Temática Livre

A extensão universitária na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): no combate às desigualdades sociais e raciais

The university extension at the Federal University of Rio de Janeiro (URFJ): fighting social and racial inequalities

Extensión universitaria en la Universidad Federal de Rio de Janeiro (UFRJ): combatir las desigualdades sociales y raciales

Solange Alves de Souza Rodrigues
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Maria Alice Rezende Gonçalves
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

A extensão universitária na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): no combate às desigualdades sociais e raciais

Revista NUPEM (Online), vol. 13, núm. 29, pp. 293-311, 2021

Universidade Estadual do Paraná

Recepción: 20 Mayo 2020

Aprobación: 11 Noviembre 2020

Resumo: O presente artigo tem como objetivo descrever as primeiras ações extensionistas, iniciadas na década de 1980, na UFRJ, focadas no atendimento das comunidades carentes no entorno do campus do Fundão até o desenvolvimento de ações de combate às desigualdades raciais a partir dos anos 2000. Durante a década de 1980, a extensão buscou um diálogo que visava o atendimento das demandas das classes populares apesar da sobrerrepresentação dos negros em situação de pobreza. Estimulada pelas políticas de ação afirmativa, nos anos 2000, a extensão passa a desenvolver projetos que atendam às demandas da população negra reconhecendo as desigualdades raciais estruturais presentes na sociedade brasileira.

Palavras-chave: Extensão universi-tária, Ensino Superior, Classe e raça.

Abstract: This article aims to describe the first extension actions, initiated in the 1980s, at UFRJ, focused on serving poor communities in the surroundings of the Fundão campus until the development of actions to fight racial inequalities starting from the 2000s. During the 1980s, the extension sought a dialogue that aimed at meeting the demands of the working classes despite the overrepresentation of black people in situations of poverty. Stimulated by affirmative action policies, in the 2000s, the extension started to develop projects that meet the demands of the black population, recognizing the structural racial inequalities present in the Brazilian society.

Keywords: University extension, Higher Education, Class and race.

Resumen: El presente artículo tiene como objetivo describir las primeras acciones de extensión, iniciadas en la década de 1980, en la UFRJ, enfocadas en atender a las comunidades pobres del campus de Fundão, hasta el desarrollo de acciones para combatir las desigualdades raciales a partir de la década de 2000. Durante la década de los 80, la extensión buscó un diálogo orientado a atender a las necesidades de las clases populares a pesar de la sobrerrepresentación de negros en situación de pobreza. Alentada por políticas de acción afirmativa, en la década de 2000, la extensión comenzó a desarrollar proyectos que atendieran a las necesidades de la población negra, reconociendo las desigualdades raciales estructurales presentes en la sociedad brasileña.

Palabras clave: Extensión universitaria, Educación Superior, Clase y raza.

Introdução

O presente artigo tem como objetivo descrever as primeiras ações extensionistas, iniciadas na década de 1980, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, focadas no atendimento das comunidades carentes no entorno do campus do Fundão até o desenvolvimento de ações de combate às desigualdades raciais a partir dos anos 2000. Como pressupostos teóricos, adotamos as contribuições de autores que nos auxiliassem a pensar a extensão universitária, a classe e a raça de seus beneficiários, tais como Freire (1983) e Hasenbalg (1979). As técnicas de investigação utilizadas para a coleta de dados foram observação e entrevistas com servidores técnico-administrativos e docentes que participaram ou participam das ações extensionistas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Essa investigação aconteceu em dois momentos: o primeiro, no qual as classes populares eram o público-alvo dos programas e projetos; e o segundo, em que se deu a ampliação do atendimento em direção às demandas da população negra1.

O censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constata o percentual de 50,7% de negros na constituição da população brasileira. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE, 2019) constata o crescimento deste percentual apontando em 56,2% os autodeclarados negros2. Apesar da representatividade negra na população brasileira, ela ainda está sub-representada nos espaços privilegiados de saber, como as universidades. Assim, a questão racial e sua inserção nos projetos da extensão universitária norteará este artigo.

Segundo o texto para discussão n. 807, “Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90”, do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Henriques, 2001), o pertencimento racial tem importância significativa na estruturação das desigualdades sociais e econômicas no Brasil. Em 1999, 98% dos jovens negros entre 18 e 25 anos não tinham direito de acesso ao Ensino Superior (Henriques, 2001). Nesta década, constatou-se que, à medida que avançamos nos níveis de escolaridade formal da população adulta, notamos que a permanência das desigualdades entre brancos e negros no país3 no sistema de ensino brasileiro se mantinha excludente em seus diferentes níveis. O Ensino Superior permanecia elitizado refletindo as hierarquias sociais e a distribuição de oportunidades desiguais entre brancos e negros. Este quadro é modificado com o advento das políticas de ação afirmativa nas Instituições de Ensino Superior que, com a entrada na agenda governamental, estimularam, também, a implantação de ações afirmativas nas universidades e em vários campos da vida social. Aqui nos referiremos às políticas inclusivas no Ensino Superior brasileiro.

Somente nos anos 2000 as universidades públicas passam a adotar políticas de ação afirmativa visando promover o acesso de grupos sub-representados, como negros, indígenas e outros, objetivando a construção de uma sociedade mais justa e equânime. Nesta primeira década, a adesão às ações afirmativas nos processos seletivos de seus cursos de graduação é gradativa, crescente e diversa, envolvendo instituições de Ensino Superior tanto estaduais quanto federais. Cada uma delas com seus processos de seleção singulares adotava diferentes critérios votados para um público-alvo diverso. Com a aprovação da “lei de cotas”, em 2012, a totalidade das universidades federais adere às ações afirmativas, passando, assim, a apresentar mudanças no perfil docente. A Universidade Federal do Rio de Janeiro inicialmente considera o critério social no vestibular de 2013 e, posteriormente, em 2016, adota também o critério racial.

Segundo os resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (PNAD Contínua, 2018), é crescente o número de estudantes pretos e pardos nas instituições federais. O percentual de negros cursando o Ensino Superior aumentou de 50,5% em 2016 para 55,6% em 2018, entretanto, continua abaixo dos 78,8% de brancos dessa faixa etária que cursam uma faculdade. Segundo o IBGE, as ações afirmativas no Ensino Superior e os programas de apoio e expansão das universidades federais explicariam o fenômeno do crescimento de negros nesse nível de ensino.

O mito da democracia racial fundante da nação brasileira nega ou naturaliza as desigualdades socioeconômicas que a população negra enfrenta cotidianamente. Entretanto, os dados fornecidos pelas instituições de pesquisa e estatística, como IPEA e IBGE (Osório, 2008; IBGE, 2011), demonstram que os negros são submetidos às piores condições de vida. Osório (2008) vislumbra três ondas presentes nos estudos das desigualdades raciais no Brasil. A primeira onda enfatiza o preconceito de classe em detrimento do preconceito racial, citando alguns representantes como Arthur Ramos, Donald Pierson, Thales de Azevedo e Charles Wagley. A segunda onda assinala que a origem social, associada à discriminação racial, influencia o processo de mobilidade do negro, possibilitando o adiamento da diminuição da desigualdade racial. Os principais pesquisadores citados são Luiz de Aguiar Costa Pinto, Oracy Nogueira, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes. E, finalmente, a terceira onda evidencia a persistência da desigualdade racial estrutural, apontando o racismo como o fenômeno responsável pela manutenção das desigualdades entre negros e brancos. Somente com ações de combate ao racismo e seus mecanismos de produção contemporânea das desigualdades, a distância entre os dois grupos, brancos e negros, poderia ser alterada. Segundo Hasenbalg (1979), após a abolição do escravismo, as distâncias entre brancos e negros foram preservadas e, em alguns casos, reforçadas. O autor alerta para o fato de que o escravismo não é o responsável pela produção das desigualdades raciais na atualidade. Para ele, o racismo assume papel importante para a explicação das relações raciais entre brancos e negros no Brasil contemporâneo.

As pesquisas pioneiras de Hasenbalg e Silva (1988) foram orientadoras dos estudos sobre relações raciais a partir da década de 1980, constituindo-se em um divisor de águas ao atribuir ao racismo a preeminência na explicação das relações raciais contemporâneas. Para os autores, o racismo e a discriminação seriam as principais causas da subordinação social dos negros. Estes sofrem desvantagens crescentes, o que nos permite questionar o mito da igualdade racial no país. Os dois autores supracitados desenvolveram reflexões, que podem ser consideradas clássicas, para entendimento e análise da produção, fomentação e manutenção das desigualdades raciais na estrutura da sociedade brasileira. Osório (2008) observa que os vários trabalhos de Hasenbalg e Silva mostram a persistência das desigualdades raciais a partir de enfoques diferentes. Coube a Hasenbalg a primazia nas questões de ordem teórica e a Silva, a primazia nas questões metodológicas e técnicas, observa Osório (2008). A crítica à moderna sociedade de classes e a persistência do racismo pode ser observada na citação: “se o racismo estivesse fadado a desaparecer com a progressiva racialização trazida pela modernidade, a desigualdade deveria ter diminuído”, ou seja, a explicação para as desigualdades não está no passado, ela é produzida na contemporaneidade (Osório, 2008, p. 82). Cabe destacar que este artigo adota essa interpretação das relações raciais entre brancos e negros no país para apresentar, compreender e justificar a proposição de políticas inclusivas para negros no Ensino Superior, entendendo que somente com políticas particularistas de combate às desigualdades raciais poderemos atingir a igualdade racial nos diferentes campos da vida social.

Neste sentido, é evidenciado que o racismo utiliza mecanismos que operam a persistência da desigualdade racial e a manutenção dos privilégios dos não negros. E ainda, os estudos apontam as desvantagens cumulativas, que influenciam as etapas ao longo da vida dos negros, desde a abolição da escravização. Gomes (2002, p. 50) define racismo como: “um conjunto de ideias e imagens referente aos grupos humanos que acreditam na existência de raças superiores e inferiores. O racismo também resulta da vontade de se impor uma verdade ou uma crença particular como única e verdadeira. O racismo é uma questão estudada por vários pesquisadores”.

Na perspectiva que orienta as ações da extensão, o artigo apoia-se nas contribuições de Paulo Freire (1983). Para ele, a extensão universitária é entendida como prática que comunica e promove a interação do saber acadêmico com o saber popular na busca da emancipação dos sujeitos que participam das ações extensionistas e da construção de um novo saber como os sujeitos: docente, estudante de graduação, técnico-administrativo e público externo.

A lei n. 12.711/12: modificando o acesso as instituições federais de Ensino Superior

Pensar a questão racial estimula a evidenciar as lutas empreendidas pelas associações ou coletivos no combate à desigualdade que podem ser denominadas como movimentos sociais. Segundo Gohn (2000, p. 12):

Para definir movimento social devemos estabelecer algumas diferenças. Uma primeira, é entre movimentos e grupos de interesses. O interesse comum, de um grupo é um componente de um movimento, mas componente não suficiente para caracterizá-lo como tal. Primeiro, porque a ação de um grupo de pessoas tem que ser qualificada por uma série de parâmetros para ser um movimento social. Este grupo tem que formar um coletivo social e, para tanto, necessita ter uma identidade em comum. Ser negro, mulher, defender as baleias, ou não ter teto para morar, são adjetivos que qualificam um grupo dando-lhe objetivos comuns para a ação. Mas eles têm uma realidade anterior à aglutinação.

Neste sentido, o movimento negro sempre esteve presente na efetivação de denúncias sobre as precárias condições sociais e educacionais em que a população negra esteve submetida no pós-abolição. A existência do racismo perpetua a pobreza e o não acesso dos negros à educação. De acordo com Gomes (2011, p. 112):

Os ativistas do Movimento Negro reconhecem que a educação não é a solução de todos os males, porém, ocupa um lugar importante nos processos de produção de conhecimento sobre si e sobre “os Outros”, contribui na formação de quadros intelectuais e políticos e é constantemente usada pelo mercado de trabalho como critério de seleção de uns e exclusão de outros.

A “III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata”, que ocorreu em Durban, África do Sul, no ano de 2001 e teve a participação do governo brasileiro, foi um fato relevante para iniciar os avanços do movimento negro no combate à desigualdade racial. Vale lembrar que esta Conferência emitiu o documento em que os Estados se comprometem a combater os efeitos e as formas de discriminação.

Tendo em vista a confirmação da desigualdade racial amparada pelos indicadores socioeconômicos e o compromisso do governo brasileiro em estimular iniciativas reparadoras, é intensificada a instituição de políticas afirmativas pelo governo federal, a partir dos anos 2000. Gonçalves e Pereira (2013) esclarecem que, a partir das políticas inclusivas para afro-brasileiros e indígenas, foi possível ao país se repensar e se engajar nas dimensões pluricultural e pluriétnica. A partir deste contexto, ações inclusivas são inseridas na busca da igualdade racial. Neste sentido, foi criada a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), no ano de 2003, com o objetivo de combater o racismo e promover a igualdade de determinados grupos raciais e étnicos, com foco na população negra.

Dentre as políticas afirmativas implementadas pelo Estado, tendo em vista o combate à desigualdade da população negra no âmbito da educação, vale destacar a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a partir da promulgação em 9 de janeiro de 2003, da lei n. 10.639/03, que torna obrigatório, no currículo oficial da rede de ensino, o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira. Para Gomes (2002, p. 38), a escola “é o espaço em que aprendemos e compartilhamos não só conteúdos e saberes escolares, mas, também, valores, crenças e hábitos, assim como preconceitos raciais, de gênero, de classe e de idade”. Apesar de enfrentar grandes desafios para a sua ampla efetivação, essa lei tem o propósito de contribuir para a desconstrução gradativa do racismo.

Vale destacar outra conquista do movimento negro que foi efetivada pelas políticas afirmativas para instituição de cotas raciais nas instituições federais de Ensino Superior. Gohn (2014) afirma que o movimento dos afrodescendentes avançou em suas lutas nos últimos dez anos. O avanço das conquistas para a promoção da igualdade incitou amplos debates na sociedade e dois manifestos configurados por um grupo de artistas, intelectuais, sindicalistas, empresários e representantes de movimentos sociais: Manifesto em favor da “Lei de Cotas e Estatuto da Igualdade Racial” e o “Manifesto Cento e treze cidadãos antirracistas contra as leis raciais”, contra as políticas de ação afirmativas no Ensino Superior brasileiro.

Em resposta a uma ação ajuizada pelo Partido Democrata (DEM)4, que questionava a constitucionalidade da lei de cotas raciais da Universidade de Brasília (UnB), o Supremo Tribunal Federal julgou e declarou a constitucionalidade da lei n. 12.711/12, em 26 de abril 2012. O relator Ricardo Lewandowski, seguido pelos demais ministros, afirmaram que as políticas de ação afirmativas adotadas pela UnB estabelecem um ambiente acadêmico plural e diversificado e têm o objetivo de superar distorções sociais historicamente consolidadas.

A lei n. 12.711/12 estabelece a reserva de 50% das vagas para cursos de graduação nas universidades e institutos federais em consonância com os critérios: candidatos que cursaram todos os anos o ensino médio em escola pública, renda familiar, raça/cor e deficiência. O Conselho Universitário da UFRJ aprovou, em agosto de 2010, uma política de ingresso de estudantes de baixa renda familiar e oriundos do sistema público de ensino, sem cotas raciais, em seu concurso de acesso aos cursos de graduação. No entanto, em setembro de 2012, o colegiado alterou as normas do ingresso para adequá-las à lei n. 12.711/12, que tornou obrigatória a reserva de vagas, com cotas raciais, para todas as universidades federais. Neste sentido, a mobilização social efetivada pelo movimento negro contribuiu para a inserção da questão racial na agenda política do governo. Assim, as políticas afirmativas influíram para que a questão racial se inserisse na UFRJ pela via de ingresso dos negros nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). A lei 12.711/12 tanto modifica a composição do alunado dessas instituições federais como também altera as relações sociais dentro e fora delas. As atividades de extensão são um bom exemplo dos efeitos causados pelas novas políticas de acesso às universidades especialmente no que diz respeito ao combate às desigualdades raciais.

A Universidade Federal do Rio de Janeiro como campo privilegiado de saber

No ano de 1920, é criada a Universidade do Rio de Janeiro, formada pelas escolas profissionais preexistentes, isoladas e autônomas, sem a constituição de laço que privilegiava o ensino, bem como a formação profissional. A Universidade do Rio de Janeiro teve a incorporação da Escola de Música e da Escola de Belas Artes em 1931. Foi reorganizada e transformada em Universidade do Brasil em 1937 e denominada Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1965. Segundo Fávero (2006), a universidade deve ser o espaço em que se desenvolve um pensamento teórico-crítico de ideias, opiniões, posicionamentos, como também o encaminhamento de propostas e alternativas para solução dos problemas.

A UFRJ foi concebida para ser um modelo para as demais universidades que fossem sendo constituídas. A formação desta instituição de Ensino Superior foi consolidada pelas justaposições de escolas superiores já existentes, atrelada, ainda, ao pluralismo de ideias presente no seu corpo acadêmico em que estão inseridos os docentes, discentes e os técnicos-administrativos. Dentre as práticas educativas, a criação da UFRJ privilegiou inicialmente o ensino, posteriormente a pesquisa e, por último, a extensão universitária foi inserida. O documento redigido no ano de 2017 pela Comissão de Dados Abertos (GT-PDA/UFRJ) aponta que a comunidade da UFRJ é composta por mais de 42 mil alunos nos cursos de graduação, 14 mil alunos na pós-graduação, 4 mil professores e 10 mil servidores técnico-administrativos.

No que tange ao espaço acadêmico, a extensão universitária obedece ao princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, estabelecido na Constituição Federal do Brasil de 1988. Neste sentido, o artigo 207 da Constituição define a extensão universitária como “um processo interdisciplinar educativo, cultural, científico e político que promove a interação transformadora entre a universidade e outros setores da sociedade” (Brasil, 1988, s./p.). No entanto, desde a sua criação, a extensão universitária já teve várias concepções e variados protagonistas.

“Vamos entrar nessa Maré!!!”: a extensão e os primeiros experimentos voltados para as classes populares

A extensão nas universidades brasileiras, no início do século XX, foi influenciada pelo modelo europeu, com apresentação de cursos e conferências, e ainda pelo modelo americano, com a prestação de assistência técnica aos agricultores. Cabe ressaltar que são evidenciados diferentes protagonistas e concepções das ações extensionistas no sentido de estender o conhecimento ao outro, o que Paulo Freire (1983) apontou como uma prática verticalizada. E afinal, o que é extensão universitária? O conceito de extensão tem tido várias definições: Sousa (2010) afirma que a extensão universitária apresenta-se como um conceito em construção. Neste sentido, o contexto político atrelado à história da educação pode influenciar a concepção e ação dos atores da extensão universitária.

O “I Encontro do Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Brasileiras”, realizado em 1987, promoveu a discussão em torno da institucionalização e financiamento da extensão universitária, bem como, potencializou o diálogo com o Ministério da Educação. Este Fórum, atualmente designado “Fórum de Extensão das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileiras” (FORPROEX), define as políticas e as diretrizes que norteiam a extensão universitária nas nossas instituições públicas de Ensino Superior e estabelece que a extensão universitária é um processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que promove a interação transformadora entre universidade e outros setores da sociedade. A extensão universitária passa a se configurar como prática educativa, entretanto, apesar de alguns avanços, ainda enfrenta desafios para romper a hierarquização do processo educativo que privilegia o ensino e a pesquisa.

Foi durante a gestão do reitor Horácio Macedo, no período de 1985 a 1989, que os primeiros experimentos de extensão universitária voltados para as classes populares aconteceram na UFRJ. Macedo (1989, p. 18), no texto intitulado “A Universidade num país periférico”, salienta que “A universidade terá que se abrir para a população trabalhadora. [...] A universidade terá que ter amplos, sólidos, vivos e criadores programas de extensão que possam abrigar os problemas, as questões e as dúvidas desta população”. O empenho do ex-reitor Horácio Macedo, no sentido de instituir ações comprometidas com as classes populares, foi determinado pela sua percepção de que a interação da universidade e a população trabalhadora promoveriam novos saberes em que ambos os atores seriam instrumentalizados para a reflexão da prática educativa e da realidade vivida.

Durante a sua gestão, Macedo convidou a professora Dulce Chiaverini e o professor Moacyr de Góes para assumirem os cargos de Sub-Reitora de Desenvolvimento e Extensão (SR5)5 e Superintendente Geral da Sub-Reitoria de Desenvolvimento e Extensão, respectivamente. No final de ano de 1985, a universidade faz contato com as lideranças do Complexo da Maré. Esta englobava nove comunidades de baixa renda. Em abril de 1986, o Conselho Universitário decidiu tornar o complexo da Maré, um campus vicinal por meio da resolução 03/86. O Relatório de Gestão 1985 a 1989 registra que o Hospital Clementino Fraga Filho já mantinha, desde 1982, uma unidade de cuidados básicos de saúde da área na Vila do João, e existia interesse manifesto por algumas unidades da UFRJ, particularmente a Escola de Enfermagem Ana Nery e o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, em desenvolver atividades de extensão naquela área (UFRJ, 1990).

Cabe enfatizar que a pesquisa e o ensino já eram áreas implantadas e reconhecidas na UFRJ. No entanto, foi realizado um levantamento junto aos departamentos de cada unidade a fim de identificar formulações extensionistas.

Dentre os 158 departamentos existentes na UFRJ, 104 forneceram as informações solicitadas e 24 departamentos manifestaram desinteresse pelas práticas extensionistas. Dos 80 departamentos que sinalizaram a existência ou interesse nas atividades extensionistas, a maioria cometia o equívoco de associar atividades de extensão com atividades extraclasse. Assim sendo, foram promovidas discussões no âmbito interno da Sub-Reitoria de Desenvolvimento e Extensão (SR5) que culminaram no documento teórico denominado “Da Extensão Universitária - Versão Preliminar, uma proposta em discussão” no final do ano de 1985. Este documento foi encaminhado para o Conselho Universitário em agosto de 1986, discutido no Seminário “Vamos entrar nessa Maré” e orientou a conceituação da extensão como uma troca de saberes científico e popular:

A extensão será entendida como uma “rua de mão dupla”, com trânsito assegurado a docentes, discentes e funcionários que encontrarão no meio social a oportunidade da elaboração da práxis de um pensamento acadêmico, aprendido, teoricamente, na sala de aula e nos laboratórios. Por outro lado, no retorno à UFRJ docentes, discentes e funcionários deverão trazer um aprendizado novo, que submetido à reflexão teórica, seja acrescido ao conhecimento acadêmico. Neste fluxo o objetivo é estabelecer a troca de saberes científico e popular (UFRJ, 1990).

A gestão da Sub-Reitoria de Desenvolvimento e Extensão no período de 1985 a 1989 privilegiou a interação da universidade com as classes populares, predominantemente negros pobres, moradores das comunidades do entorno do campus do Fundão. A ausência ou pouco acesso aos direitos básicos (saúde, moradia, educação e trabalho) mobilizou a aproximação dos representantes do complexo da Maré com a universidade pela via da extensão universitária. Assim, docentes, técnicos e estudantes de graduação da UFRJ visualizaram a oportunidade de integrar saberes e desenvolveram ações de extensão no complexo da Maré e em outros espaços de baixa renda. O muro que separava a universidade das comunidades vizinhas se transforma em ponte e a sala de aula em espaço de valorização do saber popular. Os experimentos desenvolvidos nesta época consideravam que um novo saber estava sendo produzido fruto do diálogo entre o acadêmico com o popular. O relatório do período 1985 a 1989 da gestão da SR-5 aponta que a sub-reitoria buscava a construção do conceito de extensão universitária articulado com o ensino e a pesquisa. A universidade, na busca de um conceito de extensão universitária a partir de seus experimentos, elaborou o documento que forneceu subsídios para o “I Fórum de Pró-Reitores das Universidades Públicas”6, atualmente denominado “Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileiras”.

Os projetos de 1985-1989

Os primeiros experimentos desenvolvidos pela extensão da universidade, segundo a tabela de programas e projetos de extensão desenvolvidos no período de 1985 a 1989, indicam que a área da saúde contemplou o maior número de projetos desenvolvidos pelas unidades acadêmicas.

Programas e projeto de extensão (1985-1989)
Gráfico 1:
Programas e projeto de extensão (1985-1989)
Fonte: UFRJ (1990).

Cabe destacar a realização do Censo Maré pela SR-5 em 1985. O Relatório de Gestão de 1985 a 1989, em referência à realização do Censo, salienta:

Menos com o objetivo de fornecer um retrato estanque e definitivo da Maré, tarefa por si só praticamente impossível, este censo visou ser um instrumento que permita a reflexão, o debate e a integração entre a Universidade e a comunidade. Primeiramente porque permitiu que as questões a serem respondidas partissem de seus próprios moradores. Segundo porque possibilitou a preparação e o contato de quase quinhentos estudantes com o dia a dia destas comunidades. Em terceiro porque estas informações servirão para que as comunidades se conheçam melhor e a Universidade tenha a possibilidade de voltar a sua produção acadêmica e científica para as necessidades concretas da população. [...] Longe de pretender reduzir as funções de pesquisa, ensino e extensão aos limites do mero assistencialismo, o que se buscou foi torná-las mais consistentes (UFRJ, 1990).

O Censo Maré revelou os dados relacionados: população, família, domicílio, mão de obra, instrução e saúde. Foi observado que, no levantamento dos dados populacionais do Censo Maré, não estava presente o item cor/raça. A sobrerrepresentação da população negra nessas comunidades nos faz supor que a universidade, ao atender as demandas das classes de baixa renda, indiretamente atingia a população negra dessas localidades. Gomes (2011) evidencia que, naquele período, predominava a ideia de que a questão racial estava subsumida na questão de classe, até mesmo pelos que se opunham à exploração capitalista. E a noção corrente de classes populares abarcava uma diversidade de segmentos de classe: baixa classe média, proletários, trabalhadores informais, desempregados, entre outros sendo também chamadas de classes subalternas ou oprimidos. Deste modo, a questão social assume maior visibilidade.

Por meio de três depoimentos de dois servidores técnico-administrativos e uma docente da universidade que participaram dos experimentos da década de 1980, podemos constatar a importância das ações extensionistas para a integração com as comunidades do seu entorno. No “Programa de Lazer Comunitário na Maré” tomamos, como exemplo, o projeto educativo realizado pela servidora técnico-administrativa Ana Cecília Augusto para os moradores da Nova Holanda. O projeto foi criado com objetivo de que a atuação da Educação Física possibilitasse a democratização do acesso à prática desportiva aliada ao campo para experimentação de uma metodologia de trabalho com comunidades. Augusto (Entrevista, 2017) relata:

Tinham poucos negros na comunidade acadêmica da UFRJ (graduações e pós-graduação) no período que eu fazia levantamentos nos departamentos, com a exceção dos serviços de limpeza e manutenção do campus. O aumento da representação negra na Sub-Reitoria de Desenvolvimento ocorreu quando ela passou a ser de Extensão. Tive a oportunidade de participar de algumas reuniões com os representantes dos moradores da Maré, e do total de seis representantes, dois ou três eram negros. O meu cargo de técnico desportivo permitia que fosse coordenadora de dois projetos. Ginástica na comunidade de Nova Holanda, onde passei um ano dando aulas para adultos no horário das 18 às 20 horas. A minha turma tinha 25 adultos, 3 ou 4 eram brancos. A turma se constituía de um maior número de mulheres que tinham as ocupações de domésticas, cabeleireiras e donas de birosca. Homens tinham 2 ou 3. O Projeto Esporte Clube Escolar era coordenado pelo César Rodrigues Carrano e Alex Pina de Almeida, no qual eu coordenava a atividade de dança. A população-alvo era os alunos matriculados nas escolas da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro, localizadas no entorno da UFRJ. As aulas ocorriam nos horários da manhã e tarde nas instalações desportivas do campus universitário. O espaço era significativo porque possibilitava a integração dos alunos dos diversos bairros da Maré, tendo em vista as limitações de circulação imposta pelas facções. Amadureci muito como profissional na extensão universitária.

O segundo relato traz o depoimento do técnico-administrativo Marco Antônio de Oliveira Felippe sobre a extensão na universidade. Morador da comunidade da Maré, atualmente integra a equipe do projeto de extensão da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) da UFRJ. Foi também participante do Projeto de Aceleração da Escolaridade para a Qualificação Profissional ano de 1987. Felippe teve que trabalhar desde os 12 anos para poder dar prosseguimento aos estudos. Seu pai, gari e com baixa instrução, viu no projeto uma oportunidade para a qualificação do filho que se formou em Assistente da área de Programação Cultural na Universidade Federal Fluminense (UFF). Pode, também, participar do pré-vestibular universitário promovido pelo Sindicato de Trabalhadores da Educação (SINTUFRJ), sendo aprovado no curso de Comunicação na própria universidade e no curso de Programação Cultural na Universidade Federal Fluminense (UFF). Optou pelo curso de Programação Cultural e conciliou os estudos na UFF com o trabalho na UFRJ, que foi iniciado no ano de 1996 aos 26 anos.

Sou grato à extensão universitária pela oportunidade da qualificação e ingresso na UFRJ. Fui diretor da Divisão de Eventos da PR5 no período de 2006 a 2012. Atualmente integro a equipe do Projeto Africanidade da Dança Educação (PADE/UFRJ). A extensão universitária da UFRJ se apresenta como espaço que possibilita a discussão acadêmica do candomblé, que permeou a minha vida inteira na busca do combate ao racismo. Acredito que o preconceito ao candomblé advém do fato de estar associada à cultura negra. Penso que a temática que esteja silenciada no ensino possa ser visibilizada na extensão universitária, que ainda tem a possibilidade da prática (Felippe, Entrevista, 2017).

A professora titular da UFRJ Ana Inês Sousa, ex-moradora da Maré, foi bolsista de extensão universitária da Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da UFRJ nos anos 1980 e atua na PR-5 desde 1999. Em entrevista realizada com a professora em dezembro de 2017, ela descreve sua trajetória profissional na extensão universitária da UFRJ.

Meu primeiro contato com a extensão universitária foi desde o começo na graduação, porque eu entrei aqui em 83, e 85 foi criada a pró-reitoria de extensão, e o reitor da ocasião era o reitor Horácio Macedo. Então foi o reitor que dava muito valor a extensão. Na época dele teve muitos projetos e na graduação também tinha uma disciplina chamada “Estudo de Problemas Brasileiros”, eu acho que era esse nome que se resumia a fazer extensão na Maré. O Censo da Maré foi feito pelos alunos dessa disciplina. E eu participei desse projeto do Censo como aluna já da UFRJ. Então, minha primeira inserção foi aí. E depois eu também fui aluna bolsista da professora Elacy lá no Centro de Ciências da Saúde, que era a coordenadora de extensão do centro. Mas foi isso, essas duas inserções, atuando com o Censo da Maré e como bolsista de extensão do Centro de Ciências da Saúde (CCS). Acredito que a questão racial não foi incluída no Censo Maré porque não tínhamos essa discussão naquela época (Sousa, Entrevista, 2017).

Os relatos de dois servidores técnico-administrativos e de uma docente, além de expor o cenário da falta de acesso aos direitos básicos pelos moradores da comunidade da Maré, indicam maior representação negra na UFRJ advinda do público externo das ações extensionistas direcionadas para as classes populares, bem como aponta para o silenciamento da temática racial nos experimentos iniciais da década de 1980. Cabe destacar que havia a presença negra nos projetos, mesmo sem corte racial. Assim, ao atender as classes consideradas mais vulneráveis, os projetos atingiam os negros da comunidade onde eram desenvolvidos, o que nos leva a concluir que a UFRJ atendia aos negros em seus projetos extramuros.

Dentre as ações concretas para o combate às desigualdades social e racial, cabe destacar os cursos pré-universitários populares que surgem no início nos anos 1990, com o objetivo de promover o aumento do ingresso dos estudantes pobres e negros nas instituições de Ensino Superior, com ênfase nas universidades públicas. Nascimento (2012, p. 19) salienta que “a produção de direitos e a constituição da democracia constituem processos relacionados à capacidade de luta e organização da sociedade”. O Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares foi uma das inúmeras iniciativas que impulsionou o debate sobre a desigualdade de acesso dos negros às universidades públicas. Segundo Nascimento (2012, p. 101):

O movimento Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) e a Organização Católica Educafro se tornaram, no contexto, do Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares, as principais organizações tanto em termos números (cursos e pessoas envolvidas) quanto em termos de presença e influência que, eventualmente, exercem no debate e na agenda de constituição de políticas públicas e institucionais.

Em meados de 1989, o Sub-reitor de Desenvolvimento e Extensão interrompeu os projetos que a SR-5 desenvolvia na Maré. Três gestões da Sub-Reitoria de Desenvolvimento e Extensão se seguiram sem que ações fossem desenvolvidas na Maré até que, como dito anteriormente, a SR-5, designada Pró-Reitoria de Extensão, no ano de 2003, promovesse o retorno de sua interação com as classes populares.

O ensino, a pesquisa e a extensão, sem dúvida, afirmam o papel da universidade como agente de desenvolvimento cultural, social e econômico; no entanto a inclusão do combate às desigualdades raciais na agenda da extensão da UFRJ ainda é um grande desafio. Há que se diversificar tanto a composição do corpo discente como a do corpo docente e de funcionários para que possamos concretizar o projeto de uma universidade plural e diversa. As ações futuras, tanto na extensão como no ensino e na pesquisa, devem incorporar as demandas dos grupos subalternizados e excluídos do espaço universitário. Somente assim teremos uma universidade multirracial. Sousa (2010) aponta dois caminhos para a extensão universitária. No primeiro, agiria como instrumento articulador produtor de transformações tanto intra quanto extramuros da universidade. No segundo, caminharia em direção oposta, servindo de instrumento articulador de determinadas classes hegemônicas, no sentido de manutenção e continuidades sem rupturas com o real. No primeiro caso, ela irá contribuir para a transformação das estruturas arcaicas da universidade e, no segundo caso, ela iria contribuir para a “asfixia da universidade”. Para a autora, o papel histórico da extensão é aproximar a universidade da sociedade. Podemos supor, a partir dos depoimentos dos entrevistados, que a participação de comunidade universitária - docentes, discentes e funcionários - é condição necessária para a sua democratização.

Os obstáculos enfrentados pela extensão em todas as instituições de Ensino Superior residem no fato de que esta atividade universitária do processo educativo ainda é desprestigiada se compararmos ao ensino e a pesquisa. De acordo com Rodrigues (2018), a constatação da existência de desigualdades raciais e consequentemente de desvantagens cumulativas ratifica as denúncias do movimento negro das precárias condições vivenciadas pelos negros, e somente as políticas de ação afirmativa podem alterar este quadro do não lugar do negro na sociedade brasileira. Conclui, também, que as políticas afirmativas para negros repercutiram positivamente na UFRJ com o aumento de estudantes negros como também no reforço do papel da extensão universitária na proposição de ações baseadas na questão racial no reconhecimento de saberes invisíveis no espaço universitário advindos do novo alunado.

Dentre os desafios enfrentados pela extensão da UFRJ, destacamos o estabelecimento de estratégias que possibilitem o financiamento destinado ao desenvolvimento de ações extensionistas e a promoção de uma efetiva institucionalização das atividades extensionistas, materializada por meio de sua inserção como atividades nos cursos de graduação. Vale ressaltar que as universidades públicas têm sido convidadas a cumprir sua função social no enfrentamento das questões relativas à garantia dos direitos das minorias. A extensão universitária, durante muito tempo, foi a brecha para a entrada de negros, porém permaneciam nas atividades extramuros iniciadas na década de 1980. Os anos 2000 marcam mudanças substanciais nas estruturas das universidades federais. As primeiras iniciativas para a promoção de uma universidade democrática e plurirracial envolveu os cursos de graduação. Por meio do programa REUNI - Reestruturação e Expansão das Universidades Federais -, houve a expansão das universidades federais, o início de cursos noturnos e renovação do corpo docente com o ingresso de novos membros para atender as demandas das novas e das antigas universidades federais. Além disso, a lei n. 12.711/2012, considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, permitiu a implantação do sistema de seleção de ingresso por meio de cotas sociais e raciais mudando assim a configuração do corpo discente. Assim, os estudantes negros da UFRJ aumentaram numericamente nos cursos de graduação, passando a fazer parte de projetos de ensino, pesquisa e extensão.

As políticas de ação afirmativa ampliando a presença da população negra da universidade

No período que antecede o ano de 2003, foram promovidas ações extensionistas na UFRJ amparadas pela perspectiva de estender o conhecimento para o público externo da comunidade acadêmica até a concepção de construção do conhecimento a partir da interação dos saberes da universidade e comunidade.

Em 2003, a Pró-Reitoria de Extensão redirecionou o olhar para as comunidades em torno do campus do Fundão e criou a Divisão de Integração Universidade Comunidade (DIUC) em 2005, idealizada pela técnico-administrativa Eliana Sousa Silva, que assumiu a direção da divisão. Vale ressaltar que Eliana Sousa Silva foi moradora da Maré e, como presidente da Associação de Moradores da Nova Holanda no período de 1984 a 1987, atuou junto à gestão da Sub-reitoria de Desenvolvimento e Extensão nas articulações das ações extensionistas que foram desenvolvidas na Nova Holanda.

A DIUC, articulada às unidades acadêmicas da UFRJ, integrou programas e projetos direcionados para as classes populares, tais como o Programa Integrado de Alfabetização da UFRJ para Jovens e Adultos de Espaços Populares, Projeto Pré-Vestibular no Bairro Caju, Projeto Conexões de Saberes: Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares, Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania e Laboratório de Inclusão Digital e Pré-Vestibular Universitário de Nova Iguaçu. Vale destacar que os projetos Pré-universitários e Conexões de Saberes, inseridos na DIUC, tinham o compromisso de contribuir para o acesso e permanência dos estudantes de origem popular nas Instituições de Ensino Superior públicas.

Tavares (UFRJ, 2011, p. 8) no Relatório de Gestão salienta que “o período de 2006 a 2010 teve como prioridade a institucionalização da extensão, de modo a torná-la uma prática acadêmica valorizada e assumida pelo conjunto da comunidade universitária”. Conclui que a política de extensão foi norteada pelos princípios da Integração e o da Institucionalização com ações como a criação do Programa Institucional de Bolsas de Extensão (PIBEX) e da DIUC na perspectiva da interação da UFRJ com as classes populares; a instituição do Núcleo de Memória da Extensão da UFRJ, início do processo de inclusão da participação do aluno nas atividades de extensão como créditos de disciplinas e a vinculação de projetos isolados em programas. Sousa, na entrevista concedida em 2017, relata:

A discussão sobre a questão racial na extensão universitária foi iniciada com o Projeto “Conexões dos saberes”, e deve ter até alguma coisa publicada. O Ministério da Educação disponibilizou recursos que possibilitou o ingresso e permanência de estudantes de origem popular na universidade por meio desse projeto. Então foi a primeira vez que a gente passou a discutir isso, foi a partir do Projeto Conexões de Saberes, não tínhamos nenhuma discussão anterior. O aluno de origem popular está muito relacionado com a questão racial. Acho muito pertinente a discussão da questão racial na extensão universitária.

O Projeto Conexões de Saberes inicia a discussão sobre a questão racial e promove a publicação do livro da Coleção “Grandes Temas do Projeto”, intitulado “Desigualdade e diferença na universidade: gênero, etnia e grupos populares, em 2006. Assim sendo, a questão racial se insere na PR-5 com a presença de estudantes negros de origem popular, a maioria oriunda dos pré-vestibulares populares que passam a fomentar discussões acerca da questão racial na universidade. Nascimento (2012, p. 95), no que tange ao Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares, ressalta que “há uma especificidade para nós determinante da sua própria constituição como movimento: as práticas políticas e pedagógicas contra os preconceitos, as discriminações e as desigualdades raciais”.

Tanto os pré-vestibulares quanto o projeto Conexão de Saberes não incluíram unicamente a cor/raça como critério de elegibilidade para atingirem seus beneficiários, todavia, amparados em critérios sociais, o primeiro proporcionava o acesso de negros e de outros grupos que compõem as classes populares, e o segundo tinha objetivo desenvolver ações inovadoras que ampliassem a troca de saberes entre as comunidades populares e a universidade, garantindo, em muitos casos, a permanência de alunos negros, ainda que este não fosse o seu foco principal.

O pró-reitor de extensão (gestão 2011-2015), Pablo Benetti (UFRJ, 2015, p. 9), declara no relatório de gestão da PR-5 que “temos absoluta noção de que importantes passos foram dados no sentido de criar uma universidade mais integrada, menos fragmentada, que incorpore as demandas sociais no seu cotidiano, que consiga de fato a integração entre ensino, pesquisa e extensão”.

Em 2015, Maria Mello de Malta assumiu a Pró-Reitoria de Extensão (PR-5). Nesta gestão, o registro das ações extensionistas na PR-5 é feito por meio de edital do Registro Único de Extensão (RUA), que ocorre em edição semestral. Foi criado o Programa Institucional de Fomento de Ações de Extensão (PROFAEX) que disponibiliza bolsas de extensão e recursos financeiros para cursos, eventos, projetos e programas. Para concorrer ao edital PROFAEX, com edição anual, é necessário que as ações de extensão estejam cadastradas na PR-5. Vale destacar que esse edital trata dos deveres dos coordenadores de ação de extensão, recomenda que a seleção dos bolsistas se realize conforme o Artigo 3º do Decreto n. 7416/2010 e que considere cotas raciais e sociais, representando avanço para a permanência de estudantes negros e pobres. Este decreto estabelece bolsas de permanência, para a promoção do acesso e permanência de estudantes em condições de vulnerabilidade social e econômica. Neste sentido, o avanço da inserção da questão racial na UFRJ é materializado no Anexo I do edital PROFAEX 32/2018, que trata dos deveres dos coordenadores de ação de extensão e dos bolsistas de extensão, que orienta para a seleção de bolsistas a consideração das cotas raciais e sociais.

No ano de 2017, a estrutura organizacional da PR5 foi reorganizada e as divisões que a compunham foram extintas. Os dados informados a seguir foram fornecidos pela COFAEX, setor responsável pelo registro, acompanhamento e avaliação das ações de extensão cadastradas na UFRJ. Cabe observar que foram utilizadas as palavras: raça, afro, África, dança, negro, negra, quilombo e capoeira como filtro para identificar as ações extensionistas registradas e ativas no SIGPROJ que contemplassem a temática racial em janeiro de 2018.

Unidades acadêmicas da UFRJ que desenvolvem ações extensionistas com temáticas raciais
Gráfico 2:
Unidades acadêmicas da UFRJ que desenvolvem ações extensionistas com temáticas raciais
Fonte: Dados da pesquisa.

Quadro 1:
Número de ações de extensão ativas na UFRJ: janeiro de 2018
Número de ações de extensão ativas na UFRJ: janeiro de 2018
Fonte: UFRJ (2018).

Dentre as unidades acadêmicas da universidade, o Campus UFRJ Macaé Professor Anísio Teixeira, criado em 2008, as unidades do campus Macaé foram as que mais tiveram temática racial inserida nas ações extensionistas desenvolvidas. Supomos que o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) de Macaé, criado em 2016, fomentou o debate no referido campus. Cabe destacar que as ações de extensão com corte racial, em Macaé, são coordenadas pelas docentes Caroline Guilherme e Rute Ramos da Silva Costa que são, respectivamente, coordenadora e membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígena da Cidade Universitária de Macaé.

Observando o número total de ações de extensão da UFRJ, a questão racial nos projetos extensionistas ainda é reduzida. Foi possível verificar que entre as modalidades de ações de extensão7, o projeto é a ação mais implementada pelos docentes e técnicos da UFRJ. A criação do Fórum de Pró-Reitores das Universidades Públicas Brasileiras impôs às universidades públicas o protagonismo na construção da política de extensão universitária. O Fórum define, ainda, as diretrizes que devem nortear as ações extensionistas como interação dialógica, interdisciplinaridade e interprofissionalidade, impacto na formação do estudante, impacto e transformação social.

Conclusão

A partir dos anos 2000, a questão racial ganhou visibilidade na agenda pública, com a adoção de políticas inclusivas para negros em diversos campos da vida social. A constatação da existência de desigualdades raciais e consequentemente de desvantagens cumulativas ratifica as denúncias do movimento negro das precárias condições vivenciadas pelos negros. Assim, as políticas afirmativas são imprescindíveis para alterar este quadro do não lugar do negro na sociedade brasileira. A sub-representação da população negra e o silenciamento da temática negra no espaço acadêmico têm convidado as universidades públicas a cumprirem sua função social no enfrentamento da negação de direitos das minorias. As políticas afirmativas instituídas pelo governo repercutiram na UFRJ com o aumento da representatividade e da temática negra na extensão.

No contexto da abordagem acadêmica, a extensão universitária é entendida como um processo educativo que, compartilhado com o ensino e a pesquisa, contribui para a construção de novos saberes por meio da interação da universidade e a sociedade. Durante a década de 1980, a extensão buscou um diálogo que visava o atendimento das demandas das classes populares apesar da sobrerrepresentação dos negros em situação de pobreza. Estimulados pelas políticas de ação afirmativa, nos anos 2000, a extensão passa a desenvolver projetos que atendam as demandas da população negra reconhecendo as desigualdades raciais estruturais presentes na sociedade brasileira. As políticas da diversidade para a inclusão de negros exigem das instituições um papel ativo da consolidação dessas políticas.

Entendemos e compartilhamos de constatação de que a extensão, ainda, é um “conceito em construção”, como salientou Sousa (2010), e que o contexto político pode influenciar a concepção e ação dos atores da extensão universitária. Sabemos que a extensão se constitui num campo de disputa de poder e de saber, no entanto, a participação dos vários atores envolvidos nas ações universitárias é condição indispensável para a construção de uma universidade diversa e plural. As dificuldades da extensão na UFRJ, especialmente no que diz respeito à inclusão da questão racial, residem na posição de baixo prestígio que ela guarda quando comparada as demais, ensino e pesquisa. Ainda há resistências por parte dos docentes tanto no que diz respeito à sua valorização quanto na necessidade de combate ao racismo, fenômeno fomentador das desigualdades raciais no país. Somente com a participação de toda a comunidade universitária em direção ao fortalecimento das atividades extensionistas construiremos uma universidade equânime. Ao cumprir plenamente seu papel de ferramenta articuladora com a sociedade, a extensão participará do processo de transformação das estruturas universitárias rumo à construção de uma universidade de todos e para todos.

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Notas

1 Os depoimentos de docente e servidores técnico-administrativos que constam neste artigo foram autorizados pelos mesmos.
2 O IBGE classifica negros a soma de pretos e pardos.
3 Na década de 1970, após a interpretação dos dados estatísticos, dos censos e PNADs produzidos pelo IBGE, foi possível medir as distâncias que separam brancos e negros no país. Em 1999, não completaram o Ensino Fundamental 57% dos adultos brancos e 75,3% dos adultos negros. Paralelamente, só completaram o Ensino Médio 12,9% dos brancos e 3,3% dos negros. Além disso, todos os níveis dos indicadores de escolaridade dos adultos negros em 1999 são inferiores aos indicadores dos adultos brancos em 1992. Destaca-se, em particular, a taxa de analfabetismo de pessoas com mais de 15 anos: em 1999 essa taxa era de 19,8% entre os negros, sendo que em 1992 era de 10,6% entre os brancos (Henriques, 2001).
4 Partido Democrata, pessoa jurídica de direito privado. Partido político com sede e domicílio na Capital da República e ação em todo o território nacional.
5 Órgão criado na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1985, intitulado “Sub-Reitoria de Desenvolvimento e Extensão” (SR-5), com a atribuição de institucionalizar a Extensão Universitária. Posteriormente, foi designado Pró-Reitoria de Extensão Universitária (PR-5) no ano de 2003.
6 O “Fórum de Pró-Reitores das Universidades Públicas”, no ano de 2010, passou a ser designado “Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileiras” (FORPROEX), como entidade responsável pela articulação e definição das políticas acadêmicas de extensão.
7 Entre as ações de extensão da UFRJ podemos encontrar eventos, cursos, e projetos de extensão, sendo possível um conjunto de projetos de extensão sobre a mesma coordenação formar um programa.
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