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Doença na recepção do mito de Filoctetes no Regime Militar brasileiro: “Ramom, o Filoteto Americano” de Carlos Henrique Escobar
Disease in the reception of the Philoctetes myth in the Brazilian Military Regime: Carlos Henrique Escobar’s “Ramom, o Filoteto Americano”
Enfermedad en la recepción del mito de filoctetes en la dictadura militar en Brasil: Ramom, o Filoteto Americano de Carlos Henrique Escobar
Revista NUPEM (Online), vol. 13, núm. 30, pp. 90-106, 2021
Universidade Estadual do Paraná

Dossiê


Recepción: 06 Abril 2021

Aprobación: 10 Agosto 2021

DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2021.13.30.90-106

Resumo: No cruzamento entre história e teatro, o artigo analisa a peça “Ramom, o Filoteto Americano” (1975), de Carlos Henrique Escobar, escrita durante a Ditadura Militar brasileira e laureada no Concurso Nacional de Dramaturgia de 1975. Parte-se do conceito de recepção da antiguidade para entender como são utilizados elementos do mito grego em um contexto de repressão. O autor reelabora os principais elementos da tragédia “Filoctetes” de Sófocles para construir uma sensibilidade voltada às angústias que emergiam em um dos períodos mais repressores da Ditadura. O artigo demonstra como Ramom é um drama crítico que ressignifica a doença de Filoctetes. No corpo torturado de Ramom ecoam as mazelas de uma sociedade repressiva e colonizada. O artigo atenta para as possibilidades de investigação em uma peça complexa que aproveita a herança grega para explorar temas sensíveis da Ditadura e que pela radicalidade performática e ousadia não despertou a atenção dos censores.

Palavras-chave: Recepção, Ditadura Militar, Filoctetes, Doença.

Abstract: At the crossroads between history and theater, this paper analyzes the play “Ramom, o Filoteto Americano” (1975) by Carlos Henrique Escobar, written during the Military Dictatorship in Brazil and winner of the 1975 National Dramaturgy Contest (Concurso Nacional de Dramaturgia) award. We start from the perspective of classical reception in order to understand how elements of the Greek myth are used in a context of repression. The author resignifies the main elements of Sophocles’s Philoctetes to build a sensitivity focused on the distress that emerged in one of the most repressive periods of the Dictatorship. The paper demonstrates how Ramom is a meaningful critical drama that resignifies Philoctetes’ disease. In Ramom’s tortured body echoes the suffering of a repressive and colonized society. The article highlights research possibilities in a complex play that makes the most of the Greek legacy in order to explore sensitive themes of the Dictatorship, which were not noticed by censors due to its radical performance structure and boldness.

Keywords: Reception, Brazilian Military Dictatorship, Philoctetes, Disease.

Resumen: Este trabajo analiza la obra de teatro “Ramom, o Filoteto Americano” (1975) de Carlos Henrique Escobar, escrita en la época de la Dictadura Militar en Brasil y ganadora del premio Concurso Nacional de Dramaturgia, desde la perspectiva de la recepción clásica para examinar cómo el dramaturgo hace uso del mito griego en un contexto represivo. Escobar resignifica los elementos principales del Filoctetes de Sófocles para retratar sentimientos de angustia en una dictadura. El artículo muestra cómo Ramom es una obra crítica que resignifica la enfermedad de Filoctetes en el cuerpo torturado de Ramom, haciéndose eco del sufrimiento de una sociedad represiva y colonizada. Destaca las posibilidades de investigación en una obra compleja que aprovecha la herencia griega para explorar temas importantes en un momento autoritario, que no fueron notados por los censores debido a su estructura radical y su escritura audaz.

Palabras clave: Recepción, Dictadura Militar en Brasil, Filoctetes, Enfermedad.

Introdução

Frederic Jameson (1992, p. 93) em seu “O inconsciente político” apresenta-nos uma singular definição de história: “História é o que fere, o que recusa o desejo e impõe limites inexoráveis ao indivíduo e à práxis coletiva, que seus ‘estratagemas’ transformam em reversões espantosas e irônicas de sua intenção declarada”. A definição de Jameson chama atenção para a história como uma marca incômoda, algo que machuca e desperta reversões. Do ponto de vista histórico, a Ditadura Militar brasileira pode ser compreendida como uma ferida aberta no nosso corpo social, que se recusa a cicatrizar. Marcos Napolitano define a dinâmica traumática dos golpes em uma relação entre história e memória:

Golpes de Estado, guerras civis, revoluções e ditaduras constituem, obviamente, momentos particularmente traumáticos na história das sociedades. Expressões de profundas divisões ideológicas no corpo social e político de uma nação, aqueles que saem vencedores desses processos fazem um grande esforço para reescrever a história, justificar os fatos no plano ético, controlar o passado e impor-se na memória dos contemporâneos. Os regimes que emergem desses eventos precisam da história para justificar-se (Napolitano, 2019, p. 312).

Na esteira das indagações entre história e memória são produzidos discursos antagônicos sobre o significado da Ditadura no país. De um lado, a experiência da Ditadura é qualificada historicamente como um período de terrorismo de Estado, que não pode ser esquecido pelas suas torturas e arbitrariedades executadas pelos agentes de Estado e que deve ser lembrado para que mantenhamos o apreço pelas instituições democráticas e pelos direitos humanos. De outro lado, a Ditadura é tratada como um evento de nostalgia por parcelas de nossa sociedade. Svetlana Boym (2001, s./p., tradução nossa1) em “The future of nostalgia” explica que o sentimento de nostalgia está mais relacionado com a imaginação do que com a experiência concreta: “A nostalgia não é sempre sobre o passado; ela pode ser retrospectiva, mas também prospectiva. Fantasias do passado determinadas por necessidades do presente têm um impacto direto nas realidades do futuro”. A ideia errônea de que houve um momento de ordem e pujança econômica, com um falso milagre, e um momento “dourado” das ambições nacionais maquia o terrorismo, a corrupção e as mortes perpetradas por um regime de exceção.

O que propomos analisar neste artigo dialoga com essa ferida aberta, com a consciência de um período de liberdade vigiada em que a arte, principalmente o teatro que problematizamos, se manteve consciente de seu papel crítico embora perseguido e seguiu na vigília dos valores democráticos. Este artigo faz parte do desenvolvimento de uma proposta de pesquisa que visa mapear o itinerário do mito de Filoctetes em relação às suas apropriações políticas na modernidade. Trataremos aqui da presença desse mito em uma peça do teatro nacional escrita durante o Regime Militar e participante de um concurso nacional patrocinado pelo governo, “Ramom, o Filoteto Americano”, de Carlos Henrique Escobar. O mito de Filoctetes, nobre arqueiro grego, abandonado doente em uma ilha, tem servido para uma gama de apropriações particulares. Os temas da solidão, da doença e da justiça, problemáticos para o pensamento moderno, têm encontrado eco nas ressignificações trágicas da peça.

A potência do vocabulário trágico, em sua semântica e simbologia, permite os mais variados usos políticos da tragédia grega. Em um estudo sobre as montagens das tragédias, Edith Hall (2004, p. 2, tradução nossa2) argumenta que, desde a década de 1960, mais precisamente desde o emblemático ano de 1968, “a tragédia grega mostrou-se atraente para escritores e diretores em busca de novas formas de questionar a sociedade contemporânea e expandir os limites do teatro”. A tragédia grega como material artístico levou diretores, atores e dramaturgos a desafiarem seus próprios limites e recontextualizarem as obras, reordenando-as frente a questões contemporâneas. O que propomos analisar se enquadra nessa esteira de experimentação e distensão do mito grego na recepção da tragédia pelo teatro contemporâneo. Analisar como um mito é recebido e recontextualizado em um período de exceção nos ajuda a compor quadros de significação e de ambições do momento histórico, já que o mesmo mito foi ressignificado anteriormente e será novamente em outros momentos.

A recepção dos clássicos gregos tem se afirmado cada vez mais como um tema de pesquisa nas áreas da história, da literatura e do teatro. Entre tantos trabalhos produzidos, queremos destacar dois. O primeiro relevou-se fundamental ao nosso texto pela afinidade temática: “A Recepção da Tragédia Antígona de Sófocles, durante a ditadura militar” (2015) de Gabriela Rocha Rodrigues. Trata-se de um estudo de caso da montagem de “Antigona” realizada por Luiz Paulo Vasconcellos em Porto Alegre no ano de 1979. O segundo, “Dionysus since 69: Greek Tragedy at the Dawn of the Third Millennium” (2004), coletânea organizada por Edith Hall, Fiona Macintosh e Amanda Wrigley, tem permitido a vários pesquisadores pensar um panorama distinto de várias recepções do mito grego, desde o icônico ano de 1969 até o começo dos anos 2000. O artigo é fruto principalmente da problemática desenvolvida nessas duas obras, por possibilitar olhar o mito grego em um contexto nacional e um panorama global.

A ferida, ou a doença, de Filoctetes é um exemplo do fecundo vocabulário grego, explorado nas adaptações da peça como elemento de ressignificação. No final do século XIX, André Gide (1869-1951), em seu “Philoctète ou le Traité des trois morales” (1898), desenvolveu associações entre o Caso Dreyfus e o abandono do guerreiro, relacionando a ferida e o nacionalismo, em uma França dividida pelo antissemitismo. O dramaturgo Heiner Müller, em seu “Philoktet” (1964), também explorou o tema da doença do herói para compor uma peça que representava o mundo de oposições da Guerra Fria. A corporeidade de Filoctetes foi levada ao extremo quando o dramaturgo Jan Ritsema, na sua produção “Philoktetes Variations” (1994), levou aos palcos a questão da Aids e do preconceito com o ator Ron Vawler (1949-1994), que era portador do HIV, no papel do protagonista (Hall, 2004).

É no cruzamento entre tragédia grega e recepções políticas do mito, permeado pela doença em sua dimensão simbólica, que analisamos a peça “Ramom, o Filoteto Americano” (1975) de Carlos Henrique Escobar (1933-), escrita durante a Ditadura Militar. O texto foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia em 1975, mas não encontramos indícios de uma encenação da peça, mesmo depois do fim do Regime Militar. Por outro lado, houve leituras dramáticas, como era comum para as peças selecionadas no Concurso Nacional de Dramaturgia e como mostra a “Revista de Teatro” do último bimestre de 1976.

A obra teatral de Carlos Henrique Escobar apresenta um rico diálogo com os mitos gregos. Outras peças como “Antígona-América” (1962), “Ana Clitemnestra” (1986) e “José-Medeia” (1998) ressignificam o mito para um imaginário latino-americano. Carlos Henrique Escobar é um dos mais icônicos intelectuais dentro de um espectro de pensamento da esquerda latino-americana. Sua obra caminha dentro do Marxismo, da Epistemologia e da Psicanálise, produzindo mais de 30 livros. Sua trajetória tem ganhado um importante resgate depois do documentário de sua filha Maria Clara Escobar, “Os Dias com Ele” (2013). Refletir sobre seu teatro é uma chave de acesso não só para pensar o Brasil sob o Regime Militar, mas também para reconstituir parte do pensamento desse importante pensador.

O que demonstraremos é como o drama sofocleano é reatualizado por Escobar e como a ferida de Ramom, o Filoctetes ameríndio, problematiza temas dos Anos de Chumbo. A indagação norteadora da nossa proposta é: “Quais são as principais ressignificações do mito de Filoctetes no texto de Escobar e como a doença de Filoctetes é reapropriada pelo autor nesse período conturbado?”

O artigo divide-se em três partes: 1. Recepção e Estudos Clássicos, em que é apresentada a proposta teórica de Recepção; 2. Filoctetes na Ditadura Militar, em que apresentamos o enredo, as similaridades e as mudanças propostas pelo texto de Escobar; 3. A Ferida de Ramom, em que analisamos o significado desse símbolo na peça.

Recepção e Estudos Clássicos

Em um sentido amplo, tomamos o conceito de recepção como “as formas pelas quais material grego e romano foi transmitido, traduzido, citado, interpretado, reescrito, reimaginado e representado” (Hardwick; Stray, 2008, p. 1, tradução nossa3). A ideia de recepção em um primeiro momento aborda uma ideia, princípio ou conceito do passado recebido no presente, ou seja, recriado e reavaliado dentro de determinado aspecto ideológico.

Os trabalhos de recepção da antiguidade clássica (Classical Reception Studies) provocaram uma grande mudança nos Estudos Clássicos, pois possibilitam novas abordagens com redimensionamento de perspectivas temporais da disciplina, como problematiza Charles Martindale (2006, p. 2, tradução nossa4):

A recepção ajudou assim a desafiar a ideia tradicional do que são os “clássicos” [...], despertando a reflexão sobre como a disciplina foi constituída, de forma variada e frequentemente em meio a disputas, ao longo de séculos. Não é simplesmente uma questão de examinar o que aconteceu com os clássicos após o que agora chamamos de “antiguidade tardia”, mas de contestar a ideia de que os clássicos são algo fixo, cujos limites podem ser mostrados e cuja natureza essencial nós podemos compreender em seus próprios termos.

O modelo de recepção defendido a partir dos Estudos Clássicos reconhece a historicidade dos textos, o que é preponderante em uma área que foi constituída por meio de cruzamentos entre as áreas da linguística, filologia e história. A recepção permite que nos dediquemos também à resposta dos leitores, a busca de sensibilidades construídas com determinadas idealizações de um passado em diferentes presentes.

Quando se destaca a recepção, é preciso atentar para os pressupostos da Estética da Recepção de Hans Robert Jauss. Dentre as contribuições da Estética da Recepção (Rezeptionsästhetik), o que nos interessa aqui é a instrumentalização da teoria para compreender o texto além de uma visão dogmática do historicismo ou centrada somente nos aspectos formais. Jauss propõe uma maneira de compreender os textos por meio de seu horizonte de expectativa, fundando uma nova possibilidade da história da literatura:

A história da literatura é um processo de recepção e de produção estéticas, que se opera na atualização dos textos literários pelo leitor que lê, o crítico que reflete e o próprio escritor por sua vez levado a produzir. A soma indefinidamente crescente dos “fatos”, tal como é reunida pelas histórias tradicionais da literatura, não é mais que um resíduo desse processo, um passado coletado e ordenado - enfim, uma pseudo-história, e não uma história autêntica. Considerar que uma sucessão de tais “fatos literários” representa por si só uma fração da história da literatura é confundir o caráter factual de uma obra de arte com o de um fato histórico objetivo (Jauss, 1978, p. 52-53, tradução nossa5).

Como proposta, a Estética da Recepção permite um enquadramento temporal maior que a ordem sincrônica dos acontecimentos, admitindo uma temporalidade fluida e contínua. O leitor é colocado no centro da experiência a partir do momento que ele reorganiza o material em sua própria perspectiva. Assim, podemos interpretar como um texto é estruturado para dimensionar a própria percepção que o leitor possui do passado. Logo, permite que localizemos diferentes significados na leitura de um texto: “um momento histórico específico não limita o significado de um poema; de fato, o mesmo leitor romano pode interpretar, por exemplo, uma ode de Horácio de forma muito diferente em diferentes circunstâncias históricas. Os textos têm significados diferentes em situações diferentes” (Martindale, 2006, p. 4, tradução nossa6).

Lorna Hardwick (2003, p. 5, tradução nossa7) define um dos objetivos do cruzamento entre Estudos Clássicos e Teoria da Recepção como “os processos artísticos ou intelectuais envolvidos na seleção, imitação ou adaptação de obras antigas - como o texto foi ‘recebido’ e ‘reconfigurado’ por um artista, escritor ou designer; como a obra posterior se relaciona com a fonte”. Assim, com tais propostas podemos mapear uma série de interpretações, tanto de um leitor do final do século XIX, um leitor da Alemanha Oriental dos anos 1960 ou um leitor nos Anos de Chumbo da Ditadura Militar. Nessa perspectiva teórica, examinamos a recepção da tragédia “Filoctetes” de Sófocles, reconfigurada por um escritor politicamente engajado como Carlos Henrique Escobar no “Ramom, o Filoteto Americano”.

Gabriela Rocha Rodrigues (2015, p. 63), ao investigar a montagem de “Antígona” do diretor Luiz Paulo Vasconcelos, afirma: “Vasconcellos é um leitor consciente de sua posição enquanto sujeito histórico, afirma sua admiração pessoal pela peça e, ao realizar a montagem, concretiza o trânsito necessário entre a origem do conteúdo milenar e o significado desse conteúdo no período histórico vivenciado - uma ditadura militar”. Nossa problemática, apesar de mais modesta, é semelhante à defendida pela autora: buscamos entender como um leitor consciente de determinado papel histórico redimensionou a trama de Sófocles para um contexto de ditadura e afirmou com sua peça uma oposição ao Regime Militar.

São raros os estudos sobre as obras dramáticas de Carlos Henrique Escobar, o que torna ainda mais importantes investigações sobre suas peças, e ainda mais escassos os textos que citam “Ramom, o Filoteto Americano”. Um estudo chamado “A mímesis astuciosa: paisagens míticas na literatura brasileira contemporânea”, de Fragale Pate Nuñez (2011), talvez seja um dos primeiros a citar a peça dentro de uma problemática maior, relacionando-a com um campo mítico. No âmbito dos Classical Reception Studies, a tese italiana “Il Mito classico nella drammaturgia di língua portoghese: I cicli argonautico, tebano e troiano” (2017), defendida por Corrato Cuccoro na Università Cattolica del Sacro Cuore em 2016/17, é um trabalho que almeja ser um painel sobre a recepção dos mitos trágicos na dramaturgia moderna de língua portuguesa. Cuccoro dedica alguns apontamentos sobre os textos de Escobar que dialogam com o imaginário trágico, mas apenas em nível de enredo, sem uma reflexão mais aprofundada sobre Ramom.

Filoctetes na Ditadura Militar

O teatro teve um papel importante na frente de oposição à Ditadura. Em uma época em que a televisão ainda não se consolidara como grande veículo de comunicação de massa, o teatro exercia o espaço de uma discussão qualificada sobre o Brasil. Yan Michalski (1985, p. 8) argumenta que o teatro brasileiro adquiriu um importante destaque, “assumindo-se como uma frente ampla de resistência, na qual se uniram provisoriamente os mais variados e às vezes antagônicos setores da criação cênica, o teatro adquiriu na vida do país um destaque que nunca antes lhe coubera”.

César Alessandro Figueredo mapeia três momentos do teatro frente ao regime: “o teatro de resistência: limiar do golpe até a instituição do AI-5; 2) o teatro sob coação: após o AI-5 até os primeiros ventos liberalizantes no final da década de 70; e, 3) o teatro da denúncia: do final dos anos 70 e a redemocratização do Brasil” (Figueiredo, 2015, p. 9, destaques no original). O texto de Escobar pode ser compreendido no momento de “teatro sob coação” de 1968 até o final da década de 1970. Dois grupos têm uma trajetória simbólica nesse momento: o “Teatro de Arena”, de Augusto Boal, que partiu para o exílio em 1969, e o “Teatro Oficina”, de José Celso Martinez, também exilado.

É necessário cruzar esses momentos do teatro com outros três tempos apresentados por Marcos Napolitano, tendo em mente que a repressão no Regime Militar é construída à medida que são esboçadas resistências da sociedade civil. Os três momentos repressivos mapeados por Marcos Napolitano (2019) são: 1) 1964-1968: o objetivo era dissolver as conexões entre a “cultura de esquerda” e as classes populares, transformando a atividade intelectual em subversiva, principalmente com o fechamento do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e de Centros de Alfabetização de Base; 2) 1968-1979: reprimir o movimento da cultura como mobilizadora do radicalismo da classe média (principalmente os estudantes), sistematizando a censura prévia sobre materiais impressos e vigiando de perto possíveis elementos subversivos; (3) 1979-1985: controlar o processo de desagregação da ordem política e moral, estabelecendo limites de conteúdo e linguagem, em que, apesar de um progressivo arrefecimento, teve seguimento vigilância das produções culturais.

Luiz Carlos Maciel (2005, p. 107) salienta que a censura, apesar de ter atingido o teatro comercial pela repressão moralizadora do “palavrão” e pela proibição da nudez, perseguia principalmente o teatro de caráter político por se referir claramente à realidade nacional, mas o teatro de vanguarda, como a peça de Escobar, era poupado por não ser compreendido: “A orientação mais poupada pela censura autoritária era a do teatro de vanguarda, talvez porque os próprios censores não soubessem direito do que se tratava e tinham alguma dificuldade em entender. Essa situação favoreceu o desenvolvimento da vanguarda no Brasil”.

O texto dramático “Ramom, o Filoteto Americano” de Carlos Henrique Escobar foi escrito para o Concurso Nacional de Dramaturgia do ano de 1975. Esse concurso tem uma história problemática no Regime Militar. Começou em 1964 e foi interrompido bruscamente em 1968, retornando entre 1974 e 1979, quando o teatrólogo Orlando Miranda de Carvalho presidiu a gestão do Serviço Nacional de Teatro (SNT). Meliandre Garcia de Souza (2011) defende que a gestão de Orlando Miranda de Carvalho foi de mediação entre o campo político e o campo da cultura, sofrendo críticas do último, mas possibilitando um amplo trabalho em nível de divulgação e fomento do teatro. Nesse contexto de aproximação entre regime e sociedade pelo teatro, uma das primeiras ações de Miranda de Carvalho foi reativar o Concurso Nacional de Dramaturgia. O funcionamento do Concurso tinha a seguinte dinâmica:

O “Prêmio SNT” era um concurso anual de textos inéditos de autores brasileiros ou radicados no Brasil sobre assuntos relacionados à cultura brasileira. No primeiro semestre de cada ano abriam-se as inscrições do concurso, cujo resultado final era divulgado em meados do mesmo ano. No ato da inscrição exigiam-se seis cópias da peça assinadas com pseudônimo e um envelope lacrado com informações confidenciais como título da peça, pseudônimo usado, nome verdadeiro e endereço completo (Souza, 2011, p. 2-3).

Com a volta do Concurso em 1974, os prêmios foram ampliados para 5 peças publicadas e 12 aconselhamentos de leitura, além da premiação das 3 primeiras colocadas. Yan Michalski ressalta que as peças não eram propriamente instigantes do ponto de vista intelectual, mas cumpriam o que considerava função social do teatro:

No seu conjunto, a dramaturgia representada no concurso redescobriu a velha missão catártica das origens do drama: muitos dos autores concorrentes parecem ter escrito suas peças atendendo exclusivamente ao inconsciente mas irresistível impulso de vomitar as freqüentemente terríveis tensões que as afligiam, e beneficiar-se assim de um processo de purificação, alívio e volta ao equilíbrio (Michalski, 1974 apud Souza, 2011, p. 6).

O Concurso Nacional de Dramaturgia de 1975 teve 175 inscritos, um número menor que o ano anterior. Para Souza, a redução de inscritos era uma forma de boicote ao concurso como protesto à censura. Os vencedores foram as peças “Domingos, Zeppelin”, de Marcus Vinicius, “Sonho de Uma Noite de Velório”, de Odir Ramos da Costa, e “O Palácio dos Urubus”, de Ricardo Meireles Vieira. Para publicação, também foram recomendados o texto “Kuka de Kamaiorã”, de Leilah Assunpção e “Ramon, o Filoteto Americano”, de Carlos Henrique Escobar (Souza, 2011). Na apresentação do texto, encontramos a seguinte nota sobre o concurso, assinada por Orlando Miranda de Carvalho:

O Concurso de Dramaturgia - Prêmio Serviço Nacional de Teatro -, realizado anualmente, tem como objetivo não só o auxílio financeiro - que se cumpre através dos três primeiros prêmios - mas também o incentivo para a divulgação dos textos, com a indicação de dois prêmios de publicação. O concurso de 1975, cuja comissão julgadora foi formada por Bárbara Heliodora, Joel Pontes, Leo Jusi, Miroel Silveira, Orlando Miranda e Silnei Siqueira, concedeu um dos prêmios de publicação à peça Ramom, o Filoteto Americano, de Carlos Henrique Escobar, cuja edição vem agora a público, cumprindo-se assim um item básico do nosso programa de ação cultural (Escobar, 1976, p. 5, grifo do autor).

Em uma entrevista para Dr. João Kogawa, Carlos Henrique Escobar fala sobre esse período da sua vida, os prêmios recebidos na época do concurso e como eles foram propositalmente esquecidos:

Nesta época, durante uma década, eu por todos os anos ganhava o prêmio de dramaturgia do “Serviço Nacional de Teatro”. Porém, eram eles, os estalinistas, os diretores deste órgão cultural no Brasil. Tiveram que me editar dez peças e não as distribuíram (e elas estão podres e úmidas nos porões da Funarte). Vim a saber isso agora, pois um amigo meu e ator da minha primeira peça (Antígone América) se tornou até recentemente diretor da Funarte (Sérgio Mamberti). Nem os textos sobre Althusser nem meu teatro eles deixaram existir - e eu não me dava conta do que se passava (Kogawa, 2014, p. 934).

O texto de Escobar traz em seu cerne as questões do seu tempo, em parte uma reflexão sobre os Anos de Chumbo e sobre o papel da luta armada. Escobar relembra esses anos:

Participei da “luta armada” - e os estalinistas que se diziam “neutros” eram um perigo constante no Rio e em SP - e parei de escrever ou ler. Um dia acabei no Doi-Codi e os líderes de um movimento (que se revelaram incapazes) foram trazidos à minha cela e me denunciaram. Professores e meus alunos - uns dez - morreram. Fui cassado durante oito anos e depois anistiado, e minha vida nas unidades de comunicação, de filosofia e, enfim, na psiquiatria - quando já não existia PCB - continuou a ser de exclusão e perseguição (Kogawa, 2014, p. 935).

O “Filoctetes” de Sófocles teve um grande boom crítico entre as décadas de 1960 e 1970. A helenista Patricia Easterling (1978, p. 27, tradução nossa8), ao investigar o volume crítico de textos que problematizam a peça, chegou a esta conclusão:

O Filoctetes atraiu mais atenção crítica nos últimos quinze anos do que qualquer outra peça de Sófocles, mais talvez do que qualquer outra tragédia grega. Isso pode ser motivado em parte pela familiaridade e importância de seus temas - isolamento e comunicação, meios e fins - para os leitores modernos e em parte por ser uma peça de notável complexidade que apresenta um desafio especial para o intérprete.

O tema do homem enfermo que é abandonado pela sociedade e mais tarde por ela demandado quando se torna imprescindível tem na tradição grega um símbolo em Filoctetes. O mito de Filoctetes aparece em alguns textos da literatura grega, tanto na “Ilíada” (II, vv. 716-725) como na “Odisseia” de Homero (III, v. 190 e VIII, vv. 219-20), na “Primeira Pítica” de Píndaro (vv. 96-116), em fragmentos dos “Cantos Cíprios”, da “Pequena Ilíada” e da obra de Baquílides.

Em linhas gerais, Filoctetes, filho do argonauta Peante, era um guerreiro hábil no manuseio do arco. Não bastasse sua excelente habilidade, ele tinha recebido do próprio Héracles, por acender sua pira funerária, o arco e as flechas de Apolo, que por magia nunca erravam o alvo. O arqueiro embarcou a caminho de Troia com os Helenos, mas foi picado por uma serpente em uma parada na ilha de Crise. Algumas versões apontam que ele profanou um templo sagrado e a picada foi consequência desse ato. A ferida de Filoctetes foi no pé e causou dores inumanas que o reduziam a uma condição animal. Os generais gregos acabaram deixando o guerreiro na ilha deserta de Lemnos. Posteriormente, decorridos então nove anos de combate na planície de Troia, um adivinho vaticinou que a guerra só seria vencida com Filoctetes, se ele fosse reintegrado aos campos de batalha.

O “Filoctetes” (409 a.C.) de Sófocles coloca em cena quatro personagens: o arqueiro Filoctetes, Odisseu, o jovem Neoptólemo, filho de Aquiles, e Héracles (deus ex machina). O coro da peça é formado pelos marinheiros que acompanham Odisseu e Neoptólemo. É a única tragédia sobrevivente que possui somente personagens masculinos e é também a única peça de Sófocles que emprega a resolução com o deus ex machina. A peça começa com o retorno de Odisseu à ilha de Lemnos, em companhia de Neoptólemo, nove anos depois do abandono e sabendo da profecia de um adivinho que a Guerra de Troia só seria vencida com o arco de Apolo.

Os três trágicos, Ésquilo, Sófocles e Eurípides, escreveram tragédias sobre o episódio da persuasão para o retorno de Filoctetes aos campos de batalha. Infelizmente, apenas a tragédia de Sófocles chegou até nós inteira. A peça de Sófocles discute a temática do isolamento, da comunicação e dos fins como justificação para os meios, trazendo para o debate temas centrais de uma sociedade que encarava conflitos geracionais. O “Filoctetes” convidava os contemporâneos a examinarem seus conflitos mediante a postura das três personagens colocadas em cena, do embate à redenção.

A peça “Ramom, o Filoteto Americano” é uma adaptação livre do mito de Filoctetes, o que já é destacado no título. Na primeira indicação cênica da peça, Escobar aponta o imaginário do texto da seguinte forma:

A ação se desenvolve no Alto Peru, sob a dominação espanhola, antes da fundação da Bolívia. Os personagens são nobres e militares espanhóis. Soldados mestiços, índios, mineiros mestiços e índios. Procura-se usar todo o teatro para o espetáculo, muitas vezes combinando recursos de projeção cinematográfica e projeção de slides com uma ação dramática (Escobar, 1976, p. 9, grifo do autor).

A América de Ramom é uma América colonial, permeada por conflitos, que pertencem ao passado histórico e ao presente, como ressalta a indicação: “A peça começa com uma projeção, na tela circular que envolve todo o teatro, de um conflito entre grevistas e policiais” (Escobar, 1976, p. 9). Escobar pretende demarcar que existe um jogo temporal de conflito, que salienta ao público que a peça não é sobre um passado encerrado, mas sobre o presente: “Propositadamente, este conflito pode ser atual, num tempo diverso daquele da ação da peça. Paralelamente se desenvolvem cenas rápidas de conflito entre soldados da colônia espanhola e mineiros mestiços e índios. Estão intercaladas cenas no palácio com os espanhóis colonizadores” (Escobar, 1976, p. 9). Corrato Cuccoro (2017, p. 141, tradução nossa9) afirma que tal cenário e jogo de temporalidades estão intimamente ligados à posição política de Escobar:

O marxismo do autor transforma-se, evidentemente para os propósitos do concurso, em uma evocação emocional épico-trágica da libertação do Alto Peru (atual Bolívia) do domínio colonialista espanhol. O artífice da empreitada, concluída em 6 de agosto de 1825, não é diretamente El Libertador, o aristocrático Simón Bolívar, mas sim Ramon Ianaiá, um mestiço hispano-indígena de extraordinária capacidade militar que, depois de uma profunda crise de consciência, passa a combater pela causa dos antigos inimigos.

Assim, a América ecoa o presente, distante de uma idade de ouro como marca uma personagem: “A América de hoje não é mais a América cheia de paz e riquezas dos tempos dos nossos pais. A situação é mais sombria do que se imagina. As notícias são muitas e quase todas sempre desencontradas” (Escobar, 1976, p. 16-17).

O enredo da peça é bastante complexo pela quantidade de personagens, quase 30, pela extensão, com 35 cenas, e pelo coro variável, composto por soldados, indígenas ou mineiros. O texto pode ser resumido da seguindo forma:

Tendo sobrevivido ao conflito inicial entre soldados e mineiros, dois soldados conversam, lembrando que Ramom é o melhor soldado espanhol, embora ele esteja afligido por uma doença, vivendo em uma mina abandonada. O Vice-Rei, que recebera a mensagem do Rei da Espanha sobre um golpe organizado por Bolívar, conversa com o General sobre como fazer o mestiço Ramom retornar do autoexílio e novamente comandar o exército espanhol. Ramom goza de grande prestígio entre os soldados.

O Vice-Rei não esconde sua infelicidade ao perceber o poder concentrado nas mãos de um mestiço como Ramom e encarrega um ex-companheiro de Ramom, o jovem general Hernández a convencer Ramom a retornar para as tropas. Hernández recorda que nos últimos tempos de luta os soldados mantinham distância de Ramom, por causa de seu fétido ferimento. Para conquistar a confiança de Ramom, Hernández sugere que seja feita uma mediação com o antigo mentor de Ramom, o cacique aimará, que também ensinara tecelagem ao guerreiro e Hernández. O Vice-Rei não confia no cacique e acredita que Hernández deve conquistar sozinho o apoio de Ramom.

O velho cacique acaba se dispondo a ajudar Hernández porque a doença de Ramom parece cada vez mais preocupante. O cacique promete a Ramom mais fios coloridos para ele continuar tecendo seus tapetes sagrados, com suas duas lanças. O encontro entre Hernández, seus soldados e Ramom é precedido por uma longa sequência em que um anão fala com uma multidão de curiosos, perto da mina, oferecendo um espetáculo que retrata a vida do guerreiro. Explorando a lenda de Ramom, ele promete que as pessoas verão o monstro; porém, na hora de mostrar Ramom, aparece de forma sorrateira uma série de imagens e frases que evocam uma experiência olfativa repugnante.

Hernández acaba encontrando Ramom graças à ajuda do irmão mais novo do guerreiro, um exímio flautista, que toca a flauta para chamar Ramom. O jovem general explica a situação desesperadora, com a iminente invasão de Simón Bolívar, e pede a ajuda do guerreiro, relembrando momentos do passado, quando lutaram juntos pela Espanha. Ramom recusa a proposta de Hernández porque está concentrado nos seus tapetes. Bolívar poderá exterminar todos os espanhóis da América, assim como eles fizeram anteriormente com os indígenas. O Coro de mineiros afirma que lutaria com quem tentasse afastar Ramom da paz da mina e da função de tecelão.

Um hábil plano é colocado em ação para convencê-lo a se unir às tropas. Uma antiga noiva branca de Ramom vem comovê-lo com o argumento de que, em uma invasão, ela e seus familiares correm perigo. Ramom mostra-se inflexível e não cede, mas promete à antiga noiva segurança em caso de ataque, caso ela se refugie na caverna. Os soldados aproveitam a distração de Ramom e roubam suas lanças, que são usadas para tecer. A noiva fazia parte do embuste. O Coro de mineiros empenha-se em forjar novas lanças, que ao mesmo tempo marcam o despertar de uma nova postura do herói frente à sua identidade. As lanças são forjadas em ouro, ferro e prata e assim anunciadas: “Outrora lanças aimarás, hoje lanças americanas” (Escobar, 1976, p. 102).

Enquanto isso, o jovem general Hernández não consegue manejar as lanças sagradas de Ramom. Para justificar-se, ele nega que sejam as armas genuínas de Ramom. O Coro de mineiros divide-se em 5 grupos. O primeiro dá ao herói as novas armas de qualidade extraordinária. O segundo transporta o corpo do velho cacique. O terceiro carrega o corpo da noiva, morta pela acusação infundada de ter substituído as lanças. O quarto carrega os membros do irmão mais novo. A fúria devolve a Ramom seu ímpeto combativo, mas dessa vez contra o poder espanhol. O Coro insiste em um povo americano sem nome. A peça termina com Ramom, com os pés consumidos pela ferida, segurando as lanças para ficar em pé e louvando os homens que “combatem e fazem história” (Escobar, 1976, p. 122).

A intricada peça de Carlos Henrique Escobar é construída a partir de elementos do mito de Filoctetes. A deserta Lemnos é transfigurada em um movimentado Alto Peru colonial. A figura central da trama é Ramom, que como Filoctetes é marcado por uma chaga que o exclui do convívio social pelo cheiro desagradável. O arco de Filoctetes na tragédia grega é substituído por duas lanças. Assim como os gregos não poderiam alcançar a vitória em Troia sem o arco de Filoctetes, os espanhóis duvidam das próprias chances sem Ramom. O jovem general Hernández emula o jovem Neoptólemo: ambos têm a missão de trazer um herói exilado de volta ao campo de batalha. Enquanto a tragédia de Sófocles desenvolve Odisseu como um mestre retórico de Neoptólemo, essa figura não existe no texto de Escobar. O Vice-Rei não tem a mesma importância que Odisseu na tragédia sofocleana. Se na tragédia de Sófocles temos um complicado plano retórico para enganar Filoctetes, na peça de Escobar o plano parece se formar de maneira mais orgânica.

Para Nuñez (2011, p. 44-45), a peça explora elementos de metateatro e engajamento da arte como forma de luta: “Há nessa peça um metateatro que, junto com a figura marcante do anão, marca um questionamento não apenas no que tange à luta de classes ou povos, mas à função da arte no contexto social. No lugar de lamentos e gemidos, Ramon utiliza as duas lanças para tecer tapetes por não desejar mais participar de guerras”.

A dualidade de Ramom, um guerreiro exilado que com suas armas faz tapetes e não a guerra, expressa a ideia de que há guerras que não são travadas em campos de batalha, propriamente uma oposição também intelectual à ditadura.

Se a tragédia de Sófocles termina com Héracles, deus ex machina, conciliando o conflito e construindo um consenso entre Filoctetes, Odisseu e Neoptólemo para que todos viajem a Troia, o final de “Ramom” não apresenta consenso. Ramom rompe com o exército depois de ser exposto à crueldade dos espanhóis e, mesmo fustigado pela ferida, decide tomar parte de uma nova luta, integrando-se à história como mais um dos dispostos a morrer pela liberdade. Assim, a peça de Escobar desloca o mito para uma América conflituosa, para que a partir dela consigamos perceber os problemas identitários da condição americana.

A ferida de Ramom

No que concerne ao “Filoctetes”, Dimitris Tziovas nos apresenta os dois elementos mais recorrentes na recepção do texto. O primeiro é a dimensão da dor e da doença: “Filoctetes tornou-se uma figura emblemática da cultura de dor e sofrimento físico, e essa ênfase na dor reúne preocupações estéticas e médicas” (Tziovas, 2014, p. 300, tradução nossa10). O segundo é o tema do exílio (Tziovas, 2014). A doença e o autoexílio de Ramom ganham grande dimensão simbólica na peça, e o que exploraremos a seguir é como sua ferida desempenha um papel significativo na construção do sentido do texto.

A ferida de Filoctetes não é uma marca do campo de batalha ou emblema de coragem. Ela é tratada como uma doença, em grego “nósos”, sofrida em decorrência de uma ofensa aos deuses por ter se aproximado da guardiã do templo de Crisa11. Ela não representa o que Nicole Loraux (1995, p. 88, tradução nossa12) caracterizou como uma ferida de virilidade: “Virilidade, como expressa pelo que pode ser visto no corpo aberto do homem, como se as feridas do guerreiro atestassem a qualidade do cidadão”.

Sófocles descreve a doença de Filoctetes com dois adjetivos, primeiramente como devoradora (diabóro) - “Ele supurava no pé com uma doença devoradora” [νόσῳ διαβόρῳ], (Sófocles, 2008, v. 7) - e depois como uma doença selvagem (ágrios): “padece uma doença selvagem” [νοσεῖ μὲν νόσον ἀγρίαν] (Sófocles, 2008, v. 173).

O sofrimento de Filoctetes com sua doença selvagem é estreitamente relacionado na peça ao afastamento do convívio humano. É ele a consequência mais sentida pelo arqueiro, em termos de solidão, privações e, especialmente, do abandono. Sua doença (nósos) o afastou dos homens e o aproximou das feras, devorou parte do sentido da sua existência. É ele um guerreiro sem guerra, um cidadão sem cidade.

Na modernidade, o tema da doença é um dos símbolos mais polissêmicos para conjugar a relação entre indivíduo e sociedade. François Laplantine (1991, p. 145), em seu esforço de delinear os marcos de uma antropologia da doença, define esses sentidos como “a experiência da doença, porque ela é sem dúvida, ao mesmo tempo, o que há de mais individual e de mais íntimo no ser humano e o que é mais repleto de social.

A doença constrói uma semântica que envolve as forças do indivíduo e da sociedade nas percepções de saúde, cura ou morte, nas quais estão implicados significados de estabilidade e instabilidade. Em um ensaio clássico, Susan Sontag (2007, p. 64) afirma: “As enfermidades sempre foram usadas como metáforas com o intuito de reforçar as acusações de que uma sociedade era corrupta ou injusta”.

O corpo doente de Ramom possui uma semântica temporal, que relaciona seu passado de soldado espanhol matador de indígenas e sua situação de autoexílio, mas, ao mesmo tempo, as feridas pertencem à sociedade colonial, ao status vigente, como descreve o Anão: “Vamos, coragem. Estas feridas são nossas, de todos os mestiços. Séculos de colaboração. Ouviram o que eu disse? Afinal, vocês não querem conhecê-lo? Isto é Ramom. Isto são suas feridas jamais curadas (Escobar, 1976, p. 26).

As feridas abertas de Ramom constituem-se o problema da peça, ao passo que no “Filoctetes” de Sófocles a dinâmica se desenvolve em relação ao convencimento do arqueiro, sendo a doença um elemento, físico e simbólico, que é preciso superar para que os ressentimentos sejam aplacados na busca de um consenso. A peça de Escobar problematiza os matizes da ferida. Dela surge um sentimento de arrependimento e ao mesmo tempo uma marca constante de um crime ou culpa ainda não aplacada: “As feridas de Ramom Ianaiá nunca fecharam. (Vaias, etc.) Espanhóis assassinos!” (Escobar, 1976, p. 35). Ramom é um homem em decomposição. Ele está aberto como diz o médico que o examina: “Mas o cheiro é forte e é certamente de feridas mal fechadas. [...] Ramom Ianaiá é chagas, ferros e chagas. Ele está aberto” (Escobar, 1976, p. 47).

O corpo de Ramom é símbolo do corpo da América Latina, de um continente explorado, feito a partir de sangue e injustiças. É possível conjecturar que “Ramom, o Filoteto Americano” tenha sido em parte construído a partir de uma leitura de “As veias abertas da América Latina” (1971) de Eduardo Galeano. Obviamente, é difícil medir o nível dessa influência no texto. O sangue indígena jorrado na guerra é um elemento recorrente na narrativa de Galeano (2006, p. 70, tradução nossa13): “submergidos em um banho de sangue para que suas terras, ricas em recursos minerais e férteis para o cultivo, pudessem ser vendidas” ou “consequências piores que o sangue e o fogo da terra teve a implantação de uma economia mineira” (Galeano, 2006, p. 64, tradução nossa14). A própria capa do livro de Galeano era uma ilustração de sangue formando o mapa da América Latina.

A doença é um elemento que não encontra cura na peça. É o destino de Ramom ser atormentando por uma chaga que o desgasta. Se tomarmos o lanceiro como símbolo para a condição latino-americana, ele desempenha o papel de uma sociedade imobilizada por sua dor, herança de outras batalhas:

VOZES: Você ficará doente! Para sempre! Tudo por causa de duas lanças! Vá, Ramom, ele é teu pai! Nenhuma água jamais te lavará! Doente para sempre, Ramom! Para sempre! Esta lama tem mil anos, mil pontas de faca! Todos os animais mortos do mundo estão no fundo deste charco! Eles se vomitam, se mordem. Toda a América antes dos brancos. Ramom, para sempre, sempre. Doente e armado. América mestiça. Toda a América depois dos brancos (Escobar, 1976, p. 55).

A condição de Ramom, o guerreiro ferido e exilado que com suas lanças tece enormes tapetes, pode ser compreendida como uma reflexão do intelectual ou do artista em tempos sombrios. Como guerrear contra uma ditadura de maneira eficaz? É uma pergunta entremeada no texto de Escobar. Qual deve ser a posição do intelectual? O próprio exílio era uma triste realidade para muitos intelectuais e artistas na época em que o texto foi escrito. Ramom ecoa essas incertezas: “RAMOM: (Nervoso.) A América? Me faltam fios. A América? Por quem eu estive lutando? Como lutar certo? Como arrumar os ferimentos, as razões, o lugar para se ficar, como parar? (Vão sumindo todos e ficam Ramom e o irmão.) A América? Oh! me faltam fios” (Escobar, 1976, p. 52).

A doença de Ramom vai progredindo, seu cheiro vai ficando cada vez mais nauseante, e seu estado vai piorando. O jovem general Hernández descreve o lanceiro desta forma: “O grande Ramom é uma gangrena viva” (Escobar, 1976, p. 60). A pressão para que Ramom retorne ao exército espanhol vai degradando cada vez mais a sua condição. É como se o terror da situação exigisse uma resposta, que demora a ser dada, e o guerreiro agoniza no palco: “Minha coxa ainda sangra. Sempre. Minha boca se decompõe, ela é pus e dejetos. Chega. Basta. Deixem-me. (Os mineiros se afastam.) Já não paro de me decompor. Sou uma fogueira. Meus músculos queimam como um tigre incendiado. Basta. Basta” (Escobar, 1976, p. 77).

O corpo aberto de Ramom, a dor da sua ferida, é uma maneira de significar os anseios de liberdade de uma América cerceada por perseguição, tortura e morte. O “Filoctetes” de Escobar centraliza a ferida ligada à representação da dor para comunicar a revolta e o sentido de absurdo da Ditatura Militar brasileira.

Considerações finais

O “Filoctetes” de Sófocles é uma tragédia de um guerreiro ferido que é colocado em uma situação de reavaliação das possibilidades de voltar ao conflito. O arqueiro mantém-se inflexível e somente decide voltar ao combate com seu arco mágico depois que um ente divino estabelece o consenso e cura sua doença. O “Filoteto Americano” retrata um lanceiro que, como Filoctetes, possui uma chaga que o desfigura e o afasta da humanidade, mas Ramom, diferentemente de Filoctetes, reavalia a legitimidade da guerra, os sentidos de matar outros mestiços como ele e as consequências dessa guerra.

A doença de Ramom é simbólica, deslocando presente e passado. Ramom é contemporâneo de todos os americanos que sofrem com as ditaduras da década de 1970. Sua ferida é de um mundo exposto que tem dificuldade de entender seu passado e somente consegue decidir seu futuro quando todos os vínculos emocionais são destruídos. Diferentemente da peça de Sófocles, não existe cura para os males de Ramom. Ele termina a peça ainda desgraçado por seus males, mas disposto a lutar, como os homens que fazem história.

Principiamos nosso artigo com uma frase de Frederic Jameson afirmando que “história é o que fere” e examinamos a ferida de uma personagem no teatro como referência às feridas da Ditadura. O país passa por um momento delicado no qual a memória dos torturadores parece mais importante do que as cicatrizes dos corpos torturados. Pensar a arte na Ditadura Militar, pelo ponto de vista de um mito grego e de sua recepção, é lembrar que a brutalidade política ainda está presente no âmago de nossas instituições.

Fontes

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TZIOVAS, Dimitris. Re-imagining the past: antiquity and modern greek culture. Oxford: Oxford University Press, 2014.

Notas

1 No original: “Nostalgia is not always about the past; it can be retrospective but also prospective. Fantasies of the past determined by needs of the present have a direct impact on realities of the future”.
2 No original: “Greek tragedy has proved magnetic to writers and directors searching for new ways in which to pose questions to contemporary society and to push back the boundaries of theatre”.
3 No original: “the ways in which Greek and Roman material has been transmitted, translated, excerpted, interpreted, rewritten, re-imaged and represented”.
4 No original: “Reception has thus helped to challenge the traditional idea of what “classics” is […], prompting reflection on how the discipline has been constituted, variously and often amid dispute, over past centuries. It is not merely a matter of looking at what happened to classics after what we now like to call “late antiquity”, but of contesting the idea that classics is something fixed, whose boundaries can be shown, and whose essential nature we can understand on its own terms”.
5 No original: “L'histoire de la littérature, c'est un processus de réception et de production esthétiques, qui s'opère dans l'actualisation des textes littéraires par le lecteur qui lit, le critique qui réfléchit et l'écrivain lui-même incité à produire à son tour. La somme indéfiniment croissante des «faits», telle que la recueillent les histoires traditionnelles de la littérature, n'est rien de plus qu'un résidu de ce processus, qu'un passé collecté et mis en ordre — une pseudo-histoire, donc, et non pas une histoire authentique. Considérer qu'une succession de tells «faits littéraires» représente à elle seule une tranche de l'histoire de la littérature, c'est confondre le caractère événementiel d'une oeuvre d'art avec celui d'un fait historique objectif”.
6 No original: “A particular historical moment does not limit the significance of a poem; indeed the same Roman reader might construe, say, an ode of Horace very differently at different historical junctures - texts mean differently in different situation”.
7 No original: “the artistic or intellectual processes involved in selecting, imitating or adapting ancient works - how the text was ‘received’ and ‘refigured’ by an artist, writer or designer; how the later work relates to the source”.
8 No original: “Philoctetes has attracted more critical attention in the last fifteen years than any other play of Sophocles, more perhaps than any other Greek tragedy. This may be partly because its themes - alienation and communication, ends and means - are familiar and important to modern readers, partly because it is a play of remarkable complexity which presents a special challenge to the interpreter”.
9 No original: “Il marxismo dell’autore si trasfigura, evidentemente ai fini concorsuali, in una commossa rievocazione epico-tragica della liberazione dell’Alto Perù (l’attuale Bolivia) dal dominio colonialista spagnolo. Artefice dell’impresa, conclusasi il 6 agosto 1825, non è direttamente El Libertador, l’aristocratico Simón Bolívar, bensì Ramon Ianaiá, un meticcio indio-ispanico di straordinarie capacità militari, che dopo una profonda crisi di coscienza torna a combattere per la causa degli antichi nemici”.
10 No original: “Philoctetes has become an emblematic figure of the culture of pain and bodily suffering, and this emphasis on pain brings together aesthetic and medical concerns”.
11 Para uma análise sobre a ferida de Filoctetes na tragédia de Sófocles, ver Dagios (2019).
12 No original: “Virility, as expressed by what can be seen on the male's opened body, as if the warrior's wounds speak for the quality of the citizen”.
13 No original: “sumergidos en un baño de sangre para que sus tierras, ricas en recursos minerales y fértiles para el cultivo, pudieran ser vendidas”.
14 No original: “peores consecuencias que la sangre y el fuego de la guerra tuvo la implantación de una economía minera”.


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