Temática Livre
Recepción: 26 Noviembre 2020
Aprobación: 10 Febrero 2021
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2021.13.29.278-292
Resumo: A partir dos princípios teórico-práticos da proposta educativa de Paulo Freire, discutimos o uso do jornal impresso na alfabetização de crianças, considerando sua inserção nas atividades alfabetizadoras como possibilidade simplificada de compre-ensão da totalidade do material, da informação e do contexto a que ele se refere. Pela apreciação interpretativa e crítica da alfabetização contemporânea e da questão da mídia escrita, hermeneuticamente apresentamos o jornal impresso como recurso metodológico para a leitura de mundo que conduz à leitura da palavra no processo alfabetizador que cons-cientiza. Decorre disso que a mídia escrita seja um recurso didático-pedagógico potencialmente libertador, porque possibilita a conscientização pela reflexão sobre o contexto concreto de vida. Concluímos que a opção pelo uso do jornal impresso nas atividades de alfabetização de crianças tanto é pertinente à variação dos suportes e portadores de informação, quanto é necessária para a compreensão da totalidade da informação vinculada na mídia digital.
Palavras-chave: Alfabetização, Mídia escrita, Conscientização.
Abstract: Based on the practical-theoretical principles of Paulo Freire's educational proposal, we discuss the use of the printed newspaper in children's literacy, considering its insertion in the literacy activities as a simplified possibility of understanding the totality of the material, the information and the context to which it refers. Through the interpretative and critical appreciation of contemporary literacy and the issue of the written media, we hermeneutically present the printed newspaper as a methodological resource for a reading of the world that leads to the reading of the word in the literacy process that raises awareness. It follows from this that written media is a potentially freeing teaching-pedagogical resource, for it enables awareness by means of reflection on the concrete context of life. We conclude that the option to use the printed press (newspapers) in children's literacy activities is pertinent to the variation of media and information carriers, as well as necessary to the understanding of the totality of information accessible in digital media.
Keywords: Literacy, Written media, Awareness.
Resumen: Este artículo, partiendo de los elementos teóricos y prácticos de Paulo Freire, propone presentar el uso del periódico impreso en la alfabetización infantil. Discutimos el uso del periódico impreso en actividades de alfabetización como una metodología de alfabetización consistente con una educación libertadora. Por lo tanto, nos guiamos en el método hermenéutico para la elaboración de este trabajo. Se entiende la práctica pedagógica de alfabetización basada en la lectura de medios escritos como una posibilidad efectiva de proporcionar la lectura global que precede a la lectura crítica de la palabra. Concluimos que la opción de utilizar el periódico impreso en las actividades de alfabetización de los niños es relevante para la variación de los medios y portadores de información, y necesaria para comprender la totalidad de la información vinculada en los medios digitales.
Palabras clave: Alfabetización, Medios escritos, Concientización.
Introdução
Ao buscarmos o significado da palavra alfabetizar em dicionários da língua portuguesa encontramos basicamente o sentido da palavra como “ensinar ou aprender a ler e escrever; dar (a alguém) ou adquirir as primeiras instruções sobre um assunto qualquer” (Dicionário Michaelis, 2016, p. 43); este termo é derivado da palavra alfabeto, tendo origem no latim, alphabetum, cujo sentido da palavra é definido como um conjunto de letras e representantes de sons. No entanto, a definição da palavra alfabetizar com base unicamente no termo em latim que a originou já não atende ao sentido que lhe é atribuído nos dias atuais, visto que restringe seu significado social de “ação alfabetizadora”1, especialmente pelas contribuições de Paulo Freire (1980) ao tema. Para o autor, o educando passa a compreender a língua escrita associando-a a sua vivência e seus conhecimentos, findando sua conquista de alfabetização por intermédio da relação fonemas e grafemas.
Freire idealizou uma alfabetização que fosse um “ato de criação, capaz de gerar outros atos criadores; uma alfabetização na qual o homem, que não é passivo nem objeto, desenvolvesse a atividade e a vivacidade da invenção e da reinvenção, características dos estados de procura” (Freire, 1980, p. 41). De modo que ela “não seja puramente mecânica e assunto só de memória, [...] na medida em que ajuda o homem a aprofundar a consciência de sua problemática e de sua condição de pessoa e, portanto, de sujeito” (Freire, 1980, p. 47-48). Consideramos estas considerações freireanas a base do processo de alfabetização coerente com a atualidade, porque não comprometido com as práticas de dominação.
Portanto, a partir das premissas educativas de Paulo Freire, neste artigo, nosso objetivo é tratar do uso do jornal impresso nas atividades de alfabetização de crianças, considerando a mídia escrita como recurso didático-pedagógico potencialmente libertador, visto que possibilita a conscientização pela reflexão sobre o contexto concreto de vida. Abordamos a temática sob o enfoque da hermenêutica, que nos possibilita buscar o sentido dos fenômenos estudados e compreendê-los, por meio da contextualização e interpretação crítica, organizando um trabalho com unicidade, racionalidade e coerência, mesmo que o fenômeno pesquisado não possa ser apreendido na sua totalidade, visto que ele está sempre em movimento, conforme conceitua Gadamer (2006).
Cabe ressaltar que escolhemos tratar do uso do jornal impresso, neste artigo, por entender que nenhuma fonte de informação deve ser hegemônica, de modo que não podemos adotar o meio digital como única fonte de vinculação de informações. Decorre disso que a análise sobre as informações vinculadas tanto pelo meio digital como pelo meio impresso deva ser oportunizada em sala de aula, a fim de apresentar diferentes suportes e portadores, como orienta a BNCC (2018), e ainda não fortalecer os aparelhos privados de hegemonia, pouco diversificando estes suportes e portadores, como já nos alertava Gramsci (2007), especialmente a partir do sexto caderno do cárcere.
Ademais,
Com efeito, a prática de leitura frente à tela, descontínua, segmentada, assume um sentido bem diverso se a comparamos com a mesma descontinuidade tornada possível por um livro em sua forma impressa clássica. Como você [Darnton] bem lembrava, ninguém é obrigado a ler todas as páginas de um livro impresso, pode-se folhear este livro, fazer a leitura de um fragmento, uma leitura descontinuada, mas há uma grande diferença: no caso do livro impresso esta descontinuidade ou este fragmento são relacionados a uma totalidade que é imediatamente tornada perceptível pelo objeto, ao passo que no universo digital este fragmento pode ser absolutamente apartado de qualquer compreensão da totalidade de que é extraído, se é que essa expressão faz sentido. De modo que vemos a relação entre fragmento e totalidade ser completamente alterada pela passagem do códex para a tela (Chartier, 2012, p. 175).
A apreensão da totalidade, discutida por Roger Chartier, é a base da conscientização apresentada por Freire. Do que compreendemos que o jornal impresso é o suporte adequado para o trabalho inicial de alfabetização crítica da criança, que apresentamos a seguir.
Alfabetização contemporânea e a mídia escrita - o jornal impresso
Em 06 de fevereiro do ano de 2006 um novo horizonte foi lançado ao Ensino Fundamental, com a aprovação da lei n. 11.2742, esse fato levou a criança brasileira a ingressar no Ensino Fundamental, obrigatoriamente, aos seis anos de idade, recurso esse que permitiu a inclusão de um número maior de educandos em idade de alfabetização. Mesmo com um número crescente de educandos em fase de alfabetização, essa obrigatoriedade de aprender a ler e escrever não atingia os dois primeiros anos do Ensino Fundamental, mas sim o primeiro ciclo, composto pelos três primeiros anos. Neste cenário estava subentendido que o educador teria maior tempo para promover a alfabetização, sendo que ela deveria ocorrer no aspecto cognitivo e também social, abordando, por exemplo, a relevância da relação das crianças com o mundo da escrita e da leitura, e o uso social da leitura e da escrita pelos educandos, ensejando assim, uma atuação mais real e autônoma nos espaços além dos muros escolares.
Todavia, para que a alfabetização não fique restrita aos aspectos de memorização e decodificação do código alfabético, a educomunicação3 torna-se fundamental. Introduzir recursos didático-pedagógicos que promovam práticas proativas no processo de alfabetização, como o jornal impresso, são, sem dúvida, extremamente significativas, posto que o resultado será alcançado de forma enriquecida e positiva em relação à visão de mundo que a criança começará a ter. Mas, para propiciar a educação dialógica e promover a inserção dos educandos do primeiro ciclo na aprendizagem educomunicativa, é necessário que ocorra uma mudança no campo educacional.
Com Freire, os ideais e mudanças no campo da educação sempre promoveram o aprimoramento de metodologias que visam a conscientização, que se aproximam de sua realidade e do seu contexto, por meio da “práxis - da ação e da reflexão sobre o mundo” (Freire, 2002, p. 107). E é exatamente neste prisma que está o jornal impresso - um recurso que promove a mudança da educação mecânica para a educação reflexiva, partindo do contexto concreto de vida, de onde provêm as palavras a serem estudadas e os conteúdos a serem refletidos dialogicamente, conforme a teoria freireana.
Acerca do jornal impresso na sala de aula e sua relação como recurso didático-pedagógico, Joana Pontual considera que
O jornal impresso, por ser um material diário, oferece a possibilidade de informação atualizada, por isso a utilização do jornal tem de ser viabilizada de maneira responsável, pois vale lembrar que, mesmo tentando ser isento de algum critério de valor, o jornal representa, de certa forma, o momento histórico-social e, por isso, ele não deve fechar-se em opiniões, mas possibilitar ao leitor a reflexão e o questionamento (Pontual, 1999, p. 31).
Desta maneira, podemos inferir que, ao utilizar o jornal impresso, a comunicação ocorre de maneira positiva e ativa, propiciada pelas interações entre os sujeitos escolares - educandos, educadores e comunidade. Do que entendemos, que utilizar o jornal impresso em sala de aula é um dos modos de trazer Freire para a escola contemporânea e para a alfabetização, pois esse recurso trabalha diretamente com o processo de conscientização, inserido na aquisição da leitura e da escrita, bem como da utilização social que o educando faz desses recursos comunicativos.
Certeau (1990, p. 247), esclareceu a relação do leitor com o suporte de leitura, portador de informação, dizendo que “quer se trate de um jornal ou de Proust, o texto só significa para seus leitores; ele muda com eles; ele se ordena segundo códigos de percepção que lhe escapa”. Isto quer dizer: o texto informativo interage com o leitor na medida em que este não é tábula rasa. Mas essa interação precisa ser crítica. Daí que, sendo provocador de conhecimento, o educador ao promover a leitura de jornais impressos garante ao educando em processo alfabetizador a percepção de que existem diferentes fontes de informação; e ao ensiná-lo a conscientizar-se, pela reflexão e crítica do que foi lido, mostra-o como interagir diretamente com o seu momento histórico e social.
Freire, as crianças e o jornal impresso
Para começarmos a exposição da presente abordagem, é interessante retomarmos o conceito do círculo de cultura freireano, descrito como um espaço de interação e acolhimento e, principalmente, com foco no diálogo, na troca, na partilha e no aprendizado, sendo que todos que participam têm a possibilidade de ensinar e aprender. Círculo, pois é a disposição espacial do grupo de pessoas para este momento, que pretende ser multidirecional, dinâmico e com participação ativa dos educandos, contando com um animador que garantirá isso. E de cultura, porque “todos juntos aprenderão, de fase em fase, de palavra em palavra, que aquilo que constroem é outra maneira de fazer a cultura que o faz” (Brandão, 1985, p. 43).
Desde seu início, os “círculos de cultura” incluíram não somente uma denúncia - a das situações de dominações que impedem ao homem ser homem -, como também uma afirmação, que no contexto era uma descoberta: a afirmação da capacidade criadora de todo ser humano, até do mais alienado. Daí a necessidade de atuar sobre a realidade social para transformá-la, ação que é interação, comunicação, diálogo. Educador e educando, os dois seres criadores libertam-se mutuamente para chegarem a ser, ambos criadores de novas realidades (Freire, 1980, p. 10).
O círculo tem por objetivo promover o processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, a partir de um grande leque de questões que envolvem o cotidiano, a alimentação, saúde, cidadania, liberdade, felicidade, valores éticos, política, direitos sociais, religiosidade, cultura, as pessoas que fazem parte da relação social do educando, entre outros. Como exercício no processo de alfabetização, as atividades são pertinentes ao período escolar em que a criança está, e deve ser realizado de forma progressiva, ou seja, iniciar com objetos que sejam comuns a todas as crianças e palavra que designa o nome do objeto, por exemplo, casa, a figura e a representação gráfica da palavra. O material a ser utilizado pode ser de livre escolha do educador e de acordo com o contexto social em que a escola está inserida. A primeira etapa da atividade relaciona-se a apreensão não só do objeto, mas sim, das letras que o compõe. A partir desta palavra, outras serão inseridas, e posteriormente, as figuras que as representam.
Em um sentido progressivo, e de acordo com a faixa etária e a série do educando, as palavras e figuras ganham complexidade, fato que propicia a apreensão de significados mais subjetivos, o que fomenta o desenvolvimento cognitivo da criança, ampliando sua forma de compreender o meio em que está inserida, pois, ao trazermos figuras que propiciem palavras que denotem maior densidade de significado, maior será o senso crítico analítico que ela terá para defini-la, apreendendo, assim, outros signos. No transcorrer das séries subsequentes às primeiras, o educando estará mais preparado para compreender, de maneira crítica e ativa, os acontecimentos que ocorrem na sociedade a que pertence, bem como os fatos que acontecem para além do meio em que vive e, assim, será um adulto proativo, capaz de opinar, criticar, avaliar e intervir nos acontecimentos que necessitarem ser julgados ou comentados, e não ser um mero repetidor das narrativas que outros fazem sobre as coisas que acontecem no mundo como um todo. Diante do exposto, podemos inferir que o conceito dos círculos de cultura proposto por Freire nos proporciona o fundamento metodológico para desenvolver as práticas pedagógicas com a utilização do jornal impresso com atividades direcionadas para as crianças do primeiro ciclo.
O próximo tópico aborda o processo de alfabetização de Freire, que denominamos como sistematização de alfabetização de Paulo Freire, muito embora não tenha recebido, por parte dele, tal denominação, mas foi incorporada pelos educadores por ser a forma didática correta. Ressaltamos que as etapas não são separadas, ou que devam acontecer uma a cada vez. Ao contrário, são dinâmicas e se entrecruzam, cabendo ao educador averiguar qual é a etapa necessária dentro do programa pedagógico e qual o melhor momento para que elas ocorram. A metodologia que Freire propôs para realizar a dinâmica é composta por seis etapas, como segue:
As etapas devem propriciar ao educando a reflexão sobre o meio no qual ele aprende a ler e escrever, a entrever o que está implícito nas dinâmicas de aprendizagem e interação. A partir destas estapas, o educando é incentivado a agir proativamente em seu meio, carregando consigo a forma de entender criticamente aquilo que acontece ao seu redor de forma a possibilitar uma intervenção consciente em sua realidade.
O jornal impresso como recurso metodológico no processo alfabetizador
A partir do contexto supracitado, abordamos o cerne de nosso estudo: a utilização do jornal impresso como recurso didático para a alfabetização de crianças. Nossa exposição enfatizou esse processo sob diversos olhares, a partir das transformações histórico-sociais, políticas e econômicas no cenário brasileiro, e a pesquisa nos permite apresentar a dinâmica construída de forma didática, e não teórica. Justificamos por assim proceder por considerar que cairíamos em um rol de repetições, recuperaríamos aquilo que já foi mencionado, criaríamos um círculo vicioso de argumentos para apresentar o que, didaticamente nos propusemos: o uso do jornal impresso como recurso didático. Ao tomarmos o termo didático, está nele implícito o instruir, o ensino, consequentemente, o aprender, a aprendizagem em si.
Optamos também pela forma didática na apresentação das figuras retiradas do jornal impresso, sendo a primeira adequada ao primeiro ano do primeiro ciclo, a segunda ao segundo ano, e a terceira ao último período alfabetizador. Enfatizamos, mais uma vez, a opção didática de contemplar a exposição com uma figura apenas para cada período, por entendermos que o processo alfabetizador freireano é simples, o que não significa que não é complexa, ao contrário, sua complexidade nos oferece instrumental e a compreensão necessária daquilo que é para ser feito no processo alfabetizador consciente. E ainda, com o olhar voltado para a simplicidade, a figura não requer altos níveis de mensagem, não precisa estar envolta de signos e significados, pois estes serão atribuídos pelas crianças, e não por adultos. E ainda, a facilidade e simplicidade que o educador tem para ter em suas mãos as figuras para a atividade alfabetizadora, indica o quão acessível é o processo que Freire, tão generosamente, propiciou.
Exemplificamos o processo de alfabetização do primeiro ciclo do Ensino Fundamental a partir das imagens de jornais impressos, com a problematização em torno de três imagens. A primeira, extraída do jornal impresso Marco Zero, n. 47 (Oliveira, 2016, p. 5), relaciona-se com a faixa etária de educandos pertencentes ao primeiro ano do Ensino Fundamental.
Inicialmente é fundamental que o alfabetizador tenha noção do vocabulário e da cultura dos seus alunos e, posteriormente, que relacione a imagem extraída do jornal impresso com as situações cotidianas dos educandos, trabalhando com situações que permitam o reconhecimento dos signos que fazem parte de seu repertório, ou mesmo figuras como essa que demonstra um signo comum entre as crianças: uma bolinha amarela com um sorriso, e as demais, as azuis, que não estão sorrindo. Em um primeiro momento, agindo de forma individual, o educador deve perceber a forma que a criança interpreta as cores e o significado que as bolinhas representam. Entendendo que elas propiciam à criança o reconhecimento de dois aspectos, o primeiro cognitivo: sentimentos de alegria e tristeza; o segundo: formas geométricas e cores que, por sua vez, possibilitam o aspecto cognitivo dos sentimentos por associação.
Nesse contexto, a atividade encaixa-se aos parâmetros e práticas consoantes às etapas propostas pelo processo alfabetizador de Freire, utilizando um vocabulário mais lúdico e imaginário criativo, proporcionando, nessa interação, o livre pensar. Gradativamente as atividades devem buscar uma ascensão cognitiva.
O educador passará, em um segundo momento, a estimular as crianças à reflexão, ao diálogo e à troca de ideias entre os alunos, relacionando a imagem às palavras que mais foram utilizadas por eles. Posteriormente, define-se, permanentemente, quais serão as palavras geradoras. Com essa mesma imagem nas situações de dinâmicas de grupo, podemos destacar situações afetivas, como a alegria e a tristeza, o sentir-se só e os momentos de brincadeiras, momentos familiares e interação social, definindo palavras como sorriso, alegria, diferença e felicidade, devendo ser trabalhadas individualmente e em situações distintas. Essas palavras devem ser avaliadas pelos três critérios apontados por Freire, a riqueza fonética, as dificuldades fonéticas e o comprometimento pragmático da palavra na sociedade, também consoante às etapas propostas pelo processo alfabetizador de Freire (Freire, 2001).
O educador deve escolher uma dessas palavras e coloca-las para visualização dos educandos. Essa poderá ocorrer por meio de cartaz, slide ou simplesmente descrita no quadro com giz e, posteriormente, ocorrerá a separação em sílabas, em famílias fonêmicas e, em última etapa, a construção de novas palavras com a utilização das mesmas sílabas. O processo pode ser feito, por exemplo, com a palavra felicidade:

Esse mesmo processo de ensino e aprendizagem deve ocorrer com o segundo e terceiro ano do primeiro ciclo do Ensino Fundamental. O que diferencia, com a utilização do jornal como recurso didático em comparação ao primeiro ano, são as dificuldades e aprimoramentos exigidos pela língua portuguesa, como a utilização dos dígrafos e demais situações pertinentes à cada faixa etária. Lembramos, mais uma vez, que devem ser consoantes às etapas propostas pelo processo alfabetizador de Freire. As atividades também devem buscar contemplar as diferentes disciplinas que o aluno terá em outros períodos, como ciências, português, matemática, história e geografia.
A figura a seguir, retirada do jornal Gazeta do Povo, Caderno Viverbem (2016a, p. 13), faz parte de uma notícia que apresenta situações problemas, como o abandono de animais, a sustentabilidade e o meio ambiente. São situações do cotidiano de todas as pessoas, e as crianças não estão fora desse contexto. Trabalhar com aquilo que está além do muro da escola e trazer para as atividades em sala de aula em muito contribuirá com a inserção dela no mundo e em seu meio, de forma crítica, ativa e proativa. As interações propiciarão novas palavras geradoras, por exemplo, “cachorro”, ao ser adicionado o dígrafo “ch” no repertório das novas palavras, outras serão introduzidas, como chuva, chapéu, etc., e novamente uma etapa de ascensão cognitiva tem início com outras figuras e interações. Vejamos:

Como mencionamos anteriormente, novas palavras geradoras podem ser inseridas na atividade alfabetizadora, a partir, sempre, da participação crítica dos alfabetizandos. Estas palavras, portanto, poderão não aparentar estar diretamente relacionadas com a figura veiculada na notícia, mas cumprirão o objetivo de despertar diálogos e interações entre a classe de maneira contextualizada e crítica, como podemos observar:

O educador que objetiva promover a conscientização desenvolve seu trabalho pedagógico respeitando o diálogo e o contexto sociocultural do educando. Imprescindível a ele, portanto, é a capacidade de respeitar seu aluno, para ser capaz de dialogar com ele, sendo que este diálogo só se efetivará quando houver humildade de ambos os lados. Freire explica que “é nesse sentido que se impõe a mim escutar o educando em suas dúvidas, em seus receios, em sua incompetência provisória. E ao escutá-lo, aprendo a falar com ele” (Freire, 2014, p. 117). Além da humildade, o educador deve ter amorosidade, e “não somente aos alunos, mas ao processo de ensinar” (Freire, 1997, p. 38). Deste modo, “‘cultura do silêncio’, que se gera na estrutura opressora” (Freire, 1997, p. 173) poderá ser superada nos ambientes escolares de alfabetização.
A imagem abaixo, do Jornal Gazeta do Povo, Caderno Viverbem (2016b, p. 9) e trabalhada com uma turma de terceiro ano do Ensino Fundamental, último ano que compõe o primeiro ciclo, ilustra uma situação problema decorrente de um desastre natural. A partir dela, já com o conhecimento prévio do vocabulário e cultura dos educandos, bem como as situações problemas envolvendo, por exemplo, o meio ambiente, atitudes do homem e consumismo, o educador norteará a reflexão e diálogo entre os educandos. Nessa etapa a conscientização se fará presente mais uma vez e deverá ser mais enaltecida, abrindo maiores possibilidades de debate e reflexões entre os alfabetizandos, além da utilização das letras “m” e “n” no meio e no final de palavras e, posteriormente, trabalhar com a palavra geradora, como exemplifica a figura e a tabela:

Com uma figura com diversos signos e interpretações, como a figura acima, acreditamos que as dinâmicas podem ser enriquecidas com pesquisas individuais e em grupo. E também, agendar um dia especial para que apresentem seus trabalhos, assim o debate e troca de experiências, a partilha, o enriquecimento de vocabulário e o amadurecimento cognitivo serão amplamente benéficos. A visão de mundo, o senso crítico e a postura diante de situações que envolvam tantos atributos, em muito contribuirá com a fase adulta.

As atividades também devem buscar contemplar as diferentes disciplinas que o aluno terá em outros períodos, como ciências, português, matemática, história e geografia. Neste sentido, as disciplinas que compõem o currículo da graduação de Pedagogia, previsto pelo MEC e aplicados pelas PCNs correspondentes, municiam os educadores com instrumental pedagógico de conhecimento das referidas disciplinas, o que lhes permite propiciar atividades que preparem, previamente, os alunos dos primeiros anos para as etapas vindouras. E mais, agindo assim, estará consoante à proposta de Freire - alfabetização consciente e libertadora.
Cabe salientar que o uso do jornal impresso em sala de aula não deve recair em uma prática nostálgica, de manutenção do status quo. Sua inserção nas práticas educativas das crianças em fase de alfabetização é aqui estimulada pela possibilidade simplificada de compreensão da totalidade do material e do contexto a que ele se refere. Todavia, a criticidade promovida pelo estudo deste material não deve restringir-se a ele, como Chartier (2010, p. 25) observou:
A continuidade da textualidade digital na superfície do monitor torna realmente, de imediato, menos perceptível do que a ordem hierarquizada dos impressos, a inegável credibilidade dos discursos, expondo assim às falsificações os leitores menos avisados. O crédito dado ao escrito, para melhor ou para pior, e suas conquistas em todos os campos da experiência social não podem ser separados de seu avesso, ou seja, uma nostalgia duradoura por uma oralidade perdida.
Assim sendo, mais uma vez caberá ao professor avaliar o processo de ensino e aprendizagem de um grupo de alunos, quanto a capacidade de crítica e compreensão da totalidade, e considerar momentos para a inserção de novos suportes e portadores de informação para o estudo desenvolvido. Até mesmo porque seria inconsequente o professor que negligenciasse as informações vinculadas digitalmente, visto que estas fazem parte do cotidiano das pessoas atualmente. Justamente, o estudo por meio do jornal impresso torna compreensível a totalidade do jornal digital.
Considerações finais
O método que se origina da teoria e da prática de Paulo Freire se concretiza como uma educação que tem por objetivos alfabetizar e conscientizar. Ato que vai além de ensinar a habilidade de codificar e decodificar símbolos e que capacita o educando a “aprendendo a ler, [...] assumir sua própria existência como um compromisso na história” (Freire, 1980, p. 10). Decorre disso que a contextualização na alfabetização é indispensável, desde a mais tenra idade.
As imagens presentes nos jornais impressos se constituem como elemento rico em possibilidades de contextualização deste ensino, visto que carregam em si um retrato da sociedade. Das análises que decorrem do seu estudo, por sua vez, emergem palavras com significado social, as quais são ponto de partida para uma alfabetização libertadora - aquela comprometida com a conscientização. Utilizando este recurso pedagógico, o educador não só conhece o educando e seu contexto sociopolítico e cultural, mas demonstra a ele que sua história é importante e será respeitada no decorrer do processo de ensino, e, dotada dessa perspectiva, a adesão dos alfabetizandos se torna muito mais propícia, visto que eles não precisam atingir um modelo educacional, mas eles, com o que eles são fundamentalmente, é que subsidiarão um modelo de ação educativa.
Produz-se disto uma prática pedagógica em que o ensino da decodificação e codificação de palavras não está dissociado do exercício da consciência crítica, mas parte dele. O jornal impresso está permeado de significados, os quais se trabalhados no processo de alfabetização, fortalecem a conscientização do educando, promovendo a educação dialógica e excluindo a prática bancária e a alfabetização mecânica, como enfatizamos ao longo do nosso estudo.
Joana Pontual (1999, p. 36) afirma que “o homem atual precisa ser desautomatizado - sensibilizado para ler crítica e criativamente os diversos tipos de mensagens”, assim, a educomunicação deve permitir ao educando, inserido no processo de alfabetização, uma leitura que o leve a refletir; que este processo o sensibilize para novas perspectivas de conhecimento e de mundo, buscando no jornal impresso uma possibilidade de compreender mais e melhor a sociedade em que está inserido. O jornal impresso na sala de aula é o educador promovendo ao educando a oportunidade de comunicação direta e, principalmente, com a comunidade. E, nesse processo comunicativo, surgem questões, indagações e reflexões, que levam a outras e a outras, provocando o envolvimento com o que é lido e vivido.
Diante do exposto, apontamos duas categorias que podem ser agregadas às metodologias educomunicativas diárias do processo de alfabetização dos educandos do primeiro ciclo do Ensino Fundamental, bem como suas principais particularidades articuladas à visão freireana de alfabetização, são elas, as atividades socializadoras e as lúdico-pedagógicas que descrevemos sucintamente ao abordarmos a inserção das atividades com as figuras de jornal.
Essas atividades são as que levam o educando a conhecer suas dificuldades, principalmente, ao pensarmos no processo da leitura, bem como, encaminham à integração, discussão e reflexão do grupo. Elas estimulam a linguagem e a comunicação na comunidade escolar e social, assim como a capacidade de escolha, de autonomia e criticidade. As atividades socializadoras estimulam também a criatividade e a capacidade do educando alfabetizado na identificação das sílabas e famílias fonêmicas, promovendo a troca de experiências entre os educandos do grupo e estimulando a capacidade de socialização. Esse recurso não apenas é um enriquecedor das metodologias e práticas de educadores alfabetizadores, mas sim, um norteador da contextualização dos currículos e da integração entre a escola e a vida cotidiana do educando, ampliando a capacidade de comunicação e reflexão.
Portanto, o jornal impresso é um recurso didático-pedagógico que transita entre o campo da comunicação e da educação, contemplando o diálogo, a cultura, a interação entre os sujeitos e, consequentemente, contém uma visão freireana da alfabetização, pelo exercício de conscientização dos educandos. Consideramos que com o uso deste recurso, observando-se a teoria da educação de Paulo Freire, efetiva-se a verdadeira educação, pois, para ele, toda aprendizagem é uma tomada de consciência sobre alguma realidade que desencadeia sua transformação, já que a “transformação da realidade se dá pela transformação da consciência” (Freire, 2002, p. 171).
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Notas