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A reciprocidade dos sentidos compartilhados: ideias para humanizar as relações sociais no Ensino Superior
The reciprocity of shared senses: ideas to humanize social relations at university
La reciprocidad de los sentidos compartidos: ideas para humanizar las relaciones sociales en la universidad
Revista NUPEM (Online), vol. 13, núm. 30, pp. 46-57, 2021
Universidade Estadual do Paraná

Dossiê


Recepción: 11 Abril 2021

Aprobación: 02 Septiembre 2021

DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2021.13.30.46-57

Resumo: Retomando os estudos do sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918) acerca das transfor-mações da percepção humana na metrópole moderna, este artigo propõe uma reflexão em torno de problemas emergentes no contexto pandemia de Covid-19, sobretudo, aqueles que afetam diretamente as relações sociais nos espaços pedagógicos. Surgidas no interior de um curso de graduação em Musicoterapia de uma universidade pública brasileira, as ideias apresentadas aqui têm em mira a qualidade da vida psíquica e social de docentes e discentes que se depararam com uma crise sem precedentes, tendo que se adaptar ao Ensino Remoto Emergencial (ERE) em um curto espaço de tempo. Como forma de resistência e (re)existência neste cenário, propõe-se o compartilhamento de práticas e ações que cultivem as faculdades sensíveis e intelectuais do ser humano, as quais encontram acolhida privilegiada em cursos que conjugam artes e humanidades.

Palavras-chave: Percepção huma-na, Relações sociais, Universidade, Pandemia.

Abstract: Based on the studies of the German sociologist Georg Simmel (1858-1918) on the transformations of human perception in the modern metropolis, this paper proposes a reflection on problems emerging in the context of the Covid-19 pandemic, especially those that directly affect social relationships in the pedagogical area. Arising from within an undergraduate Music Therapy course at a Brazilian public university, the ideas presented here aim to improve the psychic and social health of teachers and students who, facing an unprecedented crisis, had to adapt to Emergency Remote Education (ERE) in a short period of time. As a form of resistance and (re)existence in this context, we propose the sharing of practices and actions that cultivate the sensitive and intellectual faculties of the human being, which find a privileged place in courses that combine arts and humanities.

Keywords: Human perception, Social relations, University, Pandemic.

Resumen: Retomando los estudios del sociólogo alemán Georg Simmel (1858-1918) acerca de las transformaciones de la percepción humana en la metrópoli moderna, este artículo propone una reflexión sobre los problemas emergentes en el contexto de la pandemia de covid-19, especialmente aquellos que afectan directamente a las relaciones sociales en el campo pedagógico. Nacidas en un curso de pregrado en musicoterapia de una universidad pública brasileña, las ideas que aquí se presentan se centran en la calidad de la vida psíquica y social de los profesores y estudiantes que se han enfrentado a una crisis sin precedentes, trabajando para adaptarse a la Educación Remota de Emergencia (ERE) en poco tiempo. Como forma de resistencia y (re)existencia en este escenario, se propone compartir prácticas y acciones que cultiven las habilidades sensitivas e intelectuales del ser humano, las cuales son favorecidas en cursos que combinan artes y humanidades.

Palabras clave: Percepción humana, Relaciones sociales, Universidad, Pandemia.

Introdução

No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente (Benjamin, 1994, p. 169).

Este texto surgiu de uma série de encontros promovidos por um curso de graduação em Musicoterapia de uma universidade pública brasileira. Realizados entre os meses de fevereiro e março de 2021, foi levantado um conjunto de questões emergentes no contexto da pandemia de Covid-19 que afetaram (e afetam) direta e profundamente os projetos didáticos e pedagógicos do bacharelado. A proposta central dos diálogos estabelecidos entre docentes e discentes era pensar de forma conjunta maneiras de tornar as relações interpessoais menos distantes no âmbito da universidade, ou seja, no interior de processos de ensino e aprendizagem que nós construímos e mantemos vivos diariamente (e este “nós” compreende alunos, alunas, professores e professoras que são também artistas). O diagnóstico inicial era o de que, para além dos desafios pedagógicos trazidos pela modalidade do Ensino Remoto Emergencial (ERE) instaurado em 2020, precisávamos nos atentar, com urgência, às condições emocionais dos agentes envolvidos nesse processo, bem como à qualidade das relações estabelecidas nos ambientes virtuais, buscando construir um espaço de escuta e diálogo permanente sobre os problemas que vêm afetando a motivação, a interação e, num plano mais amplo, a saúde dessas pessoas.

Sabíamos que essa temática, contudo, não se restringia ao curso de Musicoterapia e tampouco ao Ensino Superior, uma vez que a crise instaurada nos planos sanitário, econômico, político e social trouxe novos desafios para a educação pública brasileira como um todo. Portanto, tínhamos ciência de que, ao pensar e tentar construir formas de humanizar as relações sociais no interior de um curso de graduação estávamos, ao mesmo tempo, somando-nos a um esforço coletivo de diagnóstico, análise, reflexão, reinvenção, ação e, sobretudo, de resistência que se dá a partir das inúmeras salas de aulas (virtuais, porém reais) que continuam cultivando saberes e fazeres em todo o país, do Ensino Básico ao Superior.

Um dos resultados desses encontros é este texto, que se propõe a desenvolver, em perspectiva interdisciplinar, uma reflexão em torno das transformações históricas da percepção e da sensibilidade humanas e, por consequência, das relações sociais em contextos de crise e de profundas transformações na vida psíquica e social da modernidade, recorrendo para tanto a obras de autores e autoras das áreas da sociologia, história, filosofia, pedagogia e estudos literários que versaram sobre esta temática e assuntos afins.

Construir sentidos, tornar sensível

Podemos adentrar a temática deste texto perscrutando os sentidos e significados de algumas palavras presentes em seu título que, embora pareça o contrário, não é nada simples: “A reciprocidade dos sentidos compartilhados: ideias para humanizar as relações sociais no Ensino Superior”.

Cada palavra, que pode se apresentar também como um conceito ou uma noção teórica é, no fundo, uma chave que abre, primeiramente, a sua própria história enquanto palavra, enquanto conceito e, de forma mais ampla, é uma chave a partir da qual podemos nos ver, nos perceber e nos sentir enquanto indivíduos sociais e históricos.

Há uma definição da escritora colombiana Yolanda Reyes (apud Andruetto, 2017, p. 43) que ilustra de maneira profunda e sensível esse aspecto que toda palavra e, de maneira geral, que toda língua carrega consigo: “A língua: esse lugar de encontro onde convivem as vozes e as histórias dos outros... Falá-la e escrevê-la é encontrar-se com todos nessa linha do tempo flutuante e invisível que existe além de cada um e que ao mesmo tempo nos pertence, sem ser estritamente de ninguém”.

Em um sentido poético e literário, são as palavras janelas para o imaginário e, quando nos debruçamos sobre elas, estabelecemos um diálogo vivo e íntimo com muitas histórias, portanto, com muitas pessoas, que nos leva igualmente a um trabalho contínuo de associação, de reflexão, de imaginação, de fabulação que é, ao fim e ao cabo, um trabalho contínuo de escrita (e reescrita) da nossa própria história, a qual se enreda em uma trama maior atravessada pelas “vozes e as histórias dos outros”, como disse Yolanda Reyes (apud Andrueto, 2017, p. 43).

Nas palavras nos perdemos, nas palavras encontramos. Para além da nossa individualidade, formada continuamente nesse exercício mais íntimo e meditativo da leitura e da escrita, por exemplo, nas palavras nos encontramos com aquilo que é também coletivo, que é comum a todos. Nessa direção, refletir sobre problemas comumente circunscritos ao plano individual exige, ao mesmo tempo, um esforço no sentido de compreender não só a historicidade do problema, mas também a sua dimensão social. Como diz o sociólogo alemão Norbert Elias (1994, p. 56-57),

o indivíduo só pode ser entendido em termos de sua vida em comum com os outros. A estrutura e a configuração de controle comportamental de um indivíduo dependem da estrutura das relações entre os indivíduos. A base de todos os mal-entendidos no tocante à relação entre indivíduo e sociedade reside no fato de que, embora a sociedade, as relações entre as pessoas, tenha uma estrutura e regularidade de tipo especial, que não podem ser compreendidas em termos do indivíduo isolado, ela não possui um corpo, uma “substância” externa aos indivíduos.

Um ato individual encerra, portanto, uma dimensão social, posto que é o resultado do entrecruzamento de impulsos e forças (internas e externas) circunscritas a um tempo e a um espaço compartilhados com outros indivíduos. Mesmo que este ato se resuma a uma leitura solitária, por exemplo, ele já se encontra atravessado pelo habitus social de um grupo que, para Elias (2006, p. 23), consiste em “formas específicas de auto-regulação” interiorizadas pelos indivíduos “mediante o aprendizado de uma linguagem comum e nas quais [eles] se encontram”. E esses encontros também se manifestam na construção de sentidos em torno de uma palavra, conceito ou noção teórica recém-descobertos, ato aparentemente banal, mas que nos aproxima ou nos afasta dependendo da leitura e do entendimento que formamos a partir daquele objeto. Assim, independentemente das afinidades ou dos contrastes que possam emergir e que, portanto, acabam por informar o nosso habitus social, há um aspecto que nos une em todo esse processo: o ato de construir sentidos.

Afinal, que outro ser vivente é capaz de dar sentido a um mero signo? Ou ainda, de tirar as coisas de seu estado natural, do seu “caos natural”, e dar-lhe forma e conteúdo, como o é uma palavra, que exprime ideias, que permite-nos comunicar e nomear coisas de modo a nos fazer sentido? Aqui se encontra um passo fundamental de todo o processo: quando dizemos “fazer sentido” ou “dar sentido” a alguma coisa queremos dizer, a um só tempo, “tornar sensível”, “tornar perceptível”, “tornar inteligível” o objeto em foco, ou seja, estamos nos referindo a uma transformação da coisa em objeto do conhecimento e da percepção, e essa transformação só ocorre graças às faculdades mais elementares à nossa espécie: a razão e a sensibilidade. Em uma palavra, quando dizemos “fazer sentido” ou “dar sentido” a alguma coisa estamos nos referindo a um ato exclusivamente humano.

E aqui chegamos a uma palavra central presente no título deste artigo: humanizar - o humano tornado verbo, o humano tornado ação, portanto, o humano em movimento; movimento que o conjuga em múltiplas temporalidades, em múltiplas pessoas; movimento que confirma, a cada passo, a sua humanidade, posto que é um movimento que o leva a ser, sempre, mais humano; movimento que, em suma, humaniza.

Sempre que nos permitimos realizar um trabalho de pesquisa etimológica ou mesmo filológica, debruçando-se sobre palavras ou textos, estamos em certa medida agindo como arqueólogos; nessa arqueologia, somos confrontados a cada passo com a história do objeto de pesquisa, seja este uma palavra, um conceito, um produto da cultura etc.; uma história que está sempre em movimento, posto que é atravessada por múltiplas temporalidades, por múltiplas “vozes e histórias dos outros”, como disse Yolanda Reyes. Por isso, pensar formas de humanizar qualquer coisa é, antes de tudo, pensar imediatamente em relações humanas, pensar naquilo que construímos para preservá-las e aprimorá-las em um espaço-tempo comuns. Para adotar o termo apresentado em nosso título, pensar formas de humanizar é pensar as relações sociais, tal qual elas se nos apresentam no presente, porque é o presente, primeiramente, que nos interroga e nos provoca sem cessar, e é sempre como uma tentativa de responder às demandas do presente que nos entregamos a leituras, escutas, pesquisas, aulas e diálogos com os nossos pares.

Mas, para que possamos compreender as relações sociais em nosso tempo e, mais que isso, para que possamos formular propostas ou “ideias” de humanização das relações sociais em nosso tempo, precisamos antes emprestar as ferramentas do arqueólogo e, porque não, as do historiador e tentar reconstruir os fios que ligam este presente ao passado. Afinal de contas, como diz a escritora argentina María Teresa Andruetto em um texto chamado “Leitura, outra revolução”,

A história de cada um de nós, mesmo em seus aspectos mais privados, faz parte de um passado comum, e não é possível reconstruir o passado pessoal sem reconstruirmos, ao mesmo tempo, o passado de uma época. Poder olhar-nos na trama do que nos precedeu e reconhecer nela aspectos próprios constrói nossa identidade e nos sustenta. A memória é um movimento contínuo do individual para o social e de nossas condições presentes para trás e para o amanhã; um cruzamento de forças e de lutas para retomar fios perdidos, dialogar com zonas refugiadas ainda invisíveis, aprender com os erros e os acertos dos que vieram antes; um propósito de nos construirmos individual e socialmente, porque não há futuro individual separado do futuro de todos (Andruetto, 2017, p. 101).

Ao tratar de problemas do presente, recorrendo para tanto ao passado, para “aprender com os erros e os acertos dos que vieram antes”, estamos tratando, sobretudo, do futuro; em outras palavras, é um horizonte comum que, juntos(as), estamos tentando vislumbrar, construir e, quem sabe, ampliar. Em resumo, é ao futuro que dirigimos os nossos esforços, tentando encontrar soluções no tempo presente que se apresenta para nós como um tempo de exceção, um tempo de crises sem precedentes que se superpõem e que atingem todas as esferas da vida psíquica e social.

A atitude blasé e a pobreza de experiência

Para “retomar alguns fios perdidos” da nossa história individual e social, passemos agora a uma breve digressão a uma época que também se apresentava como crítica, tensa e permeada por “estados de exceção”. Referimo-nos ao contexto alemão das primeiras décadas do século XX e, em especial, aos estudos do filósofo e sociólogo Georg Simmel (1858-1918), um dos pais da sociologia moderna ao lado de Émile Durkheim (1858-1917) e Max Weber (1864-1920).

Simmel foi um dos primeiros intelectuais a aprofundar a análise das relações sociais e da vida psíquica na metrópole moderna, renovando a tradição crítica da sociedade capitalista ao refletir sobre as transformações da subjetividade humana no interior de processos de intensa urbanização, industrialização e, portanto, do surgimento de novas formas de comunicação e interação sociais; um contexto que, assim como o nosso, apresentava-se como novo, marcado, por um lado, pela emergência de novas tecnologias, meios de comunicação e de transporte; e, por outro lado, atravessado por crises sociais, instabilidade econômica, epidemias e, claro, pela iminência da guerra.

Em um texto de 1908, intitulado “A metrópole e a vida mental”, Simmel estabelece uma comparação entre uma mentalidade formada no interior de relações sociais mais duradouras e menos diferenciadas, como as que caracterizam a vida no campo, e uma mentalidade moldada no interior de relações sociais mais heterogêneas, intensas e complexas, como as que caracterizam a vida na cidade, sobretudo nas metrópoles. Segundo Simmel,

A base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste na intensificação dos estímulos nervosos, que resulta da alteração brusca e ininterrupta entre estímulos exteriores e interiores. O homem é uma criatura que procede a diferenciações. Sua mente é estimulada pela diferença entre a impressão de um dado momento e a que a precedeu. Impressões duradouras, impressões que diferem apenas ligeiramente uma da outra, impressões que assumem um curso regular e habitual e exibem contrastes regulares e habituais - todas essas formas de impressão gastam, por assim dizer, menos consciência do que a rápida convergência de imagens em mudança, a descontinuidade aguda contida na apreensão com uma única vista de olhos e o inesperado de impressões súbitas. Tais são as condições psicológicas que a metrópole cria (Simmel, 1973, p. 12).

Como podemos perceber, Simmel caracteriza as sociedades tradicionais enquanto espaços marcados por “impressões duradouras”, que “assumem um curso regular e habitual” por estarem ligadas a experiências que possuem uma longa duração no tempo e se desenvolvem em um espaço mais homogêneo e pouco diferenciado. Por outro lado, Simmel opõe a essa experiência tradicional as formas de percepção típicas da cidade grande, marcadas pela “rápida convergência de imagens em mudança”, pela “descontinuidade aguda contida na apreensão com uma única vista de olhos” e pelo “inesperado de impressões súbitas”.

Avançando no texto, Simmel explora essa oposição entre a vida psíquica no campo e na cidade trazendo outras características estruturais e psicológicas presentes em cada contexto:

Com cada atravessar de rua, com o ritmo e a multiplicidade da vida econômica, ocupacional e social, a cidade faz um contraste profundo com a vida de cidade pequena e a vida rural no que se refere aos fundamentos sensoriais da vida psíquica. A metrópole extrai do homem, enquanto criatura que procede a discriminações, uma quantidade de consciência diferente da que a vida rural extrai. Nesta, o ritmo da vida e do conjunto sensorial de imagens mentais flui mais lentamente, de modo mais habitual e mais uniforme. É precisamente nesta conexão que o caráter sofisticado da vida psíquica metropolitana se torna compreensível - enquanto oposição à vida de pequena cidade, que descansa mais sobre relacionamentos profundamente sentidos e emocionais (Simmel, 1973, p.12).

Gostaríamos de chamar atenção para algumas expressões utilizadas pelo sociólogo alemão nessa passagem. Afinal, a que se refere Simmel ao falar em “fundamentos sensoriais da vida psíquica”? Ou ainda, por que ele conclui o seu argumento se referindo a “relacionamentos profundamente sentidos e emocionais”, referindo-se no caso à vida psíquica de pequena cidade? É porque Simmel não é um sociólogo preocupado apenas com as condições materiais e estruturais em que se dão as mudanças no interior dos processos socio-históricos. O autor investiga também as mudanças operadas no plano da percepção humana, ou seja, no plano dos sentidos. É por isso que a sua obra foi e continua sendo referência tanto para a sociologia quanto para os estudos sobre estética e a arte contemporânea.

Em um pequeno ensaio intitulado “O olhar contido e o passo em falso”, a filósofa suíço-brasileira Jeanne Marie Gagnebin (2014, p. 121-122), estudiosa da filosofia alemã do século XX e da obra de Simmel nos ajuda a entender melhor os pressupostos teóricos e filosóficos do sociólogo alemão, chamando-nos atenção justamente para uma concepção de teoria estética implícita em suas análises. Segundo a autora,

Simmel [...] descreve tanto as mudanças da percepção - aisthesis - quanto as mudanças nas relações entre os homens na grande cidade moderna. Ele analisa as transformações do espaço social na grande cidade, tanto no plano dito objetivo quanto no plano psíquico da percepção humana [...]. Trata-se, portanto, de uma teoria estética no sentido duplo da palavra: no sentido etimológico amplo de uma teoria da percepção (aisthesis) e no sentido moderno, mais especificamente, de uma teoria das artes e das práticas artísticas. Essa teoria estética também é, necessariamente, uma teoria da vida em comum, uma reflexão sociopolítica, já que percepção e história humanas se transformam mutuamente.

Como podemos notar, o que Jeanne Marie nos ajuda a entender são as razões pelas quais Simmel se debruça sobre o plano psíquico e sensível do sujeito inserido na metrópole. Para o sociólogo alemão, uma investigação sobre as “transformações do espaço social na grande cidade” não se limita nem ao plano objetivo (o das condições estruturais e materiais), nem ao plano subjetivo ou individual (o dos hábitos mentais, dos valores, comportamentos, crenças, representações etc.); essa investigação deve, sobretudo, articular os planos objetivo e subjetivo de modo a contemplar a dimensão política das transformações sociais, posto que elas se dão através de relações intersubjetivas em um espaço-tempo comuns. Por isso, pensar esses processos, e pensar as relações sociais no interior desses processos a partir da “teoria estética também é, necessariamente,” pensar “uma teoria da vida em comum”, é propor “uma reflexão sociopolítica, já que percepção e história humanas se transformam mutuamente”.

Uma vez esclarecidos o lugar do estético e do horizonte político que figuram na base epistemológica da sociologia de Simmel, podemos avançar em nossa análise acerca, justamente, dessa nova percepção, dessa nova sensibilidade que se forma no interior da metrópole; formas de perceber e de sentir que, diga-se de passagem, ajudam-nos a compreender muitos dos problemas psíquicos e sociais contemporâneos. Mais à frente, retomaremos este ponto.

Por ora, vejamos o que diz Simmel sobre um comportamento típico do sujeito inserido na grande cidade, e que está intimamente atrelado ao racionalismo e ao individualismo modernos. Referindo-se à mentalidade calculista, à racionalidade monetária, à busca pela pontualidade, precisão e otimização do tempo, Simmel afirma que

Os mesmos fatores que [...] redundaram na exatidão e precisão minuciosa da forma de vida redundaram também em uma estrutura da mais alta impessoalidade; por outro lado, promoveram uma subjetividade altamente pessoal. Não há talvez fenômeno psíquico que tenha sido tão incondicionalmente reservado à metrópole quanta a atitude blasé. A atitude blasé resulta em primeiro lugar dos estímulos contrastantes que, em rápidas mudanças e compressão concentrada, são impostos aos nervos (Simmel, 1973, p. 15-16).

Portanto, uma vida que se dá em meio a uma multidão de pessoas e a uma sobrecarga de “estímulos contrastantes” leva a uma atitude contraditória: a atitude blasé, que compreende uma indiferença ao outro e um exílio forçado na sua própria subjetividade, no seu próprio “mundo” - em suma, uma solidão em meio à multidão.

Comentando esse fenômeno problematizado por Simmel e relacionando-o aos textos do filósofo alemão Walter Benjamin sobre a arte e a estética no século XX, Jeanne Marie Gagnebin acrescenta que

Submetido a um excesso de estímulos sensoriais e intelectuais tanto no trabalho quanto na rua ou no lar, o habitante das grandes cidades deve se proteger por uma carapaça de indiferença e de frieza, a fim de não sucumbir a um esgotamento físico e intelectual. Ele deve, portanto, abdicar daqueles sentimentos que Rousseau [no século XVIII, portanto, na aurora da modernidade] julgava serem naturais no ser humano: o interesse e a compaixão pelo próximo (Gagnebin, 2014, p. 123).

Na cidade moderna experimentamos, então, uma “combinação de saturação e de embotamento” (Idem) dos sentidos, o que significa dizer que a nossa experiência sensorial é tolhida na sua potencialidade, ficando fragilizada; em outras palavras, a percepção humana se modifica, a nossa sensibilidade se torna, paradoxalmente, menos sensível, tornando-nos cada vez mais indiferentes ao outro, fazendo-nos perder cada vez mais “o interesse e a compaixão pelo próximo”.

Pensando esse fenômeno, que é intensificado ao longo do século XX, Walter Benjamin, profundo conhecedor da obra de Simmel, publica em 1933 um ensaio intitulado “Experiência e pobreza”, chamando atenção exatamente para as transformações estéticas, ou melhor, para as transformações na percepção e sensibilidade humanas provocadas por uma vida psíquica e social que nos leva, diariamente, ao esgotamento físico e mental. Diz Benjamin (1994, p. 118):

Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles “devoraram” tudo, a “cultura” e os “homens”, e ficaram saciados e exaustos. “Vocês estão todos tão cansados - e tudo porque não concentraram os seus pensamentos num plano totalmente simples mas absolutamente grandioso”.

Antes de avançar, gostaria de reter algumas palavras e expressões mencionadas anteriormente: “excesso de estímulos sensoriais e intelectuais”; “esgotamento físico e mental”; “saturação e embotamento” dos sentidos; “pobreza de experiência”; atitude de “indiferença e frieza”; falta de “interesse e compaixão pelo próximo”. Lendo e refletindo sobre o teor dessas palavras e expressões, à qual época ou momento histórico somos remetidos?

Por uma reciprocidade dos sentidos compartilhados

Com essa digressão histórica, chegamos, de novo, ao tempo presente. Um presente que, como sugerimos anteriormente, apresenta-se como um tempo de exceção. No entanto, embora ainda seja difícil encontrar soluções claras e precisas para os problemas que nos afligem neste momento, vimos ao menos que num passado não muito distante nos encontrávamos em uma situação semelhante à atual em alguns aspectos: “Vocês estão todos tão cansados!” - já nos lembrava Walter Benjamin na década de 1930. “Cansados”, “exaustos”, “saturados”, “embotados”, “indiferentes”; essas palavras ecoam com força na atualidade e parecem convergir para um único ponto: a desumanização, pois, é a nossa sensibilidade, a nossa percepção, a nossa vida psíquica e social, a nossa capacidade de se interessar e sentir “compaixão pelo próximo”, em suma, são algumas das potencialidades que nos caracterizam enquanto humanos que se encontram fragilizadas.

Todavia, embora este cenário se apresente como caótico e desolador, temos uma condição privilegiada enquanto sujeitos deste tempo: podemos “aprender com os erros e os acertos dos que vieram antes”. Nessa direção, qual é um dos únicos lugares ainda existentes que nos permite cultivar o “propósito de nos construirmos individual e socialmente, porque não há futuro individual separado do futuro de todos” (Andruetto, 2017, p. 101); que nos permite cultivar, com liberdade, o pensamento, a reflexão, o saber, o diálogo; que nos convida a construir permanentemente uma “teoria da vida em comum” que, por si só, já é uma “prática da vida em comum” ou, como disse Paulo Freire (2019), uma práxis (ação e reflexão) da vida em comum? Este lugar, este espaço do livre pensamento e da livre construção de conhecimento é a universidade pública. Pública porque voltada ao bem comum, porque dotada desta vocação de não se submeter às pressões dos interesses privados ou particulares. Por isso, a universidade pública, este lugar de construção de uma teoria (e de uma prática) da vida em comum, é o lugar onde o campo estético encontra o campo político, onde o campo dos sentidos e das expressões sensíveis encontra o campo da vida em comum (do que é de todos e todas, indistintamente); onde, no caso dos cursos que conjugam as artes e as humanidades, as práticas artísticas encontram as práticas sociais.

No contexto do ensino superior e, em especial, no interior da universidade pública, um desafio atual é tentar aprimorar as relações sociais considerando não apenas o Ensino Remoto Emergencial (ERE) mas também o ensino presencial que, embora esteja suspenso temporariamente, permanece no horizonte comum da maioria dos cursos oferecidos nessas instituições.

Para iluminar os possíveis caminhos que conduzem à superação desse desafio, retomemos novamente o pensamento de Simmel e a interpretação de sua comentadora, a filósofa Jeanne Marie Gagnebin. Analisando um texto de 1908, intitulado “Para uma sociologia dos sentidos”, a autora nos chama atenção para uma preocupação central de Simmel: refletir sobre as mutações do olhar humano. Segundo ela,

Como para toda a tradição clássica, o sentido da visão é, também para Simmel, o sentido preponderante na organização sensível e intelectual do ser humano; mas [ao contrário da tradição clássica] [...] Simmel ressalta um outro aspecto do sentido da visão: sua capacidade de reciprocidade. [...] A vista humana, diz Simmel, encontra sua plenitude na reciprocidade do olhar compartilhado, quando o olhar do outro responde à atenção de um olhar (Gagnebin, 2014, p. 125).

De novo, vamos reter algumas palavras: “reciprocidade do olhar compartilhado”. Refletindo sobre essa expressão em um contexto marcado pela sobrecarga de imagens múltiplas e contrastantes; um contexto em que evitamos cruzar os olhares com os outros de tão numerosos que são esses outros; um contexto em que ficamos exaustos em meio a tantos estímulos aos nossos sentidos; em que ficamos indiferentes ao outro por nos sentirmos esgotados física e mentalmente, portanto, por sentirmos que precisamos nos recolher para nos cuidar; como, nesse contexto, responder “à atenção de um olhar”?

Antes de tentar responder a essa questão, continuemos acompanhando a argumentação da professora Jeanne Marie Gagnebin (2014, p. 127): “Esse excesso de visão sem possibilidade de revezamento discursivo e comunicativo reforça, escreve Simmel, ‘o sentimento de desorientação no meio da vida coletiva, o sentimento de isolamento e a sensação de ser rodeado de todos os lados por portas fechadas’”.

Como vimos, Simmel se refere ao sentido da visão, do olhar. Mas vimos também, páginas atrás, que suas preocupações são mais abrangentes, contemplando uma teoria estética em acepção ampla, enquanto o campo dos sentidos, do conjunto dos estímulos sensíveis. Sendo assim, retomando a pergunta anterior, podemos acrescentar: como, em tempos de exceção, responder à atenção não apenas de um olhar, mas também de uma voz, de uma escuta, de um gesto, de um silêncio?

Se o contexto atual se nos apresenta enquanto um tempo de exceção; um momento em que nossa vida psíquica e social é profundamente abalada; em que nos sentimos desorientados, isolados e rodeados por todos os lados por portas (e janelas) fechadas; em que nossos estímulos sensoriais e intelectuais são tolhidos em suas potencialidades; portanto, em um contexto em que tudo aquilo que nos singulariza como humanos está tensionado, fragilizando as nossas relações sociais; devemos, nesse contexto, tentar elaborar uma resposta conjunta à altura de tamanho desafio, uma resposta que vá no sentido contrário ao caminho que está nos conduzindo a crise atual, abalando profundamente a nossa sensibilidade: e esse caminho é o da sensibilização, exercitada através do cultivo do saber, das práticas artísticas, do diálogo; do cultivo da reciprocidade do olhar, da voz, da escuta, do gesto, do silêncio.

No ambiente virtual, ainda que limitado e excludente, pequenas ações podem amenizar as dificuldades impostas pelo distanciamento social como, por exemplo, responder a atenção de um olhar abrindo a câmera, quando possível; responder a atenção de uma voz abrindo o microfone ou, na sua falta, escrevendo na caixa de mensagens, enviando um e-mail etc.; incluir na pauta das reuniões pedagógicas os problemas que concernem à saúde física e mental frente ao excesso de exposição a telas e ambientes virtuais; fomentar o compartilhamento de produções literárias, poéticas, artísticas ou de qualquer forma de expressão estética que promova a sensibilização, a fim de buscar um equilíbrio em meio às tensões, angústias e medos provocados pela situação pandêmica.

Não obstante, é importante não deixar com que a ausência frequente e o silêncio das vozes (de docentes e discentes) sejam naturalizados, buscando, ao contrário, saber o que está acontecendo, oferecendo a escuta, o diálogo e, quando possível, uma ajuda; nesse contexto, atentar-se especialmente às pessoas com deficiência, as quais se depararam com inúmeros obstáculos que são estruturais no mundo virtual; e não fazer com que os problemas de ordem material permaneçam invisíveis, como se estes não afetassem as dimensões psicológica, pedagógica e social. Ao contrário, em universidades formadas por um amplo contingente de estudantes oriundos de escolas públicas, o problema da permanência estudantil é central, ainda mais em uma situação de crise como a atual. Os programas de apoio material, psicológico e pedagógico dessas instituições de ensino são centrais, ainda que, em algumas realidades, não consigam atender todas as demandas.

Em suma, humanizar as nossas relações sociais compreende insistir no caminho oposto ao que está nos conduzindo o momento atual, que é o da desumanização. A reciprocidade não apenas do olhar, mas de todos os sentidos compartilhados pode nos fortalecer e nos auxiliar nessa travessia, criando as condições de “possibilidade de revezamento discursivo e comunicativo” nas relações interpessoais, de modo a se aproximar da plenitude de nossas faculdades sensíveis e intelectuais, preservando a dignidade humana.

E que lugar se mostra mais adequado para a elaboração conjunta de uma resposta humanizadora aos desafios contemporâneos que não a universidade pública, a sala de aula, enfim, o espaço pedagógico? Afinal de contas, em que outro lugar podemos cultivar saberes e fazeres em múltiplas redes, permitindo-nos alimentar constantemente do “propósito de nos construirmos individual e socialmente”, já que “não há futuro individual separado do futuro de todos”? (Andruetto, 2017, p. 101).

Portanto, neste momento de crise, no qual o ensino público não permanece incólume, é fundamental (e urgente) manter e cultivar uma vocação elementar dos campos da arte e da educação: a experimentação de realidades possíveis.

Referências

ANDRUETTO, María Teresa. A leitura, outra revolução. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2017.

BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza”. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 114-119.

ELIAS, Norbert. A Sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

ELIAS, Norbert. Escritos & Ensaios, 1: estado, processo, opinião pública. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. “O olhar contido e o passo em falso”. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: Editora 34, 2014, p. 121-130.

SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973, p. 11-25.



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