Dossiê
Recepción: 16 Diciembre 2020
Aprobación: 28 Febrero 2021
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2021.13.29.192-209
Resumo: A Colônia Santa Teresa, em São Pedro de Alcântara (SC), inaugurada em 1940, foi construída de acordo com a legislação nacional que previa o internamento compulsório de leprosos, terapia medicamentosa e laborterapia. Nesse artigo abordamos aspectos de propostas prévias e do acordo, entre governo estadual e federal, que culminou na construção da instituição catarinense. Discutimos prescrições ou sugestões médicas para o trabalho e a recreação dos internos, tais como a realização de atividades agrícolas e os bailes e blocos de carnaval. Os indícios dessas atividades tornaram possível um vislumbre sobre como as práticas terapêuticas realizadas pelos homens e mulheres da Colônia Santa Teresa ganharam contornos e significados peculiares para esses leprosos, podendo abrir frestas na ordem estabelecida (Certeau, 2011). Para realizar esse artigo foram pesquisados: livros e relatos de médicos, textos memorialís-ticos de ex-internos, material arquivado na ex-colônia, relatórios governamen-tais, legislação (federal e estadual) e periódicos.
Palavras-chave: Lepra, Laborterapia, Hospital colônia, Terapêutica.
Abstract: The Santa Teresa Colony, in São Pedro de Alcântara, State of Santa Catarina, inaugurated in 1940, was built in accordance with the national legislation that required the compulsory hospitalization of lepers, pharmacotherapy and occupational therapy. In this article, we address aspects of prior proposals and the agreement between the federal and state governments that culminated in the building of this institution in the State of Santa Catarina. We discuss medical prescriptions or suggestions for the work and recreation of in-patients, such as farming activities, and dances and carnival blocks. The evidence of these activities afforded a glimpse of how the therapeutic practices undertaken by the men and women of the Santa Teresa Colony gained nuances and unique meanings for these lepers, thus opening cracks in the established system (Certeau, 2011). In preparation for this article, doctors’ books and reports, memorial texts of former patients, material filed at the former colony, government reports, federal and state legislation and journals were researched.
Keywords: Leprosy, Occupational therapy, Hospital colony, Therapy.
Resumen: La Colonia Santa Teresa, en São Pedro de Alcântara (SC), inaugurada en 1940, fue construida según la legislación nacional que preveía la internación obligatoria de leprosos, farmacoterapia y terapia laboral. En este artículo discutimos aspectos de propuestas anteriores y del acuerdo entre el gobierno estatal y federal, que culminó con la construcción de la institución en Santa Catarina. Discutimos prescripciones o sugerencias médicas para el trabajo y la recreación de los internos, como las actividades agrícolas y los bailes y bloques de carnaval. Las evidencias de estas actividades hicieron posible vislumbrar cómo las prácticas terapéuticas realizadas por los hombres y mujeres de la Colonia Santa Teresa adquirieron contornos y significados peculiares para estos leprosos, capaces de abrir grietas en el orden establecido (Certeau, 2011). La investigación presentada en este artículo se hizo por meio de libros e informes médicos, memorias de ex internos, material archivado en la ex colonia, informes gubernamentales, legislación (federal y estatal) y publicaciones periódicas.
Palabras clave: Lepra, Laborterapia, Hospital colonia, Terapéutica.
Introdução
Em 1874 a descrição do bacilo da lepra pelo médico norueguês Gerhard Armauer Hansen e, anos depois, a forma como ele apresentou suas considerações sobre a doença, defendendo a tese da lepra ser uma moléstia infectocontagiosa e crônica, concorreram para colocar em xeque a perspectiva da causa hereditária da doença.
Nesse período os debates sobre a lepra tinham ganhado nova relevância na comunidade médico-científica internacional, pois surtos da moléstia estavam se tornado frequentes na Europa, depois de a doença ter praticamente desaparecido do continente por mais de duzentos anos. Além disso o aumento do número de leprosos nas colônias europeias na África e Ásia causava temor, por sinalizar a possiblidade de ondas epidêmicas (Cabral, 2013; Watts, 2000)1.
Realizado em Berlim, em 1897, o Primeiro Congresso Internacional de Lepra consagrou a tese de Hansen e a primazia do médico na identificação e realização de pesquisas sobre o microrganismo causador da doença, que ficou conhecido como bacilo de Hansen ou Mycobacterium leprae2. No evento, a tese firmada foi que a única forma de se evitar a propagação da doença era por meio de notificação obrigatória, vigilância e isolamento compulsório do leproso. Deste modo, a definição da lepra como doença microbiana contagiosa deu renovado sentido a antiga prática da instalação de leprosários. Estas considerações, sobre a causa da doença e os meios para evitar sua difusão, foram ratificadas no Segundo Congresso Internacional de Lepra, que aconteceu em 1909 na cidade de Bergen (Noruega), sob a presidência de Hansen (Benchimol; Sá, 2004).
Conhecida pelo homem há milênios, mencionada no Levítico e no Novo Testamento, a lepra teria sido introduzida no território europeu pouco antes da era cristã, por legiões de soldados romanos vindos do Egito. A partir do século VI, algumas prescrições higiênicas e interdições para leprosos foram estabelecidas na Europa. Baseadas nas teses hipocrático-galênicas, as restrições concorreram para o isolamento dos doentes ao defenderem que leprosos poderiam difundir a doença a partir da corrupção dos ares que os circundavam. Entre os séculos XI e XII, concomitantemente ao adensamento urbano e as idas e vindas dos Cruzados, o número de leprosos aumentou e os leprosários multiplicaram-se por toda a Europa (Bériac, 1991).
Assim, se preceitos inspirados em relatos bíblicos impulsionaram a edificação de locais de isolamento, para Bériac (1991, p. 136) “o essencial das interdições, que por toda a parte atingiram o leproso [na Idade Média], é com efeito de ordem sanitária”. A partir de meados do século XIII os casos de lepra começaram a diminuir, até praticamente desaparecer do território europeu no século XVI3. Entretanto, nessa época a doença começou a se difundir pela América.
No Brasil, os primeiros locais construídos para isolamento de leprosos, foram erigidos no século XVIII em Salvador, Rio de Janeiro e Recife (Santos Filho, 1991). Inaugurado em 1714, o leprosário do Recife foi, anos depois, a primeira instituição dessa natureza regulamentada no país (Cabral, 2013). Em meados do século seguinte, o médico Joseph François Xavier Sigaud afirmou que a lepra era doença endêmica nas provinciais de Minas Gerais, Espírito Santo e “demais regiões Centro e Norte”, grassando com virulência no Maranhão e em São Paulo (Sigaud, 1844, p. 164). No seu livro “Du climat et des maladies du Brésil”, Sigaud (1844) reproduziu relato do presidente da província paulista sobre o grande número de leprosos que vagava na estrada que ligava a cidade de São Paulo ao Rio de Janeiro. Os doentes abrigavam-se em cabanas, construídas nas proximidades das vilas que existiam no caminho.
Em 1922, o I Congresso Americano sobre Lepra, que contou com representantes de 13 países, ocorreu no Rio de Janeiro sob a presidência de Carlos Chagas, diretor do Instituto Oswaldo Cruz. Os congressistas reafirmaram as teses aprovadas nos dois encontros internacionais e defenderam a necessidade de mais investigações sobre a doença e da criação de cátedras especiais de lepra nas faculdades de medicina (Benchimol; Sá, 2004)4.
No Brasil dos anos 1920, no contexto da criação do Serviço de Profilaxia Contra a Lepra e Contra as Doenças Venéreas, no Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) (Brasil, 1920), as políticas públicas de combate à lepra reforçaram a perspectiva de ações profiláticas realizadas pelo estado, de modo que este garantisse a assistência aos leprosos a partir do modelo compulsório isolacionista. Esse isolamento deveria acontecer em modernos leprosários, no formato de cidades-hospitais, edificados em colônias (áreas afastadas de centros urbanos)5.
Seguindo padrões internacionais, os hospitais colônias de leprosos eram locais que deveriam possibilitar cuidados médicos aos asilados em conjunto com um tratamento social que os preparasse para assumir funções úteis para seu próprio sustento e a sustentabilidade da instituição. O modelo arquitetônico ideal estabelecido pelo Decreto Federal n. 16.300, de 31 de dezembro de 1923, foi o Leprosário Santo Ângelo (Brasil, 1923). Em construção desde 1918 no município de Mogi das Cruzes, limítrofe de São Paulo, a instituição foi inaugurada no dia 3 de maio de 1928.
Em meados da década seguinte, a elaboração de um plano de profilaxia da lepra pelo governo federal previu a construção e reforma de leprosários em todas as regiões do país, a partir de parcerias com governos estaduais, tendo como referência o Santo Ângelo (Agrícola, 1950). Como escreveu Monteiro (1995, p. 230), dentre as medidas propostas “pelo modelo paulista”, estava o recenseamento dos leprosos e o isolamento compulsório de todos os doentes de lepra.
Esse artigo discute, a partir de ações do governo catarinense relacionadas ao combate à lepra, aspectos do processo que resultou na construção da Colônia Santa Teresa (também nomeada Leprosário Colônia Santa Teresa e Leprosário Santa Teresa) e dos primeiros anos de funcionamento da instituição, que durante a década de 1940 contou em média com 350 asilados/ano (HSTDS, s.I.).
Consideraremos de forma privilegiada indícios de práticas dos internos (Certeau, 2011) na realização de atividades prescritas ou sugeridas como terapêuticas, as quais poderiam ganhar significados outros quando realizadas por esses indivíduos.
Construindo a colônia: propostas e ações
Desde os anos 1920, a partir de diretrizes federais delineadas pelo Serviço de Profilaxia contra a Lepra e contra as Doenças Venéreas, que discussões sobre a construção de um leprosário em Santa Catarina ganharam impulso, pois o número de doentes crescia e enviar leprosos para internamento em outros estados não era mais uma solução viável. Na segunda metade da década, em apenas dois anos, o total de atacados pelo mal de Hansen teria saltado de estimados 250 em 1925, para 400 em 1927 (Souza Araújo, 1956).
Foi nesse contexto que, em julho de 1927, o médico Carlos Corrêa, Diretor de Higiene de Santa Catarina, enviou carta ao doutor Heráclides de Souza Araújo solicitando sugestões para a instalação de uma colônia de leprosos no estado. Pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, Souza Araújo era reconhecido internacionalmente como autoridade em lepra. Em sua carta, Corrêa afirmou que a pretensão do governo estadual era construir um estabelecimento modesto (não “uma obra grandiosa”), por motivo de ordem econômica, mas que cumprisse as modernas normas de cuidados com leprosos, ou seja, “segregamento dos doentes, com o seu tratamento e a observação dos suspeitos, dando-lhes um trabalho que possa ser útil a si próprio e ao estabelecimento” (Corrêa apud Souza Araújo, 1956, p. 592).
Na resposta que enviou ao colega, Souza Araújo fez perguntas relacionadas a possível construção do leprosário, tais como, local disponível, número de leprosos no estado, verba para o projeto. Mas, a questão principal foi a possibilidade de aceitação do modelo proposto: “Aceitaria o Estado um plano para construção de uma colônia agrícola, com pequenas habitações, todas de madeira [uma vila], tendo na sede apenas a residência do médico, o posto médico e um pequeno asilo para os leprosos inválidos?” (Souza Araújo, 1956, p. 592).
Quando, dias depois, Corrêa encaminhou suas considerações a Souza Araújo, estas não deixam dúvidas: “pensa o Governo, e nisso eu estou de pleno acordo, que, no nosso caso, uma colônia agrícola de leprosos, nos moldes [apresentados] preencherá o fim desejado” (Corrêa apud Souza Araújo, 1956, p. 592).
No período dessa conversa epistolar eram muitas as preocupações político-sociais que se entrelaçavam com aquela, especificamente relacionada à construção de uma colônia para abrigar e tratar dos leprosos. Em Florianópolis, as questões de higiene pessoal e salubridade urbana estavam, cada vez mais na ordem do dia (Araújo, 1989). Entre catarinenses, além do modelo das cidades europeias, as mudanças que se processavam no Rio de Janeiro e São Paulo eram exemplares.
Assim, considerando que um modelo é inspiração e não transposição, em Florianópolis e áreas limítrofes a construção de novos prédios (das escolas aos hospitais), o alargamento de ruas, a remodelação de praças e o dessecamento de brejos, foram ações pautadas por demandas locais e disponibilidade de verbas estaduais. Nesse contexto, é possível entender a solicitação, feita por Corrêa, de um projeto modesto de colônia. Entretanto, na disputa pelo uso prioritário dessas verbas, o projeto do moderno leprosário foi suplantado, entre outros, por investimentos no perímetro urbano da capital.
Como escreveram Machado e Seffner (2013), o temor de governantes e da elite local era que Florianópolis não somente ficasse em desvantagem em relação as grandes cidades do país, mas também em relação a algumas cidades do próprio estado, como Joinville e Blumenau, reconhecidas pelo poder econômico graças a agricultura e o número crescente de fábricas. Assim, esforços eram empreendidos para reformar a capital, cuja aparência antiquada precisava desaparecer.
No início dos anos 1930, mudanças no governo federal, a partir da tomada do poder por Getúlio Vargas, sinalizaram a ampliação e redirecionamento centralizador de ações relativas à saúde. Concretizando um ideal que se delineava desde a segunda metade dos anos 1910, a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP) concorreu para ampliar ações de combate à lepra no território nacional, determinando a internação compulsória e estabelecendo diretrizes para parcerias do governo federal com os estaduais. A finalidade de edificar leprosários em todas as unidades da federação ficaria explícita no Plano Nacional de Combate à Lepra de 1935.
Como relembrou o médico Ernani Agrícola, que na época foi diretor da seção dos Serviços Sanitários nos Estados (do Departamento Nacional de Saúde, MESP), as administrações estaduais estavam obrigadas a ceder as terras necessárias para a instalação das colônias, cujos prédios seriam construídos com financiamento do governo federal. Os governos dos estados, responsáveis também por outros serviços de combate à lepra (profilaxia, recenseamento de doentes), deveriam sempre agir em “perfeita articulação com as autoridades federais” (Agrícola, 1950, p. 134).
No dia 28 de junho de 1936, o jornal florianopolitano “O Estado” publicou nota (sem título) do gabinete do Secretário do Interior catarinense convidando a população para o ato de “lançamento de pedra fundamental” do leprosário no distrito de São Pedro de Alcântara (O Estado, 1936). Apesar das palavras um tanto enganosos, pois o ato não marcou o início das obras, mas apenas assinalou o local onde seria construída a colônia de leprosos, o evento foi indicativo do compromisso do governo com a campanha nacional de combate à lepra6.
Alguns membros da Assembleia Legislativa do estado até questionaram a localização da futura colônia, pois a área escolhida ficava a 40 quilômetros de Florianópolis e eles temiam pela saúde da população da capital. Consultado pelo governador Nereu Ramos sobre o tema, a resposta de Ernani Agrícola foi categórica: “relativamente à localização do Leprosário, quero mais uma vez felicitar o Governo do Estado por ter seguido a indicação do técnico do Ministério da Educação e Saúde Pública” (A Notícia, 1936, p. 4). A objeção acabou ou pelo menos sumiu das páginas dos jornais.
Um ano depois, dia 29 de julho de 1937, uma solenidade pública marcou o início da construção da colônia, com a presença de Agrícola, saudado como “um dos mais brilhantes e lúcidos técnicos brasileiros em matéria de lepra” (Santa Catarina, [1937] 1938, p. 27).
O modesto projeto de colônia, solicitado dez anos antes, foi esquecido. A cidade-hospital catarinense foi instalada em um terreno de 2.099.803 m², cortado pelo rio Imaruim (ou Imaruí), e a área construída, com financiamento federal, totalizaria 200.000 m² e seria rodeada por plantações e jardins (Santa Catarina, 1939a).
Segundo Amora (2009), a análise do plano de construção da colônia catarinense, elaborado conforme determinações do Departamento Nacional de Saúde do MESP, indica a previsão de asilar cerca de 400 pessoas.
Desse plano, que levou mais de uma década para ser concluído, constavam:
Casa do diretor; casa do administrador; portaria e telefone; posto policial; casas para funcionários; garage e casa para o chofer; pavilhão da “Administração”; pavilhão de “Observação”; casas para enfermeiros; pavilhão “cozinha-refeitório”; dispensário geral; enfermaria para mulheres; lavanderia e desinfetório; pavilhão de diversões; capela; enfermaria para homens; pavilhão tipo “Carville”7 para solteiros [homens e mulheres separados]; pavilhão para crianças; casas para casais; cemitério; necrotério; forno de incineração; habitações para pensionistas; pavilhão para loucos e presos; escola; casa das irmãs; parlatório; pavilhão para expurgos; prefeitura; pavilhão para oficinas; pavilhão para inválidos; pavilhão para isolamento (Santa Catarina, [1937] 1938, p. 27).
Antes do início das obras, foi organizada a equipe médica que atuaria na colônia e iniciada uma investigação epidemiológica, para identificar e fichar os doentes com o mal de Hansen em Florianópolis e seu entorno e descobrir focos de lepra no interior do estado (Santa Catarina, [1937] 1938). Nesse reconhecimento foram arrolados os leprosos e os comunicantes, ou seja, pessoas que se autodeclaravam com suspeita de portarem a doença; todos foram submetidos a exames bacilográficos (físicos ou laboratoriais) para complementar o diagnóstico (São Thiago, 1941).
No período desse recenseamento, os leprosos identificados foram submetidos ao isolamento em seus próprios locais de origem. Meses depois, alguns dentre eles foram deslocados para trabalhar nas fases finais dos primeiros prédios edificados na colônia catarinense. Estes homens foram alojados no próprio local de trabalho (São Thiago, 1989).
Mesmo não ficando evidente os critérios para a seleção desses indivíduos, os homens escolhidos não deveriam apresentar formas graves da doença. Certamente eles realizavam atividades apartadas daquelas efetuadas por trabalhadores sadios, contratados pelo governo estadual. É possível apenas especular sobre o motivo da utilização dessa mão de obra e, entre as possibilidades, a mais plausível talvez seja a intenção do governo de diminuir gastos.
Mas, questão biológica e problema social, a profilaxia da lepra durante as primeiras décadas do século XX determinou não apenas exclusão social, mas também exaltou a laborterapia como forma de tratamento dos leprosos. A tese de que em uma colônia, levando uma existência longe de olhares amedrontados, esses doentes poderiam viver de forma tão normal quanto possível, reeditou no moderno leprosário a terapia do trabalho utilizada nos hospícios há décadas (Andrade; Costa-Rosa, 2014). E, observando o caso catarinense, parece que nunca era cedo demais para começar. Afinal, ajudar na construção de uma “cidade-hospital” poderia ser importante para começar a estabelecer laços entre os futuros moradores da colônia e destes com o lugar.
A colônia, as terapêuticas
Veículo de propaganda do governo do estado, a “Santa Catarina - Revista de Propaganda do Estado e dos Municípios” era publicada anualmente e, em 1940, suas páginas exibiam a estrutura do Departamento de Saúde Pública catarinense (Santa Catarina, 1940b); uma forma de difundir a ação governamental, mas também a tradução da importância da saúde pública como item de política estadual, integrada às diretrizes federais. Nesse sentido a inauguração da Colônia Santa Teresa mereceu destaque com a edição de um encarte (figura 1), com a reprodução de várias fotografias (Santa Catarina, 1940a) (Figura 1).

Palavras do encarte exaltavam o interventor Nereu Ramos destacando seu “elevado critério da unidade nacional” quando investia na resolução de problemas que transpunham as fronteiras do estado, “assim com as iniciativas de feição social [...]; assim, particularmente, com a saúde pública” (Santa Catarina, 1940a, s./p.).
A inauguração da colônia aconteceu no dia 11 de março e contou com as presenças do presidente Getúlio Vargas e comitiva, de autoridades e médicos locais e de uma “enorme massa popular”, conforme relatou o jornal “Dia e Noite” (1940). Mesmo considerando que o número de pessoas tenha sido superestimado pelo periódico, muitos indivíduos certamente acorreram ao local, atraídos pela grandiosidade da obra e pela possibilidade de ver o presidente da república.
Esse era um tipo de acontecimento estratégico para a ditadura varguista, pois catalisava a atenção popular e evidenciava realizações governamentais que, financiadas pelo governo federal e executada pelo estadual, concorriam para a manutenção da figura de Getúlio Vargas como “pai da pátria” (Levine, 2001) e, também, a do interventor do estado como competente promotor da modernidade catarinense, “dentro da proposta de desenvolvimento de uma identidade nacional sustentada pela educação pública e a saúde” (Amora, 2012, p. 50).
Na Colônia Santa Teresa, desde os primeiros dias de funcionamento, o tratamento medicamentoso dos internos foi realizado a base de óleo de chaulmoogra. O produto era utilizado há séculos na Ásia e foi reconhecido como eficaz pela medicina ocidental no século XIX (Santos; Souza; Siani, 2008); no Brasil dos anos 1930 o uso da chaulmoogra tinha praticamente desbancado a utilização de outras substâncias no tratamento dos leprosos (Cabral, 2013; Santos; Souza; Siani, 2008).
Desde 1927, a produção de óleo extraído de sementes da chaulmoogra indiana (Taraktogenus kurzii) era realizada no país pelo Laboratório de Leprologia do Instituto Oswaldo Cruz, criado e dirigido por Heráclides de Souza Araújo. A produção, que facilitou o acesso ao produto e seus derivados, começou depois que pesquisas com plantas nativas, realizadas no instituto em parceria com a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e de Doenças Venéreas do DNSP, não obtiveram os resultados esperados (Santos; Souza; Siani, 2008).
Segundo Maciel (2004, p. 111), na primeira metade do século XX, “o óleo de chaulmoogra, em injeções, cápsulas ou aplicado sobre a pele, foi a forma menos agressiva de tratamento [da lepra] e que apresentou menores complicações nos pacientes e, por esta razão, era consenso entre os médicos”.
O óleo era considerado um eficiente paliativo pelos especialistas, embora alguns médicos defendessem que o alcance de suas propriedades era maior (Santos; Souza; Siani, 2008).
Mas, nas lembranças de ex-internos da Colônia Santa Teresa, o óleo de chaulmoogra foi associado a infiltrações dolorosas e reações cutâneas indesejadas. Isaltina da Silva D’Ávila, que estava asilada nos anos 1940, afirmou: “[Nós] naquela santa fé que a gente ia sarar. Eles diziam que a gente ia melhorar. Senão ninguém fazia” (D’Ávila apud Vaz, 2016, p. 123, grifos nossos). Afirmações que podem sintetizar a diferença entre a perspectiva dos médicos e a dos pacientes, e como essa diferença parece ter colaborado para que os internos seguissem as determinações médicas.
Nesse período outra terapêutica, a ocupacional, também era realizada na colônia, e, neste caso, o trabalho com a terra ganhou relevância. Através das palavras do médico Adalberto Tolentino de Carvalho, diretor da instituição em 1943, é possível perceber os diferentes resultados esperados com esse tipo de tratamento:
A autossuficiência seria o clima ideal para a vida de uma nova organização como a nossa [...]. Esta instituição vem aproveitando todos os profissionais válidos, no intuito de minorar o dispêndio com a manutenção da colônia, como também e principalmente, amenizar os dias do internado com a terapêutica ocupacional, além de possibilitar-lhe um pequeno ganho para o supérfluo (Santa Catarina, [1943] 1944, p. 78)8.
No leprosário catarinense a perspectiva de trabalhar em plantações deve ter ganhado dimensão superlativa. No estado, cujo número de indústrias começava a crescer nesse período, muitos habitantes eram agricultores/lavradores ou filhos de lavradores, o que refletiu na profissão declarada pela maioria dos homens asilados. Desta forma, na Colônia Santa Teresa, o trabalho agrícola pode ter concorrido para criar laços entre internos, inclusive por recriar aspectos basilares do cotidiano que homens e mulheres tinham vivido fora da instituição.
Mas, desde o início de funcionamento da colônia, existem indícios de diferentes atividades realizadas pelos leprosos, cujo perfil etário nos anos 1940 era de indivíduos (homens e mulheres) entre 15 e 34 anos (Souza Junior, 2007). Assim, o senhor João, um dos primeiros internos, relatou ter trabalhado “muito, muito, muito” na finalização de dois pavilhões, de cinco ou seis “casinhas” (para casais internados juntos) e cavando para as fundações do prédio da igreja (João, apud Souza Junior, 2007, p. 100).
Entretanto, mais que na construção, foi na manutenção de prédios que alguns leprosos participaram, realizando serviços de pedreiro (e servente), encanador e carpinteiro, mas foram poucos os que se declararam profissionalmente habilitados para essas atividades. Se considerarmos as profissões declaradas dos 34 primeiros internos da colônia (março-abril de 1940), apenas 2 eram pedreiros, que poderiam ensinar o ofício e atividades correlatas para os asilados. Os outros eram: 17 lavradores; 3 pescadores; 2 caixeiros; 1 carroceiro; 1 oleiro; 1 “operário”, 1 sapateiro; 1 vendeiro. Também foram registrados 4 indivíduos como “inativos” e 1 com a informação “vive de esmolas” (HSTDS, s.I.)9. Além de explicitar a origem rural da maioria dos internos, tais informações possibilitam um vislumbre do perfil econômico dos asilados: trabalhadores pobres.
O sucesso das atividades agrícolas na Colônia Santa Teresa, que seria aquilatado até pela instalação de uma fábrica de farinha de mandioca no leprosário (Santa Catarina, [1943] 1944), foi traduzido em 1942 pelos primeiros números da produção local:
POMARES
O laranjal da zona doente10 produziu 22.270 laranjas de diversas espécies. Foram plantadas 318 laranjeiras e 34 limoeiros, além de 368 eucaliptos.
LAVOURA
Na zona doente foram plantados 2.810 pés de aipim, 6.920 de fumo, 4.480 de mandioca e 2 kg de arroz. Foram colhidas 625 abóboras, 3.480 cabeças de cebola, 4 sacos de amendoim, 58 réstias de cebola, 10 sacos de feijão, 2.365 melancias, 84 sacos de milho, 637 pepinos e 1.325 cabeças de repolho.
A colheita da zona sadia11 foi a seguinte: Abóbora 29 quilos, aipim 2.411 quilos, alface 251 quilos, alho 29 quilos, azedinha 52 quilos, batata inglesa 294 quilos, batata doce 502 quilos, beterraba 48 quilos, cebola verde 22 quilos, cebolinha 95 quilos, cenoura 142 quilos, couve manteiga 479 quilos, couve-flor 114 quilos, ervilha 60 quilos, espinafre 77 quilos, feijão verde 278 quilos, feijão preto 3.326 quilos, milho 2.810 quilos, nabo 395 quilos, orégano 1 quilo, pepino 173 quilos, repolho 783 quilos, salsa 37 quilos, tomate 231 quilos, taiá [ou taioba] 18 quilos, chuchu 234 quilos (Santa Catarina, [1942] 1943, p. 104).
As mulheres internas devem ter participado do plantio e, notadamente, da colheita desses produtos, algo comum em famílias de agricultores. Mas não foram encontrados indícios da presença feminina em qualquer atividade relacionada à construção ou reparos na estrutura dos edifícios do leprosário12.
Apesar do período entreguerras ter concorrido, em diferentes países, para acelerar mudanças relativas à inserção sociopolítica (ex.: conquista do voto feminino) e atuação profissional da mulher fora do espaço doméstico, nos anos 1940 as atividades relacionadas ao lar continuaram sendo consideradas as mais adequadas para jovens e senhoras brasileiras (Araújo; Bertucci, 2019; Bassanezi, 1996). Nesse sentido, é possível que os “trabalhos de agulha” tenham sido os mais indicados como terapia ocupacional para as mulheres internas da Colônia Santa Teresa.
Parte do currículo da escola primária, fazer bainha e chulear, eram itens do conteúdo, para o sexo feminino, da disciplina Trabalhos Manuais de norte a sul do país (Louro, 2004). Assim, além de ensinadas no espaço doméstico, tais habilidades manuais eram parte do currículo escolar, concorrendo para a formação da menina em habilidades consideradas adequadas para o exercício de sua função primordial, ou seja, ser esposa, mãe e dona de casa.
Em Santa Catarina, o Decreto n. 741, de 3 de março de 1939, sobre o ensino primário, determinou:
[Trabalhos Manuais]. Trabalhos de Agulha: - (só para a seção feminina): - Pontos fáceis de agulha, em linhas grossas e de cores: pontos de alinhavo, de haste, preposto e bainha. Pontos de marca com aniagem ou talagarça. Ponto de cadeia e ponto russo. Aplicação em peças simples de vestuário. Uso da máquina de coser. Bainha postiça, alças, ilhós, remendos diversos, chuleado. Modo de reguar [usar régua, medir] o franzido. Casas simples, preguinhas simples e duplas. Rematar as aberturas de costuras (Santa Catarina, 1939b, p. 101).
Recuperando as ocupações declaradas pelas primeiras internas na Colônia Santa Teresa, entre 25 de março e 27 de abril de 1940, do total de 32 mulheres a maioria, ou seja, 27, afirmaram ser “doméstica”; as outras 5 eram: 3 lavadeiras; 1 costureira; 1 professora (primária?) (HSTDS, s.I.).
As cinco asiladas que informaram atividades diferentes da maioria exerciam funções femininas por excelência: lavar, costurar, ensinar/educar. Atividades que não destoavam ou comprometiam os afazeres da dona de casa, principalmente se realizadas na própria casa, o que era possível para as lavadeiras e a costureira. No caso da professora, em geral o trabalho fora do espaço doméstico ocupava quatro horas do dia. Considerando as leprosas que se declararam domésticas, várias delas devem ter trabalhado em casas alheias, mas essa denominação também poderia englobar as mulheres que cuidavam exclusivamente do próprio lar.
E, mesmo que apenas uma mulher tenha declarado ser “costureira”, é muito provável que, entre as outras 31 asiladas, várias soubessem pelo menos fazer remendo e pontos de alinhavo. Algumas também deveriam saber usar a máquina de costura.
Entretanto, se o trabalho era parte do processo terapêutico e também uma estratégia médica para criar laços sociais e forjar a sociedade dos asilados, a diversão, contraponto das atividades produtivas, era, tanto quanto no cotidiano além muros, parte fundamental desse novo dia a dia.
Na Colônia Santa Teresa, as atividades recreativas eram, em geral, realizadas no Pavilhão Diversão, depois chamado Nereu Ramos, cuja nome original explicitava a intenção de seus idealizadores. No local, existiam duas salas de jogos, uma para os de tabuleiro e cartas e a outra para o de bilhar (aconteciam campeonatos); biblioteca, com obras compradas ou doadas; sala para cinema, teatro ou baile (São Thiago, 1989). Nessas salas recreativas, os jogos coletivos, as conversas sobre filmes, espetáculos e livros, certamente estreitaram as relações entre indivíduos e estimularam a troca de experiências e lembranças entre os internos.
Entre essas atividades, os bailes e as “domingueiras” foram relembrados como momentos especialmente alegres. Além das danças e possíveis encontros de namorados, nesses eventos não era incomum o consumo de bebidas alcoólicas, de diferentes tipos e clandestinas (Vaz, 2016). Nos anos 1940, existiram pelo menos quatro conjuntos musicais formados pelos leprosos e que garantiam a música desses acontecimentos sociais. Como relembrou Manoel Antônio de Castro (apud Vaz, 2016, p. 187): “Tinha um conjunto local de mulheres e dois de homens. Um só de pretos: Os Tupinambás. O dos brancos: Os Azes da Melodia. E nós não tínhamos nome. O nosso professor chamava a nossa banda de A Furiosa”.
Nas informações de Castro são destaques a referência a um “professor”, que poderia ser um músico amador asilado, e o número de conjuntos musicais. Mesmo que esses conjuntos fossem incentivados por médicos, não teriam existido sem a iniciativa de leprosos e a afinidade entre eles.
Além disso, as palavras do ex-interno sinalizam tanto a separação de gênero (o conjunto “de mulheres” poderia também não ter nome), quanto a racial, provavelmente repetindo a sociedade extramuros, algo que a doença não fez desaparecer. Existe uma fotografia de 1946 (Álbum), do conjunto de Manoel Castro e uma jovem faz parte do grupo, está posicionada em frente dos homens, que estão dispostos em semicírculo com seus instrumentos musicais. Talvez fosse a cantora da banda apelidada “a furiosa”, mas poderia ser uma convida para apresentação especial.
A música permeava o cotidiano dos leprosos da Colônia Santa Teresa pois, além dos conjuntos e bailes, a instituição possuía uma estação radiofônica própria. Nesse período o rádio era difundido nacionalmente e sua função de divertir e educar era cada vez mais explorada no país (Calabre, 2004; Moreira; Massarani; Aranha, 2008).
A Rádio Difusora Santa Teresa, inaugurada em 1943, instalada no prédio da administração da colônia, transmitia em ondas médias (de pequeno alcance) e de sua programação constavam principalmente canções de artistas nacionais, crônicas, notícias de atividades culturais da instituição e mensagens da diretoria do leprosário. Todos os internos podiam ouvir a rádio graças ao grande autofalante instalado na Avenida Getúlio Vargas, a maior via de circulação do leprosário (Pereira, 2002). Sob a supervisão dos Departamentos da Saúde e da Educação catarinenses, a rádio tinha encargo educativo, transmitindo regularmente “comentários [e] conselhos” (Santa Catarina, [1943] 1944, p. 77).
Em meados dos anos 1940, a comemoração do carnaval, a grande festa nacional de música e dança, mobilizou internos de ambos os sexos sem distinção de idade. Pelo menos é o que indica a fotografia de 1944 (figura 2), com três blocos carnavalescos que totalizavam 60 integrantes.

Da escolha do tema, a confecção de fantasias, adereços e estandartes era fundamental a participação das asiladas que sabiam costurar, além de interna(o)s que trabalhassem com madeira, papel, desenho e pintura, especialmente para colaborar com a elaboração dos estandartes e adereços.
Em relato do governo catarinense, publicado cerca de um ano antes, o total de asilados na Colônia Santa Teresa era de 386 pessoas (Santa Catarina, [1942] 1943). Desta forma, o número de leprosos fotografados em 1944 era uma pequena parcela dos internos da instituição. Entretanto, mesmo considerando que alguns doentes da colônia não gostassem desse tipo de festa, outros podem ter participado do carnaval sem fazer parte dos blocos. E também existiam aqueles que estavam impedidos, temporária ou permanentemente, de participar da diversão devido à doença.
Em 1944, a fotografia dos blocos de carnaval foi metodicamente posada, com as crianças e os mais jovens sentados, em primeiro plano, e duas moças, com trajes diferenciados (talvez porta-bandeiras) ladeando o conjunto de homens e mulheres fantasiados. Na imagem, que possibilita uma visão geral dos membros dos blocos, a perspectiva é de harmonia e alguns internos esboçam sorrisos. Mas, como advertiu Burke (2004, p. 20) ao escrever sobre fotografias e retratos, existem “enormes diferenças tanto com relação ao que essas imagens deixam transparecer quanto ao que elas omitem”.
Entretanto, o carnaval, tanto o intramuros quanto o que acontecia fora da colônia, era um tempo de subversão da ordem (Cunha, 2001), um período que leprosos transformados em marujos ou colombinas poderiam até transgredir regras asilares: namoros entre internos13, brigas por motivos banais e outras pequenas desordens. Atitudes fugazes, mas que concorriam para abrir frestas nas regras asilares.
Na quarta-feira de cinzas, repetindo o que acontecia em Florianópolis e outras partes do Brasil, a rotina voltava a imperar. Entretanto, para os moradores da Colônia Santa Teresa, o cotidiano agora era longe de seus familiares, de suas casas, de suas vidas antes da doença.
Considerações finais
Na década 1940, quando o isolamento compulsório ainda era a ação primordial para combater a difusão da lepra e cuidar dos leprosos, para os homens e mulheres internados na Colônia Santa Teresa, além de tratamentos com óleo de chaulmoogra, foram prescritas a “terapêutica ocupacional” (como afirmou o médico Tolentino de Carvalho) e a recreativa, consideradas fundamentais para o bem estar dos doentes.
Permeada pelas histórias de cada um dos internos, as práticas dos leprosos que resultavam das prescrições laborais e de recreação, foram moldadas pelas habilidades, preferências e pequenas transgressões desses indivíduos. Através delas foi possível um vislumbrar das relações entre os asilados na colônia catarinense.
No final dos anos 1940 o crescente uso das sulfonas14 causou impacto na Colônia Santa Teresa, onde os internos passaram a receber compridos e injeções de Promim (HSTDS, 1947). Nesse período a sulfonoterapia tornou-se central nas discussões dos leprologistas, transformando a profilaxia da lepra e a percepção da doença (Carvalho, 2013).
Em 1947, o artigo “Auxílio aos leprosos!”, do jornal “O Estado”, fazendo comentário sobre as sulfonas e a possibilidade de cura da lepra (O Estado, 1947), foi um dos primeiros textos publicados na imprensa florianopolitana que acenou com uma nova perspectiva sobre a doença e o leproso.
No início da década seguinte a realização de shows por artistas nacionalmente conhecidos, como Vicente Celestino e, em 1950 e 1952, a encenação da Paixão de Cristo por internos e para o público em geral, impactaram os asilados da Colônia Santa Teresa e eram sinais de mudanças (Pereira, 2002; Vaz, 2016). Nesse sentido, a segunda edição da peça teatral, chamada de “Oberammergau Brasiliense”15, foi emblemática devido a grandiosidade, e repercutiu nacionalmente. Segundo o jornal carioca “Correio da Manhã”, a encenação ao ar livre, realizada dia 09 de novembro, teve entre 18 e 20 mil expectadores. O evento foi financiado pelo governo de Santa Catarina e divulgado por circular do Departamento Estadual de Saúde (Lima, 2019).
Paralelamente, mudanças nas determinações médico-governamentais relacionadas aos leprosos começaram a acontecer, em sintonia com os resultados positivos obtidos com as sulfonas. Assim, em 2 de janeiro de 1950, a Lei Federal n. 1.045 estabeleceu critérios para a alta hospitalar dos pacientes de lepra que apresentassem um quadro clinico estável da doença (Brasil, 1950). Mas, ainda seria longo o caminho até o fim do internamento compulsório, no início dos anos 196016.
Na Colônia Santa Teresa, Benício Pereira esteve entre os primeiros a receber alta. Foi autorizado a deixar a instituição no dia 31 de dezembro de 1952, depois que seus exames de sangue confirmaram que “estava curado”; segundo suas palavras, “era o fim do pesadelo, pois sair com alta da colônia era o sonho de todos” (Pereira, 2002, p. 61).
Entretanto, para muitas dessas pessoas, além de felicidade, a saída da instituição trouxe dificuldades, principalmente geradas pelo preconceito. Vários ex-asilados voltaram para a colônia por não terem conseguido inserção na sociedade, mas também porque tinham perdido o contato com seus familiares e ficaram desamparados.
Nos anos seguintes, apesar da progressiva desativação do leprosário e reorganização da área hospitalar, esses indivíduos permaneceram na ex-colônia, recebendo ajuda governamental e de entidades civis e religiosas. Residindo nas casinhas da antiga Colônia Santa Teresa, alguns deles continuavam no local na segunda década do século XXI.
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Notas