e propaganda política. Nas décadas de 1920 e 1930, concentrou-se no debate da mestiçagem luso-indígena e do movimento bandeirante; elaborou suas principais teses sobre a formação dos paulistas, vistos como uma sub-raça de gigantes, em três livros principais: “O bandeirismo paulista e o recuo do meridiano” (1923), “Raça de gigantes” (1926) e “Os primeiros troncos paulistas e o cruzamento euro-americano” (1935). Todas essas obras foram elaboradas em um período muito tenso entre as forças políticas e econômicas regionais e as do Estado nacional, o que explica o seu tom bastante polêmico e engajado. Nesses livros, o mameluco, entendido como fruto do cruzamento entre português e índio, assumia um papel histórico sem paralelos no passado colonial. Ao entrelaçar mestiçagem e identidade regional, Ellis Jr. propunha um modelo ideal de miscigenação que menosprezava o papel do negro na formação de São Paulo. Ele se esforçou para mostrar as bases científicas e históricas da especificidade do “caráter” paulista, que, a seu ver, fundamentava o papel de liderança econômica na República (Monteiro, 1994). Assim, a história paulista era apresentada, em linhas gerais, a partir de três aspectos fundamentais: “o isolamento do planalto durante todo o seu período formativo, o caráter específico da mestiçagem luso-indígena (e a correspondente ausência do negro africano) e o fenômeno sui generis do bandeirantismo” (Monteiro, 1994, p. 83). Por fim, é importante destacar que Ellis Jr. recorria a algumas interpretações antropológicas de fins do século XIX que começavam a ser bastante questionadas nas primeiras décadas do século XX, como o evolucionismo biológico, o determinismo geográfico e a antropometria (Ferreira, 2001).

O período à frente da cadeira de História da Civilização Brasileira foi, para Ellis Jr., uma fase de sistematização didática de suas principais doutrinas e hipóteses. Entre 1939 e 1951, ele publicou mais de 13 livros didáticos e redigiu numerosos boletins da FFCL. Quanto aos cursos de História do Brasil, Ellis Jr. optou por dar continuidade ao programa estabelecido anteriormente por Afonso Taunay, alterando-o apenas em alguns poucos detalhes. Ele manteve o objetivo de ensinar a história dos costumes atenta às questões sociais e econômicas, centrada na história dos bandeirantes e do café (Monteiro, 1994). Além disso, ele chegou a orientar duas teses de doutorado em história do Brasil, a de José Ribeiro Quirino (1943) e a de Zamela Mafalda (1951) (Roiz, 2012).

Sérgio Buarque de Holanda foi o terceiro e último catedrático de História da Civilização Brasileira da USP. Além de ter sido uma figura relevante no movimento modernista da década de 1920, de ter participado de importantes revistas como “Klaxon” e “Estética” e de ter escrito “Raízes do Brasil” (1936), um dos mais notáveis ensaios sociológicos sobre o país, ele também se engajou profundamente na criação e no desenvolvimento das universidades e das demais instituições culturais no Brasil.

Apesar de ser paulista, Sérgio Buarque viveu longos anos no Rio de Janeiro, onde se formou na Faculdade de Direito, em 1925. No mesmo ano em que lançou “Raízes do Brasil” (1936), ele se tornou professor-assistente de dois mestres franceses que vieram à então capital do Brasil colaborar com a fundação da UDF: Henri Hauser (história) e Henri Tronchon (literatura comparada). Quando a UDF foi fechada, em 1939, pelo Estado Novo, Sérgio Buarque começou a trabalhar no Instituto Nacional do Livro (INL). Em 1944, transferiu-se para a Biblioteca Nacional; dois anos mais tarde, retornou para São Paulo e substituiu Afonso Taunay na direção do Museu Paulista. Ele também promoveu uma profunda reorganização no Museu do Ipiranga. Se sob a direção de Taunay o Museu Paulista havia ganhado o caráter de museu da história nacional e da história paulista (idealização do bandeirante), sob a direção de Sérgio Buarque, a instituição transformou-se em um museu de estudos antropológicos e etnográficos (Françozo, 2004).

Enquanto foi diretor do Museu Paulista, Sérgio Buarque de Holanda também se tornou professor de sociologia na Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), a partir de 1947. No final da década de 1940, tomou parte das operações da Unesco, que havia sido formada em Paris logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Em 1949, foi convidador por Fernand Braudel e Lucien Febvre para proferir palestras sobre a cultura material na história colonial do Brasil. Por convite da Unesco, também chegou a lecionar, entre 1952 e 1954, na recém-fundada cátedra de Estudos Brasileiros da Universidade de Roma. Em suma, como bem destacou Thiago Lima Nicodemo, Sérgio Buarque

dedicou-se ao desenvolvimento de um campo especializado de produção do conhecimento acadêmico, aliado a uma política de constituição de acervos, preservação de patrimônio histórico, artístico, arqueológico e etnológico, bem como à sistematização de museus e periódicos e circulação nacional e internacional de intelectuais (Nicodemo, 2012, p. 109).

Podemos perceber, portanto, que quando foi convidado a substituir Ellis Jr., Sérgio Buarque já era um intelectual reconhecidíssimo, de largo prestígio nacional e internacional. Ao contrário de seus antecessores na cadeira de História da Civilização Brasileira, ele possuía uma carreira institucional longa e era bastante familiarizado com os estudos universitários de nível superior. Além disso, Holanda havia publicado “Monções” (1945) e “Caminhos e Fronteiras” (1957), dois importantes livros sobre a exploração dos sertões brasileiros entre os séculos XVII e XVIII, seguindo a fenda aberta por Capistrano de Abreu, que buscava deixar de lado o estudo exclusivo do litoral e dar mais atenção ao processo de penetração e povoamento do interior do território brasileiro. Nessas duas obras, Holanda estudava o passado das populações paulistas, as andanças dos bandeirantes pelo sertão em busca de metais preciosos e cativos indígenas e, sobretudo, a atividade comercial que se desenvolveu nos caminhos terrestres e marítimos (Holanda, 2008b, 2014). Ao contrário de seus antecessores de cátedra, Sérgio Buarque buscou abordar o passado paulista distanciando-se da idealização do bandeirante. Como destacou Laura de Mello e Souza:

Se Ellis Jr. havia destacado a importância do mameluco sob perspectiva ainda presa à concepção de raça, Sérgio procurou desvendar seu papel como intermediário entre dois mundos, debruçando-se sobre a constituição de uma cultura material específica, na qual traços indígenas e europeus se articularam e tornaram possível a adaptação dos adventícios portugueses ao novo meio (Souza, 2014, p. 20).

Sérgio Buarque foi convidado para substituir informalmente Ellis Jr. em 1956. Para se submeter ao concurso de cátedra, ele teve antes que realizar um curso de mestrado na ELSP, entre 1955 e 1957, e apresentou, em 1958, a tese de cátedra, “Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil, publicada em livro no ano seguinte. Na realidade, Holanda já havia criado importantes vínculos com a USP desde o tempo que fora diretor do Museu Paulista, tendo participado de das bancas examinadoras dos concursos de cátedra de Astrogildo Rodrigues de Mello (1946) e de Eduardo d’Oliveira França (1951), e para os concursos de livre-docência de Alice P. Canabrava (1946) e de Odilon Araújo Cellet (1946) (Nicodemo, 2012).

Enquanto professor catedrático, durante a década de 1960, Sérgio Buarque orientou dezenas de teses de doutorado, sobre os mais diversos temas da história do Brasil, como: a lavoura canavieira em São Paulo, o pensamento e a historiografia de Robert Southey, a escravidão negra em São Paulo, a Revolução de 1930, entre outros (Caldeira, 2008). De acordo com uma de suas ex-alunas, Maria Odila Dias, Sérgio Buarque

animava, emprestava livros, orientava generosamente [...] Sem pompa e sem corte pessoal, acolhia generosamente orientandos de todas as proveniências [...] Facilitava aos estudantes interessados o acesso ao intercâmbio com Universidades da Inglaterra e dos Estados Unidos, onde mantinha boas relações com os melhores historiadores nacionais e com os pioneiros brasilianistas, como Stanley Stein, Richard Morse e, em Londres, o amigo, Charles Boxer (Dias, 1994, p. 270-271).

Entre as atividades mais importantes que Sérgio Buarque realizou na USP, devemos destacar a coordenação do projeto editorial da coleção História Geral da Civilização Brasileira (HGCB), assumida a partir de 1959, a convite de Jean-Paul Monteil, diretor francês da Editora Difusão Europeia do Livro (Difel). A ideia principal era seguir os modelos da “História Geral das Civilizações, dirigida por Maurice Crouzet, e da “História Geral das Ciências, de René Taton, ambos também publicados pela Difel. A HGCB foi a primeira obra coletiva de história do Brasil, certamente um dos mais importantes empreendimentos editoriais do país no que diz respeito ao campo dos estudos históricos brasileiros no século XX. Com a contribuição de colaboradores especializados no estudo de temas próprios de nosso meio social, o livro buscava abarcar os aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais da história nacional. De certa forma, a HGCB foi uma das primeiras obras coletivas da historiografia brasileira concebidas e realizadas sob os princípios da interdisciplinaridade. Além de organizador do projeto, Sérgio Buarque também contribuiu com diversos textos e com o sétimo volume, “Do Império à República (1972), escrito inteiramente por ele mesmo (Caldeira, 2008).

Outro importante empreendimento de Sérgio Buarque na USP foi a criação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), em 1962. Projetado para ser um centro interdisciplinar de pesquisas e documentação sobre a história e as culturas do Brasil, seu objetivo primordial era facilitar a reflexão sobre a realidade brasileira, articulando diferentes áreas das humanidades. Esse caráter interdisciplinar era representado pelo primeiro Conselho Administrativo do IEB, composto por historiadores, geógrafos, antropólogos, economistas, sociólogos e arquitetos. Como destacou Caldeira, “ao congregar diferentes disciplinas especializadas nos estudos e pesquisas referentes ao Brasil, o IEB constituiu-se como um area studies center dirigido para os estudos brasileiros” (Caldeira, 2008, p. 96). Sérgio Buarque planejou o IEB como alternativa para superar as limitações do sistema de cátedras da USP. Para ele, o regime de cátedras oferecia poucas condições para a formação de pesquisadores de alto nível. As responsabilidades estritas e os poucos recursos constituíam, sob sua perspectiva, verdadeiros obstáculos à aplicação e ao desenvolvimento científico. Assim, o sistema de cátedras atendia mais à finalidade de formar professores para o ensino secundário do que para produzir pesquisa especializada. A criação do IEB pretendia, portanto, suprir essa falha, favorecendo a produção e o desenvolvimento de pesquisas de alto nível sobre o Brasil. É importante destacar que a criação do IEB aconteceu em um momento de efervescência cultural e expansão da ciência e do ensino universitário no Brasil. Em 1960, fundou-se a Universidade de Brasília (UnB) - idealizada por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, desenha por Oscar Niemeyer - na nova e recém-inaugurada capital do país. No mesmo ano, criou-se a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e, em 1961, ocorreu o I Simpósio da Associação de Professores Universitários de História, a APUH, que mais tarde assumiu a nomenclatura atual, ANPUH. Portanto, o IEB surge em um contexto no qual os estudos universitários e científicos sobre o Brasil se expandiam e se consolidavam (Caldeira, 2008). Em uma das últimas entrevistas que deu na vida4, Sérgio Buarque de Holanda considerava que a criação do IEB e a aquisição da preciosa biblioteca brasiliana do modernista Yan de Almeida Prado, com mais de 10 mil volumes sobre o Brasil, foram sua maior contribuição à USP.

Quando a revista “Estudos Avançados lançou, em 1994, um volume sobre os 60 anos da USP, diversos professores e ex-alunos elaboraram uma crônica das origens da universidade com base em perfis de mestres ilustres5. A leitura desse volume permite perceber que a memória do curso de História da USP foi construída mediante a presença de professores franceses na cadeira de História da Civilização. Os mestres estrangeiros são lembrados pelas gerações mais novas como atores fundamentais para a renovação dos estudos históricos no país e como os principais divulgadores da moderna história social e econômica praticada pelo movimento dos Annales. Já os primeiros professores brasileiros que ocuparam a cadeira de História da Civilização Brasileira, Afonso Taunay e Alfredo Ellis Jr., são sempre lembrados como historiadores “tradicionais”, ainda muito ligados aos modos dos institutos históricos e geográficos. Os ex-alunos dos professores catedráticos geralmente consideram que apenas com o ingresso de Sérgio Buarque de Holanda, em 1959, os estudos históricos sobre o Brasil se modernizaram na USP (Novais, 1994).

O ensino de História da UDF

A UDF foi fundada em 1935, quando o prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, iniciou uma série de reformas sociais nas áreas da saúde e da educação. Visando aumentar a autonomia do Distrito Federal em relação ao governo central da República, ele encarregou Anísio Teixeira, que era vinculado ao movimento da Escola Nova, para projetar uma Universidade do Distrito Federal. De maneira semelhante ao modelo da USP, a universidade projetada por Anísio Teixeira estava orientada à produção do saber. Além de preparar professores para o ensino secundário, a UDF também foi planejada para ser um lugar de atividade científica livre e de produção cultural desinteressada (Schwartzman, 1979).

A UDF não dispôs da mesma rede de apoio que a USP, que foi amplamente financiada pela elite paulista, nem contou com instalações novas e adequadas. Entretanto, a universidade foi formada por professores mais qualificados do que sua congênere paulista: contou com a colaboração do que havia de melhor entre a intelectualidade brasileira da época, como Arthur Ramos, Afonso Arinos de Melo Franco, Hermes Lima, Gilberto Freyre, Lúcio Costa, Heitor Villa-Lobos, Cândido Portinari, Sérgio Buarque de Holanda, Delgado de Carvalho, entre outros. Mesmo a missão de professores franceses que foi recrutada por Afrânio Peixoto para colaborar com a UDF, e que chegou ao Rio de Janeiro em 1936, era mais qualificada do que aquela que formou a USP. Henri Hauser (História Moderna e Econômica), Pierre Deffontaines (Geografia Humana), Robert Garric (Literatura), Gaston Leduc (Economia Social), Étienne Souriau (Filosofia e Psicologia), Henri Tronchon (Literatura Comparada), Eugène Albertini (História Antiga). Vários deles já eram professores universitários consagrados (Hauser e Albertini, por exemplo) ou estavam no auge de suas carreiras (como Tronchon e Deffontaines) (Ferreira, 2013).

Eugène Albertini atuou na cadeira de História Antiga da UDF. Quando chegou ao Brasil, ele já havia sido professor de línguas clássicas na Universidade de Friburgo, professor de História Antiga na Faculdade de Letras de Argel e professor de Civilização Romana no “Collège de France”. Em 1929 ele havia publicado um importante volume sobre o Império Romano na prestigiosa coleção Peuples et Civilisations, dirigida por Louis Halphen e Philipp Sagnac, além de ter sido membro do comitê de redação da Revue Historique e colaborador dos Annales (Julien, 1941). Quanto a sua atuação no Brasil, sabemos que ele ministrou uma aula inaugural na UDF, onde discorreu sobre o estado dos estudos sobre a civilização romana antiga, destacando suas técnicas e suas dificuldades (Albertini, 1937). Albertini reivindicava uma história dos povos e das civilizações que fosse capaz de superar os limites da história política tradicional, centrada unicamente em questões administrativas, diplomáticas e militares. Apesar do pouco tempo que permaneceu no Brasil, o professor francês também parece ter tido uma influência significativa sobre seus alunos brasileiros, que fundaram, por iniciativa própria o Centro de Estudos Eugène Albertini em sua homenagem. Um de seus ex-alunos, Eremildo Luiz Viana, destacou: “Estabelecido entre nós um curso de Civilização Romana, fomos felizes em receber, como regente da cadeira, um mestre da têmpera de Eugène Albertini” (Viana, 2013, p. 83).

O outro professor francês de história que veio para a UDF foi Henri Hauser. Quando chegou ao Brasil em 1936, Hauser já era um autor experiente, com uma larga carreira institucional, um dos historiadores mais em voga de sua época, muito reconhecido internacionalmente, sobretudo nos Estados Unidos e na Inglaterra. Ele já havia lecionado História e Geografia em numerosas universidades, como a Faculdade de Letras de Clermont-Ferrand, a Faculdade de Letras de Dijon, o Conservatório de Artes e Ofícios e a Sorbonne. Além disso, ele era um membro do comitê de redação de numerosas revistas, inclusive da “Revue Historique” e da revista dos Annales. Por ser o membro mais velho e mais prestigioso da equipe, Hauser teve um papel muito importante no interior das missões universitárias francesas no Brasil. Ele facilitou a vinda de alguns importantes ex-alunos seus para a USP - como Fernand Braudel (história) e Pierre Monbeig (geografia) - e chefiou a missão francesa da UDF. Durante sua curta estada pelo Brasil, proferiu diversas palestras, ministrou um curso de Diplomacia e Economia no Itamaraty, além de ter ministrado o curso da UDF (Lima, 2017).

Nesse curso da UDF, como já destacamos, Sérgio Buarque foi assistente de Hauser. Anos mais tarde, Holanda destacou que esse período de experiência como assistente do mestre francês foi fundamental para sua formação como historiador. De acordo com ele:

Esse convívio, somado às obrigações que me competiam de assistente junto à cadeira de História Moderna e Econômica, sob a responsabilidade de Hauser, me haviam forçado a melhor arrumar, ampliando-os consideravelmente, meus conhecimentos nesse setor (estudos históricos), e a tentar aplicar os critérios apreendidos ao campo dos estudos brasileiros, a que sempre havia me dedicado, ainda que com uma curiosidade dispersiva e mal-educada (Holanda, 1979, p. 14).

H. Hauser também chegou a elaborar uma série de sugestões de alterações do currículo do curso de História da UDF (Hauser, 1937b). Ele salientava que os alunos, além de serem preparados para exercer funções de professor primário e secundário, também deveriam ser iniciados no trabalho histórico e na pesquisa crítica. Hauser acreditava que era melhor deixar os estudantes com mais tempo para se dedicarem a suas leituras e pesquisas pessoais, e também propunha que se fizessem mais exercícios práticos de pesquisa histórica. Assim, sugeria ao reitor da UDF que diminuísse as horas das matérias de teoria pura, meramente expositivas, em prol de mais horas de “exercícios práticos de pesquisa”.

Assim como Coornaert, Hauser também chegou a escrever um texto sobre a produção historiográfica brasileira (Hauser, 1937a), no qual elogiou alguns esforços isolados de autores como Varnhagen, mas também observou que esses trabalhos eram quase sempre “insuficientemente críticos”. Para ele, os historiadores brasileiros ainda se deixavam levar demais pela eloquência e pela efusão patriótica. Embora reconhecesse a importância de instituições como o IHGB, Hauser afirmava que muitos dos membros desses institutos ainda confundiam discursos comemorativos com trabalhos históricos. Por outro lado, ele via com entusiasmo o surgimento de uma nova geração de historiadores que estavam interessados e comprometidos em introduzir os “métodos rigorosos e críticos” na historiografia, para superar de uma vez por todas os “métodos oratórios”. A historiografia brasileira estava, segundo Hauser, dando seus primeiros passos em direção à “era da crítica” (Hauser, 1937a).

Assim como no caso da USP, a cadeira de História da Civilização do Brasil da UDF foi ocupada por professores brasileiros. O primeiro a ocupá-la foi Afonso Arinos de Melo Franco, que havia se formado na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e era uma espécie de intelectual “polígrafo”, que atuava como colaborador de diversos jornais e revistas literários. A atuação como professor universitário foi determinante para que ele se concentrasse na pesquisa histórica. Enquanto catedrático de História da Civilização Brasileira UDF, entre 1935 e 1937, Arinos publicou duas importantes obras historiográficas: “Conceito de civilização brasileira” (1936) e “O índio brasileiro e a Revolução francesa (1937). Alguns anos mais tarde, a partir dos cursos que lecionou na UDF, publicou outro livro, “Desenvolvimento da civilização material no Brasil (1944). Sobretudo a partir dessa última obra, podemos perceber que Afonso Arinos propunha uma história social e econômica bastante sintonizada com os estudos de Capistrano de Abreu, Alcântara Machado, Gilberto Freyre e Afonso Taunay. Tratava-se de uma história do Brasil centrada em seus aspectos materiais, abordando temas como o povoamento, as feitorias, os engenhos, as vilas e cidades, o desenvolvimento de técnicas de produção, os transportes, as construções, etc. (Carvalho, 2005).

O fim da UDF e a estruturação da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi)

Criada em 1935, em um momento de intensas disputas políticas, a UDF teve, desde o princípio sua constitucionalidade contestada na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Após a Intentona Comunista, em fins de 1935, a UDF sofreu com um ambiente de suspeita e denúncia. Vários professores e funcionários foram afastados ou presos, entre eles o reitor, Anísio Teixeira, vinculado ao movimento da Escola Nova. Pouco tempo depois, com a instalação da ditadura do Estado Novo, em 1937, a UDF foi fechada e remodelada como Universidade do Brasil (UB) no começo de 1939. A universidade que antes era municipal, transformou-se, durante a centralização de poder do Estado Novo, em uma universidade nacional. Nesse processo, os intelectuais católicos vinculados ao Centro Dom Vital foram favorecidos com a parte mais expressiva dos cargos da nova universidade. De maneira geral, o projeto da UB não foi tão inovador quanto o da UDF, pois a prioridade dos cursos deixou de ser combinação entre ensino e pesquisa, e passou a ser apenas a de formar professores para o ensino secundário (Fávero, 1996; Ferreira, 2013).

Para a formação dos quadros FNFi foi selecionada uma série de pensadores sociais de renome e simpáticos ou comprometidos com a ideologia do Estado Novo. Mesmo os novos professores franceses convocados para colaborar com a UB - Victor-Lucien Tapié (cadeira de história moderna e contemporânea) e Antoine Bon (cadeira de história antiga e medieval), ambos entre 1939 e 1943 - apresentavam, de maneira geral, forte vinculação com os segmentos católicos. Apesar de terem ficado mais tempo no Brasil do que a missão francesa da UDF, os professores franceses da FNFi parecem ter tido uma influência pouco expressiva nas novas gerações.

Antes de vir para a FNFi, Tapié havia ocupado uma cátedra na Universidade de Lille, entre 1936 e 1939. Depois de seu retorno à França, ele se notabilizou pelos estudos de história da arte, sobretudo no livro “Barroco e classicismo” (1957) (Chaunu, 1983). Apesar de ter escrito numerosos e conhecidos manuais de história para o ensino secundário, e ter residido por 4 anos no Brasil, não nos parece que Tapié tenha cativado muito seus alunos brasileiros. Eulália Lobo, que frequentou o curso de história da UDF entre 1941 e 1943, foi uma das poucas alunas que fizeram menção ao professor francês, ainda que de maneira crítica: “Havia ainda o Tapié, de história moderna, que possuía uma grande elegância, mas não tinha a profundidade de Antoine Bom. Era um pouco superficial” (Lobo, 2013, p. 245).

Quanto a Antoine Bon, conhece-se muito pouco de sua carreira institucional e de sua atividade e na FNFi. Após retornar à França, ele publicou o conhecido livro “O Peloponeso bizantino até 1204 (1951). Eulália Lobo mencionou que Bon tinha “uma capacidade grande de dar uma visão de conjunto, conjugando arte, a cultura, com o econômico” (Lobo, 2013, p. 245). Para Ferreira, tanto Tapié quanto Bon partilhavam de uma concepção de história que se aproximava da história factual e do estudo dos grandes heróis. Assim como ocorrera com a USP, os professores franceses foram substituídos por seus assistentes, de tal forma que, com a saída de Antoine Bon, Eremildo Viana assumiu a cadeira de história antiga e medieval (1943) e, com a saída de Tapié, Delgado de Carvalho passou a cuidar da cadeira de história moderna e contemporânea (Ferreira, 2013).

Na cadeira de História da Civilização no Brasil a situação foi diferente. Afonso Arinos, que ocupava a cadeira nos tempos da UDF, foi afastado e substituído por Hélio Viana, que permaneceu nessa cadeira por longos anos. Viana havia se formado na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro em 1932. Bastante interessado nos estudos históricos e simpatizante das ideias integralistas, chegou a ministrar diversos cursos de história do Brasil para os membros da Ação Integralista Brasileira (AIB) e, em 1935, publicou o livro “Formação brasileira”. A partir de 1937, Viana aproximou-se bastante do Estado Novo. Além de ter ocupado a cadeira de História do Brasil da FNFi entre 1939 e 1968, ele também foi coordenador da Comissão Nacional dos Livros Didáticos e da Sessão de História para a Educação Básica. Francisco Iglésias definiu Hélio Viana como “um autor minucioso e correto nas informações”, mas que “é excessivamente convencional e deixa de lado aspectos fundamentais. Supervaloriza nomes e datas, menospreza ou ignora aspectos econômicos, sociais, ideológicos” (Iglésias, 2000, p. 243). De maneira geral, em sua interpretação histórica do Brasil, Viana fazia um elogio da grandeza do Império e se esforçava para ressaltar a narrativa dos grandes homens e dos fatos que firmaram as bases do nacionalismo brasileiro. O autor sublinhava a importância da colonização portuguesa para a formação do país, a importância da monarquia e de seus esforços centralizadores para a garantia da união nacional. Muito afinado com o discurso ideológico do Estado Novo, Hélio Viana interpretava a implantação da República e de seu modelo federalista como responsáveis por quase todos os malefícios do país. Por este motivo, H. Viana pode ser entendido como uma espécie de continuador da obra de Varnhagen (Ferreira, 2013).

Viana parece ter tido um impacto bastante negativo nas várias gerações de alunos que teve. Maria Yedda Linhares, que frequentou seus cursos no início dos anos 1940, destacou que o professor, além de não incentivar os alunos à pesquisa, muitas vezes também os desestimulava: “História do Brasil era Hélio Viana, uma tragédia. Eu me recordo que um dia disse a ele que tinha comprado um livro muito bom, muito interessante, do Caio Prado Jr. A reação foi: ‘Não leia isso. É uma porcaria, está tudo errado’” (Linhares, 2013, p. 217). A mesma autora recorda que, anos mais tarde, quando já era catedrática de História Moderna da FNFi, na década de 1950, Viana fez de tudo para suprimir seus esforços em criar um centro de pesquisas:

Pensávamos em organizar um centro de pesquisas, escolhemos até uma temática, mas Hélio Viana vetou de forma violenta. Disse que ia acabar com a cadeira de História moderna e contemporânea se persistíssemos. Queríamos estudar o comércio Atlântico no século XVIII [...]. Mas Hélio Viana proibiu. Disse que não poderíamos ultrapassar os limites da plataforma continental brasileira... (Linhares, 2013, p. 229).

Outros ex-alunos de Viana, que frequentaram seus cursos na década de 1950, também guardam lembranças nada nostálgicas das aulas e dos métodos de avaliação dele. Francisco Falcon observou que “Hélio Viana era uma pessoa difícil, quase inacessível a maiores conversas [...] Nunca ninguém teve muito contato com Hélio Viana. Ele mandava ler os livros dele, que eram livros de curso secundário” (Falcon, 2013, p. 278). O sistema de avaliação excessivamente rigoroso e retrógrado também foi mencionado por vários ex-alunos. De acordo com Miridan Britto Falci, o exame oral aplicado por Viana era “um verdadeiro sofrimento [...] ele queria saber era o nome dos presidentes e o período de cada um, nome e sobrenome! Por exemplo: Afonso Augusto da Silva Pena, de tanto a tanto... Precisava ser na ordem, é claro” (Falci, 2013, p. 321). Clóvis Dottori ainda acrescentou que “um erro de data era um erro grave, uma imprecisão histórica. E nas provas, a resposta devia corresponder textualmente a seus livros” (Dottori, 2013, p. 347). Mesmo a geração que acompanhou os cursos de Viana na década de 1960 parece ter detestado o professor. Pedro Celso Uchoa Cavalcanti revelou que “achava Hélio Viana muito medíocre. E continuo a achar, pelo livro dele e pelas aulas a que eu assistia. Suportei aquele cara dois anos obrigando a gente a decorar os rios que faziam a fronteira do Amazonas com outros países. Era uma historiografia muito antiga” (Cavalcanti, 2013, p. 371). E Arno Wehling, por sua vez, salientou a resistência de Viana em dialogar com a historiografia francesa de sua época: “Nem queria saber de livros franceses, ficava na tradição clássica da historiografia brasileira, Varnhagen, Capistrano etc.” (Wehling, 2013, p. 422).

Considerações finais

A descrição sintética que apresentamos acima nos ajuda a compreender melhor o processo de institucionalização universitária da história no Brasil. Por se restringir apenas aos casos paulista e carioca, ela certamente não dá conta de toda a experiência nacional, que foi muitas vezes variada em outras regiões6. Apesar disso, os casos descritos nesse artigo são significativos e nos mostram que esse processo de institucionalização universitária foi marcado pelo advento dos cursos de formação e especialização do ofício do historiador e pela expansão das ferramentas de divulgação da produção historiográfica.

De maneira geral, a primeira metade do século XX foi um momento de transição entre o modelo historiográfico proposto pelos Institutos Históricos e o modelo de historiografia proposto pelos pesquisadores universitários, transição essa que foi bastante conflituosa e disputada. Nesse clima competitivo, os historiadores universitários se esforçaram muito para construir uma imagem bastante depreciativa da historiografia dos Instituto Históricos. De acordo com eles, sob o signo do IHGB, a disciplina histórica mantinha-se muito restrita, elitista, muito marcada pela erudição, pela eloquência, pelo autodidatismo, pela efusão patriótica e/ou regionalista. Como pudemos ver nos depoimentos de diversos professores e ex-alunos desses primeiros cursos universitários, o modelo historiográfico dos Institutos Históricos era entendido como algo antigo, que respondia aos anseios do século XIX e que precisava ser atualizado para a realidade do século XX. Todos eles se esforçaram para apresentar as universidades como um novo marco no desenvolvimento do conhecimento científico no Brasil, porque elas viriam para superar a tradição bacharelesca do homem de letras, do erudito autodidata.

No entanto, é preciso destacar que a institucionalização do discurso histórico nas universidades não se deu necessariamente pelo rompimento imediato com o modelo historiográfico dos Institutos Históricos e outras agremiações do gênero que reuniam autodidatas. Como pudemos observar na descrição apresentada acima, em muitos casos eram os próprios membros dos Institutos Históricos que ocupavam as vagas de professores catedráticos nas universidades, em razão da falta de um mercado de docentes diplomados. Esse foi, aliás, um dos discursos que formularam a identidade da ANPUH alguns anos mais tarde, a ideia de que o recrutamento de eruditos autodidatas nos primeiros cursos de graduação em história foi responsável pelo “marasmo” em que se encontrava a historiografia universitária até a década de 1960.

Outra coisa importante de salientar é que, nos casos aqui analisados, apenas na USP tivemos a construção de uma memória disciplinar forte em torno dos mestres franceses, memória essa capaz de criar a identidade de uma certa “escola uspiana de história”. Estudos mais recentes, como os de Aryana Costa (2018) e de Diego José Fernandes Freire (2019) nos mostram como o departamento de história da USP, desde a década de 1950, tem mobilizado a herança dos professores franceses para justificar uma suposta posição hegemônica dentro do campo da historiografia brasileira. Principalmente durante a década de 1990, quando o campo historiográfico brasileiro já se encontrava consideravelmente diversificado e competitivo, contando com mais de 15 programas de pós-graduação em história em universidades de diferentes regiões do país7, os historiadores vinculados a USP aproveitaram as comemorações dos 60 anos da universidade para reforçar a ideia de uma identidade uspiana, fortemente marcada pela presença francesa e pela autoridade intelectual dos Annales, que serviria como uma espécie de elemento distintivo de outros centros de pesquisa concorrentes.

Além disso, pudemos perceber que, durante a implementação dos primeiros cursos universitários de história no Brasil, que se desenvolveram em São Paulo e no Rio de Janeiro entre as décadas de 1930 e 1950, houve uma tendência geral para o ensino e a prática de uma história econômica e social que fosse capaz de superar as limitações da história política, excessivamente centrada em grandes homens e em feitos administrativos e militares. Porém, pode-se reconhecer a existência de pelo menos duas vertentes dessa história social e econômica. Uma delas foi representada, sobretudo pelos professores que ocuparam as cadeiras de História do Brasil - Afonso Taunay, Alfredo Ellis Jr., Afonso Arinos e Hélio Viana -, mais próxima da tradição fundada pelos institutos históricos e geográficos e muito marcada pela efusão patriótica ou regionalista. A outra vertente está muito mais próxima da concepção francesa de história social e econômica, uma história que convida o pesquisador a exercer a interdisciplinaridade, ou seja, o diálogo com outras ciências sociais. Essa tendência foi representada pelos professores franceses - Émile Coornaert, Fernand Braudel, Jean Gagé, Henri Hauser e Eugène Albertini - e seus assistentes - Eurípedes Simões de Paulo, Eduardo d’Oliveira França, Alice P. Canabrava e Sérgio Buarque de Holanda.

Por fim, observa-se também que o momento político turbulento influenciou diretamente a prática da pesquisa e da produção do saber nas Instituições de Ensino Superior. Provavelmente em razão de sua proximidade com o governo federal, as universidades do Rio de Janeiro parecem ter sofrido mais com os movimentos centralizadores de Getúlio Vargas, que acabou podando, indiretamente, várias iniciativas de pesquisa científica, valorizando apenas a formação de professores para o ensino primário e secundário. Assim, percebe-se que os professores franceses que atuaram no Rio de Janeiro, por mais que alguns tenham residido por vários anos (Tapié e Bom), não parecem ter exercido a mesma influência que a missão francesa que atuou em São Paulo.

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Notas

1 De acordo com Roger Chartier (1997), a expressão “homem de letras” tornou-se bastante popular na França do século XVIII e designava o erudito diletante e autodidata, que não tinha um saber profundo sobre determinado assunto, mas um conhecimento sobre múltiplas áreas do saber.
2 “Missão e profissão”, publicado originalmente no “Diário de Notícias” (RJ) em 22 de agosto de 1948.
3 “O pensamento histórico no Brasil nos últimos 50 anos”, publicado originalmente no “Correio da Manhã” (RJ), em 15 de julho de 1951.
4 “Todo historiador precisa ser um bom escritor”, publicado originalmente na “Hispanic American Review”, em fevereiro de 1982.
5 O editorial do n. 22 da revista “Estudos Avançados” foi escritor por Alfredo Bosi, e o volume contou com a participação de Florestan Fernandes, Marilena Chauí, Eduardo d’Oliveira França, Fernando Novais, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Antonio Candido, Bento Prado Jr., José Arthur Gianotti, Maria Odila Dias, Carlos Guilherme Mota, Raquel Glezer e Maria Helena Capelato (Estudos Avançados, 1994).
6 Sobre o processo de institucionalização universitária da história em outras regiões do país, deve-se destacar o dossiê temático sobre “Os cursos de história: lugares, práticas e produções”, da revista “História da Historiografia” (n. 11, 2013), sobretudo os artigos de Alessandra Soares Santos e de Mara Cristina de Matos Rodrigues, que tratam do caso mineiro e gaúcho, respectivamente.
7 Na década de 1990, além da USP, havia programas de pós-graduação em história na UFPE, UFRJ, UFF, Unesp-Assis, Unesp-Franca, UFPR, UFSC, UFRGS, Unisinos, UFG e UNB.
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