Dossiê
Recepción: 30 Abril 2021
Aprobación: 10 Agosto 2021
DOI: https://doi.org/10.33871/nupem.2021.13.30.147-172
Resumo: A vivência atual em um contexto pandêmico instiga à reflexão sobre como as pessoas do passado experienciaram situações análogas. Com foco na crise de Gripe Espanhola no Rio de Janeiro de 1918, propõe-se analisar sob perspectiva histórica algumas ilustrações e fotografias da doença na imprensa. As imagens são agrupadas em três temas: a eleição de culpados externos pela gripe, o agravamento do quadro sanitário e suas consequências para a população, e a representação dos líderes políticos. Ao longo do texto, busca-se traçar diálogos com o panorama contemporâneo, assolado pela Covid-19.
Palavras-chave: Gripe Espanhola, Covid-19, História da saúde pública no Brasil, Cultura visual.
Abstract: The current experience in a pandemic context encourages a reflection on how people experienced similar situations in the past. Focusing on the Spanish Flu crisis in Rio de Janeiro, in 1918, we propose to analyze from a historical perspective some illustrations and photographs of the disease in the press. The images are grouped into three themes: the election of external culprits for the flu, the worsening of the health situation and its consequences for the population, and the representation of political leaders. Throughout the text, we seek to draw dialogues with the contemporary panorama, plagued by Covid-19.
Keywords: Spanish Flu, Covid-19, History of public health in Brazil, Visual culture.
Resumen: La coyuntura actual de la pandemia motiva la reflexión sobre cómo las personas experimentaron situaciones similares en el pasado. Con un enfoque en la crisis de la Gripe Española en Río de Janeiro de 1918, se propone analizar, desde una perspectiva histórica, algunas ilustraciones y fotografías en la prensa. Las imágenes se agrupan en tres temas: la elección de los culpables externos por la gripe, el agravamiento de la situación sanitaria y sus consecuencias para la población, y la representación de los líderes políticos. A lo largo del texto, se busca trazar diálogos con el panorama contemporáneo, devastado por la Covid-19.
Palabras clave: Gripe Espanhola, Covid-19, História da saúde pública no Brasil, Cultura visual.
Introdução
Hoje, dia 21 de agosto de 2021, as estatísticas oficiais apontam para o número trágico de mais de quinhentos e setenta mil mortos no Brasil vítimas do novo coronavírus. E embora os números comecem a arrefecer novamente com as políticas de vacinação, o país segue liderando entre as três primeiras posições os lamentáveis rankings mundiais de números de casos e de óbitos (Center, 2021). Se desde o fim de 2020 o anúncio das vacinas trouxe esperança para a reversão do quadro pandêmico, para muitos países do globo, assim como o Brasil, a doença segue desafiando a estrutura governamental e, acima de tudo, dizimando vidas. Foi logo na emergência da pandemia no Brasil, há cerca de um ano e meio, sob a forte impressão do que se configurava e marcadamente sob o impulso das funções e responsabilidades sociais de fazer história no tempo presente, nós, os autores, começamos, então separadamente, a mergulhar nos fragmentos do passado, em busca das experiências e vivências de concidadãos que enfrentaram catástrofes semelhantes em outros tempos1.
A sombra da Gripe Espanhola no Brasil, em 1918, é o foco central desse trabalho, mais especificamente as representações visuais relacionadas à doença que circularam na imprensa do Rio de Janeiro, então capital federal. Não obstante a diversidade de imagens tratadas - ilustrações, caricaturas e fotografias - e suas particulares formas de leitura, interessa-nos aqui construir uma visualidade abrangente em torno da epidemia. Em primeiro lugar, pretendemos analisar aqui a forma como essas imagens se relacionam aos impactos sociais da doença. O texto é dividido em três partes: em um primeiro momento detemo-nos sobre imagens que procuram associar a doença a um “culpado” externo, convertendo a questão sanitária em política. Em seguida, partimos para imagens em torno do enfrentamento da população à doença. Por fim, retornamos aos “culpados”, mas agora internos, analisando imagens que retratam representantes políticos brasileiros lidando com a crise sanitária. Imersos, contudo, no presente, estabelecemos como objetivo secundário do texto a comparação com imagens contemporâneas. Nossa intenção, longe de tentar estabelecer qualquer ingênua relação de “repetição da história”, busca evocar condições para uma reflexão historicamente informada acerca da gestão de quadros sanitários graves e da recepção pela imprensa no Brasil. Assim, ao revirarmos o passado, trazendo-o à tona, não procuramos nele condições de conforto para o presente, mas de veemente protesto.
Assim, compartilhamos inteiramente do comentário feito pelo caricaturista português Julião Machado, autor da capa da revista carioca “Dom Quixote” (1917-1927) de 23 de outubro de 1918 (Imagem 1). Há pouco mais de cem anos, a revista cômica apresentava aos leitores uma cadavérica representação alegórica da Influenza hespanhola, um dos nomes que se dava então à famosa gripe. De saída, Julião deixava um recado sensível aos leitores, exprimindo a dificuldade de fazer o que deveria fazer - humor - em tempos tão dolorosos: “Sem a menor vontade de rir, nem de fazer rir”2. Abordar as imagens a seguir não seria problema há algum tempo, quando não imaginávamos a convivência mortal com um vírus alastrado a nível planetário.
Seria relativamente “fácil” achar graça de algumas delas, tão distantes que estavam de nossa realidade, e tão seguros dos inegáveis avanços que a ciência e a medicina trouxeram às nossas vidas. A experiência de 2020, contudo, rearranjou a nossa relação com essas memórias do passado, aproximando-nos das pessoas daquele tempo. Hoje, se diante destas imagens às vezes nos escapa o riso, também nos sobressai certa culpa, porque o ocorrido naqueles tempos não deve ter sido tão diverso do que acontece hoje. Tal como Julião Machado em 1918, portanto, o tom escolhido aqui procura evitar qualquer humor. Ou então, é preciso entender o riso contido nessas imagens, sejam do passado ou do presente, conforme a acepção de Alain Deligne (2011 apud Silva, 2020), tomando-o exatamente como subversão. Pois rir apenas por rir; um rir alienado do sofrimento que o motivo do riso o envolve, seria - parafraseando o metalinguístico cartoon da ilustradora francesa Jika para o jornal “The Brazilian Report”, em março de 2021 - de mau gosto (Imagem 2).

A busca por culpados
Na imprensa ilustrada brasileira durante o século XIX o recurso à figura alegórica da morte foi recorrente para representar as inúmeras epidemias de febre amarela e cólera que assolaram o país. Esse imaginário foi presença constante na iconografia ocidental e teve seu auge durante a Idade Média. Entre os séculos XIV e XV, ela esteve expressa em publicações e pinturas como os Ars Moriendi, confrontando o homem à sua finitude. Representações do momento da morte similares ocuparam também os livros pessoais de oração denominados “Livros das horas”, nos “Triunfos da morte” e nas “Danças macabras”, em que vivos e mortos eram representados juntos (Schmitt, 2016).
A capa da revista “D. Quixote” supracitada evoca esse imaginário. No entanto, ao contrário das famosas vestes negras e a foice (ou gadanha), a Influenza de Julião Machado usa trajes típicos flamencos, com castanholas nas mãos. Como doença altamente mortífera, ela encarna muito bem a alegoria da Morte, mas agora tem um “passaporte”, ganhara costumes e uma nação para si. Nada mais propício para essa atribuição de identidade do que os tempos de nacionalismo exacerbado do início do século, que em 1918 finalmente via o desfecho de uma Grande Guerra fruto desses “ideais” - e que também em grande medida fora a responsável pela dimensão da gripe, que se alastrou junto à movimentação dos exércitos. Apesar do nome, sua origem não estava na Espanha, como se acreditava. Os especialistas apontam que, em contraposição à censura imputada à imprensa pelos países que se confrontavam durante a Primeira Guerra Mundial, a Espanha, neutra no conflito, não se furtou de noticiar nos jornais os casos da estranha doença que assolava o seu território, acabando por popularizar a doença como se fosse “sua” (Crosby, 2003; Goulart, 2003; Mauad, 2020a).
Um olhar atento para a ilustração revela camadas ainda mais sutis sobre a visualidade construída por Julião Machado, atestando o seu alinhamento com outras opiniões acerca de relações controversas entre a Guerra e a pandemia. A “kultur microbiana” injetada na perna da Influenza dá insumos a uma versão completamente falsa de que a doença teria sido na verdade “made in Germany”, como uma forma de tentar reverter a Guerra que parecia perdida, disseminando uma origem espanhola para encobrir a sua própria responsabilidade3. Ao mesmo tempo em que Julião Machado levanta a polêmica sobre a disseminação da gripe, coloca sobre a cabeça da Peste não um arranjo floral, como seria típico para suas vestes espanholas, mas uma coroa. Recorda, assim, que não importa quem ganhe as batalhas nos campos: ela é a verdadeira “vitoriosa”, a única “rainha”.
Duas ilustrações anteriores, publicadas nas revistas “Careta” (1908-1960) e “O Malho” (1902-1953), reforçam a ideia de uma conspiração germânica sobre a epidemia. Em “O bacillomarino” (Imagem 3), veiculada em 5 de outubro na “Careta”, o ilustrador anônimo - os traços indicam ser J. Carlos - faz uma alusão aos submarinos da Guerra como difusores da Influenza hespanhola, complementado pela legenda, que associa a doença como aliada dos Impérios Centrais, liderados pela Alemanha. Na imagem, a figura da Morte novamente é associada à pandemia. Ainda na mesma edição, a “Careta” apresentava um discutível testemunho incriminando a Alemanha. Em uma das passagens, afirmava-se: “em nossa opinião a misteriosa moléstia foi fabricada na Alemanha, [...] engarrafada e depois distribuída pelos submarinos que se encarregam de espalhar as garrafas perto das costas dos países aliados” (Careta apud Goulart, 2003, p. 28). Sem assinatura, originalmente redigido em um francês aportuguesado, o texto ganharia um caráter cômico, revelando, conforme Adriana Goulart (2003, p. 28), o grau de desinformação da sociedade sobre a seriedade com que se deveria tratar a doença. Para além disso, sustentamos, ao coligir essas opiniões expressas em imagens e textos, identificamos claramente uma yellow press mais interessada na exploração comercial dos fatos que propriamente comprometida com eles.
Em “O que anda no ar” (Imagem 4), charge de autoria de Perdigão para a revista “O Malho”, publicada uma semana depois, é o kaiser Guilherme II, imperador alemão, quem sobrevoa os mares lado a lado com a Influenza hespanhola, dessa vez portando também uma foice ensanguentada (Silva, 2020). O sentido da legenda - “A nova aliada do Kaiser” - segue à risca aquela veiculada pela “Careta”, sugerindo um alinhamento de opinião também entre as revistas, ou ao menos uma comum exploração sensacionalista do tema. Embora possa haver alguma ironia no kaiser ao lado da figura da Morte - estaria vivo ou morto? -, a imagem contém a suspeita de que o império alemão promoveria as mortes pela gripe, intencionalmente ou não. Culpado, portanto, de alguma forma.

Embora o aparente isolamento desses casos, ao especular uma origem germânica da doença e associá-la à Guerra, possa ter algo de pueril e sensacional vindo de um país como o Brasil, completamente marginal na disputa política da época, esse tipo de fenômeno não pode ser encarado como restrito ao passado. Contemporaneamente, como bem sabemos, a velocidade de transmissão de informações a nível global e as disputas por hegemonia política e econômica fornecem um campo aberto e frutífero à criação de boatos, teorias da conspiração e fake news para desestabilizar núcleos de poder ao redor do mundo (cf. Abreu, 2020). Basta recordar que a emergência da Covid-19 impulsionou situações análogas, embora dessa vez a rivalidade entre os países permaneça mais no campo econômico do que nos de batalha. A disseminação inicial do vírus SARS-CoV-2 a partir de Wuhan, na China, em dezembro de 2019, logo permitiu que nomes como Donald Trump, então presidente dos Estados Unidos, levantassem convenientes suspeitas sobre o governo chinês. Trump e seus apoiadores insinuaram repetidas vezes que a culpa do grave quadro norte-americano caberia à China (e não à leniência e má gestão da pandemia pela Casa Branca), ou mesmo que poderia ter ocorrido uma contaminação intencional do vírus pelo governo chinês, difundindo teorias sobre sua propagação a partir de laboratórios (Leblanc, 2020; Smith, 2020; Nichols; Holland, 2020).
Em janeiro de 2021, o relatório da Organização Mundial da Saúde considerou a origem artificial do SARS-CoV-2 como “extremamente improvável”, corroborando as primeiras suposições de seu espraiamento a partir de mercados de animais (WHO et al., 2021, p. 9). A acusação irresponsável de Trump, que toma ares de certo reavivamento da Guerra Fria, deve ser encarada no contexto atual de disputa pela hegemonia global entre Estados Unidos e China. Longe de serem elocubrações insanas, configuram-se como tentativas de descredibilizar o oponente entre as bases de seu eleitorado, em fóruns internacionais e no mercado financeiro. Da mesma forma, ao levantar a polêmica de um “vírus chinês” ou de uma “culpa chinesa”, Eduardo Bolsonaro, filho do presidente brasileiro e deputado federal, parecia se alinhar ao discurso trumpista como parte das estratégias malsucedidas de aproximação do governo brasileiro aos EUA no plano internacional (Jornal Nacional, 2020; Fellet, 2020).
Contudo, antes mesmo dessas declarações, notícias e imagens com o mesmo teor começaram a circular na imprensa internacional, aproximando-se também da lógica das imagens brasileiras nos tempos da Gripe Espanhola. O jornal dinamarquês “Jyllands-Posten”, em janeiro de 2020, publicou em sua versão impressa uma charge de autoria de Niels Bo Bojese (Imagem 5) satirizando a bandeira nacional chinesa ao substituir suas estrelas por imagens do vírus (Reuters Staff, 2020; Kott, 28 jan. 2020). No mês seguinte, a renomada revista alemã “Der Spiegel” editou em sua capa uma impressionante fotografia de Kevin Frayer (Imagem 6). Originalmente parte da série “Concern In China As Mystery Virus Spreads”, realizada em Beijing no mês de janeiro, a fotografia apresenta um homem chinês trajando rigorosos acessórios para proteção individual contra o vírus. Mas na capa da revista, seu capuz vermelho e máscara de gás, unido à manchete “Corona-virus” e as destacadas palavras “Made in China” - reportando-se à fabricação de produtos chineses que circulam em volume nos mercados a nível global - despertam uma imediata sensação de cenário distópico de guerra e eleição de um inimigo comum (Der Spiegel, 2020; Global Times, 2020). Em março, foi a vez da revista online portuguesa “Sábado”, que veiculou a charge do português Vasco Gargalo. Intitulada “Produção mundial”, faz referência a fábricas chinesas produzindo, ou melhor, poluindo a atmosfera com os vírus, que saem por suas chaminés e contaminam o planeta Terra (Sábado, 2021; Gargalo, 2020). No mesmo mês, a notícia intitulada “Culpa do vírus de Wuhan encontra-se diretamente no PCC [Partido Comunista Chinês]”, publicada pelo jornal online “Taiwan News”, trazia uma charge sem autoria em que partículas do vírus identificadas com a bandeira chinesa se aproximam de um planeta Terra em máscara cirúrgica (Spencer, 2020).

Segundo Claudio Bertolli Filho (2020), epidemias mortais tendem a se comportar como operetas, repetindo seus atos subsequentemente em diferentes países. A busca de um culpado “estrangeiro” pela disseminação dessas doenças parece formar parte do conjunto dessas narrativas, como sugerem o caso da Gripe Espanhola e a Covid-19. Em todas as imagens acima citadas, são estreitas e diretas as associações entre a doença e o Estado-Nação chinês, mais que o local de origem do vírus propriamente. Ao conferir uma “identidade nacional” ao SARS-CoV-2, elas deslocam a questão sanitária para uma questão política, exatamente como o fenômeno observado nas imagens sobre a Gripe Espanhola e a Primeira Guerra. Não há melhor maneira de ilustrar e comprovar essas relações do que a inusitada aproximação entre as capas da revista alemã “Der Spiegel” e a da revista “Dom Quixote”, alimentando a ideia de uma criação (e responsabilidade) chinesa em 2019 tal qual uma criação alemã em 1918.
A maior das pestes
A bibliografia especializada sobre a gripe espanhola no Brasil informa que os primeiros casos da doença ocorreram em meados de setembro de 1918, após aportarem no Brasil dois navios, um com forças brasileiras vindo de Dakar (Mauad, 2020), e o navio Demerara, vindo da Europa. Rapidamente a doença se espalhou pelas cidades costeiras, chegando ao interior (Brito, 1997; Bertucci, 2002; Goulart, 2003). A seguir, as impressionantes palavras do literato Pedro Nava rememorando o cenário carioca de então, extraídas de seu livro “Chão de Ferro”:
Era apavorante a rapidez com que ela ia da invasão ao apogeu, em poucas horas, levando as vítimas às sufocações, às diarreias, às dores lancinantes, ao letargo, ao coma, à uremia, à sincope e à morte em algumas horas ou poucos dias. Aterrava a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas. Nenhuma de nossas calamidades chegara aos pés da moléstia reinante: o terrível já não era o número de causalidades - mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemitério, quem abrisse covas e enterrasse os mortos. O espantoso já não era a quantidade de doentes mas o fato de estarem quase todos doentes e impossibilitados de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva (Nava, 2001, p. 208).
As consequências para além da doença em si não tardaram a aparecer. Em outubro surgem relatos de que a cidade do Rio de Janeiro começava a ficar desabastecida de alimentos4. O jornal “Gazeta de Notícias” (1875-1956) exclamava o descaso do poder público enquanto a população fenecia, da doença ou de fome: “A fome nos ameaça e em varios pontos da cidade já se faz sentir a falta de certos generos, não alcançados nem pelos que dispõem de todo o recurso pecuniário, e que por isso offerecem qualquer quantia” (“Gazeta de Notícias”, 24 out. 1918, p. 1). Já a revista “Fon-Fon” (1907-1958) deixou de lado o humor para publicar, no Dia de Finados, uma série de fotografias da chamada “Epidemia reinante”, ilustrando alguns aspectos do trágico cenário que se delineava na capital. O Comissariado da Alimentação Pública, Leopoldo de Bulhões, ordenou o confisco de aves de produtores para vendê-las controladamente e a preço tabelado à população em postos de assistência, uma vez que a sua alimentação prometia combater a doença (“O Malho”, 26 out. 1918; Goulart, 2003). Enormes filas se formavam na esperança do retorno à casa com a garantia do alimento (Imagem 7). Em outra página, vemos multidões em frente aos postos de distribuição gratuita de leite e medicamentos (Imagem 8).


Em uma das fotografias é possível reconhecer a empolgação sincera de crianças erguendo garrafas vazias para que fossem abastecidas pelo encarregado da assistência. Em outras, vemos olhares caídos mirando o interesse do fotógrafo. Conforme adverte Ana Maria Mauad (2020), o caráter realista dessas imagens, publicadas na revista como uma narrativa visual (que prescinde de textos), favorece a sua interpretação como “janela” para os acontecimentos, isto é, adquire valor de verdade, e consolida uma “visualidade para o acontecimento” construída coletivamente pela imprensa. Já para nós, diante dessas imagens hoje, parece inevitável pensar no quanto o contato próximo entre aquelas pessoas, seus corpos pressionados contra o portão ou amontoados nas filas, devia favorecer a propagação da doença, em situações familiares àquelas acarretadas no presente, também motivadas pela urgente necessidade de manutenção dos lares. Os casos de saques do auxílio emergencial nas agências bancárias é um exemplo (Mendonça; Rossi, 2020).
É bom que se lembre que não havia um Sistema Único de Saúde como hoje. A cobertura assistencial médica gratuita e para todos não era bem uma responsabilidade pública, e salvo no caso do atendimento em instituições de caridade como as Santas Casas de Misericórdia, o acesso a tratamentos de saúde era predominantemente de caráter privado, inacessível a maior parcela da população brasileira. A revista “O Malho” ofereceu ao público uma cena caricatural desenhada por Yantok que parece dar uma dimensão da miséria e desamparo no qual a população pobre enfrentava a epidemia (Imagem 9). Amontoados em uma cama, sob uma estrutura que denota grande precariedade, um grupo de sete pessoas e um bebê, tendo ao lado seu fiel e esquelético cão, parecem aguardar sua hora no “morro do Pinto”.
Com o aumento preocupante de casos, muitas escolas, que tiveram suas atividades suspensas, tornaram-se de repente hospitais, com pacientes espalhados pelo chão até mesmo de cozinhas, como outros testemunhos fotográficos nos apresentam (Imagem 10). Retornamos aqui ao testemunho de Pedro Nava ao falar daqueles que miseravelmente não sobreviveram aos cuidados domésticos ou aos precários atendimentos dos hospitais:
Além da fome, da falta de remédio, de médicos, de tudo, as folhas noticiavam o número nunca visto dos doentes e cifras pavorosas do obituário. As funerárias não davam vazão - havia falta de caixões. [...] não tinha quem os transportasse e eles iam para o cemitério à mão, de burro [...], arrastados, ou atravessados nos táxis. No fim os corpos iam em caminhões, misturados uns aos outros (Nava, 2001, p. 211).

Quando por fim lá chegavam, a sobrecarga de corpos exigia o enterro em valas comuns, não muito distintas daquelas que deviam ser cavadas nas trincheiras da guerra no outro lado do oceano. Os cenários calamitosos dos cemitérios também foram registrados pela “Fon-Fon” (Imagem 11). É desnecessário estabelecer qualquer relação com o nosso trágico presente. Seja como for, se as palavras de Nava chocam pelo horror das consequências da doença na cidade, que igualmente afetaram a sua própria casa, aquele lar ainda podia contar com visitas médicas e compra de remédios. Uma situação muito diferente a de milhares de pessoas que decerto não poderiam nem menos contar com algum socorro. Ainda que a gripe espanhola não elegesse suas vítimas por renda, as duras condições de vida das populações nas periferias as afetavam muito mais profundamente, como também em outras epidemias de nossa história. Era o que denunciava a revista “Careta”, em fins de novembro, com a fotografia de uma vista do Morro de São Carlos e seus moradores (Imagem 12), uma das mais antigas favelas do centro do Rio. Na legenda: “Neste local não houve socorro aos moradores” (“Careta”, 23 nov. 1918). Embora os contágios já diminuíssem nessa época, o tópico do descaso do poder público com os mais pobres não foi abandonado.


Assim como os redatores e fotógrafos das revistas, os caricaturistas também não ficaram inertes ao doloroso cotidiano da capital, retratando em seus trabalhos, com mais ou menos humor, o que se podia ler nas notícias. Para além dos vários trocadilhos com a palavra “influenza” e “hespanhola”, encontramos caricaturas sobre a má ação dos governantes e a ação nada humanitária de médicos, farmacêuticos e comerciantes de alimentos. Outras, por sua vez, envolvem diretamente a doença e as desigualdades sociais, como a fome, a falta de recursos para pagamento de remédios, a impossibilidade de medidas profiláticas pela carência de higiene ou o trabalho compulsório de populares nos cemitérios.
Em “Onde pega o carro”, na revista “O Malho”, Raul Pederneiras ilustrou uma dessas questões (Imagem 13). Na charge, um homem visivelmente doente, cabelos despenteados e olhos fundos, envolto a lençóis, travesseiros e outros recursos para se manter aquecido, tem ao seu lado a esposa a escutarem as instruções do médico, que ergue um pequeno frasco de remédio: “- Tome uma gotta ao almoço e outra ao jantar. - Sim, senhor; mas onde vou arranjar almoço e jantar?” (Pederneiras, 09 nov. 1918, p. 21). A quebra de expectativas junto ao leitor pela resposta do doente, que nem sequer poderia regular os horários do remédio pela falta das refeições, é justamente onde residiria o humor da charge. Ela revela, todavia, o ponto central: a fome por que passava a população urbana, desencadeada pelo desabastecimento e inflação dos gêneros alimentícios com a peste.
Calixto Cordeiro também abordou a debilidade dos doentes e a falta de alimentos considerados adequados para os seus tratamentos na revista “D. Quixote”, em “O perigo do trocadilho” (Imagem 14). Acamado, com perfil atônito e enfermo, rosto esquálido e olheiras, um rapaz é atendido por um médico, que afere a sua pulsação. Diante de si, uma revoada de galinhas, descontextualizada da cena, poderia indicar uma espécie de alucinação. A legenda, mais uma vez, completa o sentido da charge: “... E o garoto, convalescente, explicou: - A fraqueza é que me engallinha, doutor; e a falta de gallinha me esfrangalha às forças... Se eu arranjasse um frango era uma canja” (Cordeiro, 06 nov. 1918, p. 13). Aqui, é o jogo de palavras e sua ambiguidade - engalinha (causa má sorte, mal funcionamento) / galinha / esfrangalha (reduz a trapos) / frango / canja (facilidade) - que confere a graça da charge.
Fato é que o perigo mencionado no título não estava no trocadilho em si, mas justo na carência do objeto mesmo do trocadilho, a carne de aves. Segundo uma notícia da revista “O Malho”, que qualificava a ação do Comissariado de Alimentação Pública como um desastre, a quantidade de galinhas e frangos confiscados seria irrisória, e a “venda num só ponto da cidade, priv[ara] completamente desse recurso dietetico todos os doentes que habita[va]m os logares distantes desse mercado oficial” (“O Malho”, 26 out. 1918, p. 16). Mal alimentado, sem poder contar com o apoio do Estado na crise pandêmica, restaria ao garoto convalescente a fraqueza, o mau agouro, o definhamento.
Mais lamentável que as privações atravessadas pelos contemporâneos da Gripe Espanhola em 1918 é constatar que muitas delas sejam factíveis na pandemia de Covid-19 hoje, ainda que separadas por um século. É reprovável que meras advertências para lavar as mãos sempre que possível, evitando o contágio do vírus, possam revelar uma distinção de classe, ponto presente na charge “Covid-19 nas favelas” de Luiz Fernando Cazo, publicada no “Blog do AFTM” em abril de 2020 (Cazo, 2020a, 2020b). A quebra de expectativa do autor segue a mesma lógica da ilustração de Raul Pederneiras em “Onde pega o carro”. Antes de sabão ou álcool em gel para higienização, onde haveria água? Irônico é pensar no quanto as recomendações para “permanecer em casa” escancaram o profundo abismo que divide a sociedade brasileira entre aqueles que possuem um lar e os que vivem na rua, como nos atentou o caricaturista Jaguar em “O pandemônio da pandemia”, charge publicada na “Folha de São Paulo” em abril de 2020 (“Folha de S. Paulo”, 03 abr. 2020).

Finalizamos a segunda parte com uma das mais poderosas ilustrações de época sobre a peste de 1918, feita por Raul Pederneiras para a “D. Quixote” e intitulada “A maior peste” (Imagem 16). O recurso de Raul aos riscos frenéticos feitos com o nanquim reforça, nas paredes e assoalho, a carência da habitação. Há um tanto de sombrio e sujo por trás dos hachurados. Em uma casa pobre, uma família sofre com a doença. Dois homens não muito bem-encarados invadem o lar, dirigindo-se diretamente àquele que poderia ser o pai de família, fisicamente debilitado pela gripe. Seu olhar é dolorido, subserviente, amedrontado. O apoio maternal da senhora às suas costas é ineficaz para a sua autoconfiança, e ela sabe disso, compartilhando aquela dor. Ao redor da cama, o restante da família. A esposa ajoelhada é surpreendida pela fala de um dos homens, o proprietário da habitação onde moram, conforme a legenda da ilustração: “- Quero cá saber de influenza! No fim do mês venha o cobre do cômodo e da conta da venda, se não ponho vocês com os troços na rua!” (Pederneiras, 06 nov. 1918, p. 7). Mas como? Enfrentando a doença, como garantir a renda para o pagamento das dívidas? Entre os dois homens, no entanto, não há nenhum sinal de solidariedade. Um representa a violência, capaz de arrancar a família daquela precária habitação. O outro se assemelha a um tipo mafioso, daqueles que sabem como explorar monetariamente as desgraças alheias e que não têm o sono afetado por isso. A desgraça da cena é completada pela presença das crianças: a menina de pé, quase em choro; o pobre menino, quase invisível, cabeça repousada no duro baú da família, saberá se doente ou faminto, e, no meio da cena, o bebê nu ao chão, exposto à doença, vulnerável diante dos pés dos cobradores.
Raul Pederneiras soube bem, afinal, como sensibilizar o leitor, encaminhando-nos a concluir qual seja a “maior peste”: a desigualdade social, a maior das crueldades humanas.
Sobre líderes e pestes
Em outubro de 1918, com o aumento galopante do número de casos de gripe espanhola na capital, a “Gazeta de Notícias” abriu ofensiva contra o governo, atribuindo à doença o nome de “mal de Seidl”5, em referência a Carlos Pinto Seidl, Diretor Geral de Saúde Pública - posição que hoje corresponderia a de um ministro da Saúde. A Diretoria era, no entanto, um órgão subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, não dispondo das mesmas autonomias de um ministério (Goulart, 2003). Seidl era um médico experiente, com atuação anterior em outros surtos da capital, mas sofria fortes baques da opinião pública, assim como o presidente do país na época, Wenceslau Brás, pela incapacidade de estabelecerem medidas para deter o avanço da doença. Seidl não aguentou as pressões da imprensa, exonerando-se em 18 de outubro, enquanto a crise se aprofundava (Goulart, 2003). Adriana Goulart (2003) conclui que o diretor parece ter servido mais como um bode expiatório do Governo, pois não se tratava exatamente de inação de sua parte, mas de ação incapacitada pelo próprio Ministério da Justiça e Negócios Interiores, que legava à Saúde Pública importância secundária.
São inúmeras as charges e ilustrações que tematizaram na imprensa a ineficácia do governo da época em combater a gripe espanhola, focalizando principalmente os dois personagens. Mas há uma em especial que vale a pena a atenção, publicada em outra capa da Revista “D. Quixote” em 30 de outubro (Imagem 17). Realizada por Calixto Cordeiro, combina sátira política e cultura erudita, renovando a tradição clássica ao conferir novos sentidos a uma obra separada de Calixto por mais de quatrocentos anos: a “Divina Comédia”, de Dante Alighieri. “Círculo nono, segunda esfera: traidores da pátria” é o título da ilustração, traduzido do italiano. Remete diretamente às visitas de Dante, guiado por Virgílio, às profundezas do Inferno. Entre escarpas rochosas, de ângulos agudos e traços febris, Calixto desenha Dante curvado a observar o sofrimento de um culpado - ou seria uma vítima? - no último círculo do Inferno, o nono, onde habitaria toda a sorte de traidores. “- E este, mestre?” - pergunta Dante acerca dos motivos que levaram aquele sofredor à região onde se encontravam os mais graves pecadores. “- É também um traidor” - responde Virgílio - “confiaram-lhe a guarda de uma cidade e ele deixou entrar o inimigo devastador” (Cordeiro, 30 out. 1918, capa).
A fisionomia característica do sofredor não deixa dúvidas: trata-se de Carlos Seidl, considerado por Calixto um “traidor da pátria” por ter permitido a entrada da Peste. Ele se encontra em uma espécie de alcova fumegante, de onde observa subir do fundo espessa fumaça; suas mãos tensas cravadas sobre os ombros indicam agonia. A referência visual de Calixto para a composição da cena é quase inequivocamente Gustave Doré, que ilustrou uma popular edição do livro no século XIX. Curiosamente, contudo, se Calixto acertou a região do Inferno relativa aos traidores da pátria - de fato o nono círculo, segunda esfera, conforme a literatura -, não representou o sofrimento correspondente, narrado na obra como o lago congelado Cócito (Imagem 18). Calixto ilustrou o sexto círculo, onde sofrem no fogo os hereges (Imagem 19). Menos um equívoco do que uma escolha retórica, o ilustrador pode ter optado por essa representação a fim de aproximar as expectativas dos leitores da revista acerca dos sofrimentos do Inferno - ainda hoje muito associados ao fogo.
O destino de seu presidente, é claro, não deveria ser muito diverso. Calixto Cordeiro, de novo, foi quem trabalhou o tema, embora de forma menos direta. A imagem foi estampada com destaque na primeira página do jornal “Gazeta de Notícias” de domingo (Imagens 20), circundada por manchetes trágicas: “A vida por um fio”, “O descalabro da Saúde Pública”, “A caminho da fome!”, “Desinfecção!”. Naquela edição, a “Gazeta” estimava mais de quinhentas mortes na cidade, apenas referentes ao dia anterior (Cordeiro, 27 out. 1918). A imagem de Calixto não representa propriamente a figura de Wenceslau Brás, mas a condição pavorosa da cidade expressa na ilustração seria representativa de sua inação, ou seja, de sua responsabilidade, como atesta o título “A cidade de Wenceslau”. Nela, um mar de pessoas empilhadas, mortas e vivas entre caixões, domina a cena, digna de mais um dos círculos do Inferno de Dante. À direita, um grupo se distingue dos demais enquanto disputa por algo pouco identificável - talvez um pedaço de pão, considerando os casos de fome registrados. Eles disputam por sua sobrevivência, evocando vagamente a famosa composição de Géricault em “A balsa da Medusa”, de 1819, onde os náufragos se unem em um último suspiro de energias para um pedido de resgate ao navio no horizonte. Ao fundo da ilustração de Calixto, eis a figura da Peste, por entre nuvens fétidas e contagiosas que evaporam de si, contaminando os habitantes. Assemelha-se a um cavaleiro do Apocalipse: possui um aspecto esquelético, porta a gadanha da morte, e monta uma besta mamífera sedenta por devorar os corpos à sua frente.
A magistral ilustração de Calixto Cordeiro bem poderia ter inspirado uma das notícias posteriores da revista “O Malho”, no Dia de Finados. Redigida nas “Notas da Semana” por J. R., entre fotografias de distribuição de alimentos no Méier, denunciava o descalabro da ação governamental:
De um momento para o outro viu-se a população completamente privada do pão, da carne, do leite e das aves, que lhe eram indispensaveis. Centro de grandes recursos, servido por enorme teia de linhas terrestres e maritimas, que o ligam a uma infinidade de centros produtores; tendo em toda a sua area estabelecimentos para a vendagem de todas essas mercadorias, a capital da Republica apresentou durante muitos dias - e ainda apresenta, em parte - o aspecto de uma cidade sitiada por feroz inimigo, disposto a obter-lhe a rendição pela fome! (“O Malho”, 02 nov. 1918, p. 20).
Mas “A cidade de Wenceslau” também possui pontos de contato notáveis com imagens contemporâneas da pandemia. Em março de 2021, quando o Brasil já havia ultrapassado a marca de duzentos e cinquenta mil mortes por Covid-19 (Center, 2021), Carlos Latuff atualizou a imagem do cavaleiro do Apocalipse, substituindo a montaria pelo presidente da República e o cavaleiro pelo vírus SARS-CoV-2 (Imagem 21). Atravessam um cenário de corpos semelhante ao desenhado por Calixto, mas agora tendo ao fundo a própria bandeira do Brasil, que se completa, ao centro, com a cor azul do vírus. Tal como nas charges internacionais onde o vírus ou a doença eram associados ao povo chinês, Latuff enxerga-o agora como brasileiro (Moreira, 06 abr. 2021; Latuff, 2021).
Como bem sabemos, a política se constrói muito constantemente a partir de um jogo de opostos. Wenceslau Brás já estava no fim de seu mandato, em 1918, e as expectativas da opinião pública se convergiam para o seu sucessor, Rodrigues Alves. Em um tempo em que as eleições ocorriam em março e as posses no dia da Proclamação da República, Alves já estava eleito quando a Gripe Espanhola se espraiou pelo Brasil. Embora não tivesse tomado posse na data marcada justamente por ter contraído a doença em outubro, as expectativas sobre ele eram altas, tendo em vista a sua atuação anterior como presidente entre 1902 e 1906 e as reformas sanitárias junto a Oswaldo Cruz contra a varíola.
De repente, Rodrigues Alves aparecia na imprensa como o nome certo na hora certa; alguém capaz de promover melhorias na saúde pública e erradicar a doença. É como o apresentara Raul - sob o pseudônimo de OIS (Silva, 2014) - na “D. Quixote” de 6 de novembro, claramente apontando qual “a política que a Pátria espera[va]” do novo presidente: a vacinação contra a Gripe (Imagem 22). Rodrigues Alves e a vacina também aparecem associados na ilustração de capa da “Careta” por J. Carlos, dias depois (Imagem 23). Nela, o futuro presidente segura uma enorme seringa para vacinação, mas a utiliza curiosamente como um violão para, em serenata, conquistar (ou convencer) a coroada e desconfiada Madame Sebastianópolis em sua casa, uma clara alegoria à cidade do Rio de Janeiro. Ironicamente, no entanto, Rodrigues Alves não resistiu à doença que a opinião pública tanto esperava que ele eliminasse, falecendo em janeiro de 1919.


Embora não tratado aqui, é evidente que, tanto para o presente quanto para o passado, por trás de cada artista ou jornal exista um posicionamento específico no xadrez político, que por sua vez incita a produção de imagens adequadas a sua concepção dos fatos. Contudo, assim como um exame primário sobre a imprensa ilustrada de 1918 não resultou em sequer uma única visualidade positiva da ação dos representantes políticos vigentes contra a epidemia da gripe, uma busca na internet hoje revela algo muito semelhante acerca da gestão da pandemia no Brasil. Produzida por brasileiros ou estrangeiros, as caricaturas e charges produzidas desde o início de 2020 compartilham o sentimento de que o líder máximo do país se posicionou não ao lado de seus cidadãos, mas ao lado da própria Peste, e da Morte. Analisar casos a essa altura seria uma perda de tempo: as variáveis nas pesquisas em mecanismos online de busca são unânimes nos resultados: o presidente Jair Bolsonaro é representado ao lado da figura da Morte e do vírus, como cavaleiro do Apocalipse, como inimigo da vacinação, como um genocida6.
Considerações finais
Ao longo do texto buscamos traçar um histórico dos eventos pandêmicos de 1918 conferindo especial atenção à constituição de sua visualidade na imprensa carioca. A despeito de suas distintas funções, ilustrações, caricaturas e fotografias compartilhavam uma postura crítica diante do desenrolar dos acontecimentos. Em geral, a opção pelo que representar valorizou a má gestão do quadro sanitário e a escalada dos casos, à medida que a cidade se convertia em um cenário caótico e fúnebre. Gostaríamos de destacar ainda que, embora a gripe não poupasse aqueles com melhores condições financeiras, a atenção desses “criadores de imagens” voltou-se deliberada e particularmente para os impactos nas camadas mais pobres. Afinal, são elas as mais presentes nas imagens quando o assunto são as agruras sofridas, assim como foram elas as mais atingidas pela pandemia. Mesmo quando as ações de caridade das famílias abastadas em prol dos desassistidos foi objeto de atenção das fotografias, incitando um modelo de comportamento a uma classe social, elas apenas figuram como um contraponto aos reais “protagonistas” dessa indecorosa história, cujos destinos não raramente foram as valas coletivas.
Secundariamente, buscamos aproximar as imagens produzidas em 1918 àquelas da contemporaneidade, sob o impacto avassalador do novo coronavírus. Para além das semelhanças nos noticiários, a consonância entre essas imagens, separadas por um século, atestam uma compartilhada visualidade sobre a pandemia. Há, é claro, diferenças, como a particular representação do próprio vírus no tempo presente, imerso na importância que assumiu a ciência moderna em nossa sociedade e por sua “moderna tendência a retratar ou visualizar a existência”, como apropriadamente referiu-se Nicholas Mirzoeff (1999, p. 5). Contudo, os códigos de representação e leitura do passado em boa medida seguem ativos no século XXI, em certa medida condensando a experiência do tempo. As imagens de 1918 não são nada alheias ao espectador de 2021.
No plano comparativo mais amplo acerca desses dois eventos, as similaridades em boa medida permanecem. Enquanto em 1918 a Espanha foi um dos nomes escolhidos para denominar o mal que assolava o país, a desconfiança em torno da Alemanha, que perdia a Primeira Guerra, estava posta. Hoje, é o “vírus chinês” (ou brasileiro) que toma o noticiário nacional e internacional, sob distintos vieses políticos. No passado aqui observado, o agravamento do quadro sanitário evidenciava o lado mais fraco do jogo no qual a extrema desigualdade social, bastante familiar para nós em 2021, expunha à fome e à morte os habitantes menos favorecidos.
Por fim, o desgaste político gerado por uma crise sanitária de enorme abrangência foi outro filão da imprensa em 1918. Enquanto sepultava alguns nomes como o de Seidl e Wenceslau Brás, projetava a esperança em Rodrigues Alves. O presente já forneceu imagens poderosas para a História sobre a atuação de Bolsonaro durante a pandemia no Brasil. Se, como dito antes, a política se constrói por opostos, caberia indagar ao leitor como o presente vem criando (e como ainda criará) imagens sobre personalidades contrárias à política negacionista da Presidência, e como elas serão capazes de afetar os destinos das próximas eleições presidenciais.
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Notas