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Da “doença misteriosa dos homossexuais” à Aids: notas sobre Aids na Revista Manchete - década de 1980
From “the mysterious disease of homosexuals” to AIDS: notes on AIDS in the Manchete Magazine - 1980s
De la “misteriosa enfermedad de los gayes” al SIDA: notas sobre el SIDA en la Revista Manchete - década de 1980
Revista NUPEM (Online), vol. 13, núm. 30, pp. 26-45, 2021
Universidade Estadual do Paraná

Dossiê


Recepción: 08 Mayo 2021

Aprobación: 05 Julio 2021

DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2021.13.30.26-45

Resumo: O artigo tem como objetivo analisar como a “Revista Manchete” abordou a pandemia de Aids na década de 1980 no Brasil. Foi realizado um levantamento dos textos da revista que abordavam a pandemia, tendo sido levantados 260 textos durante a década. Esses textos, por sua vez, foram divididos em 19 categorias e a categoria com maior número de reportagens foi a de “Ciência, medicina e saúde” com 66 resultados. Foram selecionadas quatro reportagens que tiveram destaque dentro da revista ao longo dos anos 1980: a primeira reportagem sobre a Aids; a série de reportagens sobre a Aids em que a “Manchete” foi premiada; e a retrospectiva sobre os dez anos de pandemia. Conclui-se que a revista realizou uma mudança no discurso entre a relação Aids e sexualidade. A “Manchete” utilizou-se muito do discurso médico para fundamentar seus textos, porém apresentou um discurso polifônico e essa polifonia se estende a Aids.

Palavras-chave: HIV/Aids, História das doenças, Revista Manchete.

Abstract: The article aims to analyze how the Manchete Magazine approached the AIDS pandemic in the 1980s. A survey of the magazine's texts that addressed the pandemic was carried out, a total of 260 texts being surveyed during the decade. These texts were divided into 19 categories and the category with the largest number of reports was Science, Medicine and Health with 66 results. Four articles, which were highlighted within the magazine throughout the 1980s, were selected: the first report on AIDS; the series of award-winning reports on AIDS by the Manchete Magazine; and the retrospective on the ten years of the pandemic. It is concluded that the magazine conducted a change in discourse regarding the relationship between AIDS and sexuality. The Manchete Magazine employed much of the medical discourse to support its texts, but it presented a polyphonic discourse and this polyphony extends to AIDS.

Keywords: HIV/AIDS, History of diseases, Manchete Magazine.

Resumen: El artículo tiene como objetivo analizar cómo la Revista Manchete abordó la pandemia del SIDA en los años ochenta. Se realizó un relevamiento de los textos de la revista que abordaban la pandemia, se relevaron un total de 260 textos durante la década. Estos textos, a su vez, se dividieron en 19 categorías y la categoría con mayor número de informes fue Ciencia, Medicina y Salud, con 66 resultados. Se seleccionaron cuatro artículos que fueron destacados dentro de la revista a lo largo de la década de 1980: el primer informe sobre el SIDA; la serie de reportajes sobre el sida en la que fue premiada Manchete; y la retrospectiva de los diez años de la pandemia. Se concluye que la revista hizo un cambio en el discurso entre la relación del SIDA y la sexualidad; Manchete utilizó mucho discurso médico para sustentar sus textos, pero presenta un discurso polifónico y esta polifonía se extiende al SIDA.

Palabras clave: VIH/SIDA, Historia de las enfermidades, Revista Manchete.

Introdução

A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) é o estágio mais avançado da infecção causada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), onde o sistema imunológico é afetado por esse vírus e acaba deixando o corpo suscetível às mais diversas doenças. Sabe-se que o HIV já infectou mais de 75 milhões de pessoas ao redor do globo, sendo que 39 milhões foram vítimas fatais das complicações causadas pela Aids, tornando o HIV um dos agentes infecciosos mais letais do planeta e a Aids a maior pandemia do século XX (Timermam; Magalhães, 2015; Feitosa et al., 2018).

Os primeiros casos noticiados ocorreram nos Estados Unidos da América (EUA), no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980. Os grupos inicialmente mais afetados por essa nova patologia foram grupos já estigmatizados, como negros, gays, transexuais travestis, usuários de drogas injetáveis (UDI) e profissionais do sexo. No Brasil, a pandemia começou a se alastrar a partir de 1980, tendo a comprovação de casos somente em 1982. De acordo com Nascimento (2005) e Dias (2012), as considerações sobre a Aids realizadas nos EUA foram absorvidas no Brasil, inclusive a ideia de grupo de risco.

Hoje é de conhecimento da comunidade científica, bem como de boa parte da população, que o quadro clínico da Aids é em decorrência de um vírus, e que as principais formas de transmissão do HIV ocorrem através do contato sexual, de sangue infectado e por via vertical. Porém, no início da década de 1980 não havia maiores constatações sobre a Aids, inclusive nem possuía tal nome. A única informação que se tinha é que afetava majoritariamente homossexuais masculinos.

Devido a mais completa desinformação e realizando conclusões apressadas sobre a infecção sexualmente transmissível (IST), algumas concepções médicas sobre a nova pandemia foram equivocadas, ou mesmo cheias de moralismo como, por exemplo, conceituar a Aids com nomenclaturas “tais como ‘pneumonia gay’, ‘câncer gay’, ‘síndrome gay’ ou mesmo Gay Related Immune Deficiency (Grid) - imunodeficiência ligada ao homossexualismo” (Nascimento, 2005, p. 82).

Não foi somente a medicina que significou a pandemia de Aids. Os meios de comunicação de massa tiveram papel importante, seja informando sobre a pandemia ou criando sentidos para ela (Dias, 2012), algo que Fausto Neto (1999, 2000) denomina como a contaminação da Aids pelos discursos sociais, no caso em questão, o discurso da imprensa.

Silva e Rautenberg (2014) explicitam que a história do século XX não seria a mesma sem a participação dos meios de comunicação, não somente como informadores, mas também como atores da história, principalmente no Brasil, pois “a história do Brasil e a história da imprensa caminham juntas, se autoexplicam, alimentam-se reciprocamente, integrando-se num imenso painel” (Martins; Luca, 2008, p. 8). E assim também foi com a pandemia de Aids.

Quando a Aids chega ao Brasil, a sociedade já possuía um conhecimento prévio sobre a epidemia, pois “uma concepção da doença já estava em constituição” devido, em grande medida, ao trabalho da imprensa, que já noticiava abundantemente os casos dos EUA (Toitio, 2016, p. 57).

A Aids não apenas se manifestou nos corpos das pessoas que desenvolveram o quadro clínico, mas também no tecido social, pois além de uma problemática da área biológica, também se constituí como uma problemática cultural e discursiva. A imprensa desempenha um papel de edificar, através de discursos, “conceitos e referências”, que vão se tornando parte do cotidiano (Fausto Neto, 1999).

Para Foucault (1996), discurso é a ação de falar, transmitir, manter, articular e circular ideias, não apenas através de palavras, mas independentemente do meio: sonoro, escrito, imagético, entre outros. Sendo assim, o discurso:

entende-se como processo social, onde se materializa na língua. O discurso apresenta-se como objeto teórico; portanto, longe do compromisso com o senso comum. O discurso é o objeto que nos permite observar as relações entre ideologia e língua, bem como os efeitos do jogo da língua na história e os efeitos desta na língua. (Ferreira: 2003, p. 193). É através do discurso que se vai compreender como um material simbólico produz sentidos e como o sujeito se constitui (Branco; Diez, 2017, p. 8.413).

Para a formação do discurso se leva em conta três pontos: as formações ideológicas, que são formadas a partir dos conflitos de classes; as formações discursivas, determinadas pelas ideológicas e balizam o que pode e o que não pode ser dito; e as condições de produção, que dizem sobre o contexto histórico e social em que o discurso foi produzido (Brandão, 2004).

Para Foucault (1996), para se compreender o discurso seria preciso considerar os procedimentos externos, procedimentos internos e as condições de funcionamento do discurso, cada parte possuindo suas próprias especificidades.

Os procedimentos externos são divididos em três: primeiro, a interdição, também podendo ser entendido como tabu; aqui é especificado o que pode e não pode ser dito; segundo, a separação/rejeição, onde é apresentado quem está habilitado ou não para proferir o determinado discurso, como, por exemplo, um médico sobre uma nova doença é a figura mais preparada para poder falar sobre; e terceiro, a oposição entre verdadeiro e falso apresentaria quais discursos seriam validados, verdadeiros.

Os procedimentos internos também são divididos em três: primeiro, o comentário, onde um discurso é revisitado e são produzidos novos discursos tendo como base esse primeiro discurso; segundo, o autor ou “Unidade de origem de significações” - aqui o discurso e autor se confundem, muitas vezes sendo entendidos como único elemento, como se resumindo o indivíduo em relação ao seu discurso; terceiro, a organização das disciplinas, em que os discursos são muitos e precisam ser categorizados.

Já as condições de funcionamento do discurso são divididas em quatro: primeiro, o ritual, que estabelece a organização de quem e como pode produzir determinado discurso; segundo, a sociedade do discurso, que organiza, circula e mantêm determinado discurso em um determinado grupo, mas que também restringe o discurso a esse grupo; terceiro, as doutrinas, que estipulam as regras de funcionamento desses grupos; por fim, a Educação, que é uma forma política de manutenção e propagação dos discursos, viabilizando o contato dos indivíduos com o discurso.

A irrupção da Aids ilustra como ocorre os mecanismos de produção e disputa de sentidos entre as instituições. “Quando falam da Aids, as instituições levam em conta um problema de natureza política e o outro de natureza simbólica” (Fausto Neto, 1999, p. 15). Sendo assim, como aponta Fausto Neto (1999), e também Capelato (1988), a imprensa não apenas relata ou comenta os fatos, mas atua como produtora do real.

Seria repetitivo dizer, mas é fundamental reiterar que a Aids toma uma visibilidade e face próprias à medida que vai sendo publicizada pelas práticas midiáticas. Esse fato aponta para a importância das mídias como um dos dispositivos instituidores do espaço público, na medida em que, pela sua ação ritualística e cotidiana, as mídias vão, não só anunciando a noção de realidade, mas convertendo-se, elas mesmos, como lugar pelo qual a realidade não só passa por elas, mas também se faz nelas. (Fausto Neto, 1999, p. 16).

No início da epidemia ainda não havia certezas sobre a nova patologia, então vários discursos diferentes, e algumas vezes conflitantes, começam a surgir sobre a Aids, uma polifonia de discursos. Segundo Machado (2006) quem define o conceito de polifonia é o filósofo russo Mikhail Bakhtin. Para o filósofo, a polifonia se aplicaria para aqueles textos onde é possível identificar várias vozes, onde não há um consenso. Ainda, de acordo com Machado (2006, p. 6, grifo nosso), o “discurso jornalístico é, idealmente, polifônico - por ele circulam diversas vozes. [...] O jornalismo é, por definição, um campo de interação”.

Porém, a autora ainda nos lembra que não é somente porque há vários sujeitos falando e opinando em um texto que esse será um discurso polifônico, para verificar se um discurso é polifônico ou monofônico é preciso investigar além de quem está dizendo, como está fazendo isso e os significados deste discurso.

Nesse sentido, só existe conhecimento público sobre a Aids devido ao papel desempenhado pela imprensa, ou seja, devido aos seus “protocolos discursivos” que lhe caracterizam, pois sem essa imprensa isso não seria possível (Fausto Neto, 1999). Contudo, a Aids é inserida na mídia obedecendo uma série de passos que são definidos pela política editorial de cada jornal. “Na construção do fato jornalístico interferem não apenas elementos subjetivos de quem o produz, mas também os interesses aos quais o jornal está vinculado” (Capelato, 1988, p. 22). E é assim que a Aids invade o corpo da revista, nesse caso, a Manchete.

Desta forma, este artigo buscou problematizar como a pandemia de Aids foi abordada pela Revista Manchete. Esse periódico foi um dos protagonistas no processo de introduzir a população brasileira ao que seria a nova enfermidade que vinha atemorizando o mundo, antes mesmo de terem casos comprovados no Brasil. Já em 1982, a revista veiculava matérias sobre um “mal” que assombrava homens gays. O objetivo da pesquisa foi compreender como a Revista Manchete construiu um discurso em torno da pandemia de Aids nas suas reportagens, articulando aos estudos de gênero e sexualidade.

A Manchete era uma revista de publicação semanal, do estilo fotorreportagem, que possuía circulação nacional de 1952 até 2007, sendo inclusive líder de vendas do seu segmento entre as décadas de 1960 e 1970. Ela não economizou tinta e papel para escrever sobre a Aids. Nossa pesquisa realizou levantamento apenas entre os anos de 1980 a 1990, e encontramos mais de duzentas reportagens, entrevistas, artigos de opinião e cartas dos leitores sobre a pandemia. A escolha da baliza temporal se dá pelo fato de ser nessa década o registro da Aids como pandemia, bem como os primeiros casos no Brasil.

Em termos metodológicos, esse artigo foi estruturado a partir de pesquisa documental. A documentação primária selecionada, Revista Manchete - década de 1980, passou por seleção temática, sendo selecionadas matérias que versaram exclusivamente sobre a Aids. Ao todo foram levantadas 260 reportagens, entrevistas, editoriais, artigos assinados e carta dos leitores sobre a pandemia. Por sua vez, esse material foi examinado e catalogado em tabelas, facilitando a visualização e acesso aos textos da Manchete, não somente para esse artigo, mas também para pesquisas futuras.

Em relação aos textos sobre a Aids na revista, foi realizada a leitura sistemática do material levantado e, com essa leitura, os textos foram divididos por nós em temas de acordo com suas aproximações. Foram levantados 19 temas centrais, sendo os três mais numerosos os de “Ciência, medicina e saúde”, “Arte e famosos” e “Sexo e sexualidade”.

Para a análise foram selecionadas as matérias com mais relevância e que ocuparam mais espaço da revista, dividindo-as em três momentos distintos, sendo eles início, meio e fim da década de 1980. Nesta sistematização, levando em consideração a importância daquele texto jornalístico dentro da temática em questão, como: a primeira aparição da Aids na Manchete, a série de reportagens que rendeu prêmio para a revista e a retrospectiva dos dez anos de pandemia. Isso se justifica por dois motivos: primeiro, em relação ao número extenso de reportagens, impossibilitando de serem analisadas todos os textos em um único artigo e segundo, foi pensado em dividir a década entre esses três períodos para acompanhar como a Manchete foi construindo discursivamente a Aids nas suas páginas com o passar do tempo.

Aids e a Manchete: uma vista aérea

A Manchete se debruçou, e muito, sobre a pandemia de Aids e esse interesse pode ser entendido por duas questões: a primeira relacionada a urgência de informações sobre a Aids e a segunda relacionada com os espaços ocupados por determinadas temáticas. Quando a Manchete abordava temas na área das ciências, assuntos que tratavam de Saúde e Biologia ocupavam mais espaço na revista, cerca de 42% de acordo com Andrade e Cardoso (2001)1. O ano com menos incidência foi o de 1982, como pode ser visualizado no gráfico 1, bem como o ano que mais teve reportagens, 1987:


Gráfico 1:
Distribuição das reportagens e cartas dos leitores sobre a pandemia de Aids na Revista Manchete na década de 1980
Fonte: Dados da pesquisa.

Visualizando o gráfico 1 pode-se notar que a partir de 1985 há uma certa estabilidade de reportagens sobre a Aids até o final da década. A pouca incidência de reportagens sobre HIV/Aids no início da década se deve, em primeiro lugar, por serem os anos iniciais da pandemia e com poucas informações sobre essa nova patologia. Também é possível mencionar que até meados da década de 1980 a maioria das reportagens da Manchete tratou da Aids em outros países, como os Estados Unidos.

Já o segundo ponto é que mesmo os primeiros casos acontecendo no Brasil em 1982, teríamos aumento significativo, a ponto de chamar atenção de governantes e da mídia, a partir do final de 1984 e 1985, quando a Aids avançou em território brasileiro. É em 1985 que temos o primeiro caso de uma pessoa internacionalmente famosa vítima da Aids, Rock Hudson2, sendo também o ano em que começaram a ter cartas dos leitores versando sobre a Aids na Manchete. A primeira carta foi veiculada na edição 1.736, o que, de certa forma, apresentaria uma maior preocupação do público com a nova patologia a partir desse ano. As pesquisas sobre a Síndrome estavam avançando durante a década, o que levou cientistas e médicos a terem informações mais embasadas e a imprensa a levar informações mais qualificadas para o público em geral.

As temáticas relacionadas a Aids durante a década foram as mais diversas, sendo possível que uma mesma reportagem tratasse sobre mais de um tema. Por exemplo, quando um texto versava sobre as formas de prevenção e tocava na questão da sexualidade. Como citado acima, foram dezenove temáticas levantas, como pode ser visualizado no gráfico 2, sendo as temáticas “Ciência, medicina e saúde” (66); “Arte e famosos” (36); e, “Sexo e sexualidade” (35), as mais numerosas.


Gráfico 2:
Principais temas relacionados a Aids na Revista Manchete
Fonte: Dados da pesquisa.

Em relação aos principais temas que a Aids se relaciona na Revista Manchete, podemos pensar em alguns pontos. É evidente, como supracitado, que a revista baseia muito o que escreve sobre a Aids em falas de especialistas, médicos e cientistas, como aponta Fausto Neto (1999). Os jornais, e aqui podemos acrescentar a Revista Manchete, preferem as fontes do campo da saúde para falar sobre o tema, inserido estas fontes como as que podem falar com exclusividade sobre a nova patologia como vozes autorizadas. A imprensa, no geral, se preocupa com seus “leitores”, mas é nas suas fontes, principalmente de instituições ou profissionais especializados, que constroem sua credibilidade, permitindo o uso de “argumentos de autoridade”, mas que também não são unânimes, ainda mais em relação a Aids nos anos 1980 (Fausto Neto, 1999, p. 33).

A fala de pessoas soropositivas aparece menos em comparação com falas médicas, e em relação aos temas, ocupa a sexta colocação. Porém, quando aparece, em sua maioria, se trata de pessoas famosas ou conhecidas do grande público. Na década de 1980 foram poucos os momentos que a Manchete trouxe os relatos de pessoas anônimas que eram portadoras do vírus. Em relação aos famosos, que ocupam a segunda colocação nos temas publicados sobre Aids na Manchete, pode-se apontar o fato que tal revista tinha como uma de suas principais características ser um semanário de variedades, isto é, não se prendia a uma área em específico. Contudo, a vida dos famosos e artistas era algo muito abordado nas páginas da revista e não seria diferente em relação a Aids.

Antes de partir para análise da principal temática, acreditamos que seja necessário apontar que os significados que a Manchete operou sobre a Aids não representa como toda a sociedade respondeu a pandemia, muito menos o Brasil, mas sim como um meio de comunicação construiu discursivamente a pandemia em suas páginas. Outro fator é que, ao analisar o material levantado, é necessário entender que ela também se limita localmente, embora tenha circulação nacional. É de um lugar geograficamente delimitado que ela fala, no caso do eixo Rio-São Paulo. São Paulo se deve por ter sido a primeira cidade no país a reportar os casos de Aids, em 1982, bem como criar o primeiro programa de saúde de enfrentamento da pandemia, além de ser um importante polo comercial, político, cultural e econômico do país. Assim como o Rio de Janeiro, local onde a revista nasceu e se desenvolveu, que vai ter um grande número de soropositivos, principalmente em relação a casos de transfusões de sangue - segundo a própria revista -, e por ser, também, uma das principais cidades do país, sobretudo em relação ao turismo.

Passamos agora a analisar as reportagens selecionadas sobre temática de “Ciência, medicina e saúde” na Revista Manchete.

A misteriosa doença dos homossexuais

A primeira reportagem que faz referência a Aids, em 09 de janeiro de 1982, trazia o título “A misteriosa doença dos homossexuais”, e relatou basicamente um surto de sarcoma de Kaposi (SK), nos EUA, que estava afetando principalmente homossexuais masculinos, tendo, nos últimos seis meses, atingido 95 pessoas; mais de 90% delas eram gays. O índice de mortalidade passava do 20%. Contudo, essa era apenas uma dentre várias patologias que tinha afetado homossexuais do sexo masculino, como Pneumonia pneumocística, Herpes simplex e citomegalovírotico. Praticamente doenças que não afetariam seres humanos com um sistema imunológico funcionando normalmente. Com isso, os médicos tinham uma leve noção que a causa dessas infecções estaria ligada a uma falha do sistema imune.

A reportagem da “Time, noticiada na Manchete, apontou que as autoridades sanitárias passaram a perceber que a causa de todas essas infecções seria a mesma, por alguma doença que eles suspeitavam ser sexualmente transmissível. Isso se deve pois, segundo a reportagem, “quase todas as vítimas do sarcoma de Kaposi vêm de cidades, com comunidades numerosas de homossexuais, como Nova Iorque, San Francisco e Los Angeles. Muitos deles registram um elevado nível de atividade sexual, com diversos parceiros” (Revista Manchete, 1982, p. 26).

Isso levou a definirem esta causa como Síndrome do Intestino Gay, devido a diarreia ser um dos sintomas, e, principalmente, tendo como base a teoria de sobrecarga imunológica, em que os médicos afirmavam que devido ao alto número de parceiros sexuais que os homens gays tinham, eles estariam supostamente mais expostos a “doenças venéreas”, e acabavam contraindo muitas delas, levando o sistema imunológico à exaustão.

Nesta primeira reportagem da Manchete, temos uma tradução de uma matéria produzida pela “Time Magazine”, como ocorreu outras vezes na revista. Essa abordagem da epidemia em outros países sempre esteve presente nessa década na revista, mas perdeu força quando a Aids começou a avançar no território brasileiro.

A reportagem produziu um novo discurso com base no discurso médico-científico, um comentário. Aqui também fica evidente quem está habilitado para falar sobre a “misteriosa doença dos homossexuais” e quem estaria trazendo a verdade sobre o assunto: os profissionais da saúde. Tanto que todas as falas que foram transcritas na matéria são de médicos, cientistas ou periódicos científicos: “New England Journal of Medicine”; Henry Masur, clínico do New York Hospital; Dr. Michael Gottlieb da Universidade da California de Los Angeles (UCLA); Robert Bolan, médico do Hospital de San Francisco; e o clínico Daniel William.

Nessa primeira reportagem fica delimitado quem seriam as pessoas em que a tal “misteriosa doença” atacaria: homossexuais masculinos. Essa afirmação não vem apenas no título da reportagem, na Manchete, mas também no corpo do texto, onde o traço que ligaria os primeiros infectados eram suas sexualidades.

Aids - a tragédia no Brasil

A série de reportagens, “Aids - a tragédia no Brasil”, escrita por Márcia Mello Penna e com fotos de Carlos Humberto TCD, foi a ganhadora do Prêmio Abramge3 (Associação Brasileira de Medicina de Grupo) de Jornalismo em 1988, - a série de reportagens foi veiculada nas edições da Manchete em outubro de 1987 - segundo consta uma carta do secretário, à época, da Abramge, Arlindo Almeida, na edição 1910, de 26 de novembro de 1988. Foi devido a isso, e a extensão das reportagens, que esta foi escolhida para ser analisada nesse texto.

A primeira reportagem é de 24 de outubro de 1987, edição 1.853, e tem como subtítulo, “Educação: por enquanto, o único remédio”. Essa reportagem vai tratar justamente de formas de prevenção à Aids, sendo a principal delas a educação. Foi decidido começar por essa pois é necessário entender como foi construída essa série de textos.

MANCHETE dá início aqui a um documento excepcional. Durante dois meses a repórter Márcia Mello Penna e o fotógrafo Carlos Humberto TCD enfrentaram o medo e o preconceito, passando uma temporada no inferno. O inferno da Aids no Brasil. Valeu o esforço. Às vezes você ficará chocado, com um caso ou uma foto. Mas conhecerá uma realidade. É melhor que morrer na ignorância (Penna, 1987a, p. 36).

Começa o texto com a estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), que dali 10 anos - anos 2000 - cerca de 100 milhões de pessoas serão portadoras do vírus, sendo que metade irá morrer caso a ciência não ache uma saída. Mas a principal ideia desse texto é justamente que a informação é que vai ajudar a deter a disseminação do vírus.

É relatada a mudança de comportamento, sobretudo da população gay. Segundo a reportagem, os gays tiveram que repensar a sua forma de viver a sexualidade, a obrigação do amor - monogâmico - nos tempos da Aids. Isso afeta, sobretudo, a frequência em saunas gays e outros ambientes de socialização homossexual. Isso porque os homossexuais ainda representavam o maior grupo de pessoas com HIV/Aids.

A reportagem seguiu afirmando que os homossexuais representam 52% do total de casos, 23% ficam com os bissexuais, 5,6% com os heterossexuais e UDI com 5,8%. Estima-se, à época, que 1.600 brasileiros contraíram a Aids devido a comportamentos de risco, que poderiam ter evitado o contágio com medidas de prevenção.

No entanto, a reportagem deixa claro que mesmo a ciência precisando correr para encontrar um tratamento eficaz contra a Aids, nunca se soube tanto sobre uma patologia nova em tão pouco tempo. As principais medidas profiláticas foram listadas como sendo a diminuição de parceiros sexuais, uso constante de preservativos, bem como cuidado nas práticas de sexo oral e anal. Ainda, nessa reportagem, Paulo César Bonfim, pesquisador, técnico em patologia clínica e presidente do “Grupo de Apoio à Prevenção à Aids” (GAPA), afirmou: “é a primeira doença da história da humanidade que vem alterar o comportamento das pessoas”, e continua: “e justo depois de todo um movimento de liberação. Daí a confusão, a desinformação e a resistência. Por isso, nunca é demais falar que a AIDS não é uma doença da sexualidade, mas sexualmente transmissível, que não é preciso acabar com o exercício livre da sexualidade mas prevenir, passar a fazer sexo seguro” (Penna, 1987a, p. 42).

O GAPA começou como um grupo voluntário de pessoas leigas em medicina, mas que em 1987 já contava com apoio de assistência social dos hospitais. Segundo seus voluntários, era um trabalho muito desgastante, pois afetava muito o emocional. Paulo Bonfim ainda relatou que a campanha de prevenção do governo federal não era eficaz, um engodo. Em suas palavras: “os comercias só passam às 11 horas da noite, na hora em que as pessoas estão dormindo ou se contaminando” (Penna, 1987a, p. 44).

A reportagem ainda mostrou outros problemas decorrentes da Aids, como a culpabilização indevida dos homossexuais e o contágio da patologia nos presídios, bem como a falta de tratamento não só nas penitenciárias, mas também em alguns hospitais que aparentemente negavam atendimento a pacientes com Aids. Sem falar dos/das trabalhadores/as do sexo, que muitas vezes nem informações sobre a Aids possuíam, sendo um dos grupos mais afetados pela síndrome.

Já na edição seguinte, 1854, de 31 de outubro de 1987, o enfoque maior é na ciência, “A ciência nas frentes de batalha”. Nessa reportagem, Márcia Mello Penna trouxe a luta, além dos soropositivos, dos profissionais da saúde que atuaram na linha de frente da pandemia no Brasil. O primeiro choque da reportagem são as fotos de Carlos TCD:


Imagem 1:
Dois pacientes de Aids, um homem adulto e um bebê
Fonte: Penna (1987b).

A matéria já começa com a frase: “A Aids não escolhe vítimas: Depois dos adultos, ela avança contra os recém nascidos” (Penna, 1987b, p. 22-23). Essa frase inicial e as imagens de Carlos TCD tentaram mostrar o avanço da pandemia de HIV/Aids, não somente nos grupos de risco, mas também a toda a população, inclusive recém-nascidos. Outro dado bastante incômodo é o trazido por Herbert de Souza, sociólogo, hemofílico, fundador e presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), onde denunciou que a metade dos hemofílicos de todo o país eram portadores do HIV, sendo que a contaminação ocorre pela falta de testagem de sangue usado em tratamentos.

Mesmo com todo esse cenário de falta de testagem de sangue nos hemocentros brasileiros, com a Aids com uma letalidade de 49,7% dos doentes, e sabendo que apenas informando a população seria capaz de frear a alta de contágio, o Ministério da Saúde destinou em 1987 apenas 10% do total de pedidos de verbas para campanhas educativas em rádio, televisão e jornais de todo país, pois segundo a fala do secretário-geral do ministro da saúde, José Alberto Hermógones, “a Aids não é nossa prioridade” (Penna, 1987b, p. 25). Essa não foi nem uma colocação original, pois o ministro anterior teria dado uma declaração muito similar.

A reportagem continua e dá enfoque na situação de bebês e crianças com Aids. A estimativa de vida de bebês era de um ano após o diagnóstico da patologia. Muitas dessas crianças foram abandonadas pelas famílias, ou perderam seus pais vítimas da mesma causa que os condenava. Ao todo, de acordo com o Ministério da Saúde, havia 7 casos já confirmados de Aids em bebês. Profissionais de saúde relatavam o abalo psicológico e emocional de trabalhar com pessoas tão jovens, inclusive crianças, que estavam com os dias de vida contados: “É esta certeza virtual de morte de gente cada vez mais jovem que torna a doença tão estarrecedora e, os hospitais, um palco de desilusões. São homens e mulheres, entre 20 e 39 anos, predominantemente, emagrecidos e apáticos, que hoje transitam pelas enfermarias” (Penna, 1987b, p. 26).

Desde 1982, quando a Aids chegou ao Brasil, até outubro de 1987, já haviam registrados 2.102 casos comprovados, com 1.044 óbitos, uma taxa de quase 50% de letalidade, “ou três a quatro mortos por semana” (Penna, 1987b, p. 26). Mesmo com esse quadro, somente em 1986 é que os programas de prevenção à Aids começaram a ser levados a sério, alguns já existiam desde o início da pandemia, como o programa da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, coordenado pelo sanitarista Paulo Roberto Teixeira.

O próprio Ministério da Saúde admitia que a taxa de subnotificação da Aids chegava a 35%, o que em número absolutos, revelaria que entre 150 e 300 mil brasileiros eram portadores do HIV e não sabiam, assintomáticos. Sendo em São Paulo o maior número de casos conhecidos, 60% do total de casos do país.

São Paulo era o único estado do país com uma instituição de saúde totalmente voltada ao tratamento de pessoas com Aids, o Hospital Emílio Ribas II. Contudo, o hospital fechou em setembro de 1987, devido ao fim do contrato de aluguel do prédio e devido a uma greve, encabeçada pelos próprios médicos em busca de melhoria de condições de trabalho. São Paulo passou a contar com 70 leitos para Aids, sendo que o número total de pacientes era de 1.239 em 1987.


Imagem 2:
Pirâmide com o número de casos de pessoas com Aids, portadoras de HIV e assintomáticas
Fonte: Penna (1987b).

Foi relatado também a dificuldade em achar profissionais de saúde que estivessem dispostos a trabalhar com os doentes de Aids, pois exige uma equipe multidisciplinar, com especialistas de várias áreas. Segundo a Dra. Rosana del Bianco, que foi uma das diretoras de clínica do Emílio Ribas II, para a Manchete: “mas o problema é que existem dificuldades na área médica e paramédica em conseguir profissionais que se disponham a trabalhar com pacientes de Aids” (Penna, 1987b, p. 26). De acordo com a revista, a maioria dos pacientes soropositivos eram tratados rapidamente nos hospitais e recebiam alta, pois eles ficavam vulneráveis a qualquer infecção:

As infecções em espaços de tempo cada vez menores, combinadas com a certeza de que ainda não existe uma cura para a Aids, levam o paciente quase sempre ao desespero. “Já é uma pessoa marginalizada, já perdeu familiares e amigos apenas por ser homossexual ou fazer uso de drogas. Ficou feio, emagreceu, ficou com manchas - é uma sobrecarga física e psíquica muito grande. Então, ele se agarra na equipe de enfermagem. No início, era muito depressivo”, diz Maria Margarida. “Já tivemos pacientes que agarramos pelas calças antes que se jogassem pela janela. Era muito doloroso. A gente via a vida deles indo rio abaixo, íamos junto. Tivemos que ter apoio psicológico para aprender a remar rio acima novamente” (Penna, 1987b, p. 27).

Ainda de acordo com a reportagem de Márcia Penna, o Rio de Janeiro concentrava 18,2% do total de pessoas com Aids, porém apresentava um dos piores cenários em relação aos bancos de sangue, a maioria era privado e não seguia o controle de qualidade em seus hemoderivados. O que levava a 70% dos hemofílicos do estado estarem infectados, devido ao tratamento com sangue não testado. No Rio, o índice de contaminação no sangue estava por volta de 18%, em comparação, a taxa de Nova Iorque era de 1%. Sendo que o teste anti-Aids existe desde 1985, o que poderia ter extinguido esse problema no Brasil. Os hemocentros públicos são os mais seguros, mas eram poucos em comparação a necessidade.

Todos esses problemas giravam em torno de um maior, a falta de repasses públicos para pesquisas e tratamentos, pois esse problema de testagem do sangue, em 1987, poderia ser resolvido se houvesse quem os produzisse no país, como a Fiocruz que havia desenvolvido um teste nacional, mas o projeto não caminhou pela falta de verbas.

A azidotimidina (AZT) ainda era a única droga no mundo que apresentava melhores resultados no tratamento dos pacientes, muito embora não seja sinônimo de cura e apresentava sintomas colaterais sérios. Porém, no Brasil, o que agravava a situação da Aids era justamente a desestruturação do sistema de saúde, onde as verbas não chegavam, ou eram poucas.

Aqui temos dois textos de uma mesma série de reportagens, mas que tinham um enfoque diferente em cada uma. A escolha dessas duas matérias se deve a relação com o tema “Ciência, medicina e saúde”, mas também devido ao prêmio que essa série recebeu. O prêmio funcionou como uma legitimação de um bom trabalho desempenhado pela repórter e fotografo à época e por ser informativo, uma validação por parte da área da saúde do discurso produzido pela revista. Sendo assim, a revista não estava apenas habilitada para escrever sobre a Aids, mas como também era um espaço seguro para isso.

Na edição 1.853, o enfoque é educação e informação, que funcionava como a principal forma de prevenção contra o vírus. Assim como na primeira reportagem, foi reforçado os homossexuais masculinos como um dos principais grupos. Mesmo que tenha sido questionada a culpabilização pela nova patologia que esse grupo sofreu inicialmente, se mantinha a noção de grupos de risco.

No entanto, houve também, além da presença de médicos e cientistas, pessoas ligadas a movimentos sociais que lutavam por melhores condições para pessoas com HIV e Aids. Um exemplo mostrado é o “Grupo de Apoio e Prevenção à Aids” (GAPA), e que denunciavam a inércia do governo em demorar para pensar em soluções para barrar o avanço da epidemia.

Já a edição de 1.854, focava especificamente na ciência. Começava trazendo a fala de um dos fundadores da “Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids” (ABIA), Herbert de Souza, sobre a condição dos hemofílicos no Rio de Janeiro, e o risco de contaminação que eles corriam. Novamente uma denúncia em relação a atitude do governo, onde o próprio Secretário do Ministro da Saúde afirmava que a Aids não era uma prioridade do governo, porém o próprio Ministério da Saúde relatando uma grande subnotificação da Infecção por HIV.

A reportagem ainda apontava a problemática da transmissão vertical e a falta de testes, não só para os pacientes, mas também para os hemocentros, como também a falta de profissionais da saúde e os desgastes que esses sofrem. Ao fim, apresentou uma medicação que poderia auxiliar os portadores do vírus, mas que ainda estava em fase de testes, o AZT.

Nessas duas reportagens podemos verificar aquilo que Machado (2006) aponta como o discurso jornalístico sendo polifônico, pois a mesma temática, Aids, é apresentada com enfoques e visões diferentes: desde cidadãos se articulando em grupos para combater preconceitos criados contra a pessoa soropositiva, passando pelos médicos, até o governo que se mostrava desinteressado em se preocupar com a epidemia.

Por mais que o discurso se torne monofônico, pois está em um único texto, de uma única revista, que segue um padrão editorial, ainda podemos visualizar uma variedade de sujeitos e polifonia de discursos nas fontes que a revista se baseia para construir o seu discurso.

Uma década de Aids

Em 20 de janeiro de 1990, a Manchete publica uma espécie de dossiê na edição 1.970, com a contribuição de vários jornalistas, intitulada “Aids 10 anos de flagelo”. A reportagem tratou o que se sabia sobre a Síndrome até então. O texto começou com especulações sobre a origem do vírus da Aids. Arqueólogos patológicos derrubaram a hipótese que a Aids surgiu na antiguidade, até o momento o registo mais antigo que chegaram nos Estados Unidos é de um homem de 28 anos que morreu com imunodepressão em 1852. Já na Europa, foram catalogados 15 casos entre 1959 e 1969, bem como as hipóteses de como o vírus tenha chegado aos seres humanos. “As hipóteses são inúmeras e todas sob investigação. A mais divulgada estabelece que o vírus HIV chegou ao homem via macaco verde africano” (Carneiro et al., 1990, p. 21).

De acordo com a OMS, o continente com a situação mais crítica era o africano, pois lá já possuía o status de epidemia, além de alguns países africanos fecharem os olhos para essa questão. Em todo o planeta, até 1989, foram registrados 203.599 casos da patologia. Os EUA ocupavam a liderança, com 113.211 casos, seguido de Brasil em segundo, com 8.025 casos, e França e Uganda dividindo o terceiro lugar. Para o então diretor do programa de Aids da OMS, Jonathan Mann, “a luta contra Aids no mundo atingiu seu ponto crítico” (Carneiro et al., 1990, p. 22).


Imagem 3:
Mapa de contágio da Aids no mundo
Fonte: Carneiro et al. (1990).

A matéria relembra pessoas famosas que faleceram em decorrência das complicações da Aids, maioria homens, como Markito, primeira vítima no Brasil; Rock Hudson, ator estadunidense; Leon Hirszman, diretor brasileiro; Henfil e Chico Mário, primeiro cartunista e o segundo músico, irmãos, hemofílicos.

A reportagem também trouxe as experiências de um médico que atuava no combate a Aids, do escritor Herbert Daniel, militante e soropositivo, e de um homem que foi infectado através de uma transfusão de sangue. Além da história de Brenda Lee, uma travesti que recebia em sua casa doentes de Aids no início da década e em 1990 a casa é reconhecida como um ponto de apoio pela Secretária de Saúde de São Paulo, onde lhe repassavam um subsídio de NCz$63.200,00. A iniciativa de Brenda não era tão reconhecida no Brasil, mas foi reconhecida no Congresso Internacional sobre Aids, além de receber doações do mundo inteiro. A reportagem também trouxe uma tabela mostrando quais seriam as formas de transmissão do vírus:


Imagem 4:
Quadro informativo das formas de contágio do HIV
Fonte: Carneiro et al. (1990).

Seguindo a leitura, a reportagem relembra que, no início, a Aids estava restrita aos guetos de homossexuais e UDI, sendo assim não foi dada muita atenção. Com o avanço da patologia nos hemofílicos e em heterossexuais, os avanços no combate a Aids se intensificaram. No início de 1990, somente o Rio de Janeiro aprovou a obrigatoriedade de testagem de sangue, além de que foi verificado que a via venosa é a mais contagiosa no caso da Aids. A única forma de transmissão que mostrou declínio, ao menos no Rio, foi entre os homens que faziam sexo com outros homens (HSH).

A Aids no fim da década de 1980 apresentava a principal causa de mortes entre homens de 20 a 30, e a segunda maior entre homens de 25 e 44 anos. Em São Paulo, estimava-se que por dia, em 1990, 9 pessoas contraíram o HIV. Porém, a estimativa de vida dos soropositivos aumentou nesse final de década.

É relembrado pela revista que, em 08 de setembro de 1988, José Sarney - Presidente da República durante os anos de 1985 a 1990 -, assinou um decreto que estendia aos portadores da Aids os mesmos benefícios legais que ofereciam aos incapacitados para o trabalho. Mas esses avanços, principalmente sociais, se deram através de muita luta, como as ações do GAPA, que por muito tempo liderou as campanhas de conscientização da Aids. Possivelmente o GAPA foi a primeira entidade com essas características a existir na América Latina.

A reportagem também traz a hipótese de um médico brasileiro que a Aids poderia ser transmitida através de mosquitos, mostrando que ainda havia muito desconhecimento sobre o tema, inclusive no meio científico. Para finalizar, o texto traz um dicionário com os principais termos ligados a Aids na época.

Neste dossiê a Manchete refletiu sobre a primeira década da epidemia de Aids, muitos aspectos mudaram nesses dez primeiros anos, como a desconstrução da noção de grupos de risco, inclusive mostrando que a transmissão HSH foi a única que tinha apresentado declínio. Aqui houve também um maior espaço para falas de fontes diferentes sobre a Aids, médicos, militantes de grupos e organizações não-governamentais, e não menos importante, de soropositivos.

Apresentou também falas do Diretor da OMS sobre a Aids, avaliou como a epidemia estava no mundo, trouxe famosos falecidos em decorrência de complicações da infecção pelo HIV à época. E mostrou a polifonia de discursos dentro da própria comunidade científica, onde os cientistas possuíam várias hipóteses sobre a origem do vírus e sua transmissão, tal como ainda ocorria nos primeiros anos da epidemia.

Há uma significativa mudança do discurso da revista da primeira reportagem em 1982, para esta, de 1990. Muito se deve as novas informações sobre Aids e parte da desinformação do início era porque não havia conhecimento de como o vírus se manifestava e funcionava. Com os avanços nas pesquisas cientificas, também houve uma mudança no discurso científico. Porém, a mudança se deve também pela inserção de mais atores sociais no debate dentro da imprensa sobre a Aids, governos, ONGs, ativistas, famosos. Essa variedade de discursos refletiu na revista, pois esta é filha de seu tempo.

Considerações finais

Analisando essas reportagens sobre a temática “Ciência, medicina e saúde”, percebemos algumas coisas. Primeiro, como o discurso da Manchete vai mudando ao longo da década em relação a associação entre Aids e homossexualidade. Num primeiro momento a enfermidade é definida como uma “doença dos homossexuais”, inclusive na segunda reportagem que fala sobre a doença, a Aids é definida como “o misterioso câncer que mata os homossexuais”. “A Aids aparece associada a uma síndrome ou ao câncer, enquanto enfermidade, via marcas que tratam de lembrar o caráter irreversível da doença” (Fausto Neto, 1999, p. 43). Lendo as primeiras reportagens da Manchete, nos primeiros anos da década de 1980, sobre a Aids, corrobora com o que Fausto Neto (1999, p. 44) escreve:

Os jornais procuram estabelecer uma argumentação de causa e efeito entre Aids e sexualidade. Não contextualizam origens e causas mais profundas, pelo contrário, instituem logo uma classificação para a doença, que além de incurável, misteriosa, irreversível, etc., é tudo isso porque é uma doença que afeta um conjunto de pessoas de comportamentos sexuais passíveis de serem contaminadas pela doença.

Já em 1987 passa a apontar que a Aids não é exclusiva de um grupo social, mas que afeta a todos, criticando justamente a definição de “grupos de risco”. É provável que a imprensa foi uma das responsáveis por criar uma falsa noção que somente os grupos de risco estariam sujeitos a Aids; e no final da década de 1980, continuou com o mesmo tom, apresentando como a Síndrome foi se espalhando por toda a sociedade e que há um ligeiro aumento na qualidade de vida das pessoas portadoras do vírus, mostrando que dá para continuar a vida, mesmo com a Aids.

A imprensa, mais especificamente a Manchete, agiu inicialmente corroborando com a construção de estigmas, mas isso se devia a grande falta de informação sobre HIV/Aids. Os periódicos também serviram como denunciadores de preconceitos. Por exemplo, relatando casos de hospitais e médicos que rejeitavam atendimentos para soropositivos, além de mostrar e criticar o papel que o governo à época tinha frente à pandemia, muitas vezes minimizando a Aids ou não destinando verbas suficientes para informação e pesquisas. Muitas vezes, a imprensa acaba sendo um dos meios mais fáceis e seguros de se conseguir informações mais atualizadas sobre a Aids.

Aqui se percebe que para além de apresentar e informar a população sobre a pandemia, a revista também avalia o crescimento da patologia. Por exemplo, “estima-se que x brasileiros estejam com Aids”, “até o final do século a Aids já vai ter feito x vítimas”, “se a ciência não avançar o número de vítimas será maior”; mas essa não é característica única da Manchete, e sim da imprensa como um todo, como aponta Fausto Neto (1999).

Analisando de uma forma geral as matérias dessa temática, fica claro algo que Fausto Neto (1999) escreveu, que além da imprensa utilizar da fala de especialistas e autoridades sanitárias para balizar o que é escrito, as opiniões muitas vezes são desencontradas, como médicos que afirmam ser possível o contágio através de mosquitos, debates em torno se o beijo e o sexo oral seriam seguros, até mesmo qual vírus seria responsável pela Aids. Muito disso se deve às pesquisas serem muito recentes. Pois:

Observa-se que, dentro do próprio campo médico, se configura uma espécie de “disputa de sentidos”. Os discursos nele produzidos apontam para uma diversidade de diagnósticos e fatores causadores, fato que deve ter efeitos bastante peculiares junto aos leitores. Ao perceber a não existência de um ponto de vista dominante e universal, concluindo-se, assim, que o discurso de mediação - o de saúde - é igualmente uma construção revestida de muitas suposições (Fausto Neto, 1999, p. 134).

Porém, por mais que a revista siga uma linha editorial, e ideológica, o discurso jornalístico era polifônico e era um campo em disputa. Pois, mesmo em relação a suas reportagens, é trazido à cena médicos e cientistas que algumas vezes não se entendem entre si, ou têm posições diferentes uns dos outros, como também traz a opinião de famosos, religiosos, intelectuais, artistas, construindo vários sentidos para Aids.

A Revista Manchete se apresentou como uma fonte rica para pensar a epidemia de HIV/Aids e a relação com a Imprensa, mesmo que nesse artigo tenhamos delimitado a década de 1980 e uma única temática, é somente uma ínfima parte do material levantado, as opções de pesquisas são vastas.

Fontes

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PENNA, Márcia Mello. A Aids a tragédia no Brasil - A ciência nas frentes de batalha. Revista Manchete, Rio de Janeiro, v. 35, n. 1.854, p. 20-29, 31 out. 1987b.

REVISTA MANCHETE. A misteriosa doença dos homossexuais: Time Magazine. Revista Manchete, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1.551, p. 26-27, 09 jan. 1982.

Referências

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Notas

1 Aqui é necessário levar em consideração que a pesquisa de Andrade e Cardoso (2001) contava com um acervo mais restrito da Manchete, fazendo com que a delimitação deles ficasse restrita a primeira década de circulação da revista, 1952-1962. Então, os dados podem sofrer alterações se avançarmos nas edições mais recentes da revista.
2 Rock Hudson foi um ator estadunidense muito famoso por seus papéis em comédias românticas e dramas de Hollywood.
3 Atualmente a sigla faz referência a Associação Brasileira de Planos de Saúde.


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