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Ciência, saúde e doenças no Brasil: abordagens históricas e desafios contemporâneos
Science, health and diseases in Brazil: historical approaches and contemporary challenges
Ciencia, salud y enfermedades en Brasil: enfoques históricos y desafíos contemporáneos
Revista NUPEM (Online), vol. 13, núm. 29, pp. 6-12, 2021
Universidade Estadual do Paraná

Dossiê


Desde o início da pandemia da COVID-19, intelectuais e cientistas públicos de diferentes áreas de formação, como o virologista Átila Iamarino, a economista Monica de Bolle e o sociólogo norteamericano Jeffrey Sachs, salientam que nada será como antes depois do vírus SARS-CoV-2. Para os historiadores não apenas o futuro será diferente, mas, de certo modo, também o passado. Ao menos, ao falarmos dele, somos instados a levar em consideração o que o antropólogo francês Bruno Latour tem chamado a atenção: os não-humanos são atores que podem modificar os rumos da história. Uma vez considerando que “qualquer coisa que modifique uma situação fazendo diferença no curso da ação de outros agentes é um ator” (Latour, 2012, p. 108), somos levados a admitir que, hoje, o SARS-CoV-2 é um ator, assim como outros não-humanos, em outros momentos da história, também o foram.

Ao mesmo tempo, podemos questionar com mais vigor sobre quais ações humanas possibilitaram a expansão global do vírus. As questões da ecologia e da história ambiental, bem como as reflexões promovidas pela teoria do antropoceno - teoria segundo a qual vivemos uma era do planeta em que ele próprio já foi alterado e afetado pela ação humana desde ao menos a Revolução Industrial no século XVIII -, são ressaltadas no debate público e na reflexão científica e intelectual mais do que nunca. Ainda no início da pandemia de Covid-19, o historiador Marcos Cueto (2020) argumentou que “esta epidemia não é mais do que a última de uma triste sequência que começou nos anos oitenta do século passado, quando a maior parte dos governos do mundo abraçou o neoliberalismo e a globalização e a sua cruel doutrina que proclamava uma drástica redução dos gastos públicos e desmantelamento da intervenção do Estado nos programas sociais”. Desse modo, os desastres sanitários provocados pela Aids, Dengue, SARS, H1N1, Ebola, Zika e a Covid-19 não constituem uma sucessão de tragédias provocadas tão somente pela natureza e micro-organismos, mas são o resultado de relações estabelecidas pelos seres humanos com o ambiente e entre si mesmos.

As instituições, sobretudo as de saúde, mostram o seu papel decisivo na organização global. A Organização Mundial de Saúde (OMS), Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), Organização Oeste Africana da Saúde (OOAS), Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Instituto Butantan, entre outras, provam a importância institucional e de pesquisas científicas no cuidado sanitário e da saúde pública em tempos regulares ou pandêmicos. Em perspectiva histórica e a partir do enfrentamento atual da Covid19, somos convidados a observar a trajetória de doenças e problemas sociais relacionados à saúde no contexto das políticas institucionais, das ações de gestão de diferentes governos e das relações internacionais entre os países. Isto nos leva, em última análise, a perceber de que modo os países e suas políticas públicas cuidam da sua população, seja no campo da saúde, assistência ou economia.

Inspirado pelo momento em que vivemos e pelos embates que essas questões suscitam, este dossiê parte de uma perspectiva interdisciplinar e reúne historiadores da ciência, antropólogos, médicos, educadores e demógrafos em um diálogo entre as pesquisas históricas, as reflexões sobre o momento atual e as perspectivas de futuro nas relações entre ciência, saúde e doenças no Brasil. Considerando a força com que a pandemia de Covid-19 tem mobilizado governos, instituições, cientistas e intelectuais do mundo todo, interessa-nos refletir sobre o modo como as doenças - especialmente aquelas com potenciais epidêmicos e pandêmicos - impactaram e impactam a sociedade em diferentes momentos da história. Desse modo, o dossiê conta com trabalhos que procuram compreender como a sociedade, os governos, a ciência e as instituições de saúde responderam aos problemas colocados pelas epidemias, desde a formulação de políticas governamentais, medidas médicas e de pesquisas científicas de enfrentamento das doenças, até a conexão estabelecida pelos grupos sociais, a imprensa e os governos diante do impacto e das mudanças que esses eventos impõem ao mundo social, à economia e à política. Os artigos dialogam com distintas perspectivas e sugerem reflexões que contribuem tanto para o debate acadêmico quanto para as discussões públicas, buscando alternativas de intervenção na formulação de políticas no campo das ciências da saúde. Desta maneira, o dossiê está dividido em três blocos temáticos que dialogam entre si e propõem analisar as doenças como eventos históricos, médicos e biológicos, bem como sociológicos e políticos com forte impacto sobre as instituições científicas, as políticas de saúde públicas e as ações governamentais em suas dimensões locais, nacionais e globais.

O primeiro bloco temático inicia com o artigo “‘A gripe espanhola como lição’: a pandemia de 19181919 nos jornais ‘O Globo’ e ‘Folha de S. Paulo’ (1941-2020)”, Lorenna Ribeiro Zem El-Dine e Vanessa Pereira da Silva e Mello tratam do modo como a pandemia de Gripe Espanhola foi retratada nos referidos jornais a partir da década de 1940. O artigo analisa os usos desse passado nos contextos de outras epidemias, sobretudo durante a pandemia de Covid-19, atentando para o diálogo entre a narrativa jornalística sobre a gripe espanhola e a produção historiográfica. As autoras assinalam que, em 2020, a presença de historiadores/as na imprensa foi mais significativa do que em outros contextos epidêmicos, nos quais a gripe espanhola também emergiu como referência. O artigo destaca que foi constantemente reiterada na imprensa a ideia de que o conhecimento histórico poderia tanto orientar no presente sobre o enfrentamento da Covid-19 quanto apontar caminhos para o futuro pós-pandemia.

No artigo “Febre amarela e epidemias: configurações do problema ao longo do tempo”, o experiente historiador Jaime Benchimol apresenta um longo percurso em torno das descobertas científicas e políticas públicas sobre a febre amarela, desde as teorias miasmáticas do século XIX até a bacteriologia e a identificação do Aedes aegypti como vetor da doença e os desdobramentos para seu controle ou erradicação do decorrer do século XX. Uma história que passa por Cuba, Estados Unidos, África, Índia, Brasil e outros países da América do Sul, envolvendo o combate à febre amarela urbana e em regiões rurais e de floresta. Nesta história de longa duração, Benchimol chega até as décadas mais recentes, quando, nos anos 1980, o Aedes aegypti passa a estar dramaticamente relacionado também às epidemias de Dengue, e, nos anos 2010, às de Zika e Chikungunya. O artigo termina chamando a atenção para o fato de que estamos diante de uma história inacabada, na medida em que o controle ou erradicação do mosquito deveria envolver políticas arrojadas de saneamento básico, educação e participação popular, tudo, enfim, que significaria a implementação efetiva do princípio da integralidade do direito à saúde estabelecido na Constituição de 1988 e que constitui o pilar fundamental do Sistema Único de Saúde (SUS).

Em seguida, quase que em continuidade com o texto de Benchimol, o artigo “Entre a arma biológica e o ‘mosquito estadual’: cooperação Brasil-Cuba e as epidemias de dengue (1981-1988)”, de Gabriel Lopes e Jorge Tibilletti, explora a reinfestação do Aedes aegypti e o retorno de arboviroses urbanas, como a Dengue, na América Latina da década de 1980. Além do mosquito e do vírus, essa história mobilizou confrontos políticos típicos da Guerra Fria entre os Estados Unidos e Cuba, bem como esforços e interações entre epidemiologistas, infectologistas, entomologistas e virologistas, especialmente brasileiros e cubanos. A epidemia da dengue em Cuba, em 1981, envolveu inclusive a acusação de prática de guerra biológica dirigida aos Estados Unidos, por Fidel Castro, hipótese que não foi completamente descartada pelos estudiosos. De qualquer modo, os cientistas cubanos conseguiram controlar a doença de forma rápida e eficiente ainda em 1981. Quando a epidemia de dengue atingiu o Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, em 1986, os principais interlocutores dos cientistas brasileiros foram os cubanos. Os autores exploram como a dengue e o Aedes aegypti se tornaram tanto um elemento de cooperação quanto de disputa política no período. O Aedes aegypti, que encontramos no texto de Jaime

Benchimol relacionado especialmente à febre amarela, passou a ser ressignificado como o “mosquito da dengue”.

A década de 1980 foi também palco da pandemia da Aids, que se reconfigurou nas décadas seguintes. No artigo “‘O médico não acreditou que eu tivesse contaminada’: gênero e relação médicopaciente na experiência da Aids”, a partir da autobiografia da escritora infanto-juvenil Valéria Piassa

Polizzi, intitulada de “Depois daquela viagem” (1997), Eliza da Silva Vianna oferece uma análise da soropositividade e a relação de poder entre os médicos e a paciente. Em outras palavras, a historiadora procura estabelecer como os preconceitos e estigmas ligados à Aids estão conectados a um contexto histórico forjado na relação de poder entre gênero e medicina. Com a notícia do HIV positivo, Polizzi se coloca na condição de anormal. Em sua autobiografia explica que o seu diagnóstico não era fruto dos estigmas habituais da Aids, a partir dos quais geralmente o doente era interpretado, a saber: promiscuidade, uso de drogas, prostituição ou homossexualidade. No seu caso foi no sexo sem preservativo que ela contraiu a doença. Além da marginalização social que o diagnóstico causava, a desesperança com o quadro de baixa expectativa de vida traçado pelos médicos desestimulou o próprio acompanhamento da doença. Mais ainda, o silêncio sobre a doença, recomendado pelo médico, indica como o preconceito é parte da rotina do soropositivo. A prevalência da Aids como uma doença proibida, imagem sustentada inclusive pelo diagnóstico médico, segregou Polizzi do espaço social. Como aponta Eliza Vianna, a relação entre vírus e sociedade contribuiu para que a sua experiência de mulher HIV positivo fosse, diversas vezes, silenciada e desacreditada. Também foi no consultório médico que teve sua vida íntima exposta e foi culpabilizada pela doença.

“A construção da esquistossomose como um problema de saúde pública em dois períodos na história das ciências da saúde no Brasil (1910-1950)”, de Bráulio Chaves, torna-se, certamente, uma referência para os estudos da esquistossomose no Brasil na primeira metade do século XX. São duas questões que o autor tem em mente. Uma, relacionada às controvérsias na década de 1910, especialmente às do médico baiano Pirajá da Silva. Outra, localizada quarenta anos depois, em meio ao projeto desenvolvimentista da década de 1950, em que questiona qual seria o lugar da esquistossomose no campo da parasitologia. Chaves pretende demonstrar a construção da história da esquistossomose no Brasil e de que modo ela se tornou preocupação central, com um serviço nacional de combate verticalizado. Para traçar essa “História da esquistossomose no Brasil”, o autor mobiliza atores políticos e intelectuais como Pirajá da Silva, Edgard Falcão, Jaeder Albergaria, Emmanuel Dias, Mário Pinotti, entre outros. Portanto, avalia como a década de 1950 foi importante para que a esquistossomose entrasse definitivamente como um problema de saúde pública nacional.

Em “O ‘papel transformador’ de uma profissão: a economia moral dos epidemiologistas no Brasil (1970-2000)”, Luiz Alves Araújo Neto discute a constituição de um conjunto de valores epistêmicos, morais e políticos referentes à atuação da Epidemiologia no país. Investigando os enunciados de atores importantes no campo epidemiológico sobre a própria organização e atuação da disciplina no Brasil, o autor argumenta que quatro elementos constituíram a economia moral dos epidemiologistas: o engajamento político na defesa da saúde pública; a centralidade da desigualdade como tema mobilizador; a valorização do caráter transformador da epidemiologia; e a articulação de metodologias quantitativas com análises sociais e políticas. Entretanto, como apresenta Araújo Neto, a conformação dessa economia moral envolveu também tensões e contradições dentro do próprio campo, a exemplo da relação entre academia e serviços de saúde. A história da Epidemiologia e dos epidemiologistas, na leitura do autor, seria marcada pelas negociações de atores e instituições em torno dos valores que compõem essa economia moral, havendo tensionamentos importantes entre aquilo que foi pensado como referencial para a disciplina e a realidade de atuação no sistema de saúde. Esse cenário foi reforçado na década de 1990, momento de estruturação e implementação do SUS e de reflexão dos epidemiologistas sobre seu estatuto epistêmico e as possibilidades concretas de efetivar o “papel transformador” da profissão.

Abrindo um conjunto de artigos dedicados à política e instituições de saúde, Rafael Silva e Lina Aras realizam uma relevante discussão sobre o Rio São Francisco e a Santa Casa da Misericórdia em Barra do Rio Grande, na Bahia do Oitocentos, em “Notas históricas sobre a assistência à saúde em Barra do Rio Grande, século XIX”. A importância do hospital de caridade em Barra do Rio Grande é emblemática da interiorização da assistência no sertão da Bahia. Sua situação geográfica privilegiada, na qual havia o encontro do Rio Grande com o Rio São Francisco, com plena atividade comercial e circulação de pessoas, se tornou um relevante ponto de correspondência que conectava a localidade a outros pontos do estado.

Desse modo, a pesquisa explora três eixos: a política no que diz respeito ao hospital e aos membros da irmandade; epidemias e composição do quadro médico; e o recorte espacial do atendimento do Hospital de Caridade. Entre as propostas do artigo está colocada a ausência de recursos para o referido hospital, razão pela qual parte das correspondências da Santa Casa da Misericórdia da Barra para a presidência da província solicitava maior saúde financeira. Do ponto de vista político, os autores lembram que a importância da assistência pode ser observada, naquele contexto, nas intenções e articulações das elites locais. Isto é, a participação na Mesa Administrativa permitia às elites e às autoridades um capital sociopolítico. Portanto, os autores notam como a interiorização da assistência favoreceu o corredor de movimentações políticas desses grupos.

Por sua vez, a pesquisadora Joseanne Marinho tratou neste dossiê sobre “A interiorização da saúde no Piauí: Parnaíba entre o fim do século XIX e meados do século XX”. Para tanto, detém-se no município de Parnaíba, ao norte do Estado do Piauí, em um período em que a cidade se destacava como referência cultural, econômica e política na região. Tal situação representou a interiorização da política de saúde pelo governo estadual. A partir de fontes como códices de saúde, legislação estadual, o “Jornal

Diário Oficial” e relatórios do governo do Piauí, Marinho aponta como Parnaíba se distinguiu na centralização de sistemas de saúde, inclusive, se comparada a Teresina, capital do estado, sendo a primeira localidade a possuir uma maternidade e um lactário. O lactário Suzanne Jacob (1938), por exemplo, como menciona a pesquisadora, tinha como missão o amparo à assistência alimentar à infância pobre. A preocupação alimentar e com a infância redobrava o cuidado higiênico com os alimentos por meio de processos técnicos de diluição e adição de compostos para aumentar o valor nutricional de acordo com a necessidade de cada criança examinada. Como conclui a pesquisadora, o pediatra era peça fundamental de legitimação científica para uma alimentação correta das crianças.

Descendo ao Sul do país, o artigo “A construção da Colônia Santa Teresa e as propostas terapêuticas para os primeiros leprosos internados - São Pedro de Alcântara (SC), anos 1940”, de Simone Aparecida Ribeiro de Lima e Liane Maria Bertucci, trata do processo de institucionalização e das propostas terapêuticas para o tratamento da lepra na Colônia Santa Teresa, inaugurada em 1940, quando o isolamento compulsório ainda era considerado o meio mais eficiente para combater a difusão da lepra e cuidar dos leprosos. As autoras analisam especialmente prescrições e sugestões médicas para o trabalho e a recreação dos pacientes internados nessa instituição, como a realização de atividades agrícolas e os bailes e blocos de carnaval, vistos como fundamentais para o bem-estar dos doentes. Em diálogo com o conceito de práticas de Michel de Certeau, as autoras demonstram como essas atividades recreativas ganharam contornos e significados peculiares para esses leprosos, moldando habilidades, preferências e pequenas transgressões que abriam frestas na ordem estabelecida.

No último conjunto de textos, Wanderson Costa Bomfim e Mirela Castro Santos Camargos projetam, a partir de recursos e fórmulas de cálculos estatísticos e demográficos, as “Mudanças na expectativa de vida no Brasil: analisando o passado e o futuro, de 1950 a 2095”. O texto aponta que, na mesma direção dos países mais ricos e da tendência global, evidencia-se no Brasil o crescente papel das Doenças Crônicas não-transmissíveis como questão de saúde pública em uma população que, na média, vive uma tendência de aumento de expectativa de vida. Ao mesmo tempo, os autores chamam a atenção para a “polarização epidemiológica” do país, pois enquanto aquela tendência se confirma nas estatísticas e nas projeções de futuro tomadas globalmente, o país se defronta com doenças infecciosas e parasitárias negligenciadas, especialmente entre a população pobre e excluída. Até mesmo a tendência geral de queda de mortalidade tem sido, na realidade, mais acentuada nas regiões Sul e Sudeste do que nas regiões Nordeste e Norte. Lembram os autores que a pandemia de Covid-19 tornou as desigualdades sociais e regionais do Brasil ainda mais evidentes, o que precisa ser tratado como uma questão crucial de saúde pública e de estrutura socioeconômica do país.

Em “O suicídio indígena Guarani-Kaiowá no antropoceno: solastalgia e schlammbugrismo”, Carlos Estellita-Lins relaciona conceitos e discussões caras ao indigenismo, à suicidologia e às teorias do antropoceno. A solastalgia chama a atenção para as implicações da catástrofe climática para o bem-estar e a saúde. Nesse quadro, o suicídio, visto em nossa cultura individualista como solitário, pode estar relacionado a questões globais e seus reflexos locais, aos efeitos do antropoceno nos ambientes onde se vive. Por sua vez, o suicídio entre os guarani-kaiowá, que, enquanto tal, constitui um sério problema de saúde pública, não é visto pelas comunidades indígenas como um ato individual. Na sua visão, o próprio processo de saúde e doença envolve tanto as forças humanas quanto as forças da natureza e as invisíveis, o que nos remete a uma cosmologia que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro chama de perspectivismo indígena. A proposta de Estellita-Lins é a de que façamos um exercício de antropologia reversa, questionando-nos sobre a nossa própria noção de indivíduo, como algo antagônico ao social e descolado do Outro, e a nossa relação com a natureza, como se fôssemos o seu Outro e a devêssemos dominar. Caso não tratemos a pandemia de Covid-19 como um mero dado da natureza e a entendamos no contexto da exploração desenfreada dos recursos da Terra promovida pelo Capitalismo, podemos perceber que a situação dos indígenas diz respeito à nossa vida e ao futuro do planeta. Nas condições a que eles têm sido intencionalmente submetidos, com a expropriação das suas terras pelas frentes de agronegócio e a exploração das florestas, o suicídio e o genocídio são, na verdade, quase indistinguíveis.

Hoje tem ficado claro que a atitude etnocida do Ocidente é suicida.

A propósito, o artigo “Quanto valem esses corpos? Moradia, pobreza e pandemia na cidade de São Paulo”, de André Mota e Igor da Costa Borysow, analisa as condições de organização de moradia na cidade de São Paulo, entre 1930 e 1970, quando teve início o processo de formação das primeiras favelas, as habitações de periferia e o aumento no número de pessoas em situação de rua. Atento às questões sociais e de saúde pública ligadas à pandemia de Covid-19, o artigo explora a desigualdade social, a presença de doenças e a falta de acesso aos serviços médicos e de saúde, especialmente na periferia de São Paulo e entre a população em situação de vulnerabilidade social, como os moradores de rua. Neste sentido, o artigo articula a pobreza, desigualdade social e saúde pública, debate fundamental para compreendermos o cenário pandêmico atual.

No primeiro conjunto de textos, os autores e autoras refletem acerca de doenças e epidemias, investigando a emergência das doenças como eventos naturais, históricos e sociológicos. Neste sentido, atenção especial foi dirigida à investigação a respeito das relações entre ciência, saúde e sociedade em tempos de epidemias que marcaram profundamente o campo da saúde no Brasil. No segundo bloco, os artigos discutem a constituição de políticas e instituições voltadas para a saúde, avançando nas pesquisas sobre o papel e a atuação das instituições científicas, médicas e de saúde pública na gestão de políticas públicas de enfrentamento de enfermidades e na promoção da saúde em diferentes regiões do país. Por fim, os três textos que compõem o último bloco do dossiê tratam de questões contemporâneas e elaboram uma perspectiva de futuro e de seus desafios por meio de um estudo de demografia e tendências sobre a longevidade e a saúde da população brasileira; uma abordagem antropológica a respeito da cosmologia indígena sobre a natureza e a morte; além de uma reflexão médica e sociológica sobre a pandemia de coronavírus.

Em síntese, a partir de olhares interdisciplinares, os textos do dossiê nos desafiam a pensar sobre a presença das doenças como uma marca histórica que caracteriza as desigualdades sociais e regionais brasileiras. Ao mesmo tempo, o dossiê é um convite para refletir sobre o modo como doenças, epidemias e pandemias, como a Covid-19, impõem uma ampla agenda de debates públicos e democráticos sobre o passado, o presente e o futuro do país, mobilizando o engajamento do Estado, da ciência, das instituições públicas e privadas e da sociedade como um todo. Por fim, o dossiê pretende também contribuir com o debate sobre o papel da ciência, dos governos nacionais e dos organismos internacionais no enfrentamento da atual pandemia, bem como na projeção de horizontes possíveis para a saúde global e para os dilemas sociais, humanos e naturais que resultarão do pós-pandemia.

Referências

CUETO, Marcos. Covid-19 e as epidemias da globalização. Blog da Revista História, Ciência, Saúde - Manguinhos. 23 jun. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3nncguH. Acesso em: 23 abr. 2021.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador; Bauru: Edufba; Edusc, 2012.



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