Dossiê

Coqueluche e mortalidade infantil em Paranaguá (1855-1858)

Pertussis and infant mortality in Paranaguá (1855-1858)

Tos ferina y mortalidad infantil en Paranaguá (1855-1858)

Joacir Navarro Borges
Universidade Estadual do Paraná, Brasil

Coqueluche e mortalidade infantil em Paranaguá (1855-1858)

Revista NUPEM (Online), vol. 13, núm. 30, pp. 173-190, 2021

Universidade Estadual do Paraná

Recepción: 09 Abril 2021

Aprobación: 05 Septiembre 2021

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar o surto de coqueluche que atingiu Paranaguá, cidade portuária brasileira localizada no litoral da Província do Paraná, e o impacto que esse surto teve sobre a mortalidade infantil da localidade no período. O surto atingiu crianças entre zero e oito anos de idade, com uma única exceção. A análise se baseou nos dados dos assentos de óbitos da paróquia de Nossa senhora do Rosário de Paranaguá. Como método de comparação, procedeu-se à análise da mortalidade infantil durante o surto, separando-se os óbitos provocados pela coqueluche e os óbitos provocados por outras causas e também comparando a mortalidade durante o surto com a mortalidade dos períodos anteriores e posteriores a ele. Este estudo permite conhecer melhor as causas da mortalidade infantil na cidade de Paranaguá em meados do século XIX.

Palavras-chave: Coqueluche, Morta-lidade Infantil, Paranaguá-Brasil.

Abstract: This article aims to analyze the pertussis outbreak that struck Paranaguá, a Brazilian port city located on the coast of the Paraná Province and the impact that this outbreak had on the local infant mortality in the period. This outbreak affected children between zero and eight years of age with one single exception. The analysis was based on data from the death records of the parish of Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá. As a method of comparison, infant mortality during the outbreak was analyzed, separating deaths from pertussis and deaths from other causes and also comparing mortality during the outbreak with mortality from periods before and after it. This study allows us to better understand the causes of infant mortality in the city of Paranaguá in the middle of the 19th century.

Keywords: Pertussis, Child mortality, Paranaguá-Brasil.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar el brote de tos ferina que afectó a Paranaguá, ciudad portuaria brasileña ubicada en la costa de la Provincia de Paraná y el impacto que este brote tuvo en la mortalidad infantil local en el período. Este brote afectó a niños de cero a ocho años con una excepción. El análisis se basó en datos de los registros de defunción de la parroquia de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá. Como método de comparación, se analizó la mortalidad infantil durante el brote, separando las muertes por tos ferina y las muertes por otras causas y también comparando la mortalidad durante el brote con la mortalidad de períodos anteriores y posteriores. Este estudio permite conocer mejor las causas de la mortalidad infantil en la ciudad de Paranaguá a mediados del siglo XIX.

Palabras clave: Tos ferina, Mortalidad infantil, Paranaguá-Brasil.

Introdução

A criação da Província do Paraná, a partir da emancipação da 5ª Comarca de São Paulo, em 1853, levou à organização do governo provincial, que passou a se preocupar com os problemas enfrentados por seus habitantes. Os relatórios dos Presidentes da Província do Paraná da segunda metade do século XIX demonstravam uma constante atenção à saúde pública provincial, especialmente à emergência de surtos epidêmicos de varíola e febre amarela, pois eles representavam um obstáculo ao desenvolvimento regional.

Os estudos sobre a história da saúde e das doenças no Paraná provincial tiveram iniciativas pioneiras nos trabalhos de Márcia Teresinha Andreatta Dalledone Siqueira. Para a cidade de Paranaguá, na segunda metade do século XIX, são particularmente importantes as pesquisas de João Pedro Dolinski. Esses estudos centram suas atenções sobre as condições sanitárias da província, o pensamento e a atuação dos médicos, das instituições médicas e do governo local, e a eclosão de surtos epidêmicos de varíola (Siqueira, 1980) e de febre amarela (Dolinski, 2013).

Márcia Teresinha Andreatta Dalledone Siqueira fez uma análise ampla sobre o variado espectro de enfermidades que afligiam a população paranaense entre 1853 e 1889. Esse estudo dedicou algumas páginas à coqueluche, mapeando os diversos surtos pelos quais o Paraná provincial passou a partir dos relatos das autoridades políticas e sanitárias da época (Siqueira, 1989). Trata-se de um dos poucos estudos que se dedicam em alguma medida ao conhecimento da dinâmica dessa doença no Paraná provincial.

Nesse sentido, o presente trabalho pretende contribuir para o conhecimento da história da saúde e das doenças no Paraná provincial, pois é um estudo de caso que visa compreender qual o impacto percentual do surto de coqueluche de 1856-1857 sobre a mortalidade infantil em uma localidade específica: a cidade de Paranaguá.

Embora a tosse convulsiva tenha tido um grande impacto sobre a mortalidade infantil no Paraná provincial, foi pouco estudada até o momento. Algumas informações foram deixadas pelos contemporâneos, como o cronista Antonio Vieira dos Santos, as autoridades provinciais e os médicos que atuaram no século XIX, no entanto, pouco se conhece sobre questões específicas, tais como o número de mortos, o perfil etário e sexual das vítimas e a sazonalidade da ocorrência dos diversos surtos de coqueluche que assolaram as crianças da província do Paraná.

Para responder tais questões relativas ao surto de 1856-1857, vamos nos utilizar da documentação até agora inédita dos assentos de óbitos do Vigário Gregório José Nunes, da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá, entre 1855 e 18581. O vigário tinha o hábito de esclarecer a causa mortis das pessoas nos assentos de óbitos, o que nos permite entender a dinâmica das patologias que acometiam as pessoas naquela sociedade.

Essa documentação permitiu contabilizar de modo bastante preciso a quantidade de óbitos pela doença, indicando também a data do óbito, o nome, o sexo, a filiação e o local de moradia da família da criança vitimada pela doença.

Por se tratar de uma documentação serial, procedeu-se uma abordagem quantitativa dos dados retirados dos registros. A partir dos dados brutos foram construídos quadros como forma de elucidar o panorama da mortalidade de crianças entre 0 e 8 anos de idade causada pela coqueluche e por outras doenças e também como forma de estabelecer comparações com a mortalidade da população acima dessa faixa etária. Para estabelecer o impacto do surto de coqueluche na mortalidade infantil, e também na mortalidade geral no período, foi necessário estabelecer comparações com períodos anteriores e posteriores ao surto.

O uso dos registros de óbitos para compreender a dinâmica das doenças em determinadas localidades tem dado frutos. Em um artigo recente, Carlos Alberto Medeiros Lima se debruçou sobre a incidência da coqueluche entre crianças livres e escravas de Bananal, Capivari, Rio Claro, Limeira e Santa Cruz no período de 1840-1870. O autor utilizou de maneira bastante interessante as informações dos assentos de óbitos para compreender a dinâmica espacial e temporal da coqueluche nessas localidades (Lima, 2018).

Breve histórico da coqueluche

A descrição de sintomas que parecem descrever manifestações da coqueluche aparece em relatos europeus a partir do século XII, ocorrendo uma forte proliferação desses relatos - paralelamente à expansão do texto impresso - entre os séculos XV e XVIII (Weston, 2012). Em 1578, Guillaume de Baillou descreveu a coqueluche como “tussus quintina”. Os frequentes surtos que assolaram a Europa chamaram a atenção de estudiosos ao longo do tempo. Em 1679, Thomas Sydenham fez uma descrição bastante exata da doença e lhe deu o nome latino de “pertussis”. Em 1682, Thomas Willis salientou a peculiaridade epidêmica do que chamou de “Tussis Puerorum Seu Suflocativa”, diferenciando-a da influenza. No século XVIII, a doença já era bastante conhecida na Europa, causando uma verdadeira pandemia no continente entre os anos de 1732-1733. Nos séculos XVIII e XIX, aumentou sua proliferação epidêmica pelo planeta, tornando-se uma doença de caráter endêmico na maioria das regiões do globo (Román, 2010).

Recentes pesquisas genéticas sugerem que o patógeno causador da coqueluche convive com os humanos há muito mais tempo que os relatos históricos indicam. O alastramento da coqueluche pela Europa no início da Idade Moderna pode ser explicado pelas mudanças que o continente sofreu no período, expandindo os contatos com outras regiões do globo e adensando a população em cidades, o que favorecia o surgimento de surtos epidêmicos. Também é possível considerar que, por motivos desconhecidos, o patógeno tenha existido até então em uma forma branda, sofrendo uma mutação que aumentou sua agressividade (Weston, 2012).

A coqueluche é uma doença infecciosa aguda que acomete principalmente as crianças. Sua transmissão ocorre por via aérea e afeta o trato respiratório, causando acessos violentos de tosse que culminam com inspiração prolongada. É uma doença endêmica que irrompe em epidemias esporádicas (Hardy, 1993).

No Brasil, a coqueluche também é popularmente conhecida como tosse comprida ou tosse convulsa, e seus sintomas mais destacados, como os acessos violentos de tosse convulsiva ou vômica, já eram bastante conhecidos no século XIX. Os médicos brasileiros também se dedicaram a pesquisar e escrever sobre a coqueluche. Em 1860, João Vicente Torres Homem concorreu “ao lugar de opositor da seção de ciências médicas da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, sendo aprovado com a apresentação de uma dissertação sobre coqueluche” (Dolinski, 2013, p. 82).

O conhecimento bastante preciso da sintomatologia da doença no século XIX certamente favoreceu a sua clara distinção em relação às outras causas de mortalidade prevalentes no período. Isso aponta para uma alta confiabilidade dos dados obtidos através dos assentos de óbitos utilizados nessa pesquisa.

No âmbito desse estudo utilizaremos o termo coqueluche, pois é dessa forma que a doença é referida na documentação dos assentos de óbitos aqui utilizados (Mitra Diocesana de Paranaguá, 1859).

O surto de coqueluche de 1856-1857 em Paranaguá

As primeiras referências à coqueluche em Paranaguá foram relatadas pelo cronista Antonio Vieira dos Santos em 1818:

presentemente todos andam bons, a exceção de algumas crianças que têm estado bem doentes com uma peste que tem reinado em todas estas Cistas Americanas neste anno; de um fluxo catarral, com uma tosse comprida que tem feito grandes mortandades por toda a parte, principalmente em crianças, mas por ora, graças aos céus, nenhum de minha família não tem perigado (Santos apud Siqueira, 1989, p. 194).

Referindo-se à localidade de Morretes, Vieira dos Santos prossegue:

Na Estação do Outomno, até a do inverno e desde Abril até Agosto de 1818 houve em Morretes bem como quazi em toda costa Brazileira hua tosse convulsiva, chamada comprida, e os Francezes a denominão coqueluche da qual, morrerão muitas crianças, não podendo reziztir ao intimo esforço com que a tosse atacava as pessoas affectadas dessa enfermidade (Santos apud Siqueira, 1989, p. 194).

Os surtos de coqueluche parecem ter sido bastante comuns no litoral do Paraná, pois, ainda em 1850, quando publicou sua obra descritiva da cidade de Paranaguá, Antonio Vieira dos Santos traçou um cenário da insalubridade da região e novamente enumerou a coqueluche entre as doenças recorrentes: “No inverno, desde junho até agosto, reinam defluxões catarrais e pneumonias, pleurizes e às vezes a tosse coqueluche” (Santos, 2001, p. 93).

Márcia Siqueira (1989) mapeou seis surtos de coqueluche na cidade de Paranaguá na segunda metade do século XIX (1858, 1864-1865, 1879-1880 e 1886). É interessante notar que o surto aqui analisado - de 1856-1857 - não aparece nesse levantamento. Provavelmente, a autora situou o surto em 1858 a partir das informações dos relatórios do Presidente e Vice-Presidente da Província, que eram escritos sempre a posteriori, relatando em 1858 os fatos ocorridos em 1856-1857. Aqui já se sobressai a vantagem de se utilizar os assentos de óbitos para compreender a dinâmica desse surto, pois o pároco notificava o óbito em tempo real, no dia em que ele acontecia, possibilitando acompanhar a evolução da doença no tempo com uma contagem relativamente exata das vítimas, separando-as por sexo, idade e local de proveniência.

Além de Paranaguá, Márcia Siqueira situou os surtos de coqueluche em outras sete localidades paranaenses: Antonina em 1886; Morretes em 1857, 1863 e 1886; Curitiba em 1857, 1864-1865, 1885-1886-1887-1888; São José em 1886; Rio Negro em 1873; Ponta Grossa em 1878; e uma localidade não especificada em 1886 (Siqueira, 1989).

Trabalhando com os assentos de óbitos da freguesia de Guaraqueçaba, que à época era um distrito de Paranaguá, conseguimos localizar surtos de coqueluche ocorridos em 1864-1865 e 1868, sendo que este último não se encontra mapeado no estudo de Márcia Siqueira (Mitra Diocesana de Paranaguá, 1867;1871).

Não vamos nos debruçar sobre a análise desses surtos de Coqueluche ocorridos em Guaraqueçaba por motivo de tempo e espaço no âmbito desse artigo, mas certamente serão alvo de análises específicas em outros textos como forma de compreender as dinâmicas dos diversos surtos de Coqueluche que se abateram sobre a região litorânea do Paraná. Conforme avançamos com o escrutínio dos assentos de óbitos ainda preservados, possivelmente novos surtos de coqueluche poderão ser conhecidos, além de ampliar a visão sobre o espectro das doenças que afligiam a população paranaense no período.

A metodologia desse trabalho consiste em mapear o surto de coqueluche ocorrido na cidade de Paranaguá no período de 22 de outubro de 1856 e 19 de abril de 1857, analisando a evolução do surto no tempo e quantificando o total de crianças mortas pela doença, classificando as vítimas por faixas etárias e comparando com a mortalidade geral do próprio período e com períodos iguais de tempo anteriores e posteriores como forma de entender o impacto desta doença sobre a mortalidade infantil na localidade, conforme indicado no Quadro 1.

Para analisar especificamente a mortalidade por coqueluche vamos nos ater à faixa etária entre zero e oito anos de idade, pois todos os casos desse surto de coqueluche vitimaram crianças nesse intervalo de idade, exceto a jovem Maria Antônia, que foi vitimada aos 18 anos em 27 de dezembro de 1856 (Mitra Diocesana de Paranaguá, 1859, f. 193v). Essa vítima foi desconsiderada nessa análise, pois extrapola a delimitação etária proposta. Esse perfil de incidência etária da doença é corroborado por pesquisas modernas que demonstram que 80% dos casos clínicos ocorrem na faixa etária abaixo de 10 anos (Hardy, 1993).

Embora Antonio Vieira dos Santos tenha situado a incidência da coqueluche no inverno, o surto aqui analisado teve sua primeira morte notificada no final da primavera, em 22 de outubro de 1856, e o último ocorreu no inverno do ano seguinte, em 09 de julho de 1857. No entanto, a doença fez a maioria de suas vítimas no verão de 1856-1857, arrefecendo na segunda metade do mês de abril de 1857, primeiro mês do outono. Em maio foi registrado apenas uma morte por coqueluche, em junho nenhuma, e a última morte por coqueluche aconteceu justamente no inverno, após 58 dias sem nenhum registro de morte causada por coqueluche em Paranaguá, em 09 de julho de 1857. Algumas pesquisas indicam que não há um perfil de incidência sazonal claramente definido para a coqueluche, pois, em diferentes períodos históricos e regiões do planeta, os casos da doença podem ocorrer em qualquer época do ano (Lima, 2018).

O surto teve a duração de 180 dias, mas, para os fins dessa análise, vamos considerar o período de surto de coqueluche delimitado nos 183 dias decorridos entre 20 de outubro de 1856 e 20 de abril de 1857 como forma de estabelecer um ciclo anual completo na comparação com os dois períodos imediatamente anteriores e posteriores. O acréscimo de três dias nos períodos comparativos não afetou os percentuais da análise, pois não foi registrado um número significativo de mortes em qualquer faixa etária nesses três dias.

Vamos quantificar a mortalidade nos 183 dias imediatamente anteriores e posteriores ao surto de coqueluche. O período imediatamente anterior ao surto compreende de 20 de abril de 1856 a 19 de outubro de 1856, e o período imediatamente posterior ao surto vai de 21 de abril de 1857 a 20 de outubro de 1857.

O período sazonal anterior estabelecido como parâmetro comparativo foi de 20 de outubro de 1855 a 19 de abril de 1856. O período sazonal posterior estabelecido como parâmetro comparativo foi de 21 de outubro de 1857 a 21 de abril de 1858.

Os dois casos de morte por coqueluche registrados em 13 de maio e 09 de julho de 1857 não foram contabilizados como fazendo parte do surto de coqueluche, pois consideramos que o surgimento de apenas dois casos em um intervalo de 58 dias demonstra que a localidade já não se encontrava sob epidemia, podendo indicar que a maioria das crianças suscetíveis à doença faleceram ou já haviam tido contato e desenvolvido imunidade ao patógeno.

A comparação com os períodos imediatamente anterior e posterior também permite evidenciar eventuais distorções nos níveis de mortalidade infantil, pois a maior mortalidade durante o surto pode ter causado uma menor disponibilidade de crianças que poderiam vir a falecer de outras causas após o surto de coqueluche na localidade.

O critério de sazonalidade é importante como forma de atenuar possíveis desvios nos números que podem ser atribuídos a fatores de mortalidade sazonal, como, por exemplo, as doenças transmitidas por mosquitos, como a febre amarela e a dengue, mais incidentes nos meses quentes e chuvosos do verão no litoral paranaense.

Para entender a dinâmica epidemiológica desse surto vamos analisar os primeiros casos ocorridos. É interessante observar que o surto se iniciou pelos filhos de dois casais moradores na cidade de Paranaguá, que perderam em poucos dias várias crianças.

O primeiro óbito por coqueluche registrado foi o de Antônio, de três anos, ocorrido em 22 de outubro de 1856. Antônio era filho de Leonardo dos Santos e Ana Francisca dos Santos. Esse mesmo casal também perdeu a filha Rezenda, de cinco anos, em 07 de novembro, e Maria, de apenas dez meses, em 15 de novembro, ou seja, o casal teve três filhos vitimados pela coqueluche em apenas 25 dias.

O segundo óbito por coqueluche foi o de José de quatro anos de idade e ocorreu em 29 de outubro. José era filho do carcereiro da cadeia de Paranaguá, Leandro José de Souza, e de sua esposa, Maria Angélica. Esse casal também perdeu o filho Constante de seis anos de idade em 07 de novembro.

A qualificação desses primeiros óbitos demonstra que a coqueluche desse surto foi bastante infecciosa e com alto grau de letalidade nos primeiros anos da infância. Além disso, ela se espalhou com bastante facilidade e rapidez para as diversas áreas que compunham a Freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá. Já em 30 de outubro, o terceiro óbito por coqueluche foi registrado no menino José de oito anos de idade, cuja família era moradora no Rocio Grande, região fora do núcleo urbano mais densamente povoado. Em 22 de novembro, já estava sendo registrado o primeiro óbito na Ilha do Mel. Até dezembro, óbitos foram registrados nas localidades de Rio das Pedras, Rio da Cidade e na Ilha Rasa da Cotinga, ou seja, o surto atingiu rapidamente todas as regiões da cidade, inclusive localidades insulares, além do núcleo urbano mais adensado próximo ao rio Itiberê, onde também estava localizado o porto da cidade, pelo qual passavam inúmeras embarcações tanto de regiões de fora da Província quanto de regiões localizadas dentro dos limites do município de Paranaguá, tais como as ilhas e lugares que margeavam a extensa baía de Paranaguá.

Não parece razoável considerar que houvesse uma intensa circulação de crianças de tão pouca idade por uma área tão ampla, ou seja, que a transmissão tivesse ocorrido de criança para criança de forma tão rápida e expandida no espaço. Isso nos permite levantar a hipótese de que a circulação do patógeno e a transmissão da doença tenha sido causada pelos adultos. Um estudo da década de 1980 sugeriu que, embora raramente adoeçam, a infecção por B. pertussis é endêmica nos adultos, que se tornam vetores de contágio da coqueluche, provocando ciclos epidêmicos da doença em crianças não vacinadas (Cherry, 1996).

O intenso fluxo de entrada e saída de pessoas pelo porto de Paranaguá é um fator que deve ser considerado tanto para explicar a chegada de doenças infecciosas provenientes de outras regiões do Brasil e do exterior, assim como também explica a rápida disseminação das infecções pela região litorânea paranaense a partir de Paranaguá. É possível que a coqueluche, iniciada em Paranaguá, tenha atingido Morretes pouco tempo depois do início do surto em Paranaguá, pois, já em fevereiro de 1857, o Doutor Murici, um dos poucos médicos da Província, fez um relato das mortes ocorridas naquela localidade: “Cumpre-me ainda dizer a V. Exa que grassa nesta vila (Morretes) a epidemia da coqueluche, que algum estrago vai fazendo nas crianças sendo já o número de mortos, segundo uma declaração que pedi ao Vigário de 43, dado de janeiro findo até 20 deste, em que sepultarão-se seis” (Murici, 1857 apud Siqueira, 1989, p. 194).

A análise dos dados do Quadro 1 permite observar de imediato que dos cinco períodos iguais analisados, apenas no período do surto de coqueluche a mortalidade de crianças entre 0 e 8 anos de idade superou a mortalidade na faixa etária acima de 8 anos de idade.

Durante o surto de coqueluche, de 20 de outubro de 1856 a 20 de abril de 1857, foram registrados um total de 167 óbitos de pessoas entre 0 e 108 anos de idade na Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá. Desse total, 102 óbitos foram de crianças entre 0 e 8 anos de idade, o que representa cerca de 61% do total de óbitos no período.

Quadro 1:
Mortalidade em períodos comparativos anteriores e posteriores em relação ao período do surto de coqueluche
Mortalidade em períodos comparativos anteriores e posteriores em relação ao período do surto de coqueluche
Fonte: Quadro construído com os dados retirados do livro de óbitos da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá (outubro 1855 - abril 1858). Arquivo da Mitra Diocesana de Paranaguá.

Se desconsiderarmos os 64 óbitos por coqueluche no período, a mortalidade nessa faixa etária por outras causas será de 38 mortes, ficando abaixo da mortalidade na faixa etária acima de 8 anos de idade, o que nos permite dizer de imediato que a coqueluche impactou severamente a mortalidade infantil durante o período do surto, ou seja, a coqueluche contribuiu sozinha com cerca de 62,8% de todas as mortes de crianças de 0 a 8 anos de idade e com cerca de 38,3% do total de mortes no período do surto. Nenhuma outra causa isolada de mortalidade foi responsável por percentuais tão altos de mortes em todo o período analisado no âmbito desse estudo.

É digno de nota que 3 mortes de crianças de 6 anos, 2 anos e 18 meses, respectivamente, ocorridas em 4 e 7 de janeiro de 1857, foram atribuídas à tosse, sem as designar como coqueluche, como passa a ser novamente designada a partir do assento de óbito de 11 de janeiro. Se considerarmos esses 3 casos como coqueluche, então o número de casos de coqueluche passa para 67, ou seja, cerca de 66% do total de óbitos de crianças entre 0 e 8 anos de idade. Seja como for, esses percentuais demonstram o alto grau de letalidade desse surto de coqueluche nessa faixa etária, impactando fortemente os níveis de mortalidade infantil no período considerado.

Comparando os números do período do surto de coqueluche com os números dos dois períodos anteriores é possível afirmar que tanto a mortalidade de 0 a 8 anos de idade quanto a mortalidade na faixa acima de 8 anos estavam em um patamar relativamente alto no período sazonal anterior, ocorrendo uma queda significativa de cerca de 32,5% e de cerca de 39,6%, respectivamente, nas duas faixas etárias no período imediato anterior ao surto.

Durante o surto de coqueluche, os níveis de mortalidade aumentaram nas duas faixas etárias. Na faixa etária entre 0 e 8 anos de idade, o aumento da mortalidade foi da ordem de cerca de 251,7% em relação ao período imediatamente anterior e de cerca de 137,2% em relação ao período sazonal anterior.

Em relação aos períodos posteriores ao surto houve uma diminuição contínua da mortalidade na faixa etária entre 0 e 8 anos de idade. Essa diminuição foi de cerca de 69,6% no período imediato posterior e de cerca de 81,3% no período sazonal posterior. A expressiva diminuição da mortalidade nos períodos posteriores nessa faixa etária pode indicar que boa parte das crianças mais frágeis e suscetíveis às doenças tiveram suas mortes antecipadas pelo surto de coqueluche.

Nesse sentido, é possível considerar que algumas das crianças que tiveram como causa da morte a coqueluche também poderiam ter perecido durante a incidência da doença por outras causas. É difícil saber com certeza, mas podemos ter como hipótese que o surto de coqueluche também levou a óbito crianças que já estavam debilitadas devido ao acometimento simultâneo de outras doenças que comumente atingiam a infância. Essas crianças tanto poderiam sobreviver às doenças já instaladas, como podem ter tido suas mortes antecipadas pela ocorrência da coqueluche.

Essas comparações demonstram o alto impacto desse surto de coqueluche na mortalidade infantil na faixa etária entre 0 e 8 anos de idade, pois as mortes decorrentes da doença vieram se somar aos outros óbitos normalmente existentes nessa faixa etária. Se descontarmos as mortes por coqueluche, que se encontram completamente fora da curva normal de mortalidade infantil do período analisado, e estabelecermos uma média de mortes para os 5 períodos considerados no Quadro 1, vamos chegar a uma média de 32 mortes de crianças entre 0 e 8 anos de idade para cada um dos períodos considerados. Somente a coqueluche ceifou a vida de 64 crianças na mesma faixa etária em um período de 183 dias, isso corresponde a 200% na média normal do período, comprovando o alto nível de infecciosidade e letalidade desse surto na faixa etária em foco.

Quando observamos o perfil sexual da mortalidade nesse surto de coqueluche, ficou constatado que, das 64 mortes elencadas, a doença vitimou 42 meninas e 22 meninos apenas no período do surto, ou seja, o número de óbitos entre as crianças do sexo feminino foi quase o dobro do sexo masculino. A grande quantidade de óbitos entre meninas durante o surto pode explicar por que os dois casos isolados registrados em maio e julho foram de meninos, pois as meninas suscetíveis à doença já haviam tido suas vidas ceifadas ou ficaram doentes e adquiriram imunidade durante o surto. Esses números são corroborados por pesquisas modernas, as quais demonstram que, ao contrário da maioria das outras doenças transmissíveis, a tosse convulsa se desenvolve mais frequentemente em pessoas do sexo feminino do que nas do sexo masculino (Hardy, 1993).

Ainda conforme o Quadro 1, na faixa etária acima de 8 anos de idade, o crescimento foi de cerca de 71% em relação ao período imediatamente anterior e de apenas cerca de 3,17% em relação ao período sazonal anterior. Em relação aos períodos posteriores dessa faixa etária, houve uma diminuição de cerca de 15%, registrando estabilidade na mortalidade com 56 e 55 mortes nos períodos comparativos, respectivamente.

Quadro 2:
Óbitos de crianças de 0 a 8 anos de idade durante o surto de coqueluche
Óbitos de crianças de 0 a 8 anos de idade durante o surto de coqueluche
Fonte: Quadro construído com os dados retirados do livro de óbitos da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá (outubro 1856 - abril 1857). Arquivo da Mitra Diocesana de Paranaguá.

O Quadro 2 mostra que a maior vulnerabilidade se encontrava nos primeiros anos de vida, especialmente no primeiro e no segundo anos, que concentram, sozinhos, cerca de 59,4% dos óbitos por coqueluche e 58% dos óbitos por outras causas ocorridas na faixa etária entre 0 e 8 anos. O quadro 3 demonstra que esse padrão de alta mortalidade nos dois primeiros anos de vida se repetiu sempre acima de 50% do total de óbitos também para os outros períodos comparativos.

Quadro 3:
Óbitos de crianças de 0 a 8 anos de idade nos períodos comparativos
Óbitos de crianças de 0 a 8 anos de idade nos períodos comparativos
Fonte: Quadro construído com os dados retirados do livro de óbitos da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá (outubro 1855 - abril 1858). Arquivo da Mitra Diocesana de Paranaguá.

O quadro 4 mostra que ocorreu uma queda progressiva dos assentos de óbitos sem referência à causa da morte ao longo do período analisado. Isso pode indicar que o Vigário Gregório José Nunes se habituou progressivamente a designar as causas dos óbitos em seus assentos. Vale lembrar que ele passou a atuar na paróquia em 18 de fevereiro de 1855, apenas oito meses antes do início de nosso escrutínio, e que o hábito de identificar a causa da morte nos assentos de óbitos inexistia anteriormente à sua atuação. De fato, quando analisamos os assentos de óbitos feitos por esse vigário, foi bastante raro que ele designasse a causa do óbito nos primeiros meses de sua atuação. Isso também pode indicar um interesse médico por parte do vigário que, com o passar do tempo, travou melhor conhecimento sobre seus paroquianos e também sobre as condições nosológicas da região em que estava atuando.

Esse crescente interesse do vigário em indicar as causas de mortes nos assentos também pode indicar a mudança que estava ocorrendo na sociedade com a recente emancipação e organização da Província do Paraná. As autoridades provinciais passaram a desenvolver políticas ligadas à saúde pública, e os padres eram consultados sobre a mortalidade em suas paróquias. Já vimos acima que os números de casos e óbitos por coqueluche relatados pelo Doutor Murici foram declarados pelo vigário de Morretes.

Quadro 4:
Causas de óbitos entre 0 e 8 anos nos períodos comparativos analisados
Causas de óbitos entre 0 e 8 anos nos períodos comparativos analisados
Fonte: Quadro construído com os dados retirados do livro de óbitos da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá (outubro 1855 - abril 1858). Arquivo da Mitra Diocesana de Paranaguá. As causas dos óbitos estão designadas como se encontram na documentação.

O quadro 4 indica um rol de 18 causas de óbitos no período, 17 doenças e uma morte acidental (queimado). Algumas doenças incidiram pouco sobre essa faixa etária no período considerado, como o mal de sete dias, doença típica de recém-nascidos, disenteria, erisipela e moléstia de dentição, dentre outras. Outras causas de óbitos foram recorrentes durante todo o período analisado, como febres, hidropisia, sezões e vermes. A coqueluche, doença infecciosa, que aparece rapidamente em surtos, matou muito em pouco tempo e rapidamente arrefeceu e desapareceu.

Os dados levantados no livro de óbitos da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá estão bem distantes do que está informado no Relatório do Presidente da Província do Paraná publicado em 07 de janeiro de 1858. Esse relatório traz os dados relativos ao ano de 1857 e, segundo esse documento: “No município da capital e em outros apareceu a tosse convulsa, mas só em Morretes se deram alguns casos fatais” (Paraná, 1858, p. 14). O mesmo foi relatado pelo vice-presidente da Província em seu relatório: “No municipio da capital, e em outros, appareceu a coqueluxe com mais ou menos força, sem fazer porem estragos sensiveis, excepção feita do de Morretes, onde, segundo me consta, pereceram algumas creanças dessa enfermidade” (Paraná, [s.I.], p. 26).

A realidade registrada nos assentos de óbitos de Paranaguá não corresponde ao que foi informado pelas mais altas autoridades provinciais, que, por sua vez, eram informadas pelas autoridades sanitárias que percorriam os municípios identificando possíveis surtos epidêmicos e deveriam estar atentas ao estado sanitário dessas localidades.

Já vimos acima um comunicado do Doutor Murici, datado de fevereiro de 1857, relatando os óbitos de 43 crianças devido à coqueluche, em janeiro de 1857, na vila de Morretes, e mais 6 sepultadas até o momento em que escrevia. Disso se depreende que as autoridades provinciais não eram muito sensíveis à mortalidade infantil, pois a morte de 43 crianças em Morretes certamente impactou fortemente a mortalidade infantil na localidade naquele período.

É possível que os surtos de coqueluche não tenham chamado tanta atenção das autoridades sanitárias, pois sua mortalidade afetava quase exclusivamente crianças pequenas. Isso parece indicar que aquela sociedade estava bastante acostumada com suas altas taxas de mortalidade infantil e ainda não havia desenvolvido um alto grau de sensibilidade em relação à mortalidade infantil: “Até cerca de 1750, a morte de uma criança não era motivo de escândalo. De facto, uma em cada duas crianças estava condenada a morrer antes dos quinze anos” (Lebrun, 1985, p. 221).

Philippe Ariès (1981) refere que houve um processo de mudança de sensibilidade em relação à saúde e à educação das crianças entre as classes mais abastadas da Europa a partir de fins do século XVIII. Analisando a correspondência da família do general Martange, o autor percebeu o surgimento de um tom já moderno no que concerne aos assuntos ligados às crianças, especialmente no que tange à sua saúde: “Ninguém ousaria então consolar-se da perda de uma criança com a esperança de ter outra, como ainda se confessava um século antes” (Ariès, 1981, p. 268). Possivelmente essa sensibilidade em relação à saúde e à vida infantil já estivesse presente no seio de algumas famílias em Paranaguá em meados do século XIX, como demonstra a preocupação de Vieira do Santos com as crianças de sua família.

É possível que houvesse uma naturalização em relação às doenças que atingiam o público infantil de modo mais enfático, como a coqueluche, a varicela, o sarampo, a rubéola e a papeira, pois essas enfermidades eram consideradas “como males inevitáveis, indispensáveis a um crescimento normal” (Lebrun, 1985, p. 226).

A partir das mudanças sociais na sensibilidade em relação à saúde, à vida e à morte infantis, ocorridas a partir de meados do século XVIII, é preciso considerar que o impacto da morte de uma criança dependia do momento em que a criança vinha a falecer. Se a morte acontecesse nos primeiros dias, semanas ou meses de vida, o sofrimento tendia a ser menor, pois os laços afetivos que incorporavam a criança como um membro efetivo da família ainda estavam pouco desenvolvidos. Nesse sentido, o sentimento de perda era diretamente proporcional ao tempo de convívio familiar, ou seja, quanto maiores os laços, maior o sentimento de perda pela morte da criança (Lebrun, 1985). O Quadro 3 indica que a maioria dos óbitos infantis ocorria até o terceiro ano de vida, com forte prevalência no primeiro ano de vida, isso pode ter contribuído para a relativa naturalização dessas mortes naquele período.

Diante da grande quantidade de óbitos que a coqueluche estava provocando, surgiam iniciativas de prover possíveis tratamentos para conter a enfermidade. Em maio de 1864, o “Dezenove de Dezembro”, que era um dos principais veículos da imprensa provincial, anunciava.

Remédio fácil - Lê-se no Dagbladet de Ultrechts. Há dias que se faz a experiência de mandar as crianças que tem coqueluche a fabrica de gaz para lhe fazer aspirar por alguns momentos os vapores que produz a purificação do gaz. Nenhuma experiencia falhou, e apenas as crianças tinham aspirado estes vapores produzia-se uma melhora sempre seguida de perfeito restabelecimento (Dezenove de Dezembro, 1864, p. 4 apud Siqueira, 1989, p. 193).

No período em que ocorreu o surto de coqueluche aqui analisado a Província do Paraná ainda estava em seus anos iniciais, as estruturas da saúde pública ainda estavam se organizando, e, diante dos parcos recursos existentes, era dada maior importância à emergência de surtos epidêmicos que pudessem aumentar a mortalidade dos adultos economicamente ativos e afetar o desempenho da economia, como a febre amarela e a varíola. Nos relatórios das autoridades provinciais, essas doenças aparecem como uma preocupação constante das autoridades políticas e sanitárias, que, a todo momento, recomendavam formas de evitá-las, como o cumprimento de quarentenas e a vacinação para a varíola.

No século XIX, o alarme despertado pelo anúncio de uma pessoa contaminada pelo veneno amarílico ocasionava pânico e as pessoas com mais posses debandavam da cidade o mais rápido que podiam. Além dos distúrbios decorrentes disso, os prejuízos econômicos causados pelas quarentenas e até mesmo o fechamento do porto para determinadas regiões do país e do mundo representavam um problema dos mais sérios, principalmente quando a atividade portuária era a espinha dorsal da economia urbana (Dolinski, 2013, p. 77).

Embora a Província do Paraná contasse com poucos recursos humanos e materiais para cuidar da saúde pública, quando se tratava de doenças contagiosas e epidêmicas, verbas especiais eram alocadas para solucionar mais rapidamente a emergência sanitária (Siqueira, 1980).

Os vastos recursos aplicados na construção e manutenção do lazareto da Ilha das Cobras, local destinado ao cumprimento de quarentena por aqueles que estivessem sob suspeita de portarem doenças infecciosas, é um sinal da preocupação das autoridades provinciais com a emergência de epidemias potencialmente perigosas à ordem social e econômica da Província do Paraná (Dolinski, 2013).

Isso indica que, diante do extenso rol de enfermidades que atingiam aquela sociedade, desde doenças recorrentes nos frequentes surtos e epidemias pelas quais Paranaguá passava - devido às péssimas condições de higiene e saneamento da cidade no período -, até enfermidades menos frequentes, os responsáveis pela saúde pública eram obrigados a fazer escolhas.

A documentação indica que o padre em geral registrava a causa da morte a partir da informação recebida das pessoas próximas à pessoa falecida, pois houve um caso em que o padre não registrou a causa da morte dizendo que não lhe disseram qual era. Esse fato demonstra que a população era detentora de um razoável conhecimento nosológico.

É possível pensar também que a causa da morte fosse registrada a partir de uma mescla do conhecimento da população, do padre e das autoridades sanitárias. Em relação à coqueluche, vimos que era uma doença bastante disseminada e com sintomas bem conhecidos no Brasil no século XIX, o que facilitava seu diagnóstico e o apontamento da causa da morte no registro de óbito.

Embora a coqueluche tivesse seus sintomas facilmente reconhecidos e seu diagnóstico descrito com certa precisão, na metade do século XIX o conhecimento médico ainda não conseguia determinar com o mesmo grau de eficiência qual era a causa da doença, pois no contexto da época a causa do adoecimento poderia ser atribuído aos miasmas e à falta de ventilação natural do ambiente. A descrição da insalubridade da cidade de Paranaguá, feita por Antonio Vieira dos Santos, pode nos situar no contexto do conhecimento médico de então.

O local da Cidade de Paranaguá situada à margem de um rio, cercada de mangais, tendo charcos e águas estagnadas com as maresias do mar, lançando delas exalações pútridas, e tendo a Ilha da Cotinga em sua frente, e por isso sendo privada de fortes ventilações, são a verdadeira causa de que o solo donde está a Cidade, não seja bem saudável porque comumente em fins da primavera que é desde outubro e até março, na entrada do outono ali reinam febres de diversas qualidades, disenterias sangüíneas, fluxos lientéricos, hemorróidas e paralisias, e atribui-se os ataques de tais hemorróidas ao alimento do peixe e marisco. No inverno, desde junho até agosto, reinam defluxões catarrais e pneumonias, pleurizes e às vezes a tosse coqueluche, as obstruções do fígado e do baço são mui freqüentes entre a gente pobre e moradores dos sítios em razão de andarem sempre por terrenos úmidos, e os mantimentos de pouca nutrição (Santos, 2001, p. 93).

As ideias expressadas por Vieira dos Santos, na primeira metade do século XIX, estavam em consonância com a teoria dos miasmas, bastante difundida naquele momento e que atribuía às emanações pútridas e malcheirosas exaladas pelo solo, articuladas com a precária ventilação natural do sítio urbano, a responsabilidade pelo ambiente insalubre, pela disseminação de enfermidades e pelo contágio dos corpos. Nesse sentido, o contágio era atribuído às condições ambientais e não ao contato com o agente etiológico infeccioso causador da doença. A teoria miasmática somente passou a ser sistematicamente contestada com as descobertas bacteriológicas decorrentes dos estudos de Pasteur, Koch e Klebs nas décadas de 1870 e 1880 (Mastromauro, 2011; Entralgo, 1978).

No decorrer do oitocentos, a teoria miasmática, isto é, perspectiva segundo a qual as epidemias seriam resultantes tanto de fatores ambientais (atmosféricos, climáticos e telúricos) como de circunstâncias locais (habitações precárias, ausência de saneamento básico), deixou de ser unânime nos projetos de intervenção e reforma da saúde pública. Conforme a teoria miasmática, as doenças seriam transmitidas mediante os miasmas, entidades etéreas que se desprendiam da matéria orgânica em decomposição. Muitos homens de ciência daquele período expressavam ainda sua crença no que se convencionou chamar de teoria dos germes (Dolinski, 2017, p. 45).

Apenas com a revolução bacteriológica de fins do século XIX é que as pesquisas passaram a buscar o agente causador das doenças nos patógenos. Desde a década de 1880 já se buscava a causa patogênica da coqueluche, mas houve grande dificuldade em descobrir uma forma eficaz de cultivar e isolar o patógeno fora do corpo humano. Incialmente se pensou que a doença fosse causada por um fungo, no entanto, vários estudos também passaram a apontar para um bacilo. O debate entre a etiologia fúngica e a bacteriana se prolongou até 1906, quando Bordet e Gengou obtiveram sucesso em isolar claramente a Bordetella Pertussis e estabelecer uma relação de causalidade direta entre a infecção por B. Pertussis e o surgimento da enfermidade (Ledermann, 2004, p. 241).

A partir da identificação exata do agente patológico, e de seu cultivo em laboratório pelo método desenvolvido por Bordet e Gengou, foi possível iniciar os esforços para a produção de uma vacina para prevenir a coqueluche. Já na segunda década do século XX, surgiram os primeiros resultados com vacinas curativas. Entre 1928 e 1933, Lowis W. Sauer testou sua vacina em 300 crianças obtendo excelentes resultados de eficácia e segurança. Na década de 1930, as vacinas antipertussicas eram utilizadas tanto como forma de tratamento de crianças já doentes como aplicadas em crianças sadias como forma de prevenção (Cherry, 1996; Lima; Arantes, 1943).

Apesar de todos os avanços no desenvolvimento de vacinas e tratamentos para coqueluche, ainda em 2011, a Organização Mundial da Saúde estimava “a ocorrência de 50 milhões de casos e 300 mil óbitos por ano”. Esses números a colocam no “quinto lugar dentre as causas de mortalidade por doenças imunopreveníveis em crianças menores de cinco anos” (Divisão de Doenças de Transmissão Respiratória, 2011, p. 3). Esses dados demonstram que a coqueluche continua impactando a mortalidade infantil, fazendo suas vítimas principalmente entre as crianças de famílias pobres dos países menos desenvolvidos.

Considerações finais

Este artigo procurou demonstrar o alto impacto que o surto de coqueluche de 1856-1857 teve sobre a mortalidade infantil da cidade de Paranaguá, elevando fortemente os índices de mortalidade infantil em relação ao que normalmente era observado em períodos sem a incidência da coqueluche.

Isso mostra que esse surto foi particularmente infeccioso e sua letalidade atingiu em especial as meninas, que registraram quase o dobro dos óbitos dos meninos. A doença espalhou-se rapidamente para além do núcleo urbano mais densamente povoado, atingindo as áreas adjacentes, as ilhas e localidades ribeirinhas da baía de Paranaguá. Foi possível observar também que o surto atingiu a vila de Morretes, impactando também a mortalidade infantil daquela localidade.

A análise também indicou que as autoridades provinciais parecem não ter demonstrado especial preocupação, parecendo inclusive desconhecer a emergência desse surto particularmente letal de coqueluche na cidade de Paranaguá, pois ele sequer aparece descrito nos relatórios do Presidente e Vice-Presidente da Província.

Isso pode ter acontecido tanto por causa da precariedade dos serviços de saúde pública do período como por ser a coqueluche uma doença que atingia quase que exclusivamente crianças pequenas, cujas mortes não significavam impactos significativos sobre o giro econômico provincial.

Nesse sentido, a maior preocupação das autoridades provinciais parece ter incidido sobre doenças como a febre amarela e a varíola, cuja manifestação poderia afetar as atividades portuárias e, consequentemente, o trânsito material e econômico paranaense. Essas questões indicam uma ainda pequena sensibilidade sobre as questões que afetavam a infância por parte das autoridades, em uma sociedade que convivia com enormes problemas sanitários, altas taxas de mortalidade geral, e que contava com poucos recursos para combater a emergência de epidemias.

O estudo de outros surtos ao longo da segunda metade do século XIX poderá indicar se ocorreram transformações significativas no processo de enfrentamento da doença ao longo do tempo. Essa pesquisa também demonstrou o valor dos registros de óbitos como uma fonte histórica privilegiada para o estudo da história da saúde e das doenças, possibilitando o levantamento de dados inéditos que podem contribuir para o conhecimento da sociedade paranaense no século XIX. Além disso, tomar a coqueluche como tema de uma pesquisa de história da saúde e da doença permitiu abrir uma fresta pela qual conseguimos enxergar alguns aspectos da condição infantil na cidade de Paranaguá no século XIX.

Fontes

MITRA DIOCESANA DE PARANAGUÁ. Livro de óbitos da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá (janeiro 1855 - outubro 1859). Paranaguá, 1859.

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MITRA DIOCESANA DE PARANAGUÁ. Livro de óbitos de Guaraqueçaba (1868-1871). Guaraqueçaba, 1971.

PARANÁ. Relatório do Presidente da Província. Curitiba: Typ. Paranaense de C. Martins Lopes, 1858.

PARANÁ. Relatório do Vice-Presidente da Província do Paraná. Curitiba: Typ. Paranaense de C. Martins Lopes, [s.I.].

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Notas

1 O Vigário Colado Gregório José Nunes passou a atuar em Paranaguá em 18 de fevereiro de 1855. A partir desse dia, a maioria dos assentos da Paróquia passaram a ser escriturados pelo Vigário Colado Gregório José Nunes ou, na ausência dele, por um outro pároco com sua autorização (Mitra Diocesana de Paranaguá, 1859, f. 120).
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