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A interiorização da saúde no Piauí: Parnaíba entre o fim do século XIX e meados do século XX
The interiorization of health in Piauí: Parnaíba between the end of the 19th century and the middle of the 20th century
La interiorización de la salud en Piaui: Parnaiba entre finales del siglo XIX y mediados del siglo XX
Revista NUPEM (Online), vol. 13, núm. 29, pp. 175-191, 2021
Universidade Estadual do Paraná

Dossiê


Recepción: 14 Diciembre 2020

Aprobación: 14 Febrero 2021

DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2021.13.29.175-191

Resumo: A proposta do artigo é analisar o processo em que o município de Parnaíba, localizado no norte do Piauí, realizou a sistematização dos serviços de saúde a partir das iniciativas públicas e filantrópicas, tornando-se destaque no interior do estado entre os anos de 1889 e 1945. A limitação dos serviços no setor da saúde piauiense foi uma condição que persistiu até a década de 1930, quando se verificou a sistematização do departamento de saúde, que passou a ser estruturado a partir da organização, controle e funcionamento dos estabelecimentos de saúde. Nesse contexto, a cidade de Parnaíba obteve expressão no fornecimento de serviços, inclusive se comparada à Teresina, capital do Piauí.

Palavras-chave: História, Saúde pública, Piauí, Parnaíba.

Abstract: The proposal of the article is to analyze the process in which the municipality of Parnaíba, located in the north of Piauí, carried out the systematization of health services from public and philanthropic initiatives, becoming a highlight in the inland of the state between 1889 and 1945. The limitation of services in the Piauí health sector was a condition that persisted until the 1930s, when the health department was systematized and structured based on the organization, control and operation of health establishments. In this context, the city of Parnaíba obtained expression in the provision of services, even when compared to Teresina, the capital of Piauí.

Keywords: History, Public health, Piauí, Parnaíba.

Resumen: La propuesta del artículo es analizar el proceso en el que el municipio de Parnaíba, situado en el norte de Piauí, llevó a cabo la sistematización de los servicios de salud a partir de iniciativas públicas y filantrópicas, convirtiéndose en un punto destacado dentro del estado entre 1889 y 1945. La limitación de los servicios en el sector de la salud de Piauí fue una condición que persistió hasta el decenio de 1930, cuando se sistematizó el departamento de salud, que comenzó a estructurarse sobre la base de la organización, el control y el funcionamiento de los establecimientos de salud. En este contexto, la ciudad de Parnaíba obtuvo expresión en la prestación de servicios, incluso cuando se la compara con Teresina, capital de Piauí.

Palabras clave: Historia, Salud pública, Piauí, Parnaíba.

Introdução

Na Primeira República a assistência à saúde era concebida pelo Estado como problema científico resolvido e missão fundamental de qualquer povo civilizado. No Piauí, durante esse período, os poderes públicos não possuíam atuação efetiva sobre a saúde, condição observada a partir da ausência de organização administrativa da Diretoria de Saúde Pública, órgão estadual encarregado de atuar na área. Isso refletiu na inoperância de serviços regulares na capital e no interior, que contava apenas com as Delegacias de Saúde, atuantes nas epidemias. Foi durante a década de 1920 que começaram a ser viabilizadas algumas iniciativas, inclusive de caráter federal, que resultaram na inauguração dos primeiros Postos de Saúde no Piauí. Paralelamente ao funcionamento dos estabelecimentos de saúde pública, também existiam os hospitais gerais de caráter benemerente, que assistiam aos doentes desvalidos.

O ideário existente na Primeira República, de conduzir o Brasil rumo ao progresso, persistiu como uma proposta política consolidada nos anos 1930 e 1940, sobretudo no período estadonovista, cuja base foi um projeto de estruturação administrativa centralizada e a execução de ações sistemáticas. Esse contexto propiciou a articulação de um plano de desenvolvimento para o Piauí, propiciando a realização de obras e serviços, o que repercutiu na estruturação de um sistema de saúde pública estadual que funcionava com centralização federal. O resultado foi a expansão dos serviços de saúde para a população pobre com a implantação de postos de higiene, centros de saúde, hospitais e outros estabelecimentos, não somente públicos, mas também caritativos e filantrópicos.

No contexto entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, o município de Parnaíba destacava-se no estado como referência econômica e cultural, não só pela sua localização privilegiada no norte do Piauí, mas também em virtude da representatividade política que ocupava diante desse amplo cenário. Conforme tal condição, notadamente Parnaíba também se destacou no campo das iniciativas de saúde pública. Isso ocorreu tanto a partir da centralidade que adquiriu na interiorização da política de saúde do governo estadual, diante dos outros municípios, contando com várias instituições de atendimento, quanto no que se refere ao caráter modelar dos estabelecimentos de caridade e filantropia, destacando-se, ainda, nessa atuação local, os governos municipais.

Diante do exposto, a proposta do capítulo é analisar como Parnaíba notabilizou-se no planejamento, bem como na atuação dos poderes públicos e da benemerência, na assistência à saúde da população do interior do Piauí entre 1889 e 1945. Para isso, será discutido o processo problemático de sistematização burocrática de saúde estadual, bem como o caráter e o funcionamento das instituições de saúde implantadas desde a Primeira República, contexto no qual Parnaíba já se destacava entre os outros municípios do interior do estado. Além disso, também será investigado o processo de dinamização na implantação dos estabelecimentos de saúde entre os anos de 1930 a 1945, consolidando o estatuto da relevância de Parnaíba na assistência à saúde no Piauí.

Para a execução da proposta utilizou-se um corpus documental que foi analisado a partir de uma bibliografia com caráter teórico e metodológico. As fontes primárias foram compostas por códices de saúde, mensagens e relatórios do governo do Piauí, legislação estadual, além do Jornal Diário Oficial. Este material documental foi abordado a partir da contribuição de autores que discutem a História da Saúde e das Doenças, tais como Hochman; Fonseca (1999), Martins (2011), Campos (2006), Fonseca (2007), além de outros.

A limitação dos serviços de saúde piauienses e os primeiros estabelecimentos de saúde de Parnaíba

Algumas iniciativas de saúde pública no Brasil notabilizaram-se sob a chancela do governo central durante o século XIX. Isso ocorreu, sobretudo, a partir da elevada incidência de epidemias que resultavam no aumento das taxas de mortalidade, o que era identificado como entrave para o aumento do nível de desenvolvimento, bem como para a aquisição de um grau civilizatório aceitável (Chalhoub, 2006). Nesse contexto destacou-se a medicina social, quando as funções dos médicos foram ampliadas mediante a atuação junto ao Estado (Costa, 2004). Ocorria que antes os médicos eram notadamente responsáveis pelo tratamento das enfermidades individuais, mas os seus encargos aumentaram, passando a ser, também, de assegurar medidas que visavam à boa saúde e à longevidade populacional.

Para cuidar da saúde coletiva eram estabelecidas regras de higiene sobre o modo de viver a partir de cuidados sobre a alimentação, a habitação, o vestir, o dormir e tantas outras. As questões higiênicas acabaram tornando-se sociais, os médicos, construindo para si uma posição de guardiães de uma sociedade física, mas também moralmente sadia, passaram a ser considerados como agentes capazes de remediar e prevenir os males que atingiam o corpo social (Pilotti; Rizzini, 2011).

As discussões higienistas, que repercutiam em âmbito federal, não pareceram contribuir positivamente para a uma alteração da condição da saúde pública no Piauí. No século XIX, o órgão administrativo local era a Inspetoria de Higiene Pública. A problemática do seu funcionamento pode ser justificada pela ausência de organização burocrática e verbas insuficientes para investimentos, mas também era resultado do diminuto quantitativo de médicos (Piauhy, 1890). Diante do panorama geral, funcionavam somente seis Delegacias de Higiene que funcionavam burocraticamente e restringiam suas ações no combate às epidemias, um campo de iniciativas emergenciais e compensatórias, atuando frequentemente em parceria com os governos dos municípios. As delegacias de Higiene piauienses estavam localizadas em Oeiras, Amarante, União, Vila do Livramento, Vila de Nossa Senhora do Corrente, destacando-se o estabelecimento de Parnaíba1.

Apenas no final do Oitocentos a administração da saúde do Piauí foi, enfim, reorganizada a partir da criação da Diretoria de Saúde Pública. Porém, no que se refere ao fornecimento de serviços regulares de saúde, não ocorreram alterações na condição estacionária. Algumas novas iniciativas foram verificadas apenas nos anos 1920, quando os resultados da segunda fase do movimento de saneamento do Brasil começaram a ser verificados. A criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) foi uma ação resultante da nova atuação do Estado, que visava atuar em todo território nacional (Hochman; Fonseca, 1999). Isso ocorreu a partir da transição da relação de perfil liberal para um aparato estatal crescentemente intervencionista, considerado um pré-requisito para a estabilidade política.

O primeiro estabelecimento de saúde pública com funcionamento regular para a população foi instalado no Piauí apenas em 1921, ampliando a atuação do governo estadual (Piauhy, 1922). Os pacientes atendidos no posto de saúde tinham acesso a exames laboratoriais, consultas, distribuição de medicamentos e vacinações. A atuação ocorria na profilaxia e no tratamento das doenças infectocontagiosas, bem como na assistência médica de urgência, pois os serviços foram ampliados em virtude das demandas da população da capital, mas também do interior, que se deslocava para Teresina em busca de atendimento e, para os quais, era inviável o atendimento domiciliar.

Foi também nos anos 1920, segundo Santos (2004), que a campanha pelo saneamento resultou na constituição de agências administrativas e de políticas em saúde pública no interior do país. Isso ocorreu, mais especificamente, por meio da celebração de convênios entre a Diretoria do Serviço de Profilaxia Rural (DSPR), encarregada do combate às endemias e epidemias rurais, com os estados da federação. Essa nova perspectiva de interiorização da saúde pública acabou repercutindo no Piauí, pois, para ampliar o atendimento, passaram a ser realizados acordos com o governo central. A partir de então, o DNSP passou a executar, junto ao DSPR, o serviço de saneamento rural no Piauí.

A primeira iniciativa resultante da parceria entre os governos central e local no Piauí foi a instalação do Posto de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas e, logo após, o Serviço de Profilaxia da Tuberculose. Em virtude da demanda, também eram atendidas moléstias variadas nos atendimentos ambulatoriais, intervenções cirúrgicas e acompanhamentos domiciliares (Piauhy, 1925). Os postos de saúde localizavam-se na capital, mas prestavam atendimento às populações de outros municípios, inclusive Parnaíba.

Também se planejava ampliar os atendimentos para o interior do estado, mediante o estabelecimento de outros postos de saúde, no entanto, foi instalado no ano de 1925, apenas mais um Posto de Saúde em Parnaíba. Neste estabelecimento eram realizados exames laboratoriais, pequenas cirurgias, distribuição de medicamentos, vacinação contra a varíola, distribuição de panfletos higiênicos, mas também serviços sanitários, como a viabilização de construção de latrinas e a fiscalização da produção e venda de alimentos. A escolha do município para abrigar a instituição pode ser justificada em virtude de Parnaíba ter se tornado o maior centro comercial do Piauí, inclusive, com volume de atividades econômicas mais significativas do que aquelas realizadas na capital. As transações comerciais eram realizadas com outras regiões do estado, parte do Maranhão e algumas regiões do Ceará, haja vista a navegabilidade do rio Parnaíba (Rego, 2013).

Por causa da insatisfação do Governador João de Deus Pires Leal com as iniciativas federais, notadamente limitadas, foram instalados outros postos de saúde, mas continuavam concentrados em Teresina, provavelmente isso ocorria pelo fato de ser capital, possuindo também uma localização mais acessível para a população do interior do estado. Nesses estabelecimentos eram atendidos casos de doenças epidêmicas e endêmicas, sobretudo a opilação, o impaludismo e o tracoma.

Durante o extenso período temporal que se estendeu até os oitocentos, a questão da assistência social no Brasil esteve, em larga medida, dependente da caridade cristã. Segundo Martins (2011), os benemerentes, principalmente mulheres e homens abastados, acreditavam que deveriam ajudar os desamparados oferecendo abrigos, remédios, roupas e alimentos. Tratava-se, portanto, de um meio para a mitigação dos pecados, semelhante ao mundo europeu. No entanto, ao longo dos séculos XVIII e XIX, observou-se uma mudança na concepção da iniciativa caritativa, coerente com uma visão crescentemente secularizada de enfrentamento da questão social (Rizzini, 2008). A pobreza foi transformada em incômodo, sendo convertida, em certos casos, como um perigo para a harmonia social. As críticas mais frequentes, diziam respeito à organização e ao método de atuação, o que resultaria na falha da resolutividade e no agravamento dos problemas sociais.

Portanto, o modelo de assistência baseado nos princípios de caridade não conseguia atender por si só às novas demandas existentes após a instauração da República. Ocorreu, então, uma valorização da assistência filantrópica, baseada em princípios humanitários, bem como na racionalidade científica, que se adequavam à nova condição que se queria instalar no país (Simili, 2008). Deve-se observar, todavia, que as medidas caritativas continuavam sendo realizadas, convivendo com a filantropia, mas evocava-se, frequentemente, a urgência da intervenção do poder público. O fato era que o enfrentamento da questão social não era considerado pelo Estado um problema de sua responsabilidade.

No Piauí, ainda no começo do período republicano, os governos também não consideravam que a assistência à pobreza fosse de sua responsabilidade, devendo ser remediado por iniciativas de caridade e filantropia. Apesar disso, costumavam agir apoiando a criação e a manutenção das ações de assistência desenvolvidas pelas associações de benemerência em variados setores, inclusive nos atendimentos de saúde.

A presença limitada dos poderes públicos na saúde resultou na existência de apenas três unidades hospitalares no Piauí, todas de caráter benemérito. A primeira delas era a Santa Casa de Misericórdia de Teresina, considerada a principal instituição, por estar sediada na capital e localizar-se na região central do estado, atendendo parte significativa dos enfermos do interior e de outras unidades federativas limítrofes. A segunda era o Hospital São Vicente de Paula, instalado na cidade de Floriano, que disponibilizava atendimentos para a região sul.

A terceira das instituições hospitalares, a Santa Casa de Misericórdia de Parnaíba, localizada no norte do estado, foi criada em 1896 a partir da iniciativa da sociedade parnaibana, constituindo-se em referência no atendimento daqueles que residiam no município e nas suas proximidades. O estabelecimento proporcionava, gratuitamente, socorros médicos aos indigentes, como eram chamados aqueles que, por não possuírem condições financeiras, dependiam da assistência para sobreviver. Apesar disso, também oferecia os seus serviços para a clientela privada. Esse era um dos meios de conseguir receita para o financiamento do tratamento administrado aos enfermos pobres.

Diante da situação de ineficiência dos serviços prestados pela Inspetoria de Higiene Pública, o funcionamento da instituição adquiria relevância diante da demanda dos doentes por atendimento. Na Santa Casa de Misericórdia de Parnaíba eram prestados diversos tipos de serviços, tais como: atendimentos ambulatoriais, cirurgias, internações e distribuição de medicamentos (Souza, 2003). Esses serviços eram realizados por médicos clínicos gerais, não foi verificada a existência de especialistas. Os recursos fornecidos pelo poder estadual para o sustento da instituição na Primeira República podem ser evidenciados no quadro 1, a seguir:

Quadro 1:
Subsídios estaduais para a Santa Casa de Parnaíba (1900-1923)

Fontes: Relatórios da Santa Casa de Parnaíba, mensagens e orçamentos estaduais.

Conforme pode ser verificado no quadro 1, as verbas do governo estadual foram limitadas, especialmente se forem comparados àquelas que foram fornecidas para o estabelecimento congênere localizado em Teresina. Com a justificativa do início do pagamento de subsídios federais para a instituição em 1904, o governo estadual reduziu pela metade a sua contribuição, chegando a totalizar anualmente apenas Rs 1:500$000 (um conto e 500 mil réis). Além disso, era comum o atraso nos pagamentos e a redução nos valores do auxílio, conforme a oscilação das receitas estaduais.

Essa situação se repetia em nível municipal o que deixava a instituição, por certos períodos, sem este tipo de subsídio (Piauhy, 1911). Não existem informações sobre os pagamentos de mensalidades pelos sócios beneméritos ou sobre as doações particulares. Mas, ao que parece, os auxílios financeiros não eram suficientes para o funcionamento da instituição que passou por uma fase crítica, diminuindo a oferta de serviços de forma gradual, até ser fechada em 1915.

A reabertura da Santa Casa de Misericórdia de Parnaíba ocorreu apenas em 1917. Não foi somente o governo estadual que contribuiu para isso ao fornecer maiores subsídios, conforme pode ser verificado no quadro 1. Os setores sociais abastados também colaboraram com doações para o retorno do funcionamento da instituição. O município tinha desenvolvido a atividade comercial com franceses e ingleses que, desde o século XIX estabeleceram-se na região, o que propiciou à economia parnaibana considerável desenvolvimento, favorecendo a formação de um setor social enriquecido que era composto, sobretudo, por estrangeiros, que se mobilizaram para auxiliar na reabertura da instituição (Rego, 2013).

De fato, a situação do funcionamento da Santa Casa de Parnaíba acabou melhorando, um indicativo disso é que o provedor, Delbão Rodrigues, informou que ela havia voltado a funcionar em um prédio com bom estado de conservação, tendo sido concluídas as obras de construção de um novo pavilhão que contava com sala de operações, gabinete para consultas e consultório dentário (Piauhy, 1918). Foi então que chegaram um capelão e freiras para ajudar na administração da instituição parnaibana. Várias iniciativas particulares passaram a ser realizadas para arrecadar contribuições para a manutenção da instituição: doações coletadas em festas beneficentes, rendas obtidas com a venda dos ingressos do cinema e das partidas de futebol, além das doações voluntárias.

No entanto, os esforços conjuntos em prol da Santa Casa de Misericórdia de Parnaíba, não pareceram suficientes para a manutenção regular dos serviços de saúde fornecidos nos anos subsequentes à sua reabertura. Pode-se verificar isso a partir da redução no número de doentes internados. Durante o período de 30 de abril de 1923 a 29 de abril de 1924 foram 370 entradas, entre 30 de abril de 1924 e 29 de abril de 1925 foram internadas 293 pessoas, de 30 de abril de 1925 a 30 de março de 1926 foram 191 doentes atendidos, de 01 de abril de 1926 a 15 de abril de 1927 foram 212 internações e de 16 de abril de 1927 a 15 de abril de 1928 foram 142 doentes atendidos (Piauhy, 1928).

Pode-se analisar que a redução dos atendimentos, como ocorria em outras instituições de saúde, não ocorria por falta de demanda, pois a população pobre costumava buscar auxílio médico se os serviços estivessem funcionando regularmente com consultas, internações e doações de medicamentos. Conforme os dados, a redução gradativa dos atendimentos aos doentes significava que estes teriam que sofrer sozinhos com as consequências das moléstias pela falta de serviços, socorrendo-se comumente com as práticas de cura através de chás, unguentos, benzimentos e mezinhas, ou para aqueles que tinham melhores condições financeiras e físicas, viajar para Teresina, referência em assistência médica, concentrando a maior parte dos estabelecimentos de saúde do Piauí.

Problematizações: a organização do Departamento de Saúde no Piauí e a centralidade das instituições de atendimento em Parnaíba

O final do século XIX foi um ponto de viragem histórica para muitos países ocidentais. Novas ideias sobre o papel do Estado acerca das necessidades da população pobre resultaram no compromisso com o bem estar, para o qual contribuiu a mobilização e a organização política da sociedade, gerando uma crescente pressão para o atendimento das demandas sociais (Esping-Andersen, 1990). Sem deixar de considerar as medidas que vinham sendo tomadas antes na área da saúde no Brasil, Fonseca (2007) afirma que foi durante os anos de 1930 e 1940 que elas passaram a ser incorporadas como responsabilidade do Estado.

Foi em um contexto de instabilidade política, dada uma nova configuração que se delineava após a chamada Revolução de 1930, que Landry Salles assumiu a Interventoria do Piauí. Uma de suas primeiras iniciativas foi a realização de uma ampla reforma administrativa que contemplou, também, a Diretoria de Saúde Pública. Os serviços do Setor de Assistência Médica eram realizados em hospitais caritativos e filantrópicos, com supervisão e subsídios governamentais. Os serviços do Setor de Saúde Pública direcionados para as endemias e epidemias eram realizados nos ambulatórios das Inspetorias (Marinho, 2018).

Como os ambulatórios estavam concentrados na capital, o Interventor Landry Salles planejou a ampliação dos serviços para o interior, reformulando as funções e ampliando o número de Delegacias de Saúde. Elas foram instaladas nos municípios de Floriano, Oeiras, Barras, Picos, Valença e também Parnaíba. Apesar do pequeno número de estabelecimentos, certamente era um avanço, pois a capital deixou de ser um centro exclusivo de fornecimento regular de assistência pública à saúde.

Em 1933 ocorreu a elevação da Delegacia de Saúde de Parnaíba e da Delegacia de Saúde de Floriano à categoria de Dispensários, considerando a necessidade de ampliar os serviços em municípios importantes devido à localização geográfica e desenvolvimento urbano (Piauí, 1933). Em Parnaíba, o Dispensário contava com um inspetor, dois subinspetores, dois enfermeiros e um auxiliar de microscopia.

Apesar da expansão, a assistência ainda estava muito distante de ser adequada às necessidades da população do interior. As Delegacias de Saúde e os Dispensários possuíam poucos médicos e limitados recursos materiais, não conseguindo disponibilizar de forma efetiva, os serviços na área que compunha cada zona de circunscrição. Na capital, a situação também não era a ideal e, apesar de ser referência, ainda não contava com serviços médicos especializados, possuindo apenas alguns postos de saúde.

A reformulação federal da política de saúde, com perspectivas centralizadoras, repercutiu com mais vigor no Piauí a partir de 1938, com a reforma da Diretoria de Saúde Pública. Essa posição, afinal, seria condizente com o governo autoritário no Brasil, que visava fortalecer seu poder nas unidades federativas, condição para a construção do chamado Estado Novo. Verificou-se, no entanto, que a assistência pública colocada à disposição da população, não espelhou linearmente o fortalecimento do governo federal, pois os poderes públicos locais possuíam certa margem de autonomia no cumprimento das determinações centrais (Codato, 2013). Além disso, devem ser consideradas as demandas dos desvalidos para o planejamento e a execução de medidas de saúde, contribuindo para questionar o papel do Estado enquanto doador de direitos.

A partir das diretivas do Departamento Nacional de Saúde (DNS) o novo órgão estadual, denominado Departamento de Saúde, tornou-se centro de administração, coordenação e execução dos serviços. Segundo Campos (2006), o conceito de rede do sistema distrital realizava a integração orgânica das diversas unidades, evitando duplicação de funções. O Piauí foi dividido em três distritos, sendo um no Norte, outro no centro e o terceiro no Sul, com sedes nos municípios de Parnaíba, Teresina e Floriano (Piauí,1944). Cada unidade seria instalada em uma cidade com localização e desenvolvimento privilegiados, atendendo a uma zona com o objetivo de ampliar os serviços de saúde por meio de uma rede horizontal de Centros de Saúde e Postos de Higiene.

Os Centros de Saúde piauienses estavam incluídos na iniciativa pública que seguia o modelo dos Estados Unidos. Entretanto, houve uma adequação às necessidades brasileiras, posto que lá era fornecida apenas a medicina preventiva, enquanto no Brasil ela tinha que conviver, por causa das demandas locais, com a medicina curativa (Campos, 2006). Como bem observou o médico Miguel Jogaib, chefe do Centro de Saúde de Parnaíba: “Quem conhece o raciocínio do analfabeto facilmente percebe que esta gente tendo em sua casa a maioria dos filhos doentes, não vai deixar de trazê-los ao Centro de Saúde, para trazer os bons” (Piauí, 1944, p. 2). Dessa forma, a atuação do Centro de Saúde deveria ser para auxiliar mães e pais pobres, curando os seus filhos, mas também convencê-los para continuar a trazê-los quando curados, para que não adoecessem novamente, a mesma orientação era dada às pessoas em idade adulta.

No Centro de Saúde de Teresina os atendimentos médicos especializados pareciam funcionar regularmente (Relatório, Diário Oficial, 1944), mas essa tendência não era verificada nas instituições congêneres do interior do Piauí. Segundo o chefe do Centro de Saúde de Floriano, Sebastião Costa, como consequência da falta de estrutura de atendimento, o movimento dos pacientes foi sendo reduzido, o que resultou no seu rebaixamento para Posto de Higiene.

Embora fosse a sede do segundo Distrito, o Centro de Saúde de Parnaíba também não apresentava condições para seguir o padrão federal estipulado. O médico Miguel Jogaib, Diretor do Centro, mais uma vez foi enfático no relatório que enviou ao Diretor do Departamento de Saúde do Piauí, Paulino Pinto de Barros. Sobre a situação da instituição de saúde, Miguel Jogaib informou que em “matéria de Saúde Pública tudo está por iniciar-se. A situação geral é a pior possível. O Centro de Saúde nada mais era do que um lugar onde se fazia Clínica Geral, isto é, um médico em sua mesa atendia amistosamente a todos que lhe procuravam, fornecendo-lhes as respectivas receitas” (Piauí, 1944, p. 1).

O Diretor relatou, ainda, que o Centro de Saúde parnaibano sofria com escassez de médicos e de guardas sanitários, já o serviço de visitadoras, sequer existia. Também não dispunha de uma seção laboratorial para a realização de exames. Além disso, não existiam médicos especialistas, apenas um clínico geral que restringia o seu trabalho ao exame físico, fornecimento de receituários e distribuição de remédios. Isso ocorria na execução, pois a legislação federal, base para o sistema de saúde estadual, identificava o Centro de Saúde como instituição de referência para cada zona distrital, devendo, inclusive, ofertar atendimentos médicos polivalentes, variados tipos de exames, possuir laboratórios próprios, além de atuar no saneamento e como polícia sanitária. Apesar das solicitações de auxílio, a situação do Centro de Saúde Parnaíba não teve alteração, o que justificou o pedido de exoneração do cargo por Miguel Jogaib.

Além dos Centros de Saúde, o sistema distrital também abrangia os Postos de Higiene, antes Delegacias de Saúde, no interior do Piauí que funcionavam apenas com um médico generalista. Era comum o envio de relatórios ao Departamento de Saúde informando sobre as condições precárias de atendimento, faltavam materiais básicos e medicamentos, o que contribuía para afastar a população. De acordo com esses relatórios, os tipos de doenças que mais atingiam a população pareciam ser as mesmas de norte a sul do Piauí: verminoses, distúrbios gastrointestinais, impaludismo, sífilis e tracoma.

Outra iniciativa de estruturação de um sistema de saúde no Piauí foi a criação do Instituto de Assistência Hospitalar em 19413. Ele possuía a finalidade de melhorar as instalações hospitalares, criando ambulatórios e centros cirúrgicos mais bem aparelhados, de acordo com a situação geográfica, econômica e demográfica dos municípios (Piauí, 1941). O governo estadual concederia auxílios para os estabelecimentos, desde que se submetessem à orientação, organização e fiscalização do novo órgão. A partir da criação do Instituto, foram estabelecidos acordos com associações beneméritas visando o apoio administrativo e a concessão de verbas para o funcionamento dos serviços.

Os estabelecimentos caritativos e filantrópicos foram os principais prestadores de serviços hospitalares no Brasil até meados do século XX (Tomaschewski, 2015). No Piauí, essa condição persistiu até o começo dos anos 1940, quando foi instalado o Hospital Getúlio Vargas, de caráter público. Enquanto isso, o interior do Piauí continuava possuindo menores recursos de assistência médica em relação à capital. Pode-se destacar o Hospital São Vicente de Paula para o atendimento das pessoas pobres da região sul. Para lá se dirigiam inúmeros padecentes que, no entanto, muitas vezes não eram atendidos em consequência das precárias condições de funcionamento (Piauí, 1942a). Em virtude disso, ocorreu seu fechamento e transferência para o Instituto de Assistência Hospitalar, passando a ser denominado Hospital Miguel Couto.

Na região norte, a única instituição de que se têm informações é a Santa Casa de Misericórdia de Parnaíba. Segundo o Provedor, Acrisio da Costa Furtado, o seu funcionamento dependia, sobretudo, das subvenções e auxílios financeiros concedidos pelo poder estadual, pois a Prefeitura disponibilizava recursos diminutos, e as mensalidades pagas pelos associados não eram suficientes para sustentar os serviços prestados (Piauí, 1932). No quadro 2 verificam-se os recursos do governo do estado.

Quadro 2:
Subsídios estaduais para a Santa Casa de Parnaíba (1931-1942)

Fontes: Relatórios da Santa Casa de Parnaíba, mensagens e orçamentos estaduais.

Nos anos de 1931 e 1932 o valor do subsídio foi de Rs 10:000$000 (dez contos de réis), já no período de 1933 até 1936 o valor teve aumento para Rs 12:000$000 (doze contos de réis). Em 1937, a subvenção chegou ao dobro do ano anterior, valor mantido até 1940. No ano seguinte, um novo aumento fez com que a instituição recebesse Rs 30.000$000 (trinta contos de réis) e, em 1942, o reajuste da subvenção foi de 100%. Além dos recursos com valores anuais fixados, o governo também costumava conceder auxílios, em casos de emergência. Isso ocorreu, por exemplo, em 1937, quando foi concedida a importância de Rs 10:000$000 (dez contos de réis), destinada para reparos nas instalações. Como também ocorreu em 1941, quando o Interventor estadual Leônidas Mello concedeu Rs 35:000$000 (trinta e cinco contos de réis), com a finalidade de saldar despesas com medicações.

As verbas melhoraram as condições de funcionamento do estabelecimento parnaibano. É possível verificar isso por meio do total de internações. Em 1932 foi realizada a hospitalização de 429 doentes, em 1933 o total foi de 637 internações, em 1934 foram 611 casos, em 1935 o total foi de 732, em 1936 foram 699 internações, em 1937 os atendimentos chegaram a 743 e em 1938 foram 775 hospitalizações (Piauí, 1940).

Durante as consultas deveria ser promovida a educação higiênica, embora, na prática, as iniciativas terapêuticas tenham adquirido maior amplitude, pois se costumava procurar atendimento apenas com o agravamento das doenças. Com isso, o desafio era articular as práticas preventivas e curativas. Segundo Campos (2006), acreditava-se que ao se veicular valores e atitudes, a educação higiênica serviria como instrumento de fortalecimento da autoridade do Estado.

O governo federal também defendia no plano de saúde pública a ampliação do atendimento materno-infantil. Getúlio Vargas admitiu que o atendimento às gestantes continuava precário e o índice de mortalidade infantil ainda era elevado (Vargas, Discurso, 1939). Existia uma política nacional para a instalação de maternidades, lactários e outros estabelecimentos específicos, distribuídos pelas unidades federativas, devendo contar com a atuação dos governos locais, além das iniciativas de caridade e filantropia. No Piauí, passou a existir uma cooperação na organização de uma assistência à saúde que garantisse às mães melhores condições para gestar, dar à luz e cuidar de seus filhos.

A inauguração da primeira maternidade do Piauí ocorreu em Parnaíba no ano de 1940, expressando o protagonismo do município. Tratava-se da Maternidade Marques Basto, que teve atuação no fornecimento de assistência para a região norte do Estado. Ela foi construída no governo municipal de Mirócles Veras, um médico que afirmava a relevância da proteção da saúde de mães e crianças (Excursão do Interventor a Parnaíba, 1940). A criação da instituição dependeu da iniciativa piauiense, não sendo verificada a contribuição federal. Certamente também concorreu para a obra a demanda das mães pobres que necessitavam de um estabelecimento para atendimento especializado, já que a Santa Casa de Misericórdia de Parnaíba era um hospital geral.

O governo estadual contribuiu para a fundação e a manutenção da nova maternidade. Leônidas Mello contribuiu com Cr$ 20.000,00(vinte mil cruzeiros) para a compra do terreno em que foi edificado o estabelecimento, além disso, também concedia verbas regularmente para o fornecimento dos serviços (Piauí, 1942b). Em 1941, por exemplo, foi previsto total anual de Rs 60:000$000 (sessenta contos de réis) sob a forma de subsídios. No ano seguinte, atendendo às dificuldades de manutenção, a subvenção concedida foi elevada para Cr$ 7.000,00 (sete mil cruzeiros) por mês, chegando ao total anual de Cr$ 84.000,00 (oitenta e quatro mil cruzeiros). O governo estadual também socorria a instituição quando as despesas excediam o orçamento, um exemplo é que, também no ano de 1942, foi fornecida uma verba no valor de Cr$ 24.000,00 (vinte e quatro mil cruzeiros).

Na instituição parnaibana, os atendimentos eram realizados nos ambulatórios, centro cirúrgico, salas de parto e enfermarias puerperais. A quantidade de pacientes revelou-se bastante imprecisa, pois não existia padronização quanto aos serviços, que mudavam de um ano para o outro, gerando, inclusive, incoerência dos dados, o que não permitiu a possibilidade de análise dos mesmos. Apesar disso, é possível afirmar que havia demanda das mães pelos serviços de obstetrícia da Maternidade Marques Basto, fazendo parte do movimento de medicalização em que os problemas materno-infantis passaram a ser definidos em termos médicos, descritos a partir da linguagem médica, entendidos através da racionalidade médica e tratados por meio de intervenções médicas (Gaudenzi; Ortega, 2012).

Os médicos defendiam as maternidades como espaços em que as gestantes teriam atendimentos especializados, sendo que os partos que apresentavam mais dificuldades para as parteiras curiosas seriam resolvidos com facilidade por eles. Utilizando o aparato da ciência, por meio do uso do fórceps, dos medicamentos e da cesariana, passavam a representar maior segurança para as mulheres cuja gravidez era de risco. O tratamento especializado que era dispensado às mães e seus filhos recém-nascidos contribuiu para que as maternidades fossem cada vez mais procuradas no Brasil, vencendo lentamente as resistências que distanciavam os médicos das mulheres, de modo a convencê-las de que os partos ocorriam com mais segurança para elas e seus filhos.

As especialidades da ginecologia, obstetrícia, pediatria e puericultura justificaram cientificamente a criação de maternidades, entendidas como espaços hospitalares destinados exclusivamente ao parto, ao cuidado com as puérperas e os recém-nascidos. Ainda que o processo de hospitalização tenha ocorrido a partir de 1960 no Brasil, as mulheres começaram a procurar as maternidades desde as primeiras décadas do século XX (Martins, 2004). Para isso, certamente concorreu a existência de locais considerados mais higiênicos, salas de parto equipadas e profissionais com estatuto científico.

Outra instituição instalada em Parnaíba para atender as mães e seus filhos foi o Lactário Suzanne Jacob. Inclusive, ao seu lado, foi construída a Maternidade Marques Basto, para facilitar o acesso das mães. Inaugurado em 1938, o lactário foi iniciativa de Rolland Jacob, que financiou a construção e o aparelhamento, com o gasto total de Rs 60.000$000 (60 contos de réis), fazendo isso em memória de sua esposa. Segundo o estatuto que regulamentava o funcionamento, o principal objetivo era a assistência alimentar à infância pobre. O pediatra do lactário relatou que o estabelecimento dispunha de “ambulatório, para exame das crianças sadias ou doentes, e de cozinha dietética que fornece o alimento já preparado, de acordo com as normas da higiene infantil e em harmonia com a exigência do caso clínico” (Nogueira, 1939, p. 150). A distribuição das mamadeiras graduadas e esterilizadas contendo o alimento para cada refeição ocorria diariamente.

De acordo com o médico, a precariedade financeira das famílias frequentemente resultava na má alimentação da gestante e, portanto, na falta de leite. Em caso da mãe não conseguir amamentar, a melhor alternativa era a racionalidade na administração do leite artificial. Havia o argumento de que os leites modificados ou em pó representavam segurança e eficácia na robustez infantil. Contudo, os médicos defendiam a necessidade de orientação profissional para a administração dessa alimentação, alegando que mesmo os alimentos adequados poderiam ser perigosos.

O lactário Suzanne Jacob atendia, principalmente, às crianças na idade de até dezoito meses, pois as estatísticas mostravam que a primeira infância possuía saúde frágil diante das dietas inadequadas. A distribuição dos leites era realizada nas próprias mamadeiras, sendo entregues às mães o alimento preparado, cabendo a elas seu fornecimento nos horários estipulados pelos médicos. Certamente, esse aspecto deveria estar vinculado à desconfiança de que as mães, apesar de orientadas para a preparação dos alimentos, poderiam ser negligentes. Segundo Freire (2009), devido à higienização inadequada, as mamadeiras representavam um perigo, expondo as crianças à ocorrência de doenças gastrointestinais.

Nos boletins diários do Lactário Suzanne Jacob registrava-se o total de crianças atendidas, como também os tipos e as quantidades de alimentos distribuídos. Existiam maiores demandas para o leite de vaca diluído e o leite em pó. Outros produtos também eram fornecidos, como o leitelho, o leite acidulado, o leite com açúcar e o mingau (Estatutos do Lactário Suzanne Jacob, 1939). Os alimentos tinham procedência considerada segura, pois eram tratados higienicamente, passando por processos técnicos de diluição e adição de compostos para o enriquecimento nutricional, conforme as necessidades alimentares de cada criança examinada. Nesse sentido, o status do pediatra era fundamental para a recomendação da alimentação considerada cientificamente correta para a criança.

Em instituições congêneres as mães levavam as crianças já com o regime alimentar prescrito pelo pediatra do ambulatório de hospitais, postos de higiene e maternidades, onde era a realizada a distribuição diária da alimentação. O leite era esterilizado pela fervura e convenientemente acidificado, o que proporcionava melhores condições dietéticas, não apenas pela sua melhor conservação, como também pela melhor capacidade digestiva e qualidades antidiarreicas.

Os dados dos atendimentos de 16 de janeiro de 1938 a 31 de maio de 1939 traduzem a intensidade do movimento no Lactário Suzanne Jacob. No ambulatório, os atendimentos chegaram a 1.071, incluindo consultas, prescrições de regimes, conselhos individuais de puericultura e demonstrações de dietética (Nogueira, 1939). A responsabilidade pelo funcionamento do Lactário cabia às enfermeiras, que controlavam a frequência das crianças beneficiadas, realizavam o preparo e a distribuição dos alimentos, registrando no boletim diário. Também eram responsáveis pela pesagem periódica e conferência do estado nutricional da criança.

Na avaliação médica realizada no Lactário, estava presente a associação entre robustez e saúde. Era valorizada a criança que engordava, por ser considerada capaz de enfrentar os perigos anunciados da desnutrição, do raquitismo e da magreza que, aliados a outras doenças, cuja principal delas era a gastroenterite, poderiam conduzir ao óbito. O combate à mortalidade infantil assumia a centralidade da ação dos pediatras, que reclamaram para si o papel de protetores da vida, considerando-se capazes de livrar as crianças do estigma da morte precoce e proporcionar alegria e vitalidade, atributos de uma criança bem cuidada.

Apesar de o Lactário Susanne Jacob ser uma instituição filantrópica, que contava com doações particulares e recursos provenientes de eventos beneméritos, o auxílio do governo estadual era um importante aporte financeiro para a concessão dos serviços. Em 1938, primeiro ano de funcionamento, Leônidas Mello criou a subvenção de Rs 6:000$000 (seis contos de réis), que seria destinada trimestralmente à instituição. Este auxílio foi aumentado nos anos posteriores, inclusive, em 1941 o montante atingiu o valor de Rs 8:000$000 (oito contos de réis). Não foram encontrados dados disponíveis sobre os subsídios municipais, e nem mesmo, se o governo federal concedia verbas para a instituição (Nogueira, 1939). Depois de deduzidos os auxílios públicos e particulares, Rolland Jacob assumia a responsabilidade sobre o restante do financiamento para a manutenção dos serviços, cuja despesa mensal era, em média, de Rs 2:500$000 (dois contos e 500 mil réis).

Considerações

A saúde da população, considerada como expressão das suas condições concretas de existência, é resultante entre outros aspectos do estabelecimento das relações entre o Estado e a sociedade. Nesse sentido, entre as iniciativas dos poderes públicos que estão voltadas para a proteção social, podem ser destacadas as políticas de saúde. Segundo essa perspectiva, o Estado é mais que um aparelho repressivo, ideológico, econômico ou burocrático, não está restrito aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nem mesmo aos níveis federal, estadual e municipal. Como a expressão da organização política de uma sociedade, convém que o Estado seja entendido como agente que contribui para o aperfeiçoamento das relações entre os indivíduos em uma dada organização social.

A proposta do artigo foi analisar como o município de Parnaíba adquiriu destaque por meio da atuação dos poderes públicos e da filantropia na assistência à saúde no Piauí entre 1889 e 1945. Com isso, foi abordado o processo de organização administrativa da saúde estadual, além da implantação das instituições de saúde instaladas ainda na Primeira República, quando Parnaíba já se destacava entre os outros municípios do interior piauiense. Além disso, também foi discutida a ampliação da implantação dos estabelecimentos de saúde nas décadas de 1930 e 1940, consolidando o protagonismo parnaibano na assistência à saúde da população pobre piauiense.

Dessa forma, verificou-se a condição de inexpressividade dos investimentos no setor da saúde piauiense entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Apesar de algumas iniciativas realizadas nos anos 1920, em que já se destacava a cidade de Parnaíba, foi entre o final da década de 1930 e meados da década de 1940, que ocorreu a sistematização do Departamento de Saúde, sendo que este consolidou a relevância do setor a partir da ampliação da oferta de assistência no funcionamento de instituições públicas e filantrópicas que amparavam a população pobre do Piauí.

Nesse contexto, é possível concluir que a cidade de Parnaíba destacou-se como um centro de fornecimento de serviços de saúde no Piauí, em meio a instituições como Delegacias de Saúde, Postos de Higiene, Santas Casas de Misericórdia e Centros de Saúde, destacando-se não somente entre os outros municípios do interior, mas até mesmo diante da capital, inaugurando a primeira maternidade e o primeiro lactário do estado.

Fontes

ESTATUTOS DO LACTÁRIO SUZANNE JACOB. Diário Oficial, Teresina, ano 9, n. 69, p. 8-14, 24 mar. 1939.

EXCURSÃO DO INTERVENTOR A PARNAÍBA. Diário Oficial, Teresina, ano 9, n. 83, p. 1, 12 abr. 1940.

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PIAUÍ. Departamento de Saúde. Relatório apresentado pelo provedor da santa casa de misericórdia de Parnaíba sobre os serviços realizados em 1940. In: PIAUÍ. Códice de Saúde de 1940. Teresina: [s.I.], 1940.

PIAUÍ. Decreto-Lei n. 360, de 2 de maio de 1941. Cria o instituto de assistência hospitalar. In: PIAUÍ. Decretos do Piauí de 1941. Teresina: Imprensa Oficial, 1941.

PIAUÍ. Decreto-Lei n. 496, de 24 de fevereiro de 1942. Transfere o hospital de Floriano para o instituto de assistência hospitalar. In: PAIUÍ. Decretos do Piauí de 1942. Teresina: Imprensa Oficial, 1942a.

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Notas

1 Não foram encontradas informações sobre esse estabelecimento que seria a primeira iniciativa de saúde do poder público estadual em Parnaíba.
2 Réis (Rs 1:000$000 = 1 conto de réis = 1000 mil-réis = 1 milhão de réis).
3 Também existia a Divisão de Organização Hospitalar, um órgão federal para padronizar, normatizar e controlar a assistência médica nos estados (Fonseca, 2007).


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