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Imagens vivas de mundos passados: as reminiscências alegóricas nas fotografias do centro de Florianópolis, em Santa Catarina, Brasil
Living images of past worlds: the allegorical reminiscences in the photographs of downtown Florianopolis, Santa Catarina, Brazil
Imágenes vivas de mundos pasados: reminiscencias alegóricas en fotos del centro de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil
Revista NUPEM (Online), vol. 13, núm. 29, pp. 312-326, 2021
Universidade Estadual do Paraná

Temática Livre


Recepción: 18 Junio 2020

Aprobación: 05 Septiembre 2020

DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2021.13.29.312-326

Resumo: O presente artigo pretende colocar em diálogo a ideia de tempo e alegoria em Walter Benjamin como instrumentos de análise de fotografias de paisagens do Centro de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Nas teses sobre o conceito de história, Benjamin (1987) afirma que a verdadeira imagem do passado perpassa veloz pelos tempos, pois o passado é fixado como imagem que relampeja irreversivelmente no momento em que é reconhecido. Metodologicamente, optamos por fotografar cenários do centro de Florianópolis, intencionalmente escolhidos para discutir as ideias de Benjamin sobre alegoria, e trazer essas imagens como fios de condução para pensar suas ideias e a história da cidade. Como resultado, identificamos que a arquitetura dos prédios e os monumentos das praças da cidade são constituídos por fragmentos do passado que permanecem até o presente, mas que também observamos essas permanências nas pessoas que circulam e na rotina que ocupa o espaço.

Palavras-chave: Imagens, Alegoria, Florianópolis, Benjamin.

Abstract: The article intends to dialogue with the idea of time and allegory in Walter Benjamin as instruments of analysis of photographs of landscapes of downtown Florianopolis, Santa Catarina, Brazil. In the theses on the concept of history, Benjamin (1987) writes that the true image of the past goes quickly through the times, since the past gets fixed as an image that flashes irreversibly the moment it is recognized. Methodologically, we chose to photograph sceneries in downtown Florianopolis to discuss Benjamin’s ideas on allegory, bringing these images as guiding threads regarding his thoughts and the history of the city. As a result, we identified that the architecture of the buildings and the monuments of the city’s squares are constituted by fragments of the past that remain in the present, having also observed these permanences in the people that circulate and the routine that occupies the space.

Keywords: Images, Allegory, Florianopolis, Benjamin.

Resumen: El presente artículo pretende colocar en diálogo las ideas de tiempo y alegoría en Benjamin como instrumentos de análisis de fotografías de paisajes del Centro de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. En las tesis sobre el concepto de historia, Benjamin (1987) afirma que la verdadera imagen del pasado corre a través del tiempo, ya que el pasado se fija como una imagen que destella irreversiblemente en el momento en que se reconoce. Metodológicamente, optamos por fotografiar escenarios del centro de Florianópolis, elegidos intencionalmente para discutir las ideas de Benjamin sobre la alegoría y para traer estas imágenes como hilos conductores para pensar sus ideas y la historia de la ciudad. Como resultado de este estudio, identificamos que la arquitectura de los edificios y los monumentos de las plazas de la ciudad están constituidos por fragmentos del pasado que perduran hasta el presente, pero que también observamos estas permanencias en las personas que circulan y en la rutina que ocupa el espacio.

Palabras clave: Imágenes, Alegoría, Florianópolis, Benjamín.

Introdução

Nas teses sobre o conceito de história, Walter Benjamin (1987) defende a ideia de um tempo que não é homogêneo e nem vazio, mas sim um tempo saturado de “agoras” que “fez explodir o continuum da história” (p. 229-230). O autor, ainda afirma que a verdadeira imagem do passado perpassa veloz e esse “passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido” (p. 224), nesse caso, articular historicamente o passado é justamente apropriar-se de uma reminiscência, ou seja, fixar essa imagem do passado que relampeja. A todo tempo o passado nos dirige um apelo que é expresso por nossos desejos de sermos tocados pelos ares antes respirados, por quando reconhecemos nas vozes que escutamos os ecos de vozes que emudeceram, o apelo feito pelo passado é para que nada do que um dia aconteceu seja “considerado perdido para a história” (p. 223), um apelo para que não nos deixemos levar pelos ventos do progresso que sopram sem cessar, para que possamos “acordar os mortos e juntar os fragmentos” (p. 226).

Inspiradas(os) por todas essas ideias, ao andar pelo centro da cidade de Florianópolis, capital de Santa Catarina, fomos tomados por uma Epifania, por um desejo muito semelhante ao do Angelus Novus do quadro de Paul Klee, foi a sensação de por um instante poder fixar essa imagem do passado que relampeja, de reconhecer da imagem do presente os fragmentos do passado e poder recuperá-los.

Os cenários do centro da cidade estão repletos de fragmentos desse passado, são uma verdadeira alegoria (Benjamin, 1984), pois são constituídos por confluências temporais e espaciais, muitas construções são esqueletos do que um dia foi, fragmentos que comportam reminiscências do que ainda sobrevive desse passado. Nas paisagens do centro se articulam pedaços de outros países, de culturas e pessoas que consideramos estrangeiras, convivem aqueles que se deixaram levar pelos ventos do progresso com aqueles que ainda lutam para não serem perdidos para a história. Diversas cenas são marcantes, na rua que leva o nome do militar Tenente Silveira vemos o contraste entre colonizadores e colonizados, frequentemente encontramos mulheres indígenas, muitas vezes com seus filhos e filhas, vendendo o artesanato que produzem. Essas mulheres, em geral, ficam sentadas pelas calçadas, em meio de prédios gigantes e pessoas que passam apressadas, movidas por suas rotinas de tempos modernos que são vazios e contados puramente pelo relógio, um tempo que não têm significado para além dos ponteiros. Enquanto isso, na Praça XV é como se o tempo parasse, diversos idosos jogam baralho e dominó ou leem seu jornal em papel como se não estivesse no mesmo espaço em que a maioria das pessoas corre contra o tempo.

As diferentes temporalidades de fato tomam conta das paisagens do centro, prédios antigos se contrastam com edifícios modernos. As praças e nomes de ruas comportam esculturas e placas que são monumentos de presentificação e imortalidade dos vencedores, enquanto os vencidos continuam apenas com o espaço da calçada onde se quer são vistos por quem passa. As construções ainda guardam reminiscências do que um dia já foi mar, do espaço que o progresso aterrou e de tudo que foi enterrado com o progresso.

Nesse sentido, o presente artigo pretende colocar em diálogo a ideia de tempo em Walter Benjamin e a ideia de alegoria na obra do autor com as paisagens e composições estéticas do centro de Florianópolis, imagens que fixamos por meio de fotografias que serão expostas no presente artigo e articuladas com a teoria no decorrer dessa discussão.

Estas fotografias são referentes ao mês de agosto do ano de 2018, e foram tiradas pelos próprios autores deste trabalho. Assim, as imagens escolhidas foram aquelas que, na nossa concepção, melhor capturaram a confluência de temporalidades heterogêneas e entrelaçamentos culturais; de um tempo que não é homogêneo, mas saturado de “agoras”. É a partir destas imagens, que buscamos analisar os elementos presentes em seu interior, sejam isolados ou seu conjunto e sem perder de vista seu contexto iconológico.

Assim, primeiramente se faz necessária uma explanação mais detalhada sobre o arcabouço teórico metodológico utilizado. As discussões sobre a confluência temporal que aparecem nas paisagens do centro de Florianópolis serão apresentadas juntamente com as fotografias, bem como a explanação sobre tempo anacrônico nessas imagens. Nesse momento, gostaríamos de tecer algumas considerações acerca da fotografia enquanto fonte para as reflexões desse artigo.

Imagens vivas de mundos passados: algumas considerações teóricas

Nosso enfoque está para além da imagem fotográfica, mas para a região, onde os usos e costumes culturais são praticados, ou seja, no serpentear alegórico do centro de Florianópolis. Sendo assim, à fotografia estão incorporadas algumas mídias, conforme Hans Belting (2005), o medium ou meios nos quais a imagem é produzida e aqueles a que ela comunica, mas, para além disso, as imagens que saltam aos olhos daquele que vê, as quais são interessantes para o olhar que praticamos nesse estudo. Perante esse raciocínio podemos acrescentar outra afirmação comunicada por Roland Barthes (2000) em um de seus estudos sobre imagem de imprensa. A ideia de que a fotografia não é isolada, e sim um meio que desloca imagens, textos, sentidos que são incorporados a ela ou dissociados dela “a estrutura da fotografia não é uma estrutura isolada, ela comunica pelo menos com uma outra estrutura, que é o texto [...] de que vai acompanhada toda foto de imprensa” (Barthes, 2000, p. 326).

Por mais que, em seu artigo, Barthes pense sobre a fotografia de imprensa, ele ajuda a raciocinar sobre a expansão da própria estrutura fotográfica utilizada nesta comunicação. As ideias do autor apontam a imagem como uma estrutura que comunica com outras estruturas, ideia vinculada ao estruturalismo, limitando a sensação do sujeito e a atuação das imagens enquanto alegorias transmissoras de vidas passadas que se deslocam por meio dos contextos históricos, o que revela a distância da ideia de imagem fantasmal segundo Warburg e enaltecida por Didi-Huberman (2013, p. 72, grifos do autor): “Mas de quem, de onde e de quando são esses fantasmas? Os admiráveis textos de Warburg sobre o retrato - sua mescla de precisão arqueológica e empatia melancólica - induzem prontamente à ideia de que esses fantasmas concernem à insistência, à sobrevivência de uma pós-morte”.

No nosso caso, ousamos pensar a fotografia do centro de Florianópolis como imagem transtemporal, na qual estão relacionadas temporalidades de mundos passados e tempos presentes vinculados aos elementos enquadrados e transmitidos pela fonte utilizada nessa pesquisa com o auxílio do conceito de alegoria histórica de Benjamin, mais próxima do modelo fantasmal de Warburg. A imagem fotográfica fixa um determinado momento, um evento ou um fenômeno que se manifesta enquanto a foto é tirada, próximo ao sentido de “aura” de Walter Benjamin: “Para Barthes a fotografia parece não perder o conceito benjaminiano de ‘aura’, pois, ela sempre - por mais reproduzida que a fotografia vem a ser - será o registro de um instante único” (Fontanari, 2010, p. 59).

As lentes envolvidas pelos pensamentos de Walter Benjamin possibilitam criar interpretações e análises sobre as alegorias transmitidas pelos bens culturais e o cotidiano das pessoas do centro da capital de Santa Catarina. Nesse sentido, Canabarro reforça que “O historiador precisa situar a fotografia em um determinado tempo e espaço e perceber as suas alterações e do contexto” (Canabarro, 2005, p. 26), o que permite pensarmos a associação das ideias de Benjamin sobre o trabalho do alegorista e das relações que a alegoria possui com seu contexto histórico-cultural. Por isso, a alegoria benjaminiana se preocupa com a história e dá sentido ao modelo metodológico de encontrar aquilo que parece ser anacrônico, devido sua sobrevivência, mas que é transmissor de alegoria, de momentos passados que quando deslocados inauguram sentidos, modelos, formas e práticas,

é que em comparação com o símbolo, a alegoria ocidental é uma figura tardia, baseada em ricos conflitos culturais. A máxima alegórica é comparável ao cartucho aforístico. Ela pode ainda ser caracterizada como uma moldura obrigatória, na qual a ação, sempre variável, penetra intermitentemente, para nela se mostrar como tema emblemático (Benjamin, 1984, p. 220).

Segundo Ciavatta (2012, p. 37), compreender “o papel da imagem fotográfica na formação humana implica fazer a decodificação das mensagens subjacentes, a busca das relações ocultas ou menos aparentes”. Ela enaltece a questão da investigação profunda acerca do objeto estudado, assim como propõe Ginzburg em sua comparação entre o detetive e médico enquanto investigadores de sinais profundos carregados de elementos temporais, analisando o paradigma de tal questão ao buscar sinais que apontem o movimento de um determinado saber ou de uma conjuntura específica. Estes indícios nos ajudam a articular a alegoria benjaminiana, o tempo e a imagem da fotografia e da manifestação imagética de um centro em movimento como objetos de temporalidades, sendo acessado pela tensão entre eles, o que dá forma ao conhecimento histórico; como proposto por Koselleck (2006) em relação à experiência do passado e o horizonte esperado e dificilmente alcançado da expectativa.

Os patrimônios, as pessoas, as lojas, sua mensagem, e outros elementos do centro de Florianópolis carregam a presença de tempos variados, seja pela sua presença no contexto em que se encontra, seja nos variados contextos do qual fez parte, isso indica que a sua localização está em um espaço que dita memória; como os patrimônios materiais enquanto lugares de memória parecem fundir instantes remotos ao agora (Nora, 1993). Há patrimônios materiais e imateriais representados pela fotografia, a qual é transmissora de algo além do que as temporalidades do meio material, mas também daqueles que dão sentido e forma ao meio e aos comportamentos do coletivo ou do indivíduo, das pessoas que ali transitam e das suas emoções, modos de vida, costumes enraizados e, agora, naturalizados em comportamentos que parecem anacrônicos ao meio, mas que transmitem associações temporais diversas.

O nosso papel, enquanto pesquisadores e espectadores do mundo, permitiu que pensássemos sobre a sensação estética da presença das coisas do mundo, do estar-aí de Heidegger, indexado com as sensações da melancolia da imagem vista, assistida, sentida. A sensação que permeou o corpo nos fez rememorar as pessoas que parecem esquecidas pela história, de patrimônios que acusam as sensações de conquistas com base na violência ao outro e condicionada pelas relações de poder, seja pela sua forma, postura ou aparência, seja pelo nome que detém à obra e que dá lembrança e vida a um passado glorioso, permeado de ruínas e de esqueletos soterrados.

Esta sensação da melancolia da imagem que sobressai ao sentido manifesto e causa sintomas culturais e individuais aos seres humanos foi um dos indícios de que a diversidade cultural localizada em um determinado espaço dotado de coletividade e de movimento faz relampejar movimentos temporais diversos que dão ao mundo os aspectos transtemporais, alegóricos, sintomáticos dos diversos fantasmas que perpassam as emoções. Apesar de parecer destoar do cunho industrial do meio urbano, as imagens anacrônicas de mundos passados causam sintomas de reconhecimento e de vivência e quebram com a sincronicidade do tempo e dão a ele o movimento cultural de que sempre dispôs, da memória e da vida das imagens. Ainda relembramos, da própria constelação de tempos do qual explana Benjamin,

Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética - não é uma progressão, e sim uma imagem, que salta (Benjamin, 2009, p. 504).

Essa inter-relação e tensão das imagens, entre tempos remotos e o presente, isto é, de uma imagem dialética, se constitui como o fenômeno originário da história. Desta forma, a imagem permite ver tanto a destruição da continuidade, quanto a novidade e o tempo por vir. Para Benjamin, é na imagem da memória que estão presentes todas as camadas de memórias involuntárias da humanidade que, por sua vez, produzem um regime de significação a partir dos processos da memória e do inconsciente. Pois, “A aura de um objeto oferecido à intuição é o conjunto das imagens que, surgidas da mémoire involuntaire, tendem a se agrupar em torno dele, então esta aura em torno do objeto corresponde à própria experiência que se cristaliza em um objeto de uso sob a forma de exercício” (Benjamin, 2006, p. 137).

Imagens do passado que relampeja: as reminiscências nas fotografias do centro de Florianópolis

Ao estar no centro de Florianópolis se percebe o quanto as estruturas e suas formas parecem se unir num grande cintilar de alegorias profundas emanadas pelo movimento de tempos e memórias, seja dos grandiosos prédios; das lojas que carregam nomes provenientes de culturas diversas; das pessoas de diferentes etnias que se encontram nas praças envoltas de grandes estátuas que rememoram conquistas, de animais que se assustam com o buzinar dos automóveis e beiram para a área periférica com medo do movimento humano; dos povos indígenas que foram forçados a se adequar a este meio de vida urbano concentrado no progresso, se inserindo enquanto pessoas que tentam vender objetos e ao mesmo tempo resistindo para não se desfazer de suas raízes culturais, dentre outros. Estes movimentos estéticos e sensoriais demonstram quanto do passado está presente em cada um dos pontos dessa cidade e como o trabalho de pesquisadores pode demonstrar as alegorias que corroem a imagem de muitos e enaltecem a de poucos.

Nesse caso, é possível notar o quanto a diversidade cultural é transtemporal e anunciada pela sensação da sintonia dos povos, da sua resistência contra a apropriação cultural, do seu convívio diário e de sua experiência sensorial com o meio. As diferentes culturas convivem e resistem frente aos conflitos cotidianos do avanço frenético de um tempo que é cronometrado, abstrato, carregado de pressão do trabalho que produz para vender. Mas também detém tempos que parecem não reconhecer o cronômetro e os ponteiros do relógio, manifestados por grupos específicos, como dos idosos mencionados acima.

Tendo isso em mente, gostaríamos agora de apresentar essas imagens fotográficas, o registro desses espaços que comportam uma confluência de temporalidades e dessas pessoas que vivenciam diferentes experiências de tempo, que não podem ser compreendidos simplesmente pelas ideias de tempo linear e cronológico.


Figura 1:
Mulher indígena
Fonte: Acervo pessoal dos autores.

Na figura 1, a primeira foto mostra o prédio da Secretaria da Fazenda, localizado na Rua Tenente Silveira, em Florianópolis. Nessa mesma foto, podemos ver na calçada uma mulher indígena que está vendendo objetos como balaios de palha seca e animais esculpidos em madeira. A segunda foto se trata da placa da rua em questão e a terceira foto traz uma visão mais ampla da rua e da mulher sentada na calçada.

Diversas são as questões que chamam atenção nessa junção de imagens, a mulher indígena sentada na calçada parece pequena diante da grandeza dos edifícios e construções que ocupam a rua, uma pessoa quase que invisibilizada, sentada no canto da calçada enquanto centenas de outras pessoas passam por ela a todo o momento, apressadas e correndo contra o tempo em uma das principais ruas do centro de Florianópolis.

As pessoas que passam parecem viver em outro tempo e espaço, diferente daqueles da mulher indígena, são homens e mulheres preocupados com as tarefas do cotidiano, caminhando rapidamente para chegar no horário certo, ocupados com seus celulares, usando fones de ouvido, relógios digitais e os mais diversos adereços tecnológicos, enquanto a mulher indígena se mantém por horas sentada como se o tempo não passasse da mesma forma, acompanhada apenas pelos objetos que ela - ou talvez parentes e conhecidos - fizeram com suas próprias mãos, de forma artesanal e não automatizada.

O nome da rua que aparece na placa acima, em homenagem ao Tenente José Inácio da Silveira, também abre outra discussão: a questão dos espaços de memória, os monumentos que são erguidos pela cidade e eternizam a memória apenas de alguns, sempre como militares, governadores ou prefeitos. A memória dos antepassados da mulher indígena não se encontra nesses patrimônios da cidade, parece estar sendo apagada, assim como ela em meio à essas multidões de caminhantes apressados.

Pensamos que foi esse o primeiro cenário da cidade que nos despertou a vontade, inspirada em Benjamin (1987, p. 223), de “não distinguir entre os grandes e os pequenos”, levando em “conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”. Todo o arranjo de monumentos destinados a eternizar a memória dos “vencedores”, espalhados pelas praças, ruas e edifícios, tendo como contrapartida o apagamento da memória dos “vencidos” mostra que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral” (Benjamin, 1987, p. 226).

Nesse caso, a epifania ao depararmo-nos com esse cenário e ver presentificadas as teses de Walter Benjamin sobre o conceito da história, também nos fez querer originar esse “novo estado de exceção” (Benjamin, 1987, p. 226), tornando possível que o Angelus Novus finalmente consiga não ser levado pelos ventos do progresso e então possa voltar atrás, “acordar os mortos e juntar seus fragmentos” (Benjamin, 1987, p. 227). Esses fragmentos são as fotos, imagens que estabelecem empatia com os vencidos e não com os vencedores (Benjamin, 1987, p. 225), capturadas e eternizadas. Essas fotos nos mostram pessoas e espaços que na correria cotidiana acabam por passar despercebidos e só podem ser vistos e compreendidos nesses momentos de epifania ou quando são procurados pelo(a) observador(a), são monumentos e cenários que trazem narrativas diversas, mas que não podem ser compreendidos e analisados de forma crítica quando passamos por eles quase que em modo automático, movidos pela necessidade de correr contra o tempo ou dispersos no arcabouço de imagens de nossos celulares.

Em outro espaço, bem próximo dessa esquina da Rua Tenente Silveira, já na Praça Fernando Machado, temos a estátua do Coronel que dá nome ao lugar (Figura 2), Coronel Fernando Machado de Souza. As imagens esculpidas nesse monumento nos mostram com fervor a luta entre vencidos e vencedores e como, até mesmo em estátuas iguais a essa, aqueles(as) que nas narrativas ocupam o lugar de vencidos devem ser soterrados pelo

cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais, O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror (Benjamin, 1987, p. 225).

Esse sentimento de horror diante de um bem cultural, o qual apresenta corpos sendo espezinhados pelo cortejo do vencedor, foi-nos despertado pela imagem localizada na base da estátua de Fernando Machado, que narra a morte do Coronel, morto em combate ao comandar a 5ª Brigada da Infantaria na Batalha de Itororó (para tomar a ponte sobre o Arroio Itororó), onde foi ferido mortalmente. Essa cena da morte de Fernando Machado é apresentada no pequeno quadro aos pés da estátua, na qual ao mesmo tempo em que é atingido mortamente o Coronel pisoteia violentamente os inimigos com seu cavalo. Apesar disso, não é a imagem da morte que vigora, mas sim a imagem de Fernando Machado imponente, de pé e vitorioso. Bem maior que a imagem do fim da sua vida é o monumento que eterniza sua memória, enquanto os vencidos continuam pequenos e aos seus pés.


Figura 2:
Praça Fernando Machado
Fonte: Acervo pessoal dos autores.

Um pouco mais acima da Praça Fernando Machado, na Praça XV de Novembro, é possível deparar-se com uma confluência de temporalidades; grupos de pessoas que nos mostram que de fato o tempo não é somente linear e cronológico, conforme podemos observar na figura 3. A primeira foto dessa figura nos mostra uma aglomeração de homens idosos que passam a tarde jogando dominó e jogos de cartas nas mesas da Praça; por trás desses homens passam diversas pessoas apressadas rumo aos seus empregos, muitas das quais acabaram de passar pela mulher indígena sentada na Rua Tenente Silveira.

Na segunda foto, imagem de uma rua próxima da Praça, é possível observar outras pessoas dispersas que caminham em ritmo acelerado, enquanto outras apenas passeiam olhando as vitrines de lojas ou até mesmo, como na terceira foto, leem calmamente seus jornais impressos sem preocupar-se em perder a hora, distantes do hábito de leitura e acesso a informação via aparelhos digitais.

Da mesma forma, na figura 4, dezenas de pessoas se aglomeram para assistir ao espetáculo de um homem prestes a atirar-se sobre um círculo de facas, uma forma de entretenimento tão antiga e que agora não é só observada pelos olhos dos espectadores, mas também pelas câmeras dos celulares que registram o acontecimento.


Figura 3:
Praça XV de Novembro
Fonte: Acervo pessoal dos autores.


Figura 4:
Círculo de facas
Fonte: Acervo pessoal dos autores.

O centro de Florianópolis - e acreditamos que também de qualquer outra cidade - é uma confluência de temporalidades, não somente pelos movimentos e percepção de tempo das pessoas que ocupam os espaços, conforme analisamos nas figuras anteriores, mas também pelas construções e edifícios, bem como os cenários das figuras que apresentaremos a seguir.

Na figura 5, uma foto do Mercado Público Municipal, somos arrebatados por uma série de propagandas, desde a marca de refrigerante que bastante está ligada com a cultura ocidental e moderna e ainda a presença de um fast food, lugar que serve refeições e tem por característica a rapidez e praticidade, ideal para todos aqueles e aquelas que diariamente correm contra o tempo e caminham apressados aos seus destinos. Toda essa estrutura está localizada em um edifício bastante antigo, que teve sua construção finalizada em 1851 (Mercado Público Florianópolis, 2018) e é considerada uma construção histórica na cidade.

Quando a estrutura do Mercado Público foi construída ainda ficava à beira da praia que ocupava esse espaço, e posteriormente foi aterrada e hoje dá lugar a movimentadas avenidas e gigantes estacionamentos. A figura 6 nos mostra os esqueletos sobreviventes do que um dia fora mar. Sobre a terra, ainda restam os fragmentos que denunciam o espaço que um dia foi água. Ou seja, o passado e o presente, o que foi morto e o que sobrevive, convivem no mesmo espaço.

Da mesma forma, na figura 7, uma grande fachada de prédios históricos, com estilos arquitetônicos bastante antigos - a maioria deles pequenos comércios e lojinhas - convive com grandes prédios e edifícios modernos e tecnológicos que abrigam centros comerciais e empresariais.


Figura 5:
Mercado Público Municipal de Florianópolis
Fonte: Acervo pessoal dos autores.


Figura 6:
Esqueletos sobreviventes do mar
Fonte: Acervo pessoal dos autores.


Figura 7:
Tempos passados x tempos modernos
Fonte: Acervo pessoal dos autores.

Pensando essas confluências temporais que habitam o centro de Florianópolis, podemos falar também sobre a ideia de uma temporalidade anacrônica, conforme propõe Lacerda (2014), como uma forma de pensar o tempo que contradiz a história tradicional, visto que propõe a compreensão de que existem memórias sobrepostas, tempos heterogêneos, um tempo turbulento e repleto de descontinuidades. É a isso que Walter Benjamin (1987, p. 229) se refere ao afirmar que a “história é objeto de uma construção, cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”.

Estas imagens, enquanto objetos visuais, funcionam como ponto de intersecção transtemporalizado de uma memória social e coletiva. Ao ser invocado no presente por meio de alguma visualidade, uma vez que essas fotografias do centro de Florianópolis projetam determinados horizontes de expectativas em confluência e tensão para com seus espaços de experiências, ou anacronismos. Ou seja, carregam determinadas dinâmicas da memória como princípio funcional da sobredeterminação e manipulações de seu tempo.

Além de Benjamin, Georges Didi-Huberman tece diversas contribuições importantes no que tange à ideia de anacronismo. O autor se utiliza desse conceito para abordar discussões no campo de história da arte, o que interessa muito aqui, visto que estamos propondo um trabalho com fotografias. Ao falar sobre o tempo, Didi-Huberman também afirma que este não é um tempo cronológico e linear, pois quando estamos diante da imagem estamos diante de uma confluência de temporalidades, uma imagem que “estando no passado” também traz a memória desse passado ao mesmo tempo em que se projeta para o futuro onde chegará (Didi-Huberman, 2011).

Sendo assim, concordamos com Didi-Huberman (2011) que devemos fazer uma crítica ao rechaço que é feito ao anacronismo no campo da história, pois ele se apresenta como um debate necessário, visto que pode ser considerado como a própria temporalidade das imagens, dos objetos e fontes com os quais fazemos história, os quais são providos de uma complexidade temporal, uma extraordinária montagem de tempos heterogêneos que formam anacronismos.

O referido autor repensa o estatuto epistemológico da história afirmando que existem inúmeras temporalidades cristalizadas na imagem. Pois, o presente não para de reconfigurar as imagens, mesmo as antigas, assim como o passado as reformula, por mais contemporânea que sejam. A imagem só se torna reconhecível por intermédio da memória, pois, estar diante de uma imagem é estar diante do tempo:

Diante de uma imagem, enfim, temos que reconhecer humildemente isto: que ela provavelmente nos sobreviverá, somos diante dela o elemento de passagem, e ela e, diante de nós, o elemento do futuro, o elemento da duração [dureé]. A imagem tem frequentemente mais memória e mais futuro que o ser [etant] que a olha (Didi-Huberman, 2015, p. 16).

O autor propõe, portanto, pensar a imagem diante do tempo, uma vez que é o tempo que possibilita o acesso heurístico às imagens. Com isso, estabelece uma arqueologia crítica dos modelos de tempo e seus valores de uso através dos objetos imagéticos (Didi-Huberman, 2015).

A autora Bernadete Ramos Flores (2014) também tece suas críticas à história que condena o anacronismo, afirmando que esta segue princípios de totalidade, princípios estes condenados na perspectiva de Walter Benjamin, sobre a tarefa da história, por exemplo. Ou seja, a partir dessa proposta de Didi-Huberman e Maria Bernadete Ramos Flores e também em diálogos com Walter Benjamin, é possível considerar que o anacronismo seja visto como um segmento de tempo, uma nova forma de “ler o passado” que possibilita compreender que existem formas de conexão entre “séries temporais heterogêneas” que podem, positivamente, ser vistas como “anacronias” (Flores, 2014).

Nesse caso, a ideia de anacronismo ou mesmo de confluências de temporalidades é bastante viável para pensar as fotografias e mesmo os cenários do centro de Florianópolis, a forma como diferentes percepções de tempo e artefatos de diferentes períodos convivem nos mesmos espaços, pessoas e construções que não compartilham do mesmo tempo linear e cronológico dos relógios, mas sim dessas séries temporais heterogêneas que se conectam e se entrelaçam.


Figura 8:
Fragmentos de espaços e culturas do globo
Fonte: Acervo pessoal dos autores.

Não só as diferentes temporalidades estão entrelaçadas, mas também as diversas culturas e percepções de mundo. Na figura 8, podemos perceber que mesmo o espaço em questão não se restringe exatamente a Florianópolis, pois o centro da cidade abriga uma diversidade de fragmentos de espaços e culturas do globo: uma “loja do Turco” ao lado de um senhor que vende plantas medicinais e também bastante próximo da “loja chinês”, na qual somos atendidos por pessoas da China, também próximo de uma fila de artesãos(ãs) que se dispõe pela calçada para vender sua arte, artesãos e artesãs vindos(as) dos mais diversos lugares e países da América Latina, os quais se encontram em meio a esse caldeirão de culturas.

Considerações finais

As fotografias do centro de Florianópolis condensam, assim, múltiplas temporalidades, simultâneas e em tensão, ao abrigar seus passados, presentes e futuros. Tais temporalidades foram acessadas por intermédio da visualidade produzida pelas imagens, motivo pelo qual ensejam uma visualidade a partir de suas interações, enlaçamentos e diálogos com o cotidiano da realidade social. Tais imagens ainda produzem, em certa medida, algum tipo de deformação, transformação e/ou intervenção nessa mesma realidade.

As fotografias operam como um ponto de intersecção de uma memória viva, ou melhor, da justaposição de memórias, entre vencedores e vencidos, ao entrelaçar anacronias temporais, mesmo que ressignificadas. Ao perceber as fotografias como fontes históricas, conseguimos revelar os movimentos temporais dentro de uma rede social e cultural, mediada pela composição destas imagens, desvelado pelo olhar do historiador. Imagens que revelam um tempo turbulento e descontínuo de uma historicidade fragmentada, mas também em construção, de um tempo saturado de “agoras”.

Na materialidade dessas imagens foi possível encontrar, a identificação e confrontação de experiências temporais multifacetadas sobre os processos de construção social, cultural e político da cidade de Florianópolis por meio de seus entrelaçamentos culturais, reatualizado nos mais diversos momentos históricos. Pois, essas imagens formaram uma visualidade das visibilidades que atravessaram (e ainda atravessam) os diversos estratos temporais das próprias imagens ao expor a confluência e tensão de espaços culturais e pessoas diversas; espaços de memória e da violência entre vencedores e vencidos, ao identificar os movimentos dos fios e dos seus entrelaçamentos de seu tecido social e histórico; de uma cultura construída, mas também constituída por diferentes constelações dos mesmos elementos que perpassam pela população da capital catarinense, como um fio condutor para compreender a interação destes grupos de pessoas.

Referências

BARTHES, Roland. A mensagem fotográfica. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da cultura de massa: introdução. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 325-340.

BELTING, Hans. Por uma antropologia da imagem. Concinnitas, v. 2, n. 8, p. 64-78, 2005.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984.

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