Dossiê

Poéticas pandêmicas no corredor de vozes: os discursos da apropriação e da reciclagem

Pandemic poetics in the voice hall: discourses of appropriation and recycling

Poéticas pandémicas en el corredor de la voz: los discursos de apropiación y reciclaje

Elisabete Alfeld
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil

Poéticas pandêmicas no corredor de vozes: os discursos da apropriação e da reciclagem

Revista NUPEM (Online), vol. 13, núm. 30, pp. 107-127, 2021

Universidade Estadual do Paraná

Recepción: 01 Mayo 2021

Aprobación: 23 Agosto 2021

Resumo: O tempo de pandemia foi (e ainda é) o novo tempo, o tempo da vida remota dependente das telas que, sob a variedade de formatos e gêneros, gerou a profusão de novos conteúdos e novos procedimentos discursivos contaminados pela avassaladora ação de um vírus. Neste cenário, o trânsito entre as matérias jornalísticas e as manifestações artísticas esteve presente em outdoors, vídeos, performances e instalações. O mundo se reorganizou e, nesse processo, foram significativas as narrativas sobre esse “novo mundo”. Assim, é diante da diversidade de discursos, de contextos comunicativos e de suportes que se localiza o objeto de nosso estudo: interessa-nos abordar nas poéticas pandêmicas os procedimentos de apropriação e reciclagem presentes nas práticas discursivas de algumas das manifestações da produção artística.

Palavras-chave: Poéticas pandêmi-cas, Apropriação, Reciclagem, Práticas discursivas.

Abstract: The pandemic time was (and still is) the new time, the time of remote life dependent on screens that, under the variety of formats and genres, generated the profusion of new content and new discursive procedures contaminated by the overwhelming action of a virus. In this scenario, the transit between journalistic articles and artistic manifestations was present in billboards, videos, performances and installations. The world reorganized itself and, in the process, the narratives about this ‘new world’ were significant. Thus, it is in the face of the diversity of discourses, communicative contexts and supports that the object of our study is located: we are interested in addressing in pandemic poetics the procedures of appropriation and recycling present in the discursive practices of some of the manifestations of artistic production.

Keywords: Pandemic poetics, Appro-priation, Recycling, Discursive practices.

Resumen: La época de la pandemia fue (y sigue siendo) la nueva época, la época de la vida remota dependiente de pantallas que, bajo la variedad de formatos y géneros, generaban la profusión de nuevos contenidos y procedimientos discursivos contaminados por la abrumadora acción de un virus. En este escenario, el tránsito entre artículos periodísticos y manifestaciones artísticas estuvo presente en vallas publicitarias, videos, performances e instalaciones. El mundo se reorganizó y, en el proceso, las narrativas sobre este "nuevo mundo" fueron significativas. Así, es frente a la diversidad de discursos, contextos comunicativos y soportes que se ubica el objeto de nuestro estudio: nos interesa abordar en la poética pandémica los procedimientos de apropiación y reciclaje presentes en las prácticas discursivas de algunas de las manifestaciones. de producción artística.

Palabras clave: Poética pandémica, Apropiación, Reciclaje, Prácticas discursivas.

Introdução

Bem ou mal, o fato é que até o fim do mês de agosto, nossos concidadãos, puderam, pois, ser conduzidos à sua última morada, se não decentemente, pelo menos com uma ordem suficiente para que a administração mantivesse a consciência de que cumpria seu dever (Camus, 2019, p. 299-300).

Se omitida a autoria, a situação relatada na epígrafe bem que poderia ter saído de uma notícia veiculada na mídia. Tal aspecto foi decorrente do estado pandêmico desde meados de fevereiro de 2020. Conforme o vírus foi ceifando vidas, os rituais de sepultamento foram sendo alterados:

A pandemia limitou os rituais em que parentes e amigos se despedem daqueles derrotados pela doença. Muitos descobrem na internet e nas redes sociais uma forma de aliviar a dor dessa perda. [...] Muitos rituais milenários de luto e despedida dos mortos não podem ser realizados durante a pandemia de Covid-19. Atualmente, milhões de sobreviventes em todo o mundo estão enfrentando tal situação. No Brasil, onde, segundo dados oficiais, mais de 1% da população já foi infectada e 100 mil pessoas morreram por Covid-19, o Ministério da Saúde estabeleceu em março um novo protocolo de procedimentos funerários que, entre outras coisas, proíbe o velório tradicional (Walter, 2020, s./p.).

A profusão de covas abertas foi imagem recorrente no noticiário:

O Cemitério Vila Formosa e a ocupação quase total das covas
Imagem 1:
O Cemitério Vila Formosa e a ocupação quase total das covas
Fonte: Rodrigues e Paulo (01 abr. 2020, s./p.).

A realização de enterros á noite no Cemitério em Manaus
Imagem 2:
A realização de enterros á noite no Cemitério em Manaus
Fonte: Portal G1 (28 abr. 2020, s./p.).

Em cenários pandêmicos, as funções comunicativas são ambivalentes: deflagram um problema de saúde pública e, simultaneamente, fornecem material para as criações artísticas. O trânsito entre as matérias jornalísticas e as manifestações artísticas esteve presente em outdoors, vídeos, performances e instalações: “A Virulência da Arte supera a Solidão do Coronavírus e também ajuda a regular os relógios biológicos, uma vez que ela sempre está em trânsito e em todos os sentidos. A Arte sempre será a última esperança da humanidade. Você pode tirar o AR de TE? Hoje, a arte é este comunicado” (Bruscky, 2020, s./p.).

Mostra “No calor da hora”
Imagem 3:
Mostra “No calor da hora”
Fonte: Bruscky (2020, s./p.).

Na imagem 3 temos uma das obras da primeira edição de M.A.P.A. - Modos de Ação para Propagar Arte - usando como suporte um outdoor. A proposta é “reivindicar o uso do espaço de propaganda para o que ele de fato deveria existir, propagar (e não manipular) mensagens cívicas, políticas e poéticas” (ArtSoul, 2020, s./p.). O projeto M.A.P.A tem significativa atuação uma vez que se realiza num momento em que assistimos à ação devoradora de um vírus que se alastra pelo país. A expressividade da intencionalidade do projeto atesta a sua relevância

Tomando a arte em seu potencial de colidir com a realidade e de ampliar o campo de pensamento, 27 artistas cujas poéticas derivam de múltiplos percursos, foram convidados a ocupar 27 espaços de outdoors em todas as capitais do Brasil. Os trabalhos problematizam as questões do presente, em uma reflexão acerca da realidade social e política à luz da pandemia (ArtSoul, 2020, s./p.).

Com o deslocamento das manifestações artísticas para o espaço público, as curadoras vislumbraram “a possibilidade de subverter o uso do espaço da publicidade, na maioria das vezes usados por grandes corporações, partidos políticos e governo” (ArtSoul, 2020, s./p.). Ação oportuna e necessária tendo em vista a interface arte e sociedade como uma das vertentes das expressões artísticas.

Ainda tendo como cenário o espaço público destacamos, nas imagens 4 e 5, a instalação realizada pela ONG “Rio de Paz” que, simbolicamente, com a abertura de covas e com cruzes enterradas na praia de Copacabana, foi uma representação das milhares de mortes que ocorreram logo nos primeiros meses da pandemia. O depoimento de Antônio Carlos Costa, presidente da “Rio de Paz” deflagra a triste situação: “Ali, nós temos primeiro as imagens das mortes que estão acontecendo simultaneamente e, por trás delas, famílias que ao mesmo tempo estão administrando sofrimento invisível de entes queridos. Ela traz a nossa mente o fato de que os mais necessitados estão sendo atingidos frontalmente, estão morrendo, sendo enterrados em covas rasas” (Portal G1, 11 jun. 2020, s./p.).

A performance, realizada com quarenta voluntários que cavaram cem covas rasas, é ato de denúncia que, pela dimensão estética, potencializa a leitura crítica do cenário político-social:

Instalação da ONG “Rio da Paz” na areia de Copacabana
Imagem 4:
Instalação da ONG “Rio da Paz” na areia de Copacabana
Fonte: (Portal G1, 11 jun. 2020, s./p.).

Instalação da ONG “Rio da Paz” na areia de Copacabana
Imagem 5:
Instalação da ONG “Rio da Paz” na areia de Copacabana
Fonte: (Portal G1, 11 jun. 2020, s./p.).

As covas abertas na praia - lugar de corpos vivos, substituídos pela cruz, corpos mortos - metaforiza as mortes-covas do noticiário. Em tempos de discursos pandêmicos recordamos Bakhtin (2006) ao dizer que não existe a primeira nem a última palavra, porque não há limites para o contexto dialógico uma vez que este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites. As epidemias (e pandemias1) narrativizaram-se em uma multiplicidade de discursos expondo o traço singular: a sua concepção dialógica, isto porque o “discurso nasce no diálogo como sua réplica viva, forma-se na mútua-orientação dialógica do discurso de outrem no interior do objeto” (Bakhtin, 2014, p. 88-89). O diálogo entre os discursos “é o diálogo dos tempos, das épocas, dos dias, daquilo que morre, vive, nasce (2014, p. 161); daquilo que é reelaborado e ressignificado. Compare-se os trechos abaixo:

Esse abandono geral que podia, com o tempo, fortalecer o caráter, começava, no entanto, por torná-lo fútil. […] Ao vê-los, parecia que recebiam pela primeira vez, diretamente, a impressão do tempo que fazia. Suas fisionomias alegravam-se à simples visita de uma luz dourada, enquanto os dias de chuva lhes punham um véu espesso sobre o rosto e os pensamentos. Haviam escapado há algumas semanas dessa fraqueza e dessa escravidão absurdas porque não estavam sós diante do mundo e porque, numa certa medida, o ser que vivia com eles se colocava diante do seu universo (Camus, 2019, p. 46).

Hoje estou comemorando onze dias de reclusão, me isolei na sexta-feira, 13 de março. Desde então me organizei para enfrentar a noite, a escuridão, porque vivo como um selvagem, ao ritmo que a luz das janelas e do terraço me marcam. Estamos na primavera. [...] A realidade de agora é mais fácil de entender como uma ficção do que como parte de uma história realista. A nova situação global e viral parece surgir de uma história de ficção científica dos anos 50 (Almodóvar, 2020, s./p.).

As sensações experimentadas no contexto ficcional e as sensações descritas por Almodóvar transitam livremente de um contexto para o outro e, com pequenas alterações, promovem o sutil embaralhamento de registros; vozes denunciadoras de calamidades tão devastadoras na ficção quanto na realidade. O estado pandêmico, estabelecido em meados de março, desencadeou inúmeros desafios. Tentamos, primeiramente, contorná-los; abraço e beijo foram substituídos por emojis, nossas conversas e noticiários pautados pelas muitas palavras-chave (Beiguelman, 2020, s./p.) pronunciadas por todos, coronavírus, Covid-19, Wuhan, álcool em gel, lockdown, auxílio emergencial, confinamento, live, pandemia, vacina entre outras. Nesse estado, o rosto ganhou o adereço compartilhado universalmente: uma máscara cirúrgica.

O mundo se reorganizou e, nesse processo, foram significativas as narrativas sobre esse “novo mundo”: as narrativas “de nós para nós” deu o tom do prosaísmo necessário às manifestações afetivas. No ambiente doméstico, o audiovisual se instalou nos variados formatos de telas e plataformas substituindo os comportamentos convencionais: nos tornamos produtores, narradores, personagens e editores de nossas conversas/histórias. No ambiente midiático, a diversidade de gêneros e formatos narrativos colocou em cena a personagem que marca nossa entrada no século 21, a Covid-19. O protagonismo deveu-se às transformações que desencadeou, alterando política, social e culturalmente o planeta:

Site Coronário2
Imagem 6:
Site Coronário2
Fonte: Beiguelman (2020, s./p.).

O “Coronário”, nas palavras de Giselle Beiguelman, funcionou não apenas como um glossário da experiência cultural e social da pandemia, mas, também como um exercício de rastreamento feito em público. As cores das palavras evidenciam a economia do olhar, que a Internet traduziu, em cores quentes, as palavras mais visitadas; e, em frias, as de menor visualidade. Olhamos o mapa e os verbetes nos dão a mostra do impacto provocado nas relações cotidianas e nas manifestações discursivas.

O tempo de pandemia foi (e ainda é) o novo tempo, o tempo da vida remota dependente das telas que, sob a variedade de formatos e gêneros, gerou a profusão de novos conteúdos e novos procedimentos discursivos contaminados pela avassaladora ação de um vírus. Assim, é diante da diversidade de discursos, de contextos e de suportes que se localiza o objeto de nosso estudo. Interessa-nos abordar nas poéticas pandêmicas procedimentos de apropriação e reciclagem presentes nas práticas discursivas de algumas das manifestações da produção artística; ou seja, “ouvir” nos discursos ressonâncias múltiplas “cheias de ecos de outros enunciados” (Bakhtin, 2006, p. 294).

Ambivalência do rosto: discurso e suporte

O rosto fala. A manifestação do rosto é já discurso (Lèvinas, 1980, p. 53).

Diz Lèvinas (1980, p. 176): o rosto fala-me e convida-me a uma relação com um poder que se exerce, quer seja fruição quer seja conhecimento. Em tempos de pandemia essa relação se manifestou de modo contundente na arte e na mídia com o uso da máscara cirúrgica como uma das medidas de prevenção contra a Covid-19. Nos discursos midiáticos, a ênfase autoproteção e respeito selou as manifestações de alteridade - eu te protejo, você me protege - reforçadas nas diversas produções artísticas.

“Máscaras para rituais do mundo em crise” (Imagem 7) compõe a série de autorretratos realizados em abril, durante a quarentena de 2020, com o propósito de denunciar o poder devastador da Covid-19. As criações de Denílson Baniwa “expressam sua vivência como um indígena do tempo presente”. A frase retirada do site do IMS - #IMSquarentena - traduz a intencionalidade do artista que se utiliza de referenciais tradicionais do universo indígena e do mundo contemporâneo para retratar nas obras a preocupação com a luta pela sobrevivência dos povos indígenas:

Máscaras para rituais do mundo em crise, #IMSquarentena
Imagem 7:
Máscaras para rituais do mundo em crise, #IMSquarentena
Fonte: Baniwa (2020, s./p.).

Em seu discurso ecoam as vozes da ancestralidade interfaciada pelo momento presente:

Dizem que o mundo em que vivemos é decorrente das grandes guerras entre os seres humanos e o mundo natural. Tornamos este planeta um contraste do mundo dos Cosmos, por isso precisamos dos pajés, benzedores e todos aqueles que fazem a comunicação com o Universo, tornando assim a nossa vida segura neste planeta.

Porém, muitas vezes, esquecemos que vivemos num lugar finito e que precisa de cuidados, negamos o bem viver e lidamos por muito tempo com a emancipação de sistemas de poder. Caímos em desventura e chegam até nós os sinais do “Senhor das Doenças” (Baniwa, 2020, s./p.).

A desventura aconteceu, no passado, com os descobridores, e acontece, no presente, com a invasão de posseiros, grileiros... e do coronavírus. A “Covid-19 por ser algo nunca visto, nos leva a criar novos rituais de cura e cuidados para que possamos acalmar novamente o Senhor das Doenças” (Baniwa, 2020, s./p.). Agora, como diz Denílson, as máscaras sagradas, herança do aprendizado dos Avós-Universo feitas de madeira, fibras, argila, cuias, penas de pássaros, uma mediação com o sagrado e o sobrenatural, foram substituídas

pelas máscaras cirúrgicas ou feitas de tecidos costurados, até então desconhecidas por nós para nos proteger do espírito da Covid-19 e claro, junto com as máscaras vieram as regras de como usá-las com eficiência, pois não basta colocar a máscara no rosto é preciso saber as senhas de acesso aos modos de proteção. Uma atualização de firmware que o “Senhor das Doenças” nos disponibilizou (Baniwa, 2020, s./p.).

Em tempos de coronavírus, os rituais, hoje, não vêm pelas vozes ancestrais “chegam impressos em folhetos ou pela televisão, que também mostram como os rituais devem ser feitos passo-a-passo” (Baniwa, 2020, s./p.); também revelam o que acontece quando eles são descumpridos, “não mais com metáforas e figuras de linguagem, mas com os vídeos dos mortos sendo enterrados em covas abertas às pressas” (Baniwa, 2020, s./p.). O ritual dessacralizou-se para preservar vidas:

Lavar as mãos metodicamente, higienizar-se com álcool em gel 70% entre outros pequenos rituais que fazem parte de uma regra a ser seguida obrigatoriamente. Uma quarentena, nada de encontros sociais nem saídas de casa. Se não é casado e não mora junto, nada de sexo. Sem visitas aos parentes pro almoço de domingo, muito menos barzinho às sextas com o pessoal do trabalho. Mantenha uma alimentação saudável, beba água, faça exercícios. Mantenha sua imunidade boa. Para uma proteção maior, usem máscaras sempre. Máscaras de rituais do mundo em crise (Baniwa, 2020, s./p.).

A imagem 7 traz algumas das máscaras, metaforiza a passagem da ancestralidade para o cotidiano. Pela face-voz de Denílson, reverbera a presença da espiritualidade do universo mítico em conflito com a prescrição normativa do estado: desequilíbrio de formas narrativas que suspende o gesto arcaico em favor de um programa de prevenção. Profanada a cosmogonia para guerrear com aquele que não veio “da floresta”, a máscara que evocava o ser encantado é ineficiente; daí o uso de novas máscaras, as feitas de tecidos e a cirúrgica.

A máscara cirúrgica e suas variações iconiza o rosto; rosto, que nas palavras de Lèvinas (1980), é significação sem contexto porque ele não pode se transformar num conteúdo por ser o incontível, o que nos leva além; daí o seu traço singular: “o rosto não é do mundo [...] porque o rosto rasga o sensível (Lévinas, 1980, p. 177).

Destinações de um rosto: a obra, a paródia, a intervenção

Toda obra resulta de um enredo que o artista projeta sobre a cultura, considerada como o quadro de uma narrativa - que por sua vez, projeta novos enredos possíveis, num movimento sem fim (Bourriaud, 2009, p. 14-15).

“Moça com brinco de pérola”, Vermeer, 1665
Imagem 8:
“Moça com brinco de pérola”, Vermeer, 1665
Fonte: Wikipédia ([s.I.], s./p.).

Grafite de Bansky
Imagem 9:
Grafite de Bansky
Fonte: Folha de S. Paulo (2014, s./p.).

Da tela de Vermeer para a street art de Banksy, atravessamento de tempos, suportes e contextos. Vermeer eterniza num rosto (voltado para nós), num olhar (que nos olha) e nos lábios entreabertos (prontos para nos dizer algo) a ambivalência de contemplar e ser contemplado. Banksy parodia Vermeer e grafita na parede de uma residência a moça substituindo o brinco por um alarme:

A nova obra do artista Banksy, na cidade inglesa de Bristol, é uma paródia de “Moça com Brinco de Pérola”, do holandês Johannes Vermeer (1632-1675). O artista postou uma foto da pintura intitulada “Girl with the Pierced Eardrum” (Garota com o tímpano perfurado). Um alarme externo faz as vezes do brinco da mulher na releitura de Banksy. Não é a primeira vez que o artista presenteia Bristol com um de seus grafites - no começo do ano, fez “Mobile Lovers” (Folha de S. Paulo, 2014, s./p.).

Antes de Banksy, Tracy Chevalier (1999) ficcionaliza artista e modelo enredando-os na trama da sociedade holandesa no século XVII. A moça ganha um nome Griet e uma profissão: uma criada na casa do pintor Johannes Vermeer. O protagonismo da moça do quadro e do romance migra para o cinema (direção de Peter Webber, 2004), Griet ganha um corpo e uma voz na atuação da atriz Scarlett Johansson e Vermeer, na atuação de Colin Firth:

Griet e Vermeer, cena do filme “Moça com brinco de pérola” (2004)
Imagem 10:
Griet e Vermeer, cena do filme “Moça com brinco de pérola” (2004)
Fonte: Adoro Cinema ([s.I.], s./p.).

O filme, então, se perfila ao livro e ambos se detêm em vários quadros do pintor Vermeer e, em especial, neste retrato apenas do rosto da figura feminina, com olhos abertos, lábios carnudos de acentuado vermelho, com panos marrom e azul amarrados na cabeça, em fundo negro que olha sobre os ombros e a luz brilha na pérola do brinco (Schiavinatto, 2009, p. 106).

Romance e filme cenarizaram a Holanda do século XVII para situar o processo criativo de Vermeer da tela-retrato da “Moça com brinco de pérola”; ambos romantizam o envolvimento da modelo e do pintor:

Entre a criada protestante Griet, cuja família decente enfrenta a pobreza esforçando-se para não cair na vergonha de recorrer à caridade pública, e a personagem de Vermeer, esse pintor da ficção, nasce uma amorosidade entremeada pelas imagens. Dessa afeição silenciosa e contida resultaria, segundo o filme e o livro, o quadro conciso, semelhante à vida, silente, do qual é possível contar uma história, filmar um drama, escrever um romance (Schiavinatto, 2009, p.111).

Banksy quando parodiou Vermeer grafitou a moça sem o brinco na parede de uma casa; a paródia é dependente de um modelo preexistente, que de sério é transformado em cômico conservando os elementos formais em que são inseridos conteúdos novos e incongruentes (Agamben, 2007). Parece não haver em Banksy a intencionalidade do cômico; há, sim, a intencionalidade irônica ao substituir, enfaticamente, a pérola por um dispositivo característico do século 21, um alarme. A ação paródica retoma um dos aspectos destacados por Benjamin em relação à reprodução da obra de arte, ao dizer que a obra de arte sempre foi reprodutível, uma vez que o “que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era praticada por discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras e, finalmente, por terceiros, meramente interessados no lucro” (Benjamin, 1986, p. 166). A obra parodiada “liberta um para, um espaço ao lado de [...] uma transgressão e uma realização” (Agamben, 2007, p. 39-47, grifos do autor).

Uma cisão é estabelecida entre original e a obra parodiada, cria-se uma tensão traduzida em profanação da obra de arte nesse deslocamento espaço-temporal, na subversão de intenções e suportes e, por fim, no local de exposição: do museu para o espaço urbano em uma parede-tela. Banksy corrompe e dessubjetiviza a aura do objeto artístico para propor uma nova subjetividade alinhada às questões do novo século, entre elas os dispositivos de segurança. Se o romance e o filme resguardam a aura de “A moça com brinco de pérola”, o grafite de Banksy (Girl with the Pierced Eardr) a traz para o cotidiano; nos lábios entreabertos a palavra, virtualmente, por dizer: cuide-se.

No cotidiano de 2020 essa foi a palavra de ordem pronunciada por nossos lábios; no de 2021 essa palavra potente repercute com mais intensidade. Palavra que é a prevenção enquanto aguardamos que as vacinas cheguem a todos. O vírus causador da Covid-19 que se espalha por meio do contato direto, por meio de superfícies ou objetos contaminados com pessoas infectadas através de secreções (saliva, gotículas) que são expelidas quando alguém tosse, espirra ou fala. A prevenção segue o rito proclamado pelos órgãos de saúde e o uso de seu aliado principal, a máscara facial:

Campanhas da Friocruz
Imagem 11:
Campanhas da Friocruz
Fonte: Anvisa (2020, s./p.)

Os discursos no Brasil e no mundo foram enfáticos ao esclarecerem sobre o uso das máscaras de proteção:

Nas grandes capitais brasileiras, onde o número de casos de Covid-19 é muito alto, a utilização é obrigatória, pois seu uso dificulta a transmissão do vírus por meio das gotículas de saliva que emitimos ao tossir ou conversar com alguém. Em Brasília e no Espírito Santo, por exemplo, o uso é obrigatório em todos os espaços públicos, no transporte coletivo e em estabelecimentos comerciais, devido a pandemia. No Rio Grande do Sul, as máscaras serão exigidas a partir do dia 11 de maio de 2020. As multas pelo descumprimento da norma podem chegar a R$ 6 mil. Já em São Paulo, epicentro da doença no Brasil, deixar de usar a máscara em espaço público pode dar cadeia: a pena varia de 15 dias a 1 ano (Medicom, 2020, s./p.).

Fique em casa, se sair use máscara! foram e continuam a ser as recomendações difundidas. Junto vieram as possibilidades de uso não apenas das máscaras descartáveis, as máscaras caseiras feitas de pano e o cuidado ao utilizá-las:

Os principais cuidados na utilização de máscaras cirúrgicas ou caseiras são os seguintes: colocar a máscara cuidadosamente para cobrir a boca e o nariz, e ajustar com segurança para minimizar os espaços entre a face e a máscara. Durante o uso, não se deve tocar na parte da frente da máscara, pois pode estar contaminada com o vírus. Mas se tocar inadvertidamente é preciso higienizar as mãos. Após o uso, remover a máscara pelas tiras de elástico, também sem tocar na parte da frente. A máscara cirúrgica é descartável e vai para o lixo, e a de pano deve ser lavada com água e sabão, e ficar pelo menos dez minutos de molho em hipoclorito de sódio ou água sanitária. Depois de seca, deve ser passada a ferro bem quente (Vilanova, 2020, s./p.).

Máscaras customizadas
Imagem 12:
Máscaras customizadas
Fonte: Oliveira (2020, s./p.).

A pandemia trouxe a máscara para a vida em todos os seus momentos; um acessório indispensável dotado de “superpoderes” na luta contra o Covid-19. A máscara descartável e/ou as máscaras confeccionadas em tecido migram para as passarelas, potencializam as vozes que pronunciam a mesma informação: preste atenção, previna-se prevenindo o outro. Diante de diversas manifestações favoráveis ao uso da máscara, encontramos a máscara cirúrgica colocada na obra parodiada por Banksy:

A obra de Bansky “Garota com o tímpano perfurado” foi atualizada para a era do coronavírus com a adição de uma máscara cirúrgica azul
Imagem 13:
A obra de Bansky “Garota com o tímpano perfurado” foi atualizada para a era do coronavírus com a adição de uma máscara cirúrgica azul
Fonte: Sandle (2020, s./p.).

A intervenção, de autoria desconhecida na obra parodiada por Banksy, traz o inusitado para redimensionar o poder de um vírus. Agora, o rosto que me olha, resultante da clandestinidade de um gesto, torna-se um lugar de fala de uma quase-voz singular: use a máscara para salvar e ser salvo. Este rosto-olhar que expressa uma advertência e um lembrete traz o rastro do vírus estampado; a máscara cirúrgica é um traço-índice do real que situa a imagem num limiar: provocação (antes atribuída a Banksy) e reforço (atribuída ao autor desconhecido). A moça com a máscara é réplica de réplica, aciona o imaginário:

A história da humanidade é sempre história de fantasmas e imagens, porque é na imaginação que tem lugar a fratura entre o individual e o impessoal, o múltiplo e o único o sensível e o inteligível, e, ao mesmo tempo, a tarefa de sua recomposição dialética. As imagens são o resto, os vestígios do que os homens que nos precederam esperaram e desejaram, temeram e removeram. E como é na imaginação que algo como uma história se tornou possível, é por meio da imaginação que ela deve, cada vez, de novo se decidir (Agamben, 2012, p. 63).

Restos, vestígios que, agora, emprestam da obra de arte (ainda que profanada) sua singularidade para suspender um instante da realidade e relembrar a grandiosidade da criação de Vermeer na “epifania do rosto como rosto”, que nas palavras de Lèvinas (1980, p. 190), “abre a humanidade”. A citação da citação da obra parodiada repropõe o gesto original diante da tela: a contemplação, ainda que seja um gesto contaminado pela irreverência. A transgressão, agora, teve um propósito, aproveitando-se da expressividade artística da obra original, dirige-se para o passante-espectador da rua e o “passante-navegador” online do universo da internet.

A intervenção, uma paródia de paródia é “o duplo destronante” (Bakhtin, 1981). Com a colocação de uma máscara cirúrgica no rosto-retrato-parodiado, a obra original, pertencente ao imaginário coletivo, é duplamente presentificada: homenagem a Vermeer (que pintou um dos rostos mais sublimes da criação artística) e a Banksy (com a popularização da obra grafitada no espaço público); a moça com a máscara cirúrgica rubrica as ações afetivas, sociais e as produções culturais e artísticas: metaforiza a contemplação como uma advertência e um ato de cidadania.

Sobreposição de sentidos e de vozes: muitas vozes em uma voz

De repente, entrávamos em um abril despedaçado, uma terra estrangeira. O invasor nos desestabilizou completamente (Santoro, 2020, s./p.).

A locução de Rodrigo Santoro convoca um coro de vozes3 para clamar em prol de uma situação única: nosso momento de intensa fragilidade diante do desconhecido provocado pela invasão de um vírus. Vozes atuantes de nossa cinematografia que, por meio de suas abordagens temáticas, procedimentos estéticos e variedade de gêneros, partilharam experiências múltiplas ao colocarem em cena adversidades geográficas e culturais de nosso país. De “Limite (1930) à “A vida invisível” (2019) temos uma mostra da produção nacional representativa de momentos grandiosos do cinema, muitos deles com acentuado viés crítico-ideológico. Poéticas fílmicas que abrigaram estéticas ficcionais, documentais e experimentais dialogando com problemas da nossa realidade político-econômico-social. Diz Rancière (2009, p. 58) que o “real precisa ser ficcionado para ser pensado”. E o modo como Santoro elegeu para ficcionalizar a realidade para pensá-la foi postar em seu Instagram um vídeo realizado a partir de títulos de filmes.

A postagem do vídeo, datada de 09 de maio de 2020, marca um período conturbado da situação pandêmica com o crescente número de óbitos e o avanço da contaminação pelo coronavírus e, ao mesmo tempo, com a situação de calamidade sendo minimizada pelo estado. Os títulos dos filmes selecionados para montar o vídeo assumem a função de deflagrar essa situação; narrativizam ficcionalmente os fatos como estratégia para refletir sobre o real: “A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem ‘ficções’, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer” (Rancière, 2009, p. 59).

O rearranjo dos títulos dos filmes na realização do vídeo performatizou a construção de uma narrativa sem os elementos convencionais da cena: o local parece ser uma parede de cor clara onde estão dispostos capas de DVD’s e os cartazes dos filmes citados (Imagem 14), a câmera em travelling para a esquerda seguido de uma panorâmica, em plano médio, mostra a capa do DVD do filme “Abril despedaçado” e, do lado direito, mostra parte do cartaz do filme “Terra estrangeira”. Nesse movimento, a câmera cria um contraste entre figura (DVD do filme e/ou cartaz) e o fundo (claro):

“Abril despedaçado”, “Terra estrangeira” e “O invasor”
Imagem 14:
“Abril despedaçado”, “Terra estrangeira” e “O invasor”
Fonte: Santoro (2020, s./p.).

Um travelling para a direita seguido de um zoom in faz a passagem para o cartaz do filme “Terra estrangeira” ladeado por partes de capas do filme anterior e do próximo (“O invasor”), o fundo permanece o mesmo. O travelling predomina no procedimento de realização das demais tomadas (alternando entre a capa do DVD do filme citado e/ou o cartaz); a combinação com a variação do ângulo da câmera (plongée, contra-plongée), a duração da tomada sincronizada com a fala, ambos realçados pelas notas do piano que compõe a trilha musical, o título do filme na parte superior ou inferior seguido da indicação do diretor e/ou dos diretores são os elementos imagético-sonoros utilizados na composição da cena. Esse procedimento com poucas variações do ângulo da câmera e/ou da planificação define o procedimento geral de construção das cenas na composição do vídeo.

Syd Field4 (1995) diz que toda cena tem duas coisas: lugar e tempo; vimos que, pelo enquadramento dos componentes imagéticos, o local (aqui empregado como parede-suporte de exposição dos DVD’s e capas de filmes, rompe com o sentido usual do termo) e o tempo (ainda que impossível de estabelecer de acordo com os paradigmas dia/noite) está direcionado pelo contar, ou seja, pela voz over que, ao citar os títulos do filmes precedidos de alguma palavra ou expressão, organiza/cria frases-orações-sentenças para a construção da uma história no tempo presente. Cria-se com esse procedimento o efeito narrativo: “Não vejo mais nem ‘O Pagador de Promessas’. Estamos em uma ‘Terra em Transe’. Nem um embate entre ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ explicaria! Tenho sonhos desconexos com ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’” (Santoro, 2020, s./p.). A estratégia foi justapor os títulos dos filmes com acréscimos de palavras para sugerir a continuidade de um texto que simula um paralelo com a realidade vivida no momento pandêmico. É a qualidade do audiovisual - imagem e áudio - que dá corpo a uma (possível)narrativa criada no diálogo com o espectador: “Todos os dias passamos a receber ‘Notícias de uma Guerra Particular’; suspendemos o ‘Baile Perfumado’. Não por acaso, a ‘Cidade de Deus’, a ‘Central do Brasil’, o ‘Edifício Master’, silenciaram” (Santoro, 2020, s./p.).

Está nas entrelinhas e na ambivalência desse discurso do narrador a reflexão crítica que se contrapõe ao discurso do descaso e da ausência que minimizou o poder de um vírus, e, para deflagrar essa situação, a enumeração dos títulos fílmicos utilizados na construção de seu “discurso” coloca-o no limiar entre a estética (os títulos dos filmes e suas propostas temáticas e de linguagem) e a política (o discurso subentendido revelador do descaso e da falta de sensibilidade).

Evocar as várias vozes da nossa cinematografia e com elas montar a narrativa foi o propósito para pactuar com o destinatário a comoção diante da situação pandêmica e, também, prestar a singular homenagem aos artistas que tiveram suas vozes emudecidas pela Covid-19. A homenagem acontece nas cenas finais do vídeo e pode ser estendida a todos os que ocuparam as milhares de covas abertas.

Esses filmes representam parte da identidade brasileira. Não caberiam todos aqui. Foram feitos por nós para que o mundo pudesse testemunhar. Artistas, técnicos, produtores, músicos que cuidam das trilhas, enfim, tantos brasileiros contribuindo para escrever a nossa história ao longo do tempo. E isso ninguém vai poder apagar. São a nossa herança, assim como “a esperança equilibrista” de Aldir, o “ficou tudo lindo de manhã cedinho” de Moraes, as palavras precisas e potentes de Rubem, o sorriso terno de Daisy, as aventuras intrépidas do Tio Maneco (Flávio querido), o som de Ciro, as obras de arte “só́ para baixinhos” de Azulay... e os que ainda seguem fazendo o que é belo e potente no nosso país (Santoro, 2020, s./p.).

A arte homenageia os artistas
Imagem 15:
A arte homenageia os artistas
Fonte: Santoro (2020, s./p.).

As vozes silenciadas reverberam nas fotos em preto e branco no cenário/fundo preto. Em tomadas rápidas a foto se afasta, ao mesmo tempo, vai sendo desfocada e, gradativamente, desaparecendo para fazer surgir outra foto e assim sucessivamente. Essas entradas e saídas de quadro são acompanhadas pelas notas do piano pontuando o movimento de aproximação e distanciamento da câmera; um modo de construir imagética e sonoramente as ausências: as “saídas de cena” da vida; pois como diz Agamben (2007, p. 62), “o lugar que ficou vazio é o que torna possível a leitura”. A leitura das ausências.

O vídeo (postado por Santoro em seu perfil no Instagram no formato IGTV) traz algumas características em termos de construção narrativa na medida em que “dispensou” a encenação em seu emprego convencional. O que temos é uma “encenação” da voz: tom, pausas, modulação, ritmo e altura configuram o design dessa voz masculina (ainda que, na narrativa, uma voz sem corpo, porque over, identificamos, prontamente, o corpo dessa voz não apenas por estar no perfil do ator, mas, porque a identificamos de sua atuação no cinema e na TV). Geralmente, a narração em voz over adquire um teor mágico por acionar uma voz sem corpo (convencionalmente, denominada de “voz de Deus”), imaterialidade fantasmática de alto poder sugestivo. Aqui, pelas razões apresentadas, o encanto da voz é perdido porque conhecemos a fonte-emissora da voz; mas, é também, recuperado pelo mesmo motivo: Santoro é ator de reconhecimento global e atuou em duas das produções fílmicas citadas e, em ambas as produções, a sua atuação foi memorável. Daí o encantamento pela voz que estabeleceu a interlocução com o destinatário.

Outro elemento que reforça essa mediação é a duração do vídeo que pode ser denominado como microcinema, conceito proposto por Bambozzi à época da emergência dos dispositivos móveis e celulares:

O conceito de “microcinema” por exemplo vem adquirindo nuances que se estendem para além das junções entre “micro” e “cinema”, presentes na palavra. Trata-se de uma suposta classificação que reflete em narrativas de curtíssima duração, formatos de baixo custo e/ou linguagem compatível com os circuitos atuais, absorvendo o dinamismo de estruturas de exibição que se utilizam tanto da Internet como de espaços que se organizam em torno das facilidades tecnológicas mais recentes. O contexto atual vem propiciando as mais diversas configurações, como os circuitos nômades que se formam através de redes de telefonia, transmissão de dados e arquivos digitais sem fio. A suposta revolução digital criou nova disposição para a fruição de imagens numa ampla gama de resoluções e o espectador cada vez mais se adapta a uma variedade de padrões jamais vista (Bambozzi, 2009, p. 4).

Esse formato possibilita experienciar a linguagem audiovisual propondo uma maior interação com o público-espectador e, mais ainda, com o público das mídias sociais. Assim, é o uso dessas estratégias que contribuem para organizar o discurso do narrador direcionado para envolver o usuário das redes sociais. Esse formato de cinema é próprio para as experiências audiovisuais uma vez que permite explorar as potencialidades imagéticas e sonoras e, com esse procedimento, enfatizar a subjetividade do conteúdo expresso. Tal aspecto aproxima-o do filme-ensaio situado

A meio caminho da ficção e da não ficção, das reportagens jornalísticas e da autobiografia confessional, dos documentários e do cinema experimental, eles são, primeiro, práticas que desfazem e refazem a forma cinematográfica, perspectivas visuais, geografias públicas, organizações temporais e noções de verdade e juízo na complexidade da experiência (Corrigan, 2015, p. 8-9).

O autor ainda destaca como qualidades dessa modalidade de cinema “uma desconcertante e enriquecedora falta de rigor formal” (Corrigan, 2015, p. 9), “um tipo de encontro entre eu e o domínio público” e, talvez, seu traço singular, “equilibrar-se entre a representação abstraída e exagerada do eu (na linguagem e na imagem) e um mundo experiencial encontrado e adquirido por meio do discurso de pensar em voz alta” (Corrigan, 2015, p. 19). Percebemos que é como “gesto ensaístico” que identificamos no vídeo postado por Santoro no Instagram as marcas do filme ensaio; estamos empregando o termo “gesto” no sentido definido por Agamben (2018, p. 3): “O gesto não é nem um meio e nem um fim; antes é a exibição de uma pura medialidade, o tornar visível um meio enquanto tal, em sua emancipação de toda finalidade”. O que identificamos como marcas do filme-ensaio no vídeo postado foi a reflexão sobre a realidade e a subjetividade da construção do ponto de vista na composição da narrativa que retoma o cinema não como objeto de reflexão e, sim, como material fílmico para tecer a sua reflexão: não é um vídeo sobre o cinema e nem com o cinema e, sim, com a apropriação de títulos significativos de uma parcela de nossa cinematografia.

E, por fim, para dar corpo a essa proposta destacamos a montagem e a edição final como etapas fundantes do processo de realização do vídeo postado. A memória, diz, Didi-Huberman (2013, p. 219, grifos do autor), “é montadora por excelência: organiza elementos heterogêneos (‘detalhes’), escava fendas na continuidade da história (‘intervalos’), para criar circulações entre tudo isso: zomba do intervalo entre os campos e trabalha com ele”. O vídeo postado no Instagram rememora nossa cinematografia e organiza-a por momentos significativos; arranjo seletivo dos títulos fílmicos que rompe com a marcação cronológica e desdobra-se no procedimento que caracteriza a montagem voltada para a organização verbal da narrativa com o propósito de criar uma escrita crítica que convida o leitor-usuário das redes sociais a participar do processo crítico-criativo; a montagem é utilizada para causar o efeito narrativo. Ainda que o procedimento básico seja a citação e a apropriação a significação é resultante da “sobreposição” de sentido atribuída aos títulos fílmicos.

Considerações finais

É o uso do mundo que permite criar narrativas (Bourriaud, 2009, p. 51).

Neste momento pandêmico, as produções discursivas culturais e artísticas analisadas estão alicerçadas em novos procedimentos de experiências narrativas. Por meio de deslocamentos de dispositivos de produção e de exibição as poéticas pandêmicas são motivadoras dos discursos da apropriação e da reciclagem: “sobreposições do sentido sobre sentido, da voz sobre a voz, intensificação pela fusão (mas não identificação), combinação de muitas vozes (um corredor de vozes)” (Bakhtin, 2006, p. 327). Essa combinação das muitas vozes podemos encontrar no procedimento que Bourriaud (2009, p. 7) denomina de pós-produção:

Designa o conjunto de tratamentos dados a um material registrado: a montagem, o acréscimo de outras fontes visuais ou sonoras, as legendas, as vozes off, os efeitos especiais. Como conjunto de atividades ligadas ao mundo dos serviços e da reciclagem, a pós-produção faz parte do setor terciário em oposição ao setor industrial ou agrícola, que lida com a produção das matérias-primas.

Essa reciclagem de sons, imagens ou formas, nas palavras do autor envolve uma navegação pelos meandros da história cultural, isto é, “navegação que acaba se tornando o próprio tema da prática artística. Pois não é a arte, segundo Marcel Duchamp, um jogo entre todos os homens de todas as épocas? A pós-produção é a forma contemporânea desse jogo” (Bourriaud, 2009, p. 15). É devido a esses expedientes que a obra de arte contemporânea não se coloca como término do “processo criativo” e nem como um produto acabado pronto para ser apenas contemplado. Bourriaud explica que tais características assumem a função de um local de manobra, um portal, um gerador de atividades; isto porque bricolam-se produtos, navega-se em redes de signos, inserem-se suas formas em linhas existentes. A experiência poética inscreve-se no gesto subjetivo do sujeito, relacionado com o ato de ver, que, nas palavras de Didi-Huberman (2010), não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas, isto porque

O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do “dom visual” para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta (Didi-huberman, 2010, p. 77).

São essas características do ver que nos guiaram pela profusão das imagens midiáticas e artísticas presentes nas poéticas pandêmicas, manifestações discursivas da reciclagem e da apropriação que (ainda, vigorosas) ecoam no corredor de vozes. Em tempos pandêmicos, onde o isolamento social apresenta-se como a alternativa mais frequente para nos mantermos afastados do contato com o vírus, a proposta das poéticas em novas configurações, mesmo que por procedimentos de apropriação e reciclagem, trazem a possibilidade de reinterpretações e ressignificações do momento atual por meio das manifestações artísticas midiatizadas pelas telas. A reflexão sobre as produções analisadas revela que “o definitivo não é definitivo, o ser, embora sendo, não é ainda, permanece em suspenso e pode começar a todo momento” (Lèvinas, 1980, p. 261). Nas manifestações discursivas o “texto é o trovão que segue ressoando por muito tempo” (Benjamin, 2019, p. 759).

Fontes

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Notas

1 “Uma enfermidade se torna uma pandemia quando atinge níveis mundiais, ou seja, quando determinado agente se dissemina em diversos países ou continentes, usualmente afetando um grande número de pessoas. Quem define quando uma doença se torna esse tipo de ameaça global é a Organização Mundial da Saúde (OMS). Uma pandemia pode começar como um surto ou epidemia; ou seja, surtos, pandemias e epidemias têm a mesma origem - o que muda é a escala da disseminação da doença” (Instituto Butantan, 2021, s./p.).
2 Coronário, projeto de autoria de Giselle Beiguelman (2020, s./p.), reúne “as palavras mais marcantes da experiência cultural do coronavírus, mensuradas pelo índice de tendências de buscas do Google, entre março e abril, período que coincide com o da quarentena no Brasil. As mais acessadas pelo público deste site respondem dinamicamente, mudando de cor, em conformidade com um mapa de calor que reflete a atenção recebida”.
3 Cineastas por ordem de aparição nas cenas: Walter Salles, Daniela Thomas, Beto Brant, João Moreira Salles, Katia Lunda, Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Philippe Barcinski, Fernando Meirelles, Eduardo Coutinho, Anselmo Duarte, Glauber Rocha, Marcelo Gomes, Susana Garcia, Anna Muylaert, Renata Ciasca, Gustavo Pizzi, Jayme Monjardim, Mario Peixoto, Marcos Jorge, Daniel Filho, Kleber Mendonça Filho, Karin Ainouz, Laís Bodanzky, Nelson Pereira dos Santos, Murilo Benício, Walter Lima, Jorge Furtado, Hilton Lacerda, Luiz Fernando Carvalho, Suzana Amaral, Selton Mello, Carlos Diegues e Isa Gruspum Ferraz.
4 “Toda cena tem duas coisas: LUGAR e TEMPO. Onde sua cena acontece? Num escritório? Num carro? Na praia? Nas montanhas? Numa rua apinhada? Qual é o local da cena? O outro elemento é o tempo. A que horas do dia ou da noite sua cena acontece? De manhã? À tarde? Tarde da noite? Toda cena transcorre num lugar específico e num tempo específico. Tudo o que você tem que indicar, no entanto, é DIA ou NOITE. Onde sua cena acontece? Do lado de dentro ou do lado de fora, ou INT. para interior e EXT. para exterior” (Field, 1995, p. 113, grifos do autor).
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