Dossiê
Pestes, quarentenas, pandemias e pandemônios: visões e visualizações da doença ontem e hoje
Pests, quarantines, pandemics and pandemonia: visions and visualizations of disease yesterday and today
Pestes, cuarentenas, pandemias y pandemonios: visiones y visualizaciones de la enfermedad ayer y hoy
Registros e manifestos acerca de situações de contágios extensivos das mais diversas moléstias, sejam médicos, poéticos, crônicos, legais ou religiosos, encontram-se em todos os tempos históricos. Homero em sua “Ilíada” e Tucídides em sua “História” falavam da λοιμός (praga), a ser enviada por deuses ou trazidas pela guerra (Mitchell-Boyask, 2008). O segundo, nos passos do poeta Hesíodo, relacionava λοιμός e λιμός (grande fome), sem necessitar mais do que de uma similaridade fônica para apontar a consequente devastação econômica decorrente de uma epidemia.
Se, ainda pensando nos ecos culturais da antiguidade grega, hoje nos recordamos da esperança que Sófocles pôs em boca dos tebanos, apresentando-os crentes de que Édipo viria a cumprir determinações oraculares e salvar a cidade da pestilência e do morticínio, isso também nos lembra que ainda em nosso tempo recorremos ao divino perante a catástrofe que se desenrola aos nossos olhos terrenos. A causa e salvação ainda podem estar em nossa relação com as divindades que nos regem. A oração, a penitência, a maldição dos transgressores, nas formas e maneiras como praticadas nos diversos sistemas religiosos do globo, chegam-nos por meios noticiosos online ou televisivos, assim como nos chegaram e nos causaram pasmaceira as imagens do Papa ditando missa na solidão escura do Vaticano, em 27 de março de 2020. Com poucos escrúpulos, tele-evangelizadores apresentam curas duvidosas, apostando na formulação de uma ambiguidade entre as propriedades físicas e espirituais de seus elixires, assim como causando escândalo não somente entre cientistas e leigos, mas também entre seus correligionários. O conflito entre medidas sanitárias governamentais, que derivam de recomendações científicas, e o exercício da fé, também marca presença forte. Abram-se igrejas, fechem-se igrejas, evite-se a aglomeração, porém o fiel não pode ficar sem culto... No contexto da infecção epidêmica por Yersinia pestis na Inglaterra do século XVII, fervorosas imprecações foram publicadas por ministros anglicanos, do grupo chamado de “nonconformists”, contra os ministros regulares que fugiram da cidade, deixando seus fiéis sem cultos. Os “nonconformists” assumiram os púlpitos, mesmo que na rua por vezes, e deram cultos, sem condição de saber que suas ações contribuíam mais para o contágio entre a população, porém certos de que estavam cumprindo a sua missão enquanto líderes religiosos e de que estavam atendendo ao dever deixado de lado por aqueles que, segundo um amargo panfleto anônimo do momento, “tinham o púlpito por caixão e a batina por mortalha” (Miller, 2017, p. 36). De outras terras e tempos longínquos, tem-se o registro da reação à infecção massiva (provavelmente) por varíola acontecida no décimo quarto ano de governo do imperador japonês Bidatsu (585 a.C): culpou-se a introdução do budismo e seus ídolos na ilha, propiciada pelo recente contato com a Coreia, da qual chegou dita religião, sendo os cidadãos do império punidos pelas tradicionais deidades Shinto; a população, conta-se, recorreu à destruição das imagens budistas (Kohn et al., 2008).
Noutra perspectiva, pode-se dizer que nunca acompanhamos com tanto fervor as estatísticas de contágio e mortalidade por doenças infecciosas. Numa época em que a visualização de dados tornou-se tão importante, consultamos a disposição gráfica dos números produzidas por instituições de pesquisa. Johns Hopkins University ou Worldometers, quem entrega melhor a visualização dos dados? Qual nos permite “ver” melhor os efeitos do invisível?


Cada época lidou a seu modo com suas condições de produção gráfica. Para mencionar novamente a “peste” inglesa do XVII, o ano de 1666 viu essa “General Bill of Mortality” (levantamento geral de mortes):

A folha estatística de então permite a disposição de um gravado e um poema no meio da página, cujos últimos versos dizem: “The Plague among us is not yet removed / Because that sin of us is still beloved / Each spectacle of Death and Funerall / Puts thee and I in mind, We must die all”, ou seja, “Dentre nós, a Praga inda não se foi / Pois pecado entre nós inda é amor / Cada cenário funesto e mortal / Lembra de vós e de mim o final”. Versos, pois, que dão voz ao lamento cifrado das colunas numéricas; o gravado, dando sentido humano à estatística, com silhuetas prostradas em meio ao ritual de carregar e enterrar corpos fora da cidade.
Quando o historiador George Kubler elaborava uma forma de pensar a história da arte, concluiu que dispor simples “períodos” ocupando em sequência o tempo cronológico era algo totalmente insuficiente, e preferiu pensar em “formas do tempo”, quer dizer, as formas como o tempo se inscreve nos objetos. Assim, aos objetos artísticos corresponderiam formas temporais distintas, caracterizadas pelos problemas que os artistas se propuseram e propõem a resolver. Desta forma, por exemplo, os pintores anônimos dos murais de Herculaneum e Boscoreale (I a.C) conectam-se com aqueles do século XVII e com Cézanne enquanto estágios sucessivos, separados por intervalos irregulares em um estudo milenar da estrutura luminosa da paisagem, o qual provavelmente continuará por muitas gerações, em ritmos ainda igualmente imprevisíveis (Kubler, 2008 [1962]). Talvez o momento que vivemos hoje seja capaz de lançar luz a essas continuidades fragmentadas das diferentes maneiras de se viver, imaginar, ver e registrar os momentos pandêmicos.
O presente Dossiê convidou, pois, pesquisadoras e pesquisadores a olharem de forma interdisciplinar, tanto para o tempo corrente como para o passado, e a proporem as relações, as reminiscências, continuidades e descontinuidades entre as diversas manifestações, discursivas, artísticas e mediáticas que emergem das experiências epidêmicas/pandêmicas que afetaram e afetam a humanidade.
Submissões do Brasil e o do exterior atenderam ao convite, e ora publica-se uma seleta de 13 textos, organizados em grandes temas: Imprensa, Educação, Imaginário, Histórico e Estudo de Caso.
No tema Imprensa, têm-se “Pandemias na ordem do dia: Covid-19 e a gripe espanhola (re)tratada na imprensa brasileira”, de Maycon Dougllas Vieira dos Santos (USP) e Thiago Barbosa Soares (UFTO), assim como “Da ‘doença misteriosa dos homossexuais’ à Aids: notas sobre Aids na Revista Manchete - década de 1980”, de Georgiane Garabely Heil Vazquez (UEPG) e Frederico Renan Hilgenberg Gomes (UEPG). Desde a perspectiva da Análise do Discurso, o primeiro texto compara o tratamento dado à pandemia de Covid-19 com o tratamento dado pela imprensa à pandemia de Gripe Espanhola. O segundo texto aborda o tratamento dado pela “Revista Manchete”, nos anos 1980, ao fenômeno da pandemia de HIV; por meio de uma seleção e uma análise de reportagens, a pesquisa apresenta as transformações discursivas no tratamento da problemática ao longo da década.
No tema Educação, apresentam-se “A reciprocidade dos sentidos compartilhados: ideias para humanizar as relações sociais no Ensino Superior”, de Rodrigo Aparecido Vicente (Unicamp), assim como “Guarani, Kaingang e Xetá: o curso de pedagogia para os povos indígenas/bilíngue da Unicentro na terra indígena Rio das Cobras em tempos de pandemia”, de Vanessa Toledo Domingos, Solange Aparecida de Oliveira Collares e Rodrigo dos Santos, todos da Unicentro. O pesquisador da Unicamp, considerando o contexto do ensino remoto emergencial, levanta questões e aponta caminhos para abordar o problema das condições psicossociais enfrentadas pelos envolvidos no processo. Os pesquisadores da Unicentro tecem reflexões acerca do estado presente e dos desafios imediatos, também no contexto do ensino remoto, para um curso de Pedagogia que atende a três povos indígenas.
Para o tema Imaginário, estão presentes três textos, abordando a relação entre memória e vestuário, o teatro e a poética do discurso. Em “O vestuário como suporte de memória: uma breve discussão sobre as vivências em tempos de pandemia”, Laiana Pereira da Silveira (UFPel), Nicolli Bueno Gautério (UFPel) e Vanda Leci Bueno Gautério (Prefeitura Municipal de Rio Grande) abordam a expressão das relações afetivas com o vestuário próprio durante o período de isolamento, analisando o emprego da roupa como suporte da memória por parte de usuários do aplicativo Instagram. Mateus Dagios (UFRGS), em “Doença na recepção do mito de Filoctetes no regime militar brasileiro: Ramom, o filoteto americano de Carlos Henrique Escobar”, reconstrói a relação entre o isolamento do adoentado Filocletes, na tragédia antiga, e Ramom, da peça de Escobar, durante o período ditatorial brasileiro. Ainda, em “Poéticas pandêmicas no corredor de vozes: os discursos da apropriação e da reciclagem”, Elisabete Alfeld (PUC/SP) examina como a arte recicla os procedimentos de comunicação acerca da pandemia, ressignificando mensagens, transformando-as em suas formas e conteúdos.
Constando no tema Histórico, Marcus Pierre de Carvalho Baptista, Francisco de Assis de Souza Nascimento e Elisabeth Mary de Carvalho Baptista, pesquisadores da UFPI, resgatam e analisam a documentação relativa à epidemia de cólera no Piauí do século XIX, com seu artigo “‘De todos os pontos partirão reclamações’: cólera e medo no Piauí (1862-1866)”. Em “Retratando a peste no Brasil: imagens do passado, irrupções no presente”, João Victor Rossetti Brancato (Unicamp) e Rosangela de Jesus Silva (UNILA) analisam ilustrações e fotografias da imprensa do início do século XX, em torno da Gripe Espanhola, comparando-as com seus análogos dos dias correntes, em torno da pandemia de Covid-19. Joacir Navarro (Unespar), com o artigo “Coqueluche e mortalidade infantil em Paranaguá (1855-1858)”, resgata e examina os registros de óbito infantil por coqueluche em documentos paroquiais do século XIX na cidade de Paranaguá, Paraná.
Por fim, no tema Estudo de Caso, com um estudo de dados e correlações estatísticas, desde a Argentina, Javier Gómez (Universidad Nacional del Litoral), em seu “Análisis territorial de la incidencia de Covid-19: modelización e índice de calidad de vida em Santa Fe, Argentina”, examina as dinâmicas entre incidência de Covid-19 e o índice de qualidade de vida em uma perspectiva espaço-temporal. Em “Morte, ritos fúnebres e luto na pandemia de Covid-19 no Brasil”, de Andreia Vicente da Silva (Unioeste), Claudia Rodrigues (UNIRIO) e Rachel Aisengart (Instituto de Estudos de Saúde Coletiva/UFF), explicitam como as diretrizes dos poderes constituídos, em torno dos ritos fúnebres, afetaram as práticas e sentimentos funerais durante a pandemia de Covid-19. No mesmo sentido, no artigo “A Covid-19, o luto e a gestão do corpo morto pela prefeitura de Maringá-PR”, Marcia Regina de Oliveira Lupion (UEM) analisa as mudanças nos rituais fúnebres desencadeadas pelas publicações de atos administrativos e suas consequências para quem se despede de seus mortos.
Cada uma das contribuições cobriu aspectos, do passado e do presente, do fenômeno pandêmico. Os olhares, provindos de diversas vertentes e especialidades, compõem um quadro interdisciplinar de reflexões, objetivo primeiro da Revista NUPEM. Com a certeza do interesse e relevância acadêmica dos estudos aqui apresentados, o convite que se faz é à leitura, atenta e crítica, dos textos ora apresentados.
Com agradecimentos a quem fez chegar seus trabalhos ao chamado outrora feito, à extensa lista de pareceristas que se debruçou sobre os escritos e emprestou seu valioso crivo, assim como à diligente equipe editorial da revista, despedem-se aqui os organizadores do presente dossiê.


