Dossiê
Recepción: 18 Noviembre 2020
Aprobación: 09 Enero 2021
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2021.13.29.93-110
Resumo: O artigo tem como objetivo analisar a relação médico-paciente na experiência narrada da soroposi-tividade na autobiografia “Depois daquela viagem”, de Valéria Piassa Polizzi (1997). Minha hipótese central é de que o enfrentamento do diagnóstico e a elaboração da experiência com a Aids foi mediada e influenciada pela relação de poder entre os médicos e a paciente. Nesse sentido, ganham relevo os estigmas e a moralidade presentes na repre-sentação social da Aids desde os primeiros anos da epidemia, bem como alguns elementos historicamen-te associados ao gênero feminino.
Palavras-chave: História das doenças, HIV/Aids, Gênero.
Abstract: The article aims to analyze the doctor-patient relationship in the narrated experience of seropositivity in the autobiography “Depois daquela viagem”, by Valéria Piassa Polizzi (1997). My central hypothesis is that coping with the diagnosis and developing the AIDS experience was mediated and influenced by the power relations between the doctors and the patient. In this regard, the stigmas and morality present in the social representation of AIDS since the early years of the epidemic, as well as some elements historically associated with the female gender, gain prominence.
Keywords: History of disease, HIV/AIDS, Gender.
Resumen: El artículo tiene como objetivo analizar la relación médico-paciente en la experiencia narrada de la seropositividad en la autobiografía ¿Por qué a mí?, de Valéria Piassa Polizzi (1997). Mi hipótesis central es que la confrontación del diagnóstico y la elaboración de la experiencia con el SIDA fue mediada e influenciada por la relación de poder entre los médicos y el paciente. En este sentido, se destaca el estigma y la moralidad presentes en la representación social del SIDA desde los primeros años de la epidemia, así como algunos elementos asociados históricamente con el género femenino.
Palabras clave: Historia de las enfermidades, VIH/SIDA, Género.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo analisar a experiência soropositiva sob a perspectiva de gênero e utilizando como fonte histórica a autobiografia “Depois daquela viagem”, de Valéria Piassa Polizzi, originalmente publicada em 19971. No que concerne à historiografia da Aids no Brasil, é significativa a importância de textos literários, sendo estes considerados profícuas fontes históricas e parte do que se constitui como representação social da doença. A expressão é tomada aqui sob a acepção de Nascimento et al. (2018), qual seja, a de um conjunto de significados sobre uma enfermidade em disputa, cuja hegemonia se define de acordo com as tensões e relações de poder em voga na sociedade. Dentre essas tensões, sujeitos e experiências individuais participam da construção da representação de acordo com suas posições sociais e possibilidades de agência na trama social (Nascimento et al., 2018).
A noção de experiência da doença é aqui pensada em diálogo com Scott (1998, p. 324), para quem esta precisa ser pensada sem “essencializar a identidade e ratificar o sujeito”, mas também sem reduzir o sujeito às categorias sociais. Nesse sentido, é também imprescindível mencionar Herzlich (2004), que localiza a experiência do adoecimento como inextricável conexão entre as esferas pública e privada.
No que concerne à análise da autobiografia, cabem algumas reflexões sobre o texto autobiográfico em si e seu uso como fonte histórica. De acordo com Lejeune (2008, p. 49), um texto autobiográfico é aquele que constitui uma narrativa em prosa onde uma pessoa real aborda sua própria existência, enfatizando especialmente sua história individual e a história de sua personalidade. O autor recorre aos dicionários do século XIX, tomando de Larrousse a síntese “a vida de um indivíduo contada por ele próprio” (Larousse, 1886 apud Lejeune, 2008, p. 53), a esse compromisso com a verdade expresso pelo autor, Lejeune denominou pacto autobiográfico.
Tendo em vista que o significado da palavra pacto pressupõe o envolvimento de ao menos duas partes, ao revisar sua própria formulação, Lejeune atenta para o fato de que, por mais que o autor sugira um pacto em seu texto, não há garantia de que o leitor vá segui-lo. O autor também atenta para a flexibilidade do pacto para o escritor, pois, ainda que este se disponha a abordar elementos de sua biografia, a construção narrativa direciona o texto de acordo com intencionalidades variadas. Os apontamentos do autor são relevantes para pensarmos que o uso analítico aqui proposto para a autobiografia de Polizzi possivelmente não fazia parte do pacto pensado pela autora no momento da escrita e publicação.
Em sua análise sobre os textos autobiográficos sob o ponto de vista da Antropologia, Calligaris (1998, p. 49) destaca que “narrar-se não é diferente de inventar-se uma vida. Ou debruçar-se sobre sua intimidade não é diferente de inventar-se uma intimidade. O ato autobiográfico é constitutivo do sujeito e de seu conteúdo”. Considerando a emergência histórica do narrar-se, ele identifica o ato autobiográfico como parte do sujeito moderno e saliente que “uma história da subjetividade moderna é impensável sem o auxílio dos atos autobiográficos” (1998, p. 51). Nesse sentido, o texto autobiográfico constitui, do ponto de vista da análise histórica, fonte privilegiada para a compreensão das subjetividades que o sujeito expressa e elabora ao narrar-se, independentemente dos aspectos factuais do texto. Conforme sintetiza Calligaris (1998, p. 55), o que se deve esperar de um texto autobiográfico é que “o escrito informe justamente sobre a modalidade pela qual, naquele momento e lugar, o sujeito moderno consegue se dar um pouco de consistência”. Interessa aqui, portanto, analisar a consistência que Valéria2 nos dá de si mesma, bem como investigar as subjetividades que emergem de seu texto no que diz respeito à experiência da doença atravessada pela dimensão de gênero e pela relação médico-paciente3.
Ainda que não tenha sido objetivo desta análise o levantamento exato da tiragem e repercussão da obra, é importante destacar que o livro teve sucessivas edições4.
Sua expressividade como narrativa da Aids também foi analisada por Bessa (2002), junto a outras autobiografias de escritores soropositivos, em que ela figura como a única mulher. A preocupação com a estética literária e a histórica subalternização da autoria feminina na literatura (Hollanda, 2003) fazem com que Polizzi ocupe um lugar à parte na análise de Bessa, que a associa ao universo da sedução e reforça o desconhecimento da jovem escritora sobre autores importantes da literatura nacional (Bessa, 2002), distanciando-a do cânone literário.
O ano da publicação original, 1997, se situa em um período de profundas mudanças no contexto da epidemia de HIV/Aids. Estas são decorrentes principalmente do surgimento da terapia antirretroviral (ARV), primeira forma realmente eficaz no tratamento da doença. Popularmente conhecida como ‘coquetel’, a terapia passou a ser distribuída gratuitamente no Brasil pelo Sistema Único de Saúde desde 1996, um ano antes da publicação do livro de Polizzi (Scheffer, 2012).
Além da profunda mudança nas possibilidades de tratamento, que diminuiu consideravelmente a mortalidade por HIV/Aids, o livro de Polizzi pode ser considerado paradigmático no contexto epidêmico da Aids por trazer a narrativa de uma mulher jovem e heterossexual, perfil diferente daqueles até então associados à - e equivocadamente culpabilizados pela - epidemia de HIV/Aids.
Apresentado como literatura infanto-juvenil em suas orelha e contracapa, além da Aids, o livro aborda questões pertinentes à experiência humana de modo mais amplo, tais como as incertezas da adolescência, a escolha de carreira profissional, início da vida sexual, masturbação, sexualidade feminina, violência de gênero etc.
Valéria Piassa Polizzi nasceu na cidade de São Paulo, em 1971, em uma família de classe média alta. Aos quinze anos, em 1986, conheceu o primeiro namorado, a bordo de um navio, onde fazia um cruzeiro com a família. Da relação conturbada, que incluiu agressões e ameaças, saiu soropositiva, condição de que tomou conhecimento alguns anos depois, em 1989. Enquanto se recuperava de um processo de adoecimento, em 1994, decidiu começar a escrever sua história, que chegou às livrarias publicada pela editora Ática, em 1997. O título do livro, “Depois daquela viagem”, faz alusão a uma viagem de férias realizada com a família, na qual a então adolescente conheceu seu primeiro namorado, com quem teve as primeiras relações sexuais, de que resultaram a transmissão do HIV.
Após a publicação bem sucedida de “Depois daquela viagem”, consolidou-se como escritora infanto-juvenil, lançando “Papo de garota” (Editora O Nome da Rosa, 2001) e “Enquanto estamos crescendo” (Ed. Ática, 2003). Além disso, participou das antologias de contos “Grandes amigos - Pais e filhos” (Panda Books, 2005) e “Mecanismos precários” (Ed. Terracota, 2010). Ao longo de oito anos, escreveu a coluna “Papo de garota” na revista “Atrevida”, voltada para adolescentes do sexo feminino. A última atualização de seu blog pessoal data de dezembro de 2016 e relata sua participação no documentário “35/20: Do pânico à esperança”, de Dario Menezes, sobre a temática da Aids (Polizzi, 2016).
O enfrentamento do diagnóstico, o processo de adoecimento e a adesão ao tratamento são alguns dos aspectos que merecem atenção na narrativa de Valéria. Em sua escrita de si (Gomes, 2004), a relação - muitas vezes conflituosa - com os médicos é central para a elaboração de sua experiência da doença e para a tomada de decisões em sua trajetória. A meu ver, os estigmas e preconceitos ligados à Aids, somados a questões historicamente ligadas à relação entre medicina e gênero (Laqueur, 2001; Martins, A. P. V., 2004; Rohden, 2001; Freire, 2006) estão implicadas nessa relação de poder entre médico e paciente.
“Um pequeno detalhe”5
Antes de iniciar a história, Valéria traz uma breve apresentação de sua identidade, intitulada “Muito prazer”, em que são colocadas algumas características de sua personalidade e o mote de sua narrativa: a soropositividade para o HIV:
Meu nome é Valéria, tenho 23 anos, altura média, magra, morena, cabelos pretos e lisos. Neta de italianos, filha de pais separados, pertencente à classe média alta. Como você pode ver, uma pessoa comum, ou pelo menos é assim que eu gostaria de ser vista. E tenho certeza de que assim todos me veriam, não fosse um pequeno detalhe: sou HIV positivo (Polizzi, 2001, p. 8).
A alusão a uma suposta anormalidade decorrente da condição sorológica dialoga com o estigma (Goffman, 1980) que acompanhava a Aids durante os primeiros anos da epidemia (Nascimento, 2005; Pollak, 1990; Tronca, 2000). Não ser vista como uma pessoa comum também remete à normatização e patologização dos corpos discutidas por Canguilhem (2009), bem como à defesa de Sontag (1984, 1989) de que as doenças fossem vistas sem metáforas moralizantes.
O HIV, como podemos observar no trecho destacado, interfere no aspecto comum de sua vida. Todavia, a autora sinaliza que o atributo de anormalidade parte do olhar dos outros, com a expressão todos me veriam e afirma que o HIV é um detalhe entre outras características que a definem.
Merece destaque a descrição física que Valéria apresenta de si mesma, sugerindo uma proximidade com os padrões de beleza hegemônicos e de normalidade (Vigarello, 2006; Gomes, 2012). A sucessão de características, apresentadas de modo trivial, inclui a ascendência europeia, aspecto comum para muitas famílias da cidade de São Paulo e demarcador de prestígio na estrutura social brasileira marcada pelo esforço de embranquecimento da população desde meados do século XIX (Camargo, 1981; Seyferth, 1996). A condição econômica confortável de sua família, também mencionada no trecho, foi determinante nas oportunidades e escolhas referentes ou não à doença, conforme a autora descreve em diversos momentos do livro.
Além disso, é de suma relevância observar que, no contexto da Aids, a descrição física de uma aparência saudável questiona explicitamente a imagem de indivíduos extremamente emagrecidos pela doença. No Brasil, a personificação do doente de Aids para o senso comum foi a capa da “Revista Veja” estampada com a fotografia do cantor e compositor Cazuza (Revista Veja, 1989) bastante emagrecido e acompanhado da manchete “O artista agoniza em praça pública”, que suscitou a revolta do músico, de seus familiares e de ativistas do combate à Aids6. Bessa (2002, p. 329), caracteriza Valéria como a “antítese pública da cara da Aids”.
De acordo com a autobiografia, Valéria cursou a educação básica em instituições privadas, chegou a iniciar a graduação no curso de Letras-Inglês, concluiu um curso profissionalizante de teatro e dedicou-se aos estudos da língua inglesa nos Estados Unidos. Acredito que essas características pessoais interferem em sua relação com a escrita e com seu processo de elaboração e reordenamento de si no enfrentamento do HIV.
Ao finalizar sua apresentação, a autora traz seus leitores ao lugar de interlocução do texto para responder à pergunta sobre como se tornou soropositiva:
Você deve estar se perguntando agora como foi que isso aconteceu e aposto que deve estar imaginando que eu sou promíscua, uso drogas e, se fosse homem, era gay. Lamento informar que não é nada disso e, mesmo se fosse, não viria ao caso. Mas acontece que eu era virgem, nunca tinha usado drogas e obviamente não sou gay (Polizzi, 2001, p. 8).
É nítido que Valéria demarca, ainda que com escusas e afirmações contra o preconceito, um distanciamento em relação às vítimas habituais da Aids. Ao evocar a virgindade, ela se afasta do universo semântico que aproximava Aids e promiscuidade, das pessoas que já eram marginalizadas antes da epidemia e que foram culpabilizadas após seu surgimento. Ao afirmar o que não é: promíscua, homossexual, usuária de drogas, prostituta etc. - ela reafirma sua inserção social dentro de identidades e características socialmente aceitas.
Em seu objetivo de que o livro forneça informações e desmistifique a doença, completa: “O que aconteceu então? É simples, transei sem camisinha” (Polizzi, 2001, p. 8).
Nos capítulos seguintes, ela conta sobre seu relacionamento de que resultou o início da relação sexual desprotegida. É relevante observar que o primeiro namoro foi marcado por violências físicas e psicológicas que culminaram em uma ruptura bastante traumática para a jovem. Taquette (2009) destaca como fatores que agravam a vulnerabilidade de adolescentes/jovens do sexo feminino para o HIV a imaturidade psicossocial, o não reconhecimento da legitimidade do exercício sexual e a violência de gênero.
Nesse sentido, é importante salientar que a afirmação simplificadora de Valéria tenha por objetivo combater o estigma e destacar que a transmissão do HIV não se dava de acordo com características específicas - e marginalizadas - dos sujeitos, mas sim pela ausência de prevenção. Contudo, cabe pontuar que são diversos e complexos os fatores que dificultam a prevenção.
Após descrever a iniciação sexual com o namorado, a autora coloca a relação entre a estigmatização da Aids relacionada à ausência de prevenção, perpassada pela desigualdade de gênero presente nas tomadas de decisão no sexo: “Agora você me pergunta: onde é que estava a camisinha nesta história toda? Eu respondo: não estava. Se já existia Aids? Já, sim, só que era coisa de ‘viado’, de ‘grupo de risco’. E, além do mais, segundo meu namorado, camisinha era coisa de ‘puta’. Eu não era ‘puta’; logo, não precisava de camisinha” (Polizzi, 2001, p. 12).
Na sequência, ocorre a descrição das agressões que ocorreram durante o relacionamento e culminaram na intervenção de familiares para a proteção da vítima e definitivo afastamento do agressor. Diante da violência física e da necessidade de recuperação psíquica, a investigação sobre infecções sexualmente transmissíveis ficou em segundo plano. Valéria chega a mencionar a preocupação com a Aids, sem que esta fosse levada adiante por causa dos traumas da violência, dos estigmas da Aids e das dificuldades de falar abertamente sobre sexualidade com seus pais:
Descobrimos também que ele usava drogas, e com isso surgiu a questão da Aids. Será? Fazia sentido, um mês antes, ao se candidatar a um emprego na polícia, ele havia sido reprovado depois de fazer um exame de sangue. Mas aquilo já era muito para a minha cabeça, e eu nem havia falado para os meus pais que tinha transado com ele. Além do mais, a Aids naquela época era muito rara em mulheres (Polizzi, 2001, p. 15).
Lidar com os traumas de um relacionamento violento acabou constituindo prioridade em um contexto em que o preconceito e a estigmatização da epidemia de HIV/Aids colaboravam para a negligência seu enfrentamento como um problema social amplo. Desta forma, a ideia de que a Aids preconizava homens homossexuais prevaleceu, reforçando a ênfase dada pela autora à desmistificação e combate aos preconceitos em torno da Aids com a publicação de seu livro.
“Parecia que o meu crime tinha sido transar”7
No capítulo seguinte, Valéria narra os acontecimentos que a levaram ao diagnóstico, aproximadamente dois anos após o término do namoro. A escola havia terminado e sem planos mais concretos para o futuro, ela decidiu fazer uma viagem para os Estados Unidos, onde possuía parentes. A fim de evitar eventuais problemas na viagem, procurou um gastroenterologista para investigar uma dor de estômago que sentia. Desde a primeira consulta, foi desacreditada pelo médico, o que a deixou com raiva. Contudo, a presença de sua mãe na consulta impediu que ela reagisse como gostaria, como é possível observar no trecho a seguir:
Embora eu já estivesse bem grandinha para ir sozinha ao médico, minha mãe bateu o pé e disse que iria junto. Que saco! Mais saco ainda foi o médico me perguntando ‘Onde dói?’. ‘Aqui’, eu disse apontando o esôfago. Ele deu uma risadinha e disse ‘Desde quando o esôfago dói na sua idade?’. Se tem uma coisa que eu odeio são piadinhas sem graça de médico. Quem ele pensa que é pra (sic) ficar fazendo pouco caso da minha dor? Fiquei com vontade de mandar ele tomar no cu (sic). Mas, em respeito à minha mãe, que provavelmente teria um desmaio, respirei fundo e só fiz cara feia (Polizzi, 2001, p. 25).
Mesmo sem acreditar na capacidade da paciente de identificar o local de sua própria dor, o médico solicitou uma endoscopia e o retorno à consulta após o resultado, o qual indicou o diagnóstico de candidíase no esôfago. Na narrativa de Valéria, ocorre a alternância entre os pensamentos que teve durante a consulta e o diálogo com o médico, denominado Dr. Sabe Tudo. Com o diagnóstico da candidíase, ele solicita exames de sangue, sem especificar o que está investigando.
Ao receber o resultado dos exames de sangue, Valéria estava acompanhada do pai e descreve a reação negativa do médico: “o Dr. Sabe Tudo leu, não fez uma cara muito boa e disse que teria de pedir mais alguns exames” (Polizzi, 2001, p. 26). Mais uma vez, a paciente não é informada sobre o teor dos exames e demonstra sua insatisfação com a nova coleta de sangue: “Êêêê, de novo? Por que já não pediu tudo de uma vez?” (Polizzi, 2001, p. 26).
Após as perguntas da paciente, o médico justifica de forma evasiva: “É porque primeiro eu precisava checar uma coisa e talvez nem precisasse pedir esses aqui, mas agora eu vejo que vai ser preciso...” (Polizzi, 2001, p. 26). Em seu tom coloquial, Valéria demonstra preocupação com a ausência de informações: “Algo me dizia que o cara tava me (sic) enrolando” (Polizzi, 2001, p. 26). O mistério permanece quando o médico faz a anotação do pedido dos exames, mas não entrega para a paciente:
Ele pegou um papel e anotou umas coisas. Como da outra vez, eu estendi a mão para pegá-lo, mas desta vez ele não me entregou.
- Deixa que eu mesmo dou para a enfermeira - ele disse. - desce lá e vai colhendo o sangue.
Achei aquilo muito estranho mas fiz o que ele mandou (Polizzi, 2001, p. 26).
Como é possível observar, os exames de sangue foram feitos sem que a paciente tomasse conhecimento de sua finalidade. Em uma das vezes, possivelmente no próprio exame de detecção do HIV, Valéria não teve acesso sequer ao formulário de encaminhamento.
Dias depois, durante um trajeto de automóvel em companhia do pai, este inicia indiretamente o assunto sobre a Aids, falando sobre as imprecisões e desconhecimentos médicos sobre a nova doença. A partir disso, a jovem conecta a fala do pai com os exames misteriosos:
Pronto. Não precisava dizer mais nada. Eu estava com Aids. Aquele médico deve ter feito um teste sem o meu consentimento e, pior, deve ter ligado para o meu pai para dar o resultado. Que sacanagem, ele não tinha esse direito! Não consegui dizer uma palavra e também não me atrevi a olhar para o meu pai. Ficamos os dois em silêncio, olhando pela janela do carro. Eu pensando no susto que ele devia ter levado, ele pensando sabe deus no quê (Polizzi, 2001, p. 26).
Ao refletir sobre o conceito de biopolítica foucaultiano, confrontado à noção de potência, presente em Deleuze e Espinosa, André Martins (2004) infere a respeito da construção do lugar de poder do médico e da medicina diante do paciente. Este, segundo o autor, passa a ser visto como se devesse submeter-se à sua tutela, abdicando “de sua autonomia, de seu poder de reflexão sobre si mesmo, de decisão sobre si, de conhecimento intuitivo e, sobretudo, vivencial de si mesmo” (Martins, A., 2004, p. 25).
Na leitura conceitual do autor, a autoridade da medicina científica contribui para que o paciente seja visto como um amontoado de órgãos cujo defeito precisa ser corrigido pela autoridade médica independente da vontade do paciente, pois a verdade científica se sobrepõe a esta.
Abordando especificamente a Aids, Guzmán e Iriart (2009) destacam a assimetria na relação médico-paciente, o que contribuiria para o distanciamento entre os sujeitos e aumento do sofrimento das pessoas soropositivas. Eles também destacam a contribuição negativa das tecnologias para a relação terapêutica, pois estas reforçariam a racionalidade da medicina em detrimento da subjetividade do paciente.
A estrutura do conhecimento científico e da autoridade médica legitimam, portanto, a atitude do médico de realizar o exame sem o conhecimento e o consentimento da paciente e de, além disso, informar o resultado a seus familiares. Cabe destacar que alguns anos depois do diagnóstico de Valéria, a prática passou a ser proibida pelas normas éticas para o tratamento de HIV/Aids, estabelecidas pelo Conselho Federal de Medicina na Resolução n. 1.359/92, artigo 2º: “o sigilo profissional deve ser rigorosamente respeitado em relação aos pacientes com Aids; isso se aplica inclusive aos casos em que o paciente deseja que sua condição não seja revelada sequer aos familiares, persistindo a proibição de quebra de sigilo mesmo após a morte do paciente” (Conselho Federal de Medicina, 1992).
Acredito que no caso de Valéria, a disparidade de forças na relação médico paciente tenha sido também influenciada por seu gênero e sua idade.
As especificidades do olhar médico dedicado às mulheres foi objeto de estudo para Ana Paula Vosne Martins (2004) e para Rohden (2001). Ambas as análises identificam no processo de formação de especialidades médicas dedicadas à mulher e à maternidade - como a ginecologia, a obstetrícia e a puericultura -, elementos culturais que objetivavam o reforço da separação entre homens e mulheres. De acordo com suas pesquisas, a medicina teve um papel central na elaboração e fortalecimento do conhecimento científico que naturalizou as diferenças biológicas identificadas em homens e mulheres.
Depois de um diagnóstico confuso e marcado pelo silêncio, Valéria segue em busca de um infectologista para saber mais sobre a doença e as possibilidades de tratamento:
O próximo passo foi procurar um especialista. Fomos eu, meu pai e minha mãe. Só por aí já dava pra sacar (sic) a gravidade da questão: os meus pais nunca andam juntos. Chegando lá entrei sozinha na sala do médico, que começou e me fazer um monte de perguntas. Pelo jeito, alguém já tinha explicado alguma coisa pra ele. Quis saber com quem eu havia transado, se eu havia usado drogas, se eu sabia se o cara com quem eu havia transado usava, que tipo de sexo a gente praticou... Me senti num banco de réus, parecia que o meu crime tinha sido transar e provavelmente a sentença seria a morte (Polizzi, 2001, p. 27).
A vigilância e condenação da sexualidade dialogam com a histórica coerção de gênero e medicalização da feminilidade em torno da reprodução, analisadas por Ana Paula Vosne Martins (2004) e Rohden (2008). A criminalização da sexualidade em si também dialoga com o histórico tabu da sexualidade analisado por Foucault (1980), que é reforçado pela epidemia de HIV/Aids (Pollak, 1990).
A ausência de tratamento eficaz naquele momento da epidemia, os anos finais da década de 1980, trazia a morte como um dos importantes elementos da representação social da Aids. Desta forma, a culpabilização pela doença traria como condenação específica uma sentença de morte. Cabe observar que nesse simulacro de tribunal, o médico interroga a suspeita e profere a sentença, representando ao mesmo tempo os papeis de acusador e juiz enquanto Valéria ocupa o banco dos réus.
O detalhamento de sua vida sexual é suscitado por médicos de outras especialidades, como acontece em uma consulta a um oculista:
Como da vez em que fui ao oculista por causa duma bolinha, tipo tersol, que havia nascido no meu olho. O tal médico fora indicado pelo outro, assim quando eu cheguei, ele já sabia do que se tratava. Mas nem por isso deixou de fazer um bando de perguntas. As de sempre: se eu usava drogas, com quantos tinha transado...
- Você não praticou sexo anal? - aquela história de sexo anal já estava me enchendo o saco.
- Nããããão!
Aí ele fez uma cara de espanto e disse que eu era o primeiro caso de mulher brasileira a ser contaminada por penetração vaginal. Era só o que me faltava. Será que aquilo era verdade mesmo ou ele é que estava mal-informado?
- E isso é muito sério - ele continuou. - Porque, se houver mesmo esse tipo de contaminação, a doença vai se propagar muito mais rápido do que o previsto (Polizzi, 2001, p. 37).
Cabe observar que o médico em questão não era infectologista e não estava familiarizado com casos de HIV positivo. Todavia, é relevante que, nos anos finais da primeira década da epidemia, um profissional da saúde mantivesse a perspectiva de que a doença não era transmitida por sexo vaginal. A visão de que a transmissão da doença se restringia aos então chamados grupos de risco era bastante disseminada, embora organizações ativistas ligadas à Aids alertassem para a necessidade de que a prevenção e o combate à doença fossem amplamente encarados pela sociedade (Vianna; Nascimento, 2020).
Além disso, o trecho é elucidativo sobre a relação médico-paciente pautada na hierarquia de poder e saber, em que o oculista se dedica a pormenores da sexualidade da jovem apesar de já ter conhecimento prévio de seu histórico.
Diferente das primeiras consultas, em que é acompanhada pela mãe ou pelo pai, se poderia imaginar que, por estar desacompanhada, Valéria teria sua autonomia respeitada. Entretanto, o excesso de questionamentos do médico sobre seu comportamento reforça uma hierarquia que, nesse caso, pode ter sido agravada por sua idade.
O coito anal é mencionado por Duarte (2000) como agravante nos processos e adquire relevância na história da Aids por ser prática associada à homossexualidade e condenada pela moral cristã. Conforme destacou Brandão (2010, p. 307), a representação da sexualidade feminina é historicamente pautada em dois extremos: “voracidade sexual e da lascívia da mulher caída e a da assexualidade da mulher respeitável”. Nesse sentido, o sexo anal é mencionado não apenas como uma das formas de transmissão do vírus, mas como uma prática moralmente condenável, reforçando a culpabilização pela doença. A crença de que o vírus selecionava suas vítimas de acordo com o comportamento incluía a ideia equivocada de que apenas as relações anais levariam ao risco, o que também motivou perguntas constantes sobre essa prática.
Valéria obteve seu diagnóstico no Brasil, pouco antes de uma viagem para os Estados Unidos, onde, por incentivo de familiares, repetiu os exames e consultou outros especialistas. Embora o país muitas vezes apareça em sua narrativa como mais acolhedor e preparado para acolher pessoas soropositivas, o primeiro médico que a atendeu repetiu o protocolo de descrença na soropositividade em uma mulher. Segundo conta, “o médico não acreditou que eu estivesse contaminada. Primeiro, porque eu era mulher; segundo, porque não tinha praticado sexo anal; e, terceiro, porque um dos meus exames deu negativo” (Polizzi, 2001, p. 33).
A enumeração das razões feita por Valéria é bastante significativa, pois um exame negativo poderia efetivamente minar a suspeita sobre a presença do vírus, porém, este é apontado como o terceiro dos motivos para a descrença em sua soropositividade. O gênero e a ausência de sexo anal foram mais relevantes para o olhar do médico do que o dado laboratorial, explicitando o quanto o saber médico não se desvencilha, em momento nenhum, dos valores culturais, sociais, econômicos etc. (Rosenberg, 1997). Este episódio específico é também importante para identificarmos tal aspecto para além do contexto brasileiro, principalmente se lembrarmos que as primeiras notificações e informações divulgadas sobre a Aids no Brasil foram diretamente traduzidas dos Estados Unidos (Barata, 2006).
Além disso, a opinião de um especialista de um país desenvolvido teve grande peso para a jovem e seus familiares, criando esperança de que o diagnóstico não tivesse passado de um equívoco:
- Nós vamos repetir o teste. Se der negativo, você vai esquecer tudo isso e encarar como uma difícil experiência pela qual você passou.
Uma luzinha acendeu de novo. Meu tio me abraçou e quase chorou no corredor do hospital. Eu só pensava numa coisa, ligar para os meus pais e dar a grande notícia, dizer que tudo não passara de um pesadelo. Mas achei melhor esperar e ligar só quando tivesse com o resultado nas mãos. Fui dormir feliz, pensando num moreno de olhos castanho-claros que eu havia deixado no Brasil.
O exame ficou pronto, só que deu positivo. Coitado do médico, não sabia nem como me contar, me mostrou os resultados dizendo que havia repetido mais de uma vez, pois para ele era difícil de acreditar (Polizzi, 2001, p. 34).
É importante observar que, assim como acontece quando recebe seu diagnóstico na conversa evasiva com o pai, ela se preocupa mais com o interlocutor do que consigo mesma. Nos dois episódios ela demonstra preocupação com o choque ou desconforto que ambos tiveram do que com os sentimentos que podem tê-la acompanhado no processo de elaboração da própria experiência com a soropositividade.
Embora ela sinalize a preocupações de sua vida pessoal, estas também são associadas ao que outras pessoas pensavam ou pensariam a respeito do diagnóstico. Como é possível observar no trecho destacado, ela menciona o fim de um pesadelo para seus familiares e um rapaz de quem gostava, mas havia desistido de namorar por medo de falar sobre o HIV.
A preocupação com os interlocutores pode estar relacionada ao próprio silêncio sobre HIV/Aids que acompanhou Valéria após o diagnóstico. Por recomendação dos médicos, ela manteve em segredo sua condição sorológica, o que acabou prejudicando suas relações interpessoais e influenciando no afastamento dos amigos: “os médicos continuavam a dizer que eu não devia contar ‘aquilo’ pra ninguém. ‘O preconceito é muito grande’, eles explicavam. E aí eu também já não procurava mais os meus amigos” (Polizzi, 2001, p. 42).
A relação de poder entre médico e paciente foi determinante na tomada de decisões de Valéria sobre sua condição de saúde de modo mais amplo. O medo do preconceito contribuiu para que a jovem acabasse se esforçando para fingir que o vírus não existia em sua vida, o que também interferiu nos seus cuidados com a própria saúde.
O medo de que outras pessoas viessem a saber de seu diagnóstico, somava-se ao medo da doença em si, pois os prognósticos dos médicos não eram promissores à época. Destaco a seguir a narrativa de uma das consultas com o infectologista, em que este afirma ser em torno de dez anos a expectativa de vida para soropositivos:
Nossa, que bom, não? No mínimo ele ficou ali parado, esperando que eu desse um sorriso e saísse feliz e contente. Dez anos. Dez anos... A minha cabeça já tinha começado a fazer as contas. Peraí, já nem são mais dez. Se eu estou com dezoito anos, peguei isso provavelmente com dezesseis, então me restam só oito. Oito anos. Oito anos para eu me encher de pereba, meu cabelo cair, eu ficar pesando meio grama e tchau! Essa era a primeira sentença de morte que eu via com validade para oito anos. E isso se eu tivesse sorte, é claro, muita sorte (Polizzi, 2001, p. 29).
A ausência de esperanças quanto ao tratamento, somada aos desconfortos das consultas vivenciadas, afastaram Valéria do acompanhamento médico. Contudo, a recomendação de manter o silêncio sobre sua condição de saúde foi seguida à risca.
“Mais difícil que ter o vírus da Aids era ter que fingir que não tinha”8
Desde o primeiro momento, sua experiência com o HIV é marcada pelo silêncio. A fala reticente do pai soma-se aos conselhos dos médicos para que mantivesse segredo a fim de preservar-se do preconceito, o que nos remete às proposições de Sontag (1984, 1989) sobre o peso das doenças metaforizadas. Conforme destaca a autora, doenças como câncer e Aids mobilizam o silenciamento junto aos estigmas. O medo da doença se estende aos discursos a seu respeito, como se mencioná-la reforçasse a sua presença.
Essa ausência de discursos sobre Aids acentua, para Valéria, o sofrimento do diagnóstico, como sintetiza o trecho que intitula este subitem, em que descreve o consultório da psicóloga como o único lugar onde era permitido ter a doença:
Durante muito tempo aquele foi o único lugar em que eu falava de Aids. Às vezes, nem mesmo falava, mas só o fato de saber que ali dentro, pelo menos, eu tinha o direito de ter Aids já era uma grande coisa. Fora dali quase ninguém sabia, e os que sabiam - meus pais, meus tios de Manaus e meus tios dos Estados Unidos - nunca tocavam no assunto. Uns porque estavam longe, outros porque não sabiam mesmo o que dizer. E então minha vida era assim: mais difícil do que ter o vírus da Aids era ter que fingir que não tinha (Polizzi, 2001, p. 47).
A terapia é mencionada por Valéria como um recurso importante no enfrentamento da doença e um refúgio no período em que seus pais e familiares se esquivavam de colocar a Aids em discurso. Esse aspecto também é significativo pois destaca a importância do tratamento multidisciplinar, onde o atendimento psicológico faz parte do acesso à saúde.
É importante destacar que, ao longo da autobiografia, todos os médicos e profissionais da saúde são sempre citados de acordo com a sua especialidade, por exemplo, Dr. Infecto, Dr. Ginecologista. Algumas vezes ocorre mudança no termo utilizado para se referir a um mesmo médico, como é o caso do Dr. Infecto que se transforma em Dr. Afeto quando médico e paciente constroem uma relação mais dialogada. A psicóloga é a única que ganha um pseudônimo específico - Dra. Sylvia. Acredito que a escolha de um nome próprio esteja diretamente ligada ao espaço de acolhimento representado pelo atendimento psicológico. No sentido metafórico da narrativa, ganha nome a pessoa que permite que a Aids seja também nomeada.
Junto ao silêncio reside a preocupação com a transmissão do HIV diante da ausência de prevenção observada ao redor. Valéria descreve um episódio em que acompanhou uma colega do curso preparatório para o vestibular a uma palestra sobre Aids, na qual foram apresentadas fotos de pessoas em estado terminal da doença e utilizado tom ameaçador. Ao rememorar a ocasião, a jovem enfatiza o mal-estar de ter permitido a divulgação das informações equivocadas e seus perigos:
No final senti uma enorme desesperança e pena, muita pena de todos ali. Do professor, pela sua tentativa inútil de conscientizar os jovens através do medo e de lições de moral; dos jovens, pela certeza de que nada daquilo faria com que se protegessem; e de mim, porque não tive coragem de me levantar bem no meio da palestra e contestar tudo. Pra começar, dizendo e mostrando que pessoas com Aids ou com o vírus da Aids não são nenhum monstro. Que só ter medo e comportamento moralista nunca havia salvado ninguém. E que as pessoas têm é que encarar tudo de frente, sem tabus e preconceitos.
Sim, era isso mesmo que eu deveria ter feito. Mas não fiz, continuei sentada em silêncio. Se fosse hoje, entretanto, depois de tudo que vi e vivi, me levantaria sim e contaria toda a minha história. E porque acredito que esse seja o melhor caminho é que estou aqui escrevendo este livro. Para que eu comece a me levantar e não deixe outros caírem (Polizzi, 2001, p. 49, grifos no original).
A referência aos motivos que a levaram a escrever o livro constroem uma relação profunda em que a própria experiência da doença se completa na luta pela prevenção das pessoas que as cercam. Para Valéria, abordar e comprometer-se pública e politicamente com a Aids foi uma estratégia necessária de sobrevivência. Essa decisão, contudo, ocorre anos após o diagnóstico, depois de um processo de adoecimento e longa internação. No hospital, o dilema da revelação do diagnóstico ressurge. Desta vez, Valéria deseja romper o silêncio, mas é contrariada pela vontade da mãe. Ambas discutem o assunto, no que a jovem argumenta:
Se eu tivesse com câncer, já tava todo mundo sabendo. Por que é que Aids não se pode falar? É algum crime ter Aids, por acaso? Ou é porque está associada à palavra morte? Ninguém vai morrer, né? Só eu. Ou será que é porque eu peguei transando? Ninguém transa também na face da terra? Cansei de papo. Cansei de ter a doença proibida, a palavra impronunciável. Por mim, colocava uma placa na porta do quarto: Aids! Quem quisesse que ficasse do lado de fora (Polizzi, 2001, p. 239).
A enumeração dos principais estigmas ligados à doença é seguida de argumentos para sua desmistificação: a morte como problema individual; o sexo como prática cotidiana; o medo de falar com a escrita. Falar sobre a doença é a grande escolha que motiva o livro, portanto, são inúmeros os fatores que contribuíram para a mudança na percepção de Valéria a respeito do silêncio. A história acompanha os principais acontecimentos de sua vida desde a relação em que houve exposição ao vírus sem prevenção, até a recuperação após a internação. Elaborando a própria experiência com a Aids, Valéria conclui que o silêncio foi mais nocivo que o próprio vírus.
Ao longo de sua jornada, um episódio foi decisivo na mudança de perspectiva sobre a soropositividade. Um novo médico que, nos Estados Unidos, lhe emprestou materiais sobre pessoas soropositivas que levavam uma vida normal. Cabe salientar que, embora Valéria não conhecesse, existiam materiais similares no Brasil, geralmente produzidos por organizações não-governamentais9. Um material específico sobre mulheres e Aids foi decisivo para mudar os pensamentos e atitudes da jovem:
Comecei a ler. Falava de uma tal de Amanda, uma mulher que descobrira ser soropositiva havia alguns anos. E que, depois de terminado o período de depressão, retomou sua vida normal. Seguiu sua carreira e casou-se com um homem soronegativo. O casal teve uma filha, também soronegativa, que, na época, estava com dois anos. Amanda continuava trabalhando, cuidando de sua família e viajando pelo estado, dando palestras sobre mulher e Aids (Polizzi, 2001, p. 113).
É relevante destacar que, mais uma vez, é por meio da relação com o médico, estabelecida no espaço do consultório que ela constrói sua relação com a própria doença. A partir disso, a possibilidade de uma vida normal se acendeu, gerando problematizações sobre os discursos hegemônicos sobre a doença. Todavia, confrontada pela sentença de morte anteriormente compreendida como parte do diagnóstico do HIV, Valéria resiste à retomada de planejamento do futuro proposta pelo médico e pelos folhetos. No fragmento abaixo ela rememora os pensamentos que teve durante a consulta, mas que não se sentiu confortável para verbalizar na ocasião.
Normal? Normal! Acho que isso é tudo o que eu queria ser. Mas vai tentar ser normal ouvindo todo dia a Aids mata, a Aids é o mal do século, vamos acabar com a Aids. Até parece que as pessoas esquecem que o vírus está dentro de mim, que a Aids só existe porque eu existo, se eu morresse, o vírus também morreria. Ou seja, de certa forma eu sou a Aids. A Aids mata. É o mal da humanidade. É mórbida, é deprimente, é horrível. Vamos acabar com a Aids. Como é que se pode levar uma vida normal ouvindo isso toda hora, lendo isso em todos os lugares? Como é que eu posso pensar em seguir uma carreira, casar, ter filhos, construir qualquer coisa que seja, sendo associada a todas essas coisas horríveis? Mas acho que o doc jamais entenderia isso. Às vezes, nem eu mesma entendia. Fiquei quieta sem dizer nada (Polizzi, 2001, p. 114, grifos no original).
O receio de debater com o médico pode ser relacionado às experiências anteriores em que sua dor foi desqualificada, sua sexualidade foi esmiuçada e devassada; e o silêncio sobre a doença foi colocado como opção segura para lidar com ela. Contudo, o cuidado mais humanizado a que teve acesso motivou Valéria a continuar o acompanhamento médico enquanto esteve nos Estados Unidos. Ainda fora do país ela começou a apresentar alguns sintomas e sinais de infecção, sem que a causa fosse identificada pelos médicos. O adoecimento, somado a algumas decisões pessoais, motiva Valéria a voltar ao Brasil.
Ao chegar, seus pais insistem que ela procure o infectologista, no livro chamado de Dr. Infecto, que a havia atendido anteriormente, ao que ela resiste alegando que ele não entendia nada de gente (Polizzi, 2001). Como a internação foi inevitável, ela acabou ficando aos cuidados da equipe do Dr. Infecto. Nesta, um médico mais jovem também se cuidava de seu caso, este referido na história como Dr. Anjo: “Se é coisa que eu odeio são esses exames de médico desconhecido. A maioria deles tem a péssima mania de pegar na gente como se fossemos um pedaço de carne no açougue. Mas depois que o Dr. Anjo colocou as mãos no meu pescoço, eu fiquei mais calma. Acho que ele sabia que estava pegando numa pessoa” (Polizzi, 2001, p. 225).
Após o exame, ele explicou sua avaliação do caso, apresentou para a paciente o procedimento que considerava mais eficaz e perguntou se ela concordava com a execução, deixando a jovem surpresa e feliz: “Para tudo. Ele não ordenou? Não mandou? Não impôs? Ele perguntou se pode ser? [...] Será que aquilo era um sonho?” (Polizzi, 2001, p. 227). Acolhida pelo Dr. Anjo, ela passa a se recusar a enfrentar procedimentos invasivos sem que os médicos e enfermeiros tivessem o cuidado de explicar detalhadamente o que seria feito. Isto ocorre quando um médico desconhecido entra em seu quarto e começa a examinar seu pescoço e aponta onde vai cortá-lo para examinar, ao que Valéria reage: “Olha aqui [...], o pescoço é meu, a vida é minha e quem manda nela sou eu! E enquanto eu estiver viva, se você quiser mexer em mim, vai ter que pedir minha permissão!” (Polizzi, 2001, p. 233).
Ao descrever uma das visitas de seu antigo médico, Valéria sintetiza alguns dos principais pontos da conflituosa relação médico-paciente no contexto da Aids:
Esse Dr. Infecto pensava o que da vida? Que era só ele chegar e dizer tome isso! Eu abaixo a minha cabeça e digo amém. Será que ele havia esquecido que eu era feita de um material chamado ser humano e que, por um acaso, como todos os outros da mesma raça era cheia de dúvidas? E que essa porra de Aids era uma coisa nova, ninguém sabia aonde é que ia parar, não se sabia se os remédios eram bons mesmo, se faziam algum mal, e mais, àquela altura, eu nem sabia se queria continuar viva. Não, ele não sabia nada disso. Vai ver que nem lembrava que eu era gente. Era isso, olhava pra minha cama e só enxergava um tubo de ensaio cheio de vírus pulando dentro (Polizzi, 2001, p. 230, grifos no original).
A reflexão de Valéria vai ao encontro da análise de Guzmán e Iriart (2009), segundo quem a assimetria da relação médico paciente prejudica o tratamento. A experiência narrada de Valéria é bastante elucidativa no que diz respeito às subjetividades em jogo na elaboração da experiência da doença e adesão ao tratamento. O diálogo e a negociação sobre o tratamento só foram possíveis diante do quadro clínico agravado. Valéria tinha poucas esperanças de sobrevivência. No trecho acima, menciona a incerteza sobre querer continuar viva e mais adiante diz que mais de uma vez que pensou em praticar eutanásia (Polizzi, 2001). No contexto mais dramático de desesperança diante do adoecimento que Valéria reivindica seu lugar de sujeito autônomo diante das tomadas de decisão do tratamento.
Após mais alguns percalços da rotina hospitalar durante a internação, a luta de Valéria em busca de autonomia sobre o próprio tratamento conquista resultados. Um dia, o Dr. Infecto chegou ao quarto da jovem e propôs que tivessem uma conversa, ao que ela comemora: “Uma conversa?! Vai chover granizo” (Polizzi, 2001, p. 258). O assunto era a adesão ao tratamento com as medicações disponíveis à época, que pouco tempo depois incluíram os inibidores de protease. Valéria termina seu livro falando de sua recuperação e das viagens realizadas depois, numa alusão ao título do livro.
Considerações finais
A historiografia das doenças (Sontag, 1989; Pollak, 1990; Tronca, 2000; Barata, 2006; Nascimento, 2005) foi profícua em identificar o quanto os doentes de Aids foram, desde os primeiros anos da epidemia, estigmatizados. A carga moral acoplada à doença esteve ligada à condenação de comportamentos referentes, principalmente, à livre expressão da sexualidade e ao uso de drogas. No caso de Valéria, a estigmatização e a relação de poder estabelecida pelos médicos motivou o silêncio sobre o diagnóstico. A suposta associação entre o vírus e grupos específicos colaborou para que sua experiência de mulher soropositiva fosse muitas vezes desacreditada e silenciada.
Em mais de uma ocasião, detalhes íntimos de sua vida foram expostos no consultório médico, culpabilizando a paciente e contribuindo para que esta optasse por afastar-se do acompanhamento médico. O contato com médicos que consideraram sua autonomia contribuiu para que, mesmo diante da fragilidade do adoecimento, ela negociasse com os médicos e profissionais de saúde as decisões sobre seu tratamento.
Como dissemos no começo deste artigo, Valéria era heterossexual, pertencia à classe média alta e utilizava os serviços da rede privada de saúde na cidade de São Paulo, a cidade mais rica do país. As dificuldades que enfrentou, considerados os demarcadores sociais que ela mesma aponta no começo de seu livro, são relevantes para pensarmos os diferentes gradientes de desigualdade e a assimetria na relação médico-paciente para indivíduos provenientes de outros grupos sociais. O surgimento da terapia antirretroviral, ainda que gratuitamente distribuída pelo Sistema Único de Saúde no Brasil, não solucionou as condições de desigualdade enfrentadas pelas pessoas soropositivas em nosso país (Biehl, 2011). A equidade no acesso à saúde, direito garantido pela Constituição, depende de inúmeros aspectos, entre os quais o respeito à autonomia do doente e a compreensão deste como sujeito capaz de avaliar suas condições e participar das decisões que dizem respeito ao cuidado e ao tratamento. Espero que esta análise contribua para reflexões nesse sentido para a historiografia da Aids e das doenças de modo mais amplo.
Fontes
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