Dossiê

Quanto valem esses corpos? Moradia, pobreza e pandemia na cidade de São Paulo

How much are these bodies worth? Housing, poverty and pandemic in the City of São Paulo

¿Cuánto valen estos cuerpos? Vivienda, pobreza y pandemia en la ciudad de São Paulo

André Mota
Universidade de São Paulo, Brasil
Igor da Costa Borysow
Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Brasil

Quanto valem esses corpos? Moradia, pobreza e pandemia na cidade de São Paulo

Revista NUPEM (Online), vol. 13, núm. 29, pp. 257-277, 2021

Universidade Estadual do Paraná

Recepción: 15 Noviembre 2020

Aprobación: 14 Marzo 2021

Resumo: Objetivamos identificar permanências históricas nas atuações dos governos municipais de São Paulo frente às epidemias e pandemias, considerando populações de moradias precárias e periféricas, em dois momentos: período de 1930 à 1970, e o primeiro ano da pandemia de Covid-19. Analisamos fontes jornalísticas e legislações em diálogo com a literatura existente sobre os períodos citados. O intenso processo de metropolização urbana, precarização das condições de moradia e de saneamento aprofundou as desigualdades sociais na cidade, a partir da alocação da população em determinados locais, das doenças que as abatiam, e da falta de acesso aos serviços médicos e de saúde, princi-palmente frente a epidemias. Em momentos de epidemias e pandemias, como a da COVID-19, os grupos mais vulneráveis têm reduzido seus corpos ao menor valor no jogo social, se tornando dispensáveis por parte da po-pulação e das autoridades de saúde pública, não incluídos adequadamente nas políticas assistenciais.

Palavras-chave: Cidade de São Paulo, Modernidade, Doenças do progresso, Práticas médicas e de saúde pública.

Abstract: We aim to identify historical permanences in the actions of the municipal governments of São Paulo in the face of epidemics and pandemics, considering populations of precarious and peripheral housing, in two moments: the period from 1930 to 1970, and the first year of the Covid-19 pandemic. We analyzed journalistic sources and legislation in dialogue with the existing literature on the aforementioned periods. The intense process of urban metropolization, as well as the precarious housing and sanitation conditions, deepened social inequalities in the city, from the allocation of the population in certain locations, the diseases that affected the people, and the lack of access to medical and health services, especially in the face of epidemics. In times of epidemics and pandemics, such as COVID-19, the most vulnerable groups have reduced their bodies to the lowest value in the social game, becoming expendable in the eyes of the population and public health authorities, not being adequately included in assistance policies.

Keywords: City of São Paulo, Modernity, Progress Diseases, Medical Practices and Public Health.

Resumen: Buscamos identificar permanen-cias históricas en las acciones de los gobiernos municipales de São Paulo ante epidemias y pandemias, considerando po-blaciones de vivienda precaria y periférica, en dos momentos: período de 1930 a 1970, y el primer año de la pandemia de la covid-19. Analizamos fuentes periodísticas y legislación en diálogo con la literatura existente sobre los períodos citados. El intenso proceso de metropolización urbana, precarias condiciones habitacionales y de saneamiento profundizó las desigualdades sociales en la ciudad, basadas en la asignación de la población a determinados lugares, las enfermedades que la afectaban y la falta de acceso a servicios médicos y de salud, especialmente ante las epidemias. En épocas de epidemias y pandemias, como la de COVID-19, los grupos más vulnerables han reducido sus cuerpos al mínimo valor en el juego social, volviéndose prescindibles por la población y las autoridades de salud pública, no adecuadamente incluidos en las políticas asistenciales.

Palabras clave: Ciudad de São Paulo, Modernidad, Enfermedades del progreso, Prácticas médicas y de salud pública.

Considerações iniciais

Foi Maria Isaura Pereira de Queiroz que, nos anos 1970, diante daquilo que chamou de penumbra dos poucos estudos em torno das favelas e dos processos migratórios no Brasil, apresentou uma reflexão relevante sobre as favelas urbanas e as favelas rurais. Historicamente, teria havido no Brasil, desde o Império até a Segunda Guerra Mundial, um crescimento descontínuo das cidades, formando movimentos migrantes de maior e menor porte que chegavam e deixavam de chegar:

o êxodo rural-urbano não colocava problemas de monta, e dava sempre lugar à formação de cortiços, de favelas, de mocambos, que teciam cinturões em torno das cidades, ou então se insinuavam pelo interior, nos interstícios deixados vazios pelos quarteirões. Eram peculiares às cidades maiores; as cidades médias e pequenas não eram procuradas pelos migrantes, pois nada lhes poderiam oferecer do ponto de vista do trabalho (Queiroz, 1978, p. 214).

Era um momento em que os migrantes se integravam à cidade por meio do trabalho regular que fazia o barraco prosperar e se transformar aos poucos numa casinha. Calçavam-se as ruas abandonadas, e os bairros populares nasciam encravados na cidade:

favelas, mocambos, cortiços constituíram, pois, um aspecto habitual do crescimento das cidades maiores. Sua população acabava integrando-se entre os citadinos e, se persistiam existindo, era porque novos contingentes de caipiras e tabaréus continuavam chegando. Tudo se desenrolava sem choques graves, o ritmo irregular da chegada o permitia. Essa cadência de desenvolvimento das cidades grandes foi deixando de existir a partir dos anos de 1930. O êxodo rural-urbano em direção às grandes cidades, principalmente para aquelas em que a industrialização plenamente se instalava, tomou uma tal aceleração que não foi mais possível promover a digestão de favelas, de mocambos, de cortiços. Estes aumentaram rapidamente, tomando algumas cidades aspectos aterradores (Queiroz, 1978, p. 215).

Esse novo tempo aterrador era em São Paulo, quando o Brasil viveu uma forte intensificação da atividade imobiliária, impulsionada pelas dificuldades de importação de equipamentos industriais durante a guerra e pelo surgimento de circuitos financeiros associados à economia coletiva:

assim ocorre a expansão dos fundos previdenciários, das companhias de capitalização, das caixas econômicas e das empresas de seguros que oferecem crédito imobiliário, empréstimos hipotecários e investem em construções tanto em grandes edifícios comerciais e residenciais para os grupos ricos e abastados, como em conjuntos populares e terrenos. O capital incorporador se consolida como nova fração de capital no processo de produção do ambiente urbano. Além desses fatores, o congelamento dos aluguéis, estabelecido pela Lei do Inquilinato, de 1942, reforça a tendência de retração do mercado de aluguel e amplia o mercado de compra e venda de habitações (Feldman, 2005, p. 669).

Este primeiro período histórico que tratamos em nosso estudo, 1930-1970, período pouco explorado pela historiografia da cidade de São Paulo, teve de início um marco decisivo que refletiu em diversos setores do Brasil: a ascensão de Getúlio Vargas ao poder e o rompimento da política “café com leite” que até o momento garantia privilégios aos cafeicultores paulistas e pecuaristas mineiros. Ainda é importante frisar a crise de 1929, com o fechamento de muitas indústrias e as demissões dos operários, piorando as precárias condições de vida do trabalhador da crescente metrópole (Barata, 2000). Somou-se então, à exclusão já vivenciada pelos livres e libertos na época escravocrata, a dos ex-escravos e aos demitidos do setor industrial. Não houve outra consequência além da geração de um contingente de moradores de habitações precárias, mendigos e indigentes, de várias origens, desclassificados por grupos dominantes que concentravam a riqueza e o poder (Kowarick, 1994).

Tais segmentos sociais viriam a ser alvo da eugenia paulista em desenvolvimento, que não apenas produziu discurso de valor ao saneamento, mas também de racismo, restrições e ataques aos negros e mulatos já habitantes da cidade de São Paulo e àqueles que migravam aos milhares a todo o estado (Mota, 2018). Nesse sentido, apesar dos avanços ocorridos do século XIX ao início do XX, se constatava a permanência de péssimas condições de vida da maioria da população no início deste século.

A preferência por estrangeiros como braço ao emergente negócio industrial não atenuou a exclusão dos brasileiros ao mercado formal de trabalho. Mas com a interrupção do fluxo de estrangeiros durante a Primeira Guerra Mundial, os senhores do capital, principalmente os paulistas, precisaram rever suas concepções sobre a mão-de-obra nacional. Assim foi criada uma segunda geração da classe trabalhadora, cada vez mais formada por nacionais, cujo processo alcançou significativo dinamismo a partir de 1930. Mas a exclusão já havia marcado profundamente a sociedade brasileira, principalmente para o negro e o mestiço, que se mantiveram por muito tempo em posições inferiorizadas nos processos de trabalho e produção, servindo muitas vezes como reserva de mercado para desarticular greves (Kowarick, 1994), e consequentemente não obtendo acesso à moradia adequada. Uma massa de pessoas de diversas origens, mas que compartilhavam da miséria e da falta de acesso a melhores condições na vida social, disputavam espaços de vida na metrópole que se formava, e cabia ao poder público responder de alguma forma a esse fenômeno.

Diante de todo esse quadro, e da insatisfação da oligarquia paulista com o novo governante federal, ocorre a tentativa frustrada de revolta armada em 1932. Porém conforme aponta Raquel Rolnik (1999, p. 13):

se a Revolução de 1930 foi feita em nome dos consumidores e produtores da cidade irregular - as classes médias, os pequenos investidores urbanos, os operários -, esta teria de incorporá-los, de alguma forma, à gestão urbana e provisão dos serviços. O dispositivo proposto em 1932 inova: é possível reconhecer o que é irregular, porém, as condições de reconhecimento não estão predefinidas, dependendo dos critérios técnicos municipais da Diretoria de Obras. Desta vez, foi dado o passo fundamental para estabelecer uma nova ordem jurídica, onde a clandestinidade ganha status de uma extra-legalidade dependente da intermediação do Estado.

Foi assim que, pela Consolidação do Código de 1934, “a velha ordem não se transforma para incorporar outras formas de ocupação do espaço, na verdade, ela apenas tolera - seletivamente - exceções à regra que, ao ser reconhecidas, são contempladas com direito de serem objeto de investimentos públicos em infraestrutura e serviços urbanos” (Rolnik, 1999, p. 13).

Assim iniciamos nossa análise sobre as condições socio-econômicas e habitacionais das classes vulneráveis da cidade de São Paulo e as respostas e/ou ausências do governo municipal e estadual no período de 1930 a 1970 frente a epidemias da cidade de São Paulo, afim de aproximarmos este quadro com as condições das populações moradoras de habitações precárias e periferias verificadas no primeiro ano da pandemia da Covid-19, e as atuações do governo municipal para promover cuidado em saúde à esses segmentos sociais. Pretendemos encontrar permanências históricas entre os dois períodos aqui apresentados.

A crise de moradia e seus efeitos

Segundo estudo de Bonduki, esse processo de crise de moradia se deve, antes de tudo, ao fato de se haverem transferido para a iniciativa privada os encargos da edificação de moradia popular, antes concentrados nas mãos do trabalhador e do Estado. Também é um ponto a considerar o surgimento de empreendimentos imobiliários destinados a prédios de escritórios e apartamentos para as classes mais abastadas:

a lei do inquilinato atuou, sobretudo, como um instrumento desse processo de transformação, pois, ao congelar o aluguel, provocou uma redução da parcela do salário comprometida com o pagamento da habitação. Se para os trabalhadores que já estavam alojados e que escaparam dos despejos a situação não se agravou, para os milhares de migrantes recém-chegados em São Paulo ou para os despejados encontrar uma moradia digna a um custo compatível com os salários tornou-se impossível. Assim, surgem ou se desenvolvem novas “alternativas habitacionais”, baseadas na redução significativa, ou mesmo na eliminação, do pagamento regular e mensal de moradia: a favela e a casa própria auto-construída ou auto-empreendida em loteamentos periféricos carentes de infra-estrutura urbana (Bonduki, 1994, p. 729-730).

Tais mudanças, ocorridas a partir de 1942 com a promulgação da referida lei, no âmbito da produção e da comercialização imobiliária mudou a feição da cidade, de suas áreas mais centrais às periféricas:

para atender a demandas das faixas médias de renda, entrou em uso o instituto dos condomínios. De início, mais para a produção de edifícios em ruas da cidade nova ou centro novo, como costumavam dizer: Barão de Itapetininga, Conselheiro Crispiniano, a então recém-aberta Rua Marconi e em partes do centro velho, em trechos como a rua Boa Vista, Quinze de Novembro, Líbero Badaró, que ainda não haviam sido reformulados entre 1910 e 1930. Depois, estendeu-se o processo de comercialização dos apartamentos, em bairros próximos ao centro como Campos Elíseos, Santa Cecília, Vila Buarque e Higienópolis. Um número considerável de edifícios foi construído nas avenidas abertas naqueles anos, como Ipiranga, Vieira de Carvalho e São Luís; nesses casos, com mescla de edifícios residenciais e escritórios (Reis, 2004, p. 15).

A construção do Parque do Ibirapuera talvez represente melhor essa tomada de espaço: a área desejada foi transformada em devoluta, mesmo que lá estivessem instaladas 204 famílias, em 186 barracos entre as ruas Manoel da Nóbrega e Abílio Soares. As reclamações sobre as “favelas no Ibirapuera” e a necessidade de sua remoção eram claras, como veiculadas no jornal “A Gazeta” de 7 de agosto de 1947:

parece incrível que até agora não tenham sido tomadas as providências prometidas por quem de direito para impedir a formação lastimável de inúmeras favelas em pleno Parque do Ibirapuera, o único recanto aprazível que os paulistanos aproveitam aos domingos e feriados para os seus passeios. Em todo o correr da rua Abílio Soares, bem perto do lago existente [...] os casebres imundos da favela. Casas de latas de gasolina, de madeira podre, cercadas por montões de lixo! Isso em pleno parque, tornando um amontoado de péssimos elementos, sem higiene, sem disciplina e sem... polícia! (A Gazeta, 1947, p. 2).

Para o editorial de “A Gazeta”, se poderia falar numa permanente crise de habitação em São Paulo, discurso que vinha de décadas anteriores, inclusive com os mesmos argumentos:

é uma calamidade o sofrimento que se observa nesta Capital com a crise da habitação! Cada dia que passa, a situação se agrava mais e nem uma só medida é tomada pelas autoridades competentes. Ao contrário, continua a derrubada dos prédios e a desapropriação de outros para se abrirem amplas avenidas, a fim de embelezar a cidade, à custa de lágrimas e sofrimento insano das vítimas de tão danosa crise. E o mais triste e desolador é o espetáculo que se observa nas casas de cômodos, em quase todos os bairros da Capital, particularmente no que diz respeito ao tratamento que os sublocatários, prevalecendo-se de tal situação, dispensam aos inquilinos. E quando estes, depois de longo tempo de armazenar paciência, depois de se acharem seus nervos em frangalhos, depois que sua saúde já se abalou tornando-o um nevrótico ou esgotado, pratica cenas de pugilato, comuns nas casas de cômodos (A Gazeta, 1945b, p. 4).

O cenário narrado pela imprensa local emoldurava a realidade da miséria provocada, sobretudo, pela falta de moradia que se ampliava dia a dia por toda a cidade:

é a miséria numa casinha tosca do Ipiranga. É a miséria em plena Praça Ramos de Azevedo, onde um sofredor anônimo das ruas dorme no cimento frio. É a miséria a exigir que crianças esqueléticas procurem resto nos monturos. É a miséria na favela, miséria num banco da Praça da República porque a infeliz criatura não conseguiu vaga no albergue superlotado. É a miséria na Vila Maria, onde uma sexagenária anda à cata de qualquer lixo para poder comer! É assim a vida na capital dos tubarões e das filas. Esperam-se dias melhores. A esperança alimenta a população pobre de São Paulo (A Gazeta, 1947, p. 5).

Segundo o levantamento da moradia operária em 1946, havia na capital 1.916 famílias, 47,02% das quais nas chamadas habitações coletivas - os cortiços -, o que agravava a situação e obstava os resultados das ações das instituições assistenciais de saúde. Segundo levantamento realizado no período sobre as condições de habitação e medidas de saneamento (água potável, rede de esgoto e destinação do lixo), a situação era de precariedade: “quanto a rede de esgotos, até 1953, cobria apenas 2% da área total do município, e menos de 50% dos prédios da zona urbana estão ligados à Rede. A situação de esgotos sanitários não satisfaz e tem caído face ao crescimento da população e extensão da área a atender” (Castro, 1958, p. 14).

Em censo realizado em 1950 na cidade de São Paulo, a situação dos domicílios se apresentou conforme a tabela 1:

Tabela 1:
Levantamento de moradias em São Paulo - IBGE (1950)
Levantamento de moradias em São Paulo - IBGE (1950)
Fonte: Castro (1958, p. 5).

Dessa forma, ampliava-se a área da cidade, atingindo proporções incomuns, acrescentando-se a ideia da “influência exterior da cidade” sobre o semideserto que havia em torno dela, com a multiplicação das indústrias agrárias e do carvão de lenha e dos locais para diversão e recreio, como Santo Amaro e a Cantareira. A esse desenvolvimento considerável não podia deixar de corresponder uma extrema intensificação da existência urbana, que marcaria sua fisionomia (Bruno, 1991). A formação de novos bairros ganha o interesse das elites, por manter isolada e invisível uma população indesejada, e significa lucro fácil para os especuladores por meio de lotes clandestinos. Foi uma fase de expansão dos loteamentos das zonas periféricas destinados à autoconstrução e com regulamentação precária:

um gigantesco universo de clandestinidade, superando largamente os espaços da legalidade: bairros sem registro, ruas sem nome, casas sem número, moradores sem documentos. As únicas entidades legalizadas eram as chamadas sociedades amigos de bairro, que negociavam com políticos a lenta conquista de melhorias, do calçamento à escola, da iluminação pública às linhas de ônibus ou à coleta de lixo (Reis, 2004, p. 27).

Tal relação, que também envolveria a anistia ou o zoning seletivos, ajudava a marcar a mesma posição das elites dominantes da cidade:

representam uma estratégia político-urbanística em São Paulo que deitou raízes tão profundas, que praticamente nada mais aconteceu em termos de legislação até o final dos anos de 1950. Seu fundamento tem o caráter estabelecido com a revolução de 1930: as massas populares chegam ao poder sem autodeterminação, subordinadas a um Estado protetor e populista; as elites se deslocam sem perder o seu lugar. Enfim, tudo muda, para nada mudar (Rolnik, 1999, p. 14).

O incremento populacional do distrito foi sendo alimentado por levas de japoneses e italianos, acrescentando-se os migrantes e muitas comunidades negras, chegando à região de concentração destas a ser conhecida como Pequena África. Ao mesmo tempo, surgem também as primeiras favelas, que crescem exponencialmente, chegando nos anos de 1960 a 35 favelas estabelecidas. A crise de moradia, que se somava ao abandono das áreas periféricas, é retratada por um morador de Vila Esperança, que narra a situação de seus habitantes:

Vila Esperança vive abandonada, com suas 70 mil almas, embora pague seus impostos urbanos. Aqui, é tremenda a falta de higiene. Fossas completamente abandonadas, exalando cheiro horrível. Tenho quase certeza que as crianças aqui têm sintomas de ancilostomíase. Terrenos abandonados, com poças de água podre, focos de mosquitos e pernilongos, enfim, tudo abandonado. Por que motivo? Será que temos que viver eternamente revoltados com as injustiças e erros de que não somos culpados? (A Gazeta, 1945, p. 2).

Sob o título de “Vila Maria à frente dos bairros esquecidos”, o jornal “A Gazeta” publica uma extensa matéria em três partes e repleta de fotografias apontando a falta de infraestrutura de ruas e calçamentos. No tópico “Não tem sequer uma calçada!”, o texto sintetiza a situação do bairro:

Vila Maria não tem sequer uma rua calçada. Parece mentira! Mas não é. Moradores da Avenida Guilherme Cotching enviaram inutilmente várias representações ao governador do município. Estavam dispostos a se cotizarem. Mas a Prefeitura tinha muita coisa para cuidar e não poderia se preocupar com o calçamento da avenida. Nem poderia tomar conhecimento da falta de água encanada e ou da rede de esgoto (A Gazeta, 1945a, p. 5).

Na área sul da cidade, a situação não era diferente. Numa investigação sanitária realizada em 1948 nos bairros da Zona Sul - Indianópolis, Vila Helena, Santo Amaro, Campo Belo, Vila Nova Conceição e Brooklin Paulista -, avaliaram-se as condições sanitárias dos serviços de água encanada e de esgoto de 57 ruas e 1.702 edifícios. Segundo os resultados:

verifica-se que somente 600 prédios examinados, representando 39%, são servidos pela rede pública de distribuição da capital. Trata-se de um percentual excessivamente baixo. Certamente, o número de prédios examinado é pequeno. Contudo, o conhecimento que temos da situação nos habilita a informar que o prosseguimento do inquérito muito pouco viria alterar o percentual encontrado. Os prédios desprovidos desses melhoramentos contam-se aos milhares (Carrijo; Martins; Gayotto, 1948, p. 326).

Nessas condições, como estariam sendo construídas as fossas e os poços nos quintais? Sobre isso, os resultados eram alarmantes: “verifica-se que, dos casos considerados, apenas 25% dos poços situam-se a uma distância das fossas capaz de apresentar, em termos médios, relativa segurança contra possíveis contaminações delas originadas” (Carrijo; Martins; Gayotto, 1948, p. 328).

Favelas, albergues e ruas: a desigualdade aprofundada

Se até então as favelas eram em número suficientemente baixo para passar quase despercebidas na urbe, entre 1930-70, sua presença ganha a atenção das autoridades municipais, exigindo intervenções e herdando, desde suas origens, os estigmas que cercavam os cortiços, mesmo que seu surgimento não estivesse “relacionado a nenhum movimento organizado de invasões. Muito pelo contrário, é bom lembrar que as primeiras favelas paulistanas eram ocupações consentidas ou ainda estimuladas pela prefeitura” (Paulino, 2007, p. 75). Essa visão aparentemente filantrópica e caritativa podia ser relacionada com outra, bastante interessante para determinados estratos sociais. Mesmo que pudesse, num primeiro momento, ser considerada uma ameaça ao projeto modernista de cidade, essa população também foi “incorporada como grande manancial dos empregados domésticos e dos trabalhadores da construção civil, motivo pelo qual os mais abastados receavam perder esse próximo e rico manancial de mão de obra barata” (Peres, 2007, p. 39).

Na visão de José de Souza Martins, que estuda nesse período o movimento de migração dos grupos mais pauperizados1 a São Paulo, a proliferação de favelas diria da transição que a cidade viveria, sem preparação lenta ou adaptativa, mas, ao contrário, de forma veloz e violenta, absorvendo muitos desses grupos que chegavam sem alternativas de vida ou de trabalho. Assim, é esse fenômeno de favelização o responsável, por exemplo, pela violência entre a população, visão contrária à que se construiu de que para lá acorria uma gente violenta, degenerada e doente. Esse teria sido o caso da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) quando chegou à favela do Canindé, na beira do rio Tietê, em 1947 e registrou as mudanças que ocorriam:

o período de degradação foi de dez anos, lento, portanto, demorado chegar ao fundo do poço. Dali para baixo, já não havia queda possível. Nos onze anos entre a chegada na favela do Canindé e a referência ao fato, no diário2 registra o superpovoamento da favela. Anota que os nordestinos começavam a chegar, designados como nortistas e às vezes baianos. Quando detalha que é baiano, diz que é pernambucano. No cenário da favela, os baianos aparecem associados às peixeiras e aos conflitos, Lampião no imaginário. Nem por isso Carolina deixa entrever, na cerração de miséria e conflito que era a favela, o valoroso trabalhador nordestino que chegava, capaz de sacrifícios como o de viver ali para juntar dinheiro, salvar uma concepção digna de mundo e da vida, degradar-se sem se render (Martins, 2004, p. 73).

Nessa direção, em seu instigante trabalho sobre a invenção das favelas cariocas, Valladares atentou não apenas a seu surgimento, mas a toda uma série de definições que nasceriam das relações estabelecidas entre a população e as políticas urbanas e imobiliárias, ganhando e perdendo elementos explicadores do lugar e também de seus moradores. Entre elas, algumas parecem ganhar sentido menos local e mais nacional, e seriam aquelas “que aparecem fortemente estruturadas pelas preocupações políticas relativas à consolidação da jovem República, saúde da sociedade e entrada na modernidade. A favela pertence ao mundo antigo, bárbaro, do qual é preciso distanciar-se para alcançar a civilização” (Valladares, 2015, p. 36).

Importa notar que, se essas indicações falam de pessoas que poderiam ser captadas por uma história da cidade e de suas instituições representantes:

a intenção de naturalizar os problemas da cidade, ou seja, de reduzi-los às questões técnicas, portanto disciplinares, cai por terra ao ser confrontada com o caráter produtor de cultura das soluções propostas. Cultura no sentido amplo de artifício, de arte de ser humano, a cidade se revela, em suma, como espaço politizado. Essa tensão desvenda de forma brutal que mesmo a técnica, apresentada como saber objetivo, daí neutro, em busca de melhores soluções a partir de dados e ferramentas disponíveis, encontra sua justificativa de neutralidade no próprio pensamento político (Bresciani, 2002, p. 30).

Numa reportagem sobre a favela Ordem e Progresso, na Barra Funda, é possível acompanhar a tensão entre a pretensa neutralidade da ação técnica e, oculta nas entrelinhas, a contradição do espaço politizado pelas escolhas que a cidade impunha aos grupos mais pauperizados e abandonados. Segundo consta, lá seriam:

construídos um hospital e uma escola da Santa Casa de Misericórdia. Iniciada às margens do Rio Tietê, a favela atingiu as avenidas marginais, e os barracos chegam até o asfalto. Extremamente fechada e amontoada nos 66 mil metros quadrados que constituem a área municipal doada à Santa Casa de Misericórdia, ela encerra nas paredes de suas miseráveis construções com triste ironia. A decoração das divisões de madeira é toda feita com placas arrancadas de cartazes promocionais, de indicação de ruas e até túmulos. Em meio à sujeira, algumas crianças brincam com resto de lixo, embaixo de brilhantes e coloridos out-doors anunciando bebidas caras ou remédios vitalizantes. “Pague sua declaração de imposto de renda”: a propaganda parece extremamente irônica para uma população que vive a catar papel nas ruas ou remexer lixos e que não possui nem carteira profissional. Como irônica também é a coincidência de os favelados serem despejados pela Santa Casa de Misericórdia (O Estado de S. Paulo, 1975, p. 27).

Ao estudar a constituição desses espaços de exclusão, Raquel Rolnik diz da vida insegura e arriscada que impede o acesso a empregos, oportunidades e bens culturais e educacionais. Mais que isso, evidencia como:

os territórios excluídos constituíram-se à revelia da presença do Estado ou de qualquer esfera pública e, portanto, desenvolvem-se sem qualquer controle ou assistência. Serviços Públicos, quando existentes, são mais precários do que em outras partes da cidade [...] viver permanentemente sob uma condição de privação de necessidades ambientais básicas faz os habitantes se sentirem como se suas vidas tivessem pouco valor (Rolnik, 1999, p. 107).

De forma circular, rápida e excludente, os grupos mais empobrecidos e despossuídos que tempos antes haviam sido deslocados para esses lugares, quando estes ainda estavam sendo capitalizados, se não conseguiram se estabelecer ou resistir diante da nova onda de especulação, foram novamente removidos para pontos ainda mais longínquos, sem infraestrutura ou serviços adequados, nem mesmo de saúde pública. Segundo Milton Santos, tal configuração do urbano também ajuda a definir as classes e as ordens que hierarquizam as relações sociais, permeadas pela ideologia do consumo, que acabam por confundir o direito à moradia com o direito de ser proprietário: “a verdade, porém, é que ser dono de um terreno ou de uma casa sem sempre assegura moradia estável. Os pobres que lutam desesperadamente para conquistar o direito à propriedade estão frequentemente mudando, dentro da cidade; são verdadeiros migrantes intraurbanos” (Santos, 2007, p. 154).

Houve ainda aqueles que, impossibilitados de manterem moradias, recorreram a alternância entre períodos habitando pensões, albergues e as ruas (Rosa, 2005). Com o agravamento da precarização das condições de trabalho e da questão social nas décadas de 1960 e 1970, os grupos em situação de rua passaram a ser cada vez mais visíveis nas grandes cidades do país.

As doenças do progresso e a busca de assistência

Mas como se daria o quadro de adoecimentos envolvendo a gente da cidade de São Paulo? Um olhar sobre essas pessoas evidencia como grande parte das autoridades médicas e de saúde se coadunava com esse quadro urbano de várias formas. Em discursos, aulas e palestras, diziam-se, quase todos, preocupados com a saúde do povo, mas, evidentemente, sempre segundo as expectativas de uma “elite da saúde” afinada com interesses das camadas dominantes, agora industriais, que ajudavam a aprofundar as disparidades sociais da cidade. Para esses, pouco compreendiam que os tempos dos homens e das instituições eram diferentes ou que as práticas médicas e de saúde pública eram práticas sociais, dimensionadas pelas concepções de classe e sua visão de mundo diante da produção, em nada contraditória com as doenças do progresso.

Em 1985, o historiador Jacques Le Goff organizou a obra “As doenças têm história”, chamando atenção para o fato de o corpo em sofrimento por doenças tornar-se objeto da história. Assim, não estaria o homem frente às doenças ligado apenas aos progressos científicos e tecnológicos da medicina e de seu campo de saberes e práticas, mas, antes de tudo, por expressar “a história mais profunda dos saberes, das práticas ligadas às estruturas sociais, às instituições, às representações, às mentalidades” (Le Goff, 1991, p. 8). Também trata-se de um jogo da doença e da saúde que, ao sair da casa do doente e se deslocar para o hospital, passou a mediar a vida social coletiva, publicizando limites e obstáculos nessa empreitada. O autor aponta uma construção historicizada por homens e mulheres num certo tempo, de doenças que aparecem, desaparecem e reaparecem tensionadas pelas opções humanas de viver em determinada sociedade.

Essa ideia merece atenção, pois esclarece as mudanças repentinas e explosivas que se deram na cidade de São Paulo, envolvendo deslocamento populacional e formas de moradia e trabalho, mesmo que os discursos procurassem dissolver as contradições por meio de uma série de dispositivos capazes de uma interpretação ligada a uma possível harmonia da realidade, bastando acionar a responsabilização individual frente às ameaças da vida e do trabalho produtivo: da boa nutrição ao bom sono, dos cuidados para se manter o equilíbrio sexual às dicas sobre vestimentas, todas contribuíam para as representações que se coadunavam com a Educação Sanitária, agora e mais que nunca aliada à nascente indústria de fármacos, que espalhava seus folhetos educativos e de automedicação por bondes, trens e outdoors:

a harmonia para produção e os remédios para adequação ao trabalho retiram qualquer suspeita que possa recair sobre as relações sociais contraditórias. As enfermidades e os descompassos resultam de fatores atemporais, a sociedade em crise é um dado em si, impenetrável. Portanto, as doenças não podem ser o resultado dessa constituição social, mas antes, a etiologia encontra-se na falha de decisão de indivíduos isolados, já que o excesso de trabalho, o caos urbano, a insalubridade fabril etc. são fixados como partes indissociáveis do todo, rígido e inexorável. Dessa forma, o espaço de atuação possível fica relegado à conscientização sanitária do indivíduo, a atuação incompleta dos órgãos públicos de saúde e a decisão pelo consumo dos medicamentos comercializados abertamente (Rodrigues, 2015, p. 115).

No entanto, se tinham alguma resposta positiva, os resultados dessa empreitada conviveriam sempre com uma contradição derivada da crise urbana, desaguando em problemas sanitários de toda ordem, além de endemias e epidemias que avançavam na mesma progressão e velocidade com que surgiam habitantes e indústrias, compondo um quadro desolador, conforme o editorial de “A Gazeta” de 10 abril de 1947 (p. 1):

As condições higiênicas da capital pioram dia a dia. O serviço de saúde pública anda ausente de muita coisa. Se não fosse a proteção dos céus, porque Deus não abandona nunca a gente piratiningana, a essas horas sentiríamos calamitosos efeitos da falta de melhor e maior zelo pelo estado sanitário da urbs. Em assunto de higiene, a desolação é completa. Não existe nas vias públicas, de onde a limpeza fugiu. Não se desinfetam, nem se fazem desinfetar obrigatoriamente as moradias, onde a escassez de habitações amontoa dezenas e dezenas de pessoas. Assim nos porões, assim nos cortiços. Também nas casas de pensão e hotéis [...] no mercado, na feira, é revoltante o abuso na venda de frutas, verduras e legumes deteriorados e podres. Ovos igualmente. Qual repressão se adota ou determina o serviço de higiene, castigando os infratores? É mistério... Ronda tifo nos bairros. Às vezes, a varíola aponta em surtos esporádicos. E a febre amarela ensaia através dos mosquitos veiculadores. Escarlatina, tuberculose, sífilis.

Desse modo, das doenças a suas expiações, a vida cotidiana paulistana parece apagar muitas dessas experiências, numa velocidade que quase explica que adoecer seria apenas um fenômeno biológico e de cunho individual, mesmo sob a indicação de suas causas sociais e dos levantamentos epidemiológicos.

Nos anos 1920 a 1930, a medicina vinha se estabelecendo pelo modelo liberal, com a proliferação de consultórios particulares e no atendimento individual e praticamente artesanal da arte de curar (Schraiber, 1993a). Nesse sentido, o consultório médico se tornou “o centro de acordo com o qual o médico articula suas práticas complementares, na faculdade, no hospital filantrópico e até nas atividades de saúde pública” (Nogueira, 2007, p. 155-156). Ao lado desse desenvolvimento liberal, que foi permeado de disputas dentro da própria classe médica diante do surgimento de inúmeras especialidades, e de outras categorias profissionais do campo da saúde (Mota, 2018, p. 30), ocorria o processo de estabelecimento das Caixas de Aposentadoria e Pensões, e da criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões, em 1930, oferecendo assistência à classe trabalhadora, num processo que se manteria funcionando até os anos 1970 (Braga; Paula, 2006).

A medicina liberal, que conviva com outras frentes como a medicina filantrópica, a medicina dos fundos de pensões e de sociedades civis, passaria a ter que também dialogar com a medicina social (Mota, 2018). Neste caminho viria Geraldo de Paula Souza, que desde 1920 vinha investindo em uma reforma sanitária que teria, por base, o modelo de saúde divulgado pela Fundação Rockfeller, com destaque para os Centros de Saúde como rede ambulatorial geral, e propostas eugenistas, considerando o trabalho sobre as raças como fator de higiene (Mota, 2018). Fez parte dessa proposta a formação de educadores sanitários e de profissionais com especialização em higiene, que focavam sua atuação no combate as endemias locais, às verminoses e na mortalidade infantil.

Porém com a derrota dos paulistas na guerra civil de 1932, a autonomia paulista foi duramente atacada, e como consequência a desconstrução do programa sanitário que estava sendo implementado. O conjunto administrativo foi todo desconstruído, sendo substituído por uma série de aparelhos médico-sanitários desarticulados. Com o passar dos anos, as instituições de saúde entraram em colapso, o que gerou momentos de caos sanitários (Mota, 2018). A alta rotatividade de secretários estaduais e municipais de saúde impediu a continuidade do planejamento de ações, e a disputa de médicos especialistas por mais espaço nas políticas públicas, assim como a brecha conseguida por deputados para manipular o uso das verbas da saúde resultaram em uma diversidade de programas especializados que por vezes se sobrepunham em suas estratégias, e não se articulavam entre si (Sposati, 1985; Bertolli Filho, 2001). Os centros de saúde foram, com o passar dos anos 1940 e 1950, deteriorados com a política populista ademarista, que seguiu com uma proliferação desordenada de unidades de saúde (Castro,1958; Ribeiro, 2004).

Como descrito por Castro:

Até 1954-55, conservaram-se, porém, os Centros de Saúde da capital como os únicos órgãos oficiais de assistência sanitária à criança. Lutando sempre com a falta de pessoal técnico e acomodações adequadas - pois já em 1938, na sua instalação, seu número era inferior às necessidades -, os Centros de Saúde da capital vêm desempenhando precariamente suas finalidades, apesar do esforço de seu pessoal. Essa situação criou, a nosso ver, na mente de todos os não especializados em saúde pública, um falso conceito desse tipo de unidade sanitária. O número de suas unidades foi aumentando sem o correspondente aumento de pessoal. No início de 1958, existiam 19 unidades fixas e uma volante: na véspera do pleito eleitoral, foram instaladas mais 25, sem plano técnico algum e lotados diferentemente dentro de recursos limitadíssimos. Surgiram os sub-centros, mas não coordenados por um centro de saúde distrital; e os Postos de Consulta são uma demonstração evidente do abandono completo da medicina preventiva feita já de modo limitado nos antigos Centros de Saúde (Castro, 1958, p. 63).

A fragmentação e falta de conexão entre os serviços de saúde afetou obviamente a relação que se estabelecia na assistência com a população, que em diversos momentos ficou desprotegida frente às endemias e epidemias. Assim ocorreu com a epidemia de poliomielite, que já havia sido alertada em 1940 e muito pouco havia sido feito para identificar os casos e oferecer assistência até 1948 (Vieira; Santos; Silva, 1948).

Em uma breve revisão do período aqui estudado, percebe-se que doenças endêmicas e epidêmicas eram praticamente as mesmas dos anos anteriores. Por exemplo a leptospirose, que já havia sido reconhecida deste os anos 1910 mas não registrada no estado de São Paulo, e que sabe-se estar vinculada às precárias condições de saneamento (Magaldi, 1963). A malária manteve alta taxa de incidência durante as décadas de 1930 e 1940, com maior número de casos em regiões novas de ocupação e área litorâneas do estado, sendo identificadas três grandes picos epidêmicos: 1935, 1940-41 e 1945. Também o tracoma foi frequente nestes períodos, principalmente em áreas sem água tratada e com aglomeração intradomiciliar (Barata, 2000; Ferreira, 1948). E ainda na área urbana, principalmente na cidade de São Paulo, continuaram as ocorrências de difteria, meningite meningocócica, escarlatina, tuberculose, febre tifóide e sarampo.

Agora se olharmos pela perspectiva da ação pública, veremos poucas estratégias realizadas para conter as epidemias, que poderiam ser evitas, em sua maioria, por melhorias no saneamento e melhorias de regiões habitacionais precárias, ou ainda investimentos em vacinas, quando possível considerando o avanço tecnológico. Por exemplo na epidemia de doença meningocócica iniciada em 1945, não houve resposta alguma do governo estadual e do municipal, ficando ao cargo de professores universitários a confirmação da epidemia em seus estudos, no início da década de 1960 (Schmid; Galvão, 1961). Outro exemplo dessa ausência estatal foi o sarampo, que chegava a afetar praticamente todas as crianças em torno dos 7 anos, nestas décadas. Ter sarampo era algo que se tornou naturalizado para grande parte delas, porém para aquelas afetadas pela desnutrição, o risco de morte antes dos 5 anos era muito alto (Barata, 2000).

Na década de 1960, contata-se o estabelecimento da maioria da população do estado de São Paulo em áreas urbanas, e o agravamento da precarização das moradias, das condições de educação e saúde, além do saneamento e transporte urbanos, que muito pouco melhoraram. Ficam em evidência as doenças vinculadas à vida urbana como as cardiovasculares, os acidentes e as neoplasias, e em decréscimo lento as doenças infecciosas (Editora Abril, 1980). Ainda assim, a cidade de São Paulo foi tomada pela maior epidemia de doença meningocócica já registrada. No início da década de 1970, foram registrados aumentos exorbitantes do número de casos, e novamente as autoridades sanitárias parecem ignorar o fato. E novamente as populações moradoras da periferia foram as que mais apresentaram casos. Seria apenas uma grande campanha de vacinação em 1975 que daria conta do avanço da epidemia, ação tardia diante do alto número de mortos atingido na época (Barata, 1988).

Se o Estado parecia responsabilizar a população das moradias e bairros precarizados pelas péssimas condições de saúde que viviam, para o segmento social que se avolumava nas ruas a culpabilização era explícita. O Estado brasileiro, que já reprimia pessoas que não seguiam (por não conseguirem seguir) as normas sociais, passou a criminalizar tal fenômeno. Com a proibição da mendicância em 1941, e a inserção de um artigo na Lei de Contravenções Penais que punia a vadiagem de pessoas com idade e condições de trabalhar, além da criação da Delegacia da Vadiagem, surgiram atos não apenas de controle mas também assistencialistas.

Com o reordenamento das instituições de saúde ocorrido em 1944, que definiu as instituições para-hospitalares como serviços de apoio social (Brasil, 1965), havia a partir deste momento destinos mais bem definidos para o encaminhamento dos vadios. Asilos, abrigos e albergues passaram a proliferar no país, geralmente com caráter religioso, onde oferecia-se assistência diante de problemas sociais e questões mais simples de saúde, porém não favoreciam o acesso dos grupos de internados a outros cuidados de saúde (Vieira; Bezerra; Rosa, 2004).

No governo do estado de São Paulo foi criado o Serviço de Proteção e Previdência pelo Decreto-Lei n. 17.029, de 1947, que objetivava executar ações para a readaptação de mendigos, vadios, toxicômacos e outros contraventores. Era realizado o recolhimento de pessoas consideradas desajustadas e que estavam nas ruas, e aquelas aparentemente doentes seriam encaminhadas aos hospitais (São Paulo, 1947). A partir deste decreto foram criadas as “Campanhas de repressão à falsa mendicância e de recuperação social”, promovidas no estado entre 1959 a 1970, que entendiam serem os mendigos pessoas desajustadas socialmente, suscetíveis de se enquadrarem na ilegalidade e de contribuírem com a desagregação da sociedade. Com este entendimento, as polícias da época se revestiram com a missão de combater todas as formas de imoralidade, corrupção e desvios, utilizando-se das estratégias de saneamento social compostas por ações repressivas e atendimento assistencial, além das internações forçadas em instituições para-hospitalares (Stoffels, 1977).

Apesar de um pouco à frente do período delimitado, é pertinente observar que a cidade de São Paulo, epicentro do fenômeno dos moradores de rua, encontram-se registros da rede institucional constituída em maio de 1975. O plano denominado “Operação Inverno” propôs a interconexão entre vários órgãos da secretaria de Segurança Pública e Promoção Social para realizar o recolhimento compulsório de indigentes e mendigos encontrados nas ruas e viadutos, e encaminhá-los à triagem e posteriores cuidados. Suas ações eram executadas por policiais militares e civis, que circulavam nas ruas, realizavam plantões nas rodoviárias e ferroviárias, e respondiam a denúncias telefônicas da população domiciliada. Ao serem levadas ao Serviço de Proteção e Previdência, as pessoas recolhidas passavam pela triagem em três etapas: primeiro a triagem médica, em que era realizado exame superficial dos recolhidos por um médico; a triagem social, momento de avaliação das carências sociais das pessoas; e a triagem policial, quando era analisado se o sujeito possuía antecedentes criminais e se possuía “carreira de mendicância ou vida na rua” (Stoffels, 1977, p. 98).

Considerando esta avaliação, as pessoas eram encaminhadas ao pronto socorro, ou se eram identificas deficiências físicas e intelectuais eram levadas à Central de Triagem e Encaminhamentos (CETREN), órgão criado em 1971 pela Secretaria Estadual de Promoção Social para assistência aos migrantes. A equipe desta central verificava se a pessoa possuía rede protetiva, e em caso negativo esta era encaminhada aos serviços para-hospitalares (abrigamento e apoio social). Caso fosse confirmado problemas mentais e uso de drogas, eram levadas à Fazenda São Roque. Desse modo, o acesso desse segmento social aos serviços de saúde na cidade de São Paulo, nesta época, ocorria principalmente através da operação. Porém, como afirma Stoffels (1977, p. 99) ao analisar os documentos e matérias relacionadas a esta operação, o grande objetivo era realmente prevenir a desordem social e o desvio moral. E não encontramos registros de estratégias voltadas ao cuidado desse segmento social frente às epidemias do período aqui estudado.

É por isso que eu moro na rua! Quando uma pandemia chega

Os contextos em torno da situação de moradia da população mais vulnerável na cidade de São Paulo foi se agravando ao longo dos anos com o crescimento populacional, os interesses imobiliários e a explosão das pessoas em situação de rua. Ao mesmo tempo, tivemos o desenvolvimento das políticas de saúde tanto na esfera municipal como na federal, sendo grande marco a promulgação da lei 8.080/1990 que organizou o Sistema Único de Saúde (Brasil, 1990). A partir da Constituição de 1988 e da organização do SUS, toda a população do Brasil teria direito a usufruir da cobertura deste sistema, sendo favorecida pelo gradual estabelecimento da Política Nacional de Atenção Básica, pelos serviços de atenção ambulatoriais e hospitalares, e pelo desenvolvimento da vigilância sanitária, epidemiológica e ambiental, além do também gradualmente expandido Programa Nacional de Imunização e pela rede de urgência e emergência, que como sabemos, vêm sido implementadas de maneira desigual nos diversos estados do país. Apesar do reconhecido avanço do SUS, o sistema nunca obteve financiamento adequado para funcionar de maneira plena (Menezes; Moretti; Reis, 2019).

A cidade de São Paulo permaneceu como palco de disputas políticas, o que ora fazia o planejamento municipal se distanciar das propostas federais, e oras se aproximar. A partir 1990, a cidade desenvolveu os Sistemas Locais de Saúde, com objetivo de oferecer cuidado integral à população conforme suas características locais (CEFOR, 1990). A partir da integração do município ao SUS, em 2001, foi adotado o Programa Saúde da Família, que seria a base para a atenção básica e organização dos demais níveis de atenção à saúde (SMSSP, 2002). Porém, como exemplo das disputas acima anunciadas, em 2005 foram criadas as unidades AMA - Assistência Médico Ambulatorial - que foram construídas acopladas às unidades básicas de saúde, que tinham o objetivo de oferecer retaguarda em atenção primária (SMSSP, 2009). Após alguns anos, foram realizadas análises e concluiu-se que a oferta desses serviços entrava em conflito com os princípios da própria proposta de Atenção Primária em Saúde, sendo reconhecida como estratégia fragmentada e que oferecia sobreposição de ações (SMSSP, 2020).

Na cidade de São Paulo, uma complexa rede de serviços de saúde foi estabelecida, considerando serviços de gestão direta da secretaria municipal de saúde, e serviços de gestão operacionalizada por Organizações Sociais. No ano de 2020, a secretaria municipal de saúde de São Paulo contou com aproximadamente 900 equipamentos de saúde e perto de 80.000 trabalhadores, mas que ainda sofre com a sobreposição e fragmentação dos serviços oferecidos (SMSSP, 2020).

Quando a pandemia de Coronavirus chegou e passou a ser divulgada, e a população alarmada, uma série de medidas foram indicadas no sentido de proteção das pessoas, quase todas relativas ao confinamento e o distanciamento social. Conforme Sposati (2020, p. 102):

A aplicação dessas medidas não tardou revelar que não existiam condições para que ela fosse de aplicação universal para a população das cidades brasileiras. Nem todos habitantes dispunham de teto, nem todos tinham casa, nem todos tinham cômodos suficientes para que seus moradores pudessem manter distanciamento social, nem todos tinham provisão de água ou de esgotamento sanitário. Não havia a possibilidade de home office para quem não dispõe de acesso à rede comercial de internet ou de equipamentos de digitação.

As questões relativas às condições precárias que vive a população brasileira, composta por 15 milhões de desempregados segundos dados do IBGE, com 50 milhões de informais, 45 milhões vivendo em pobreza extrema, demonstrou o grau de vulnerabilidade dessa população frente a essa e outras doenças que avançam sobre o país. Dessa forma, as condições do território e de sua população dispersa de forma desigual e hierarquizada passaram a determinar “as consequências nas bordas, aceleradas pela pandemia. A restrição de contato, mobilidade e afeto tem como principal meta, evitar o massivo contágio, mas também enfrentar a vulnerabilidade institucional dos sistemas de saúde, pauperizados pelas políticas neoliberais” (Portella; Oliveira, 2020, p. 374).

Nesse sentido, os bairros de periferia acabam sendo territórios de grave contágio e índices de mortalidade. A alta letalidade da Covid-19 verificada em alguns bairros de São Paulo nos primeiros meses da pandemia (Rodrigues; Borges; Figueiredo, 2020) refletem a ausência ou frágil estabelecimento de estratégias do setor público nestes bairros. As ações devem considerar a realidade destes territórios, que implicam na aglomeração das casas, no impedimento do isolamento social e da orientação de ficar em casa por uma série de motivos - condições precárias das moradias, cômodos pequenos que impossibilitam que uma pessoa (e principalmente as crianças) consiga ficar por dias sem sair dele, a necessidade de se buscar trabalho e/ou pedir doações, situações de violência doméstica, e ainda influência de grupos de milícias e líderes governamentais que ditam à comunidade que a vida não pode parar - (Gaia, 2020). Associado a isso, a falta de informações adaptadas à condição sociocultural, a dificuldade em se obter os materiais de proteção e prevenção, como o álcool em gel e as máscaras faciais, o acesso precário à água limpa e aos serviços de saúde.

No caso da população vivendo em situação de rua, em levantamento realizado por Honorato e Oliveira (2020, p. 1068) as medidas mais frequentes foram

a adaptação dos pontos de acolhimento já existentes ou criados temporariamente, seguida de perto pela instalação de abrigos temporários destinados ao acolhimento da PSR. Destacam-se, portanto, as estratégias de infraestrutura como as mais frequentes. No que tange as estratégias de prevenção e conscientização, destacaram-se como ações mais frequentes no corpus analisado a angariação e a distribuição de itens de higienização e alimentação, bem como a orientação sobre a existência da doença e formas de prevenção, respectivamente.

Apesar de diversas prefeituras organizarem iniciativas dessa natureza para atender a esse segmento social, a falta de informação e consequente incompreensão desse público frente a pandemia foi evidente. O fechamento dos estabelecimentos comerciais e áreas públicas como parques, praças e banheiros deixou a população em situação de rua abandonada em cidades com ruas vazias (A Tribuna, 2020; Castor; Barbosa, 2020; Mingo, 2020). A sensação descrita por alguns foi de medo, como se vivendo um filme hollywoodiano de catástrofe. E mesmo com declarações de secretarias de saúde a respeito de ações emergenciais, muitas pessoas em situação de rua nem souberam de tais iniciativas - não tiveram acesso facilitado aos albergues, não receberam máscaras nem álcool em gel (Paula et al., 2020; Mingo, 2020). Tal situação é agravada pela série de comportamentos e estratégias de sobrevivência que a população em situação de rua acaba por desenvolver, tais como: a aglomeração para troca de calor humano em dias de frio e proteção contra violência, a partilha de alimentos e bebidas, o recolhimento de materiais recicláveis no meio do lixo das classes domiciliadas, a itinerância frequente, o pedido de esmolas, tudo isso permeado pela autoestima prejudicada e dificuldades de priorizar sintomas de possíveis doenças (Graeff, 2012; Zinek; Passos, 2020; Paula et al., 2020). Assim as medidas de proteção para Covid-19 - uso de máscaras, a lavagem das mãos e o isolamento - dependem tanto do acesso das pessoas em situação de rua a tais recursos como do esclarecimento, negociação e convencimento para a adoção de tais medidas.

Ao rever o processo ocorrido em São Paulo na epidemia da gripe espanhola, entre 1918 e 1919, a desigualdade social foi marcante no acesso à informação e aos cuidados em saúde. As modalidades e locais de habitação e o usufruto de serviços públicos e privados estava fortemente associado às condições socioeconômicas das populações e sua distribuição no espaço urbano, o que gerava consequências nos quadros gerais de saúde e acesso à assistência. E com isso, revelou-se uma distribuição desigual do número de casos e óbitos pela cidade de São Paulo (Bertolli Filho, 2003). Assim, hoje vemos ocorrer da mesma forma em uma das maiores metrópoles do mundo, cidade exemplo de desenvolvimento para o país, a distribuição desigual de casos e óbitos pela Covid-19, como ocorrido no bairro Paraisópolis, que no início da pandemia conseguiu estabelecer estratégias organizadas pelos próprios moradores, mas que se enfraqueceram ao longo dos meses sem falta de suporte do poder público (Mello, 2020; Jornal Nacional, 2020); e as contradições no cuidado às pessoas em situação de rua, que são submetidas à estratégias de proteção e controle sem saberem exatamente o que está ocorrendo, e recebem orientações muitas vezes de maneira imposta, não condizentes com suas especificidades.

Na distribuição desigual de recursos de habitação e assistência em saúde é retrato do conflito do espaço físico no espaço social e vice-versa (Bourdieu, 2013), ou seja, a disputa de áreas da cidade promovida, por um lado, de pessoas com melhores condições financeiras, culturais e demais vantagens sociais que obtém moradia em bairros estruturados e com pleno acesso a recursos, e por outro, um grande contingente de pessoas com o mínimo de condições financeiras e socioculturais que obtém, quando possível, uma casa precária em um bairro relegado ao abandono, ou um espaço na calcada. Dessa forma ficam os sem eira nem beira, impedidos de ingressarem no jogo social dos afortunados (Bourdieu, 2013, 2012) e, assim, sucateados em seus bairros periféricos ou largados na rua em frente aos prédios comerciais dos que mantém este jogo.

Considerações finais

Este estudo procurou contemplar a historicidade do processo de urbanização da cidade de São Paulo, durante o processo de sua metropolização no sentido de apontar como, desde aquele momento, as desigualdades foram sendo construídas a partir do lugar ou não lugar de moradia de sua população, e se refletiram no acesso aos cuidados de saúde em períodos de epidemias. Os estudos historiográficos conservadores sobre São Paulo à luz do paulistanismo, ou seja, essa representação que faz pensar o estado como uma locomotiva capaz de levar a reboque o resto da nação, será sempre uma ameaça aos analistas, que, desavisados dessa simbologia, acabam por aprofundar uma versão regional eivada de apriorismos em torno da modernidade salvadora. Seria uma narrativa que busca também numa certa memória da saúde pública paulista uma história linear, progressiva e inacabada, cabendo a seus representantes do tempo vivido completá-la ad infinitum.

Ao apontarmos a questão da moradia e da população em situação de rua em suas adversidades cotidianas, mas sobretudo, diante da pandemia vivida, queremos tratar da historicidade do processo, apontando que o recrudescimento da vulnerabilização é processo antigo e que possui momentos agudos, colocando em cena mais uma vez as contradições que aprofundam as desigualdades e colapsam a frágil democracia brasileira, estampada nos corpos que são reconhecidos como de menor valor. Assim, se há algum sentido tratar da relação corpo e COVID ela deverá ser, sobretudo, de nossa capacidade de construir conhecimentos, argumentos e práticas que possam não apenas nos fazer viver na espera de uma vacina, mas a de criar uma outra sociedade, com outros valores, outras premissas, outros sentidos, notando a historicidade que constitui o corpo e suas reações frente ao mundo que se insere nessa trajetória. Por isso, acordar o corpo anestesiado neoliberal será um dos maiores desafios de nossa atualidade, pois abrangerá uma nova visão de si e do outro no mundo. Enquanto o corpo permanecer estático frente às injustiças e às desigualdades, que hierarquizam corpos a ponto de alguns viverem décadas a menos que os outros, por, justamente, serem considerados com menor valor no jogo social.

Ao fim e ao cabo, queremos dizer que, quando encontramos atualmente 25 mil pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo, com centenas de cortiços, favelas e áreas periféricas, com sua população ainda sem a garantia de direitos mínimos à saúde, como saneamento básico e água tratada, quando identificamos os mais vulneráveis, sendo em sua esmagadora maioria composta por negros e pobres, apresenta-se mais uma vez a necessidade de recorrermos à historicidade dos processos, para refutar as narrativas que tentam imputar à essa população a culpabilização de sua própria situação e a legitimidade das condições sub-humanas existentes, como um Cavalo de Troia a esconder as idiossincrasias de nossas elites e o embrutecimento cotidiano da frágil democracia brasileira.

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Notas

1 Desde o fim do século XIX, o fenômeno da migração não mobilizou apenas as camadas mais pauperizadas, que buscavam todo tipo de trabalho no interior e na capital paulista, mas também contingentes de uma classe média interiorana e da alta burguesia agrária foram aos poucos se instalando na cidade: “as migrações para a Paulicéia representaram, num certo sentido, não apenas migrações de contingentes populacionais, mas migrações de estratificações sociais adaptáveis à nova circunstância histórica” (Martins, 2004, p. 180).
2 Menção à reconhecida obra da autora, “Quarto de despejo (diário de uma favelada), publicada em São Paulo pela Martins Fontes, em 1960.
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