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A Covid-19, o luto e a gestão do corpo morto pela prefeitura de Maringá-PR
Marcia Regina de Oliveira Lupion
Marcia Regina de Oliveira Lupion
A Covid-19, o luto e a gestão do corpo morto pela prefeitura de Maringá-PR
Covid-19, grief and the management of the dead body by the City Hall of Maringá-PR
Covid-19, duelo y gestión de muertos por el ayuntamiento de Maringá-PR
Revista NUPEM (Online), vol. 13, núm. 30, pp. 235-250, 2021
Universidade Estadual do Paraná
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Resumo: Partindo de um breve histórico sobre a gestão do corpo morto ao longo da história, verifica-se a relevância dos sepultamentos e da vivência do luto como elementos que permitem aos seres humanos representarem um certo domínio sobre a morte e o morrer. Verifica-se ainda, como o corpo morto é objeto de políticas públicas que visam preservar os vivos e o meio ambiente perante possíveis situações de infecção e poluição do lençol freático bem como de domínio e manejo sobre os corpos mortos. A partir dessa perspectiva, neste artigo discutiremos a gestão do corpo morto pós-Covid-19 frente aos protocolos estabelecidos pela Prefeitura de Maringá, no Paraná. Evento de ordem recente, o estudo realizado a partir análise de documentos administrativos como Decretos e Portarias municipais verificou a mudança expressiva nos rituais de despedida e conjeturou acerca das implicações que tais medidas tem trazido para os vivos, sobretudo os enlutados.

Palavras-chave: Covid-19, Luto, Gestão de cadáveres, Maringá-PR.

Abstract: Starting from a brief account on the management of the dead body throughout history, the relevance of burials and the experience of mourning is verified as elements that allow human beings to represent a certain domain over death and dying. It is also verified how the dead body is the object of public policies that aim to preserve the living and the environment in the face of possible situations of infection and pollution of the water table as well as of dominance and management over the dead bodies. From this perspective, in this article we will discuss the management of the post-Covid-19 dead body by means of the protocols established by the City Hall of Maringá, in Paraná. A recent event, the study, which was carried out based on the analysis of administrative documents such as municipal decrees and ordinances, verified a significant change in farewell rituals and conjectured about the implications that such measures have brought to the living, especially the bereaved.

Keywords: Covid-19, Mourning, Corpse management, Maringá-PR.

Resumen: A partir de una breve relación sobre el manejo del cuerpo muerto a lo largo de la historia, se verifica la relevancia de los entierros y la experiencia del duelo como elementos que permiten al ser humano representarse un determinado dominio sobre la muerte y el morir. También se puede observar cómo el cadáver es objeto de políticas públicas con vistas a preservar a los vivos y al medio ambiente ante posibles situaciones de contagio y contaminación de las aguas freáticas, así como al dominio y manejo sobre los cuerpos muertos. Desde esta perspectiva, en este artículo discutiremos el manejo del cadáver post-Covid-19 contra los protocolos establecidos por el Ayuntamiento de Maringá, en Paraná. Un hecho reciente, el estudio realizado a partir del análisis de documentos administrativos como decretos y ordenanzas municipales encontró un cambio significativo en los rituales de despedida y conjeturó sobre las implicaciones que tales medidas han traído a los vivos, especialmente a los enlutados.

Palabras clave: Covid-19, Duelo, Cuerpos muertos, Maringá-PR.

Carátula del artículo

Dossiê

A Covid-19, o luto e a gestão do corpo morto pela prefeitura de Maringá-PR

Covid-19, grief and the management of the dead body by the City Hall of Maringá-PR

Covid-19, duelo y gestión de muertos por el ayuntamiento de Maringá-PR

Marcia Regina de Oliveira Lupion
Universidade Estadual de Maringá, Brasil
Revista NUPEM (Online), vol. 13, núm. 30, pp. 235-250, 2021
Universidade Estadual do Paraná

Recepción: 09 Mayo 2021

Aprobación: 21 Julio 2021

Pois bem, o que caracterizava no início nossas cerimônias era a rapidez! Todas as formalidades haviam sido simplificadas e, de uma maneira geral, a pompa fúnebre fora suprimida. Os doentes morriam longe da família e tinham sido proibidos os velórios rituais, de modo que os que morriam à tardinha passavam a noite sós e os que morriam de dia eram enterrados sem demora. Naturalmente, a família era avisada, mas, na maior parte dos casos, não podia deslocar-se por estar de quarentena, se tinha vivido perto do doente (Camus, 1978, p. 121)

Introdução

Desde o mês de dezembro de 2019 o mundo encontra-se em estado de insegurança devido à Covid-19, doença causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2) de alta propagação e letal em muitos casos. Detectada pela primeira vez na província de Wuhan, na China, a Covid-19 modificou hábitos e estabeleceu protocolos que visam combater sua disseminação e letalidade.

O uso de máscaras descartáveis ou não, a higienização das mãos, de objetos e alimentos com sabão comum ou álcool em gel bem como evitar aglomerações, tornou-se uma rotina recomendada pelas autoridades sanitárias. Recomendações nem sempre seguidas por uma parcela da população e governantes que resistem às recomendações de combate ao coronavírus embalados por negacionismos perversos que têm ceifado um número cada vez maior de vidas por todo o mundo.

Independentemente dessas resistências, chefes de Estado, governos estaduais e municipais adotaram as orientações dadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que desde o início da pandemia tem estipulado critérios relativos a medidas preventivas que visam combater o contágio bem como o fomento de pesquisas que objetivam conhecer a doença e a produção de vacinas capazes de imunizar a população contra o vírus (OMS, 2020a).

Muito tem sido feito quanto aos propósitos da OMS e, nos dias em que este artigo estava sendo escrito (maio de 2021), mais de 180 vacinas se encontravam em diversas fases de produção e cinco em uso (Observatório Covid-19BR, 2020) e o Brasil anunciava a primeira vacina de produção nacional pelo Butantan, a ButanVac, em parceria com pesquisadores norte-americanos (Instituto Butantan, 2021).

Em seus pouco mais de dezesseis meses de existência, a Covid-19 infectou e matou milhões de pessoas pelo mundo e, diante desse fato, um horizonte sempre visível refere-se às atualizações voltadas para a gestão dos corpos mortos e sobre como as modificações relativas aos funerais e enterramentos incidem, diretamente, na forma como os vivos honram os entes falecidos tão logo são informados sobre a situação de luto.

Relatos sobre o descarte dos corpos mortos durante a pandemia denunciam como os protocolos para os enterramentos sofreram mudança drásticas. Dado o alto nível de contágio do coronavírus e a mortalidade em massa ocorrida em algumas cidades, os sepultamentos passaram a ser realizados num período mínimo de tempo nem sempre compatível com o tempo dos familiares. Estes, informados do óbito, mal conseguem se despedir do ente querido cujo rosto viram pela última vez ao dar entrada no hospital dias ou semanas antes do falecimento.

Com o passar dos meses a Covid-19 tem se tornando mais conhecida e muito do extremismo relativo aos velórios, ou seja, quanto ao ato de velar o corpo e as cerimônias de enterramento ou sepultamentos estão sendo revistos e flexibilizados. Mas, nada comparado ao que era praticado antes da pandemia quando um velório podia se estender por mais de 24 horas.

Além disso, as desigualdades sociais; as diferentes formas como a saúde é gerida no país bem como as posturas díspares adotadas pelas autoridades governamentais e políticas deixam a geografia da pandemia no Brasil marcada pelas singularidades nas formas de combater o vírus. A ausência de uma unidade do enfrentamento da Covid-19 pelas autoridades brasileiras, sob a (in)gerência do Ministério da Saúde (MS), tem provocado uma série de incoerências sobretudo quanto ao melhor tratamento a ser utilizado.

Diante dessas mudanças e tendo em vista que os rituais de despedida são eventos que ultrapassam o sentido útil de descarte de pessoas mortas, esse artigo tem por objetivo introduzir uma discussão que envolva os protocolos estabelecidos pela Prefeitura de Maringá, município localizado no norte paranaense, acerca da forma como os corpos mortos estão sendo geridos e as possíveis implicações que as normatizações têm trazido para os enlutados em relação aos rituais funerários e as suas relações como o luto.

Decretos e Portarias que versam sobre os protocolos funerários publicados pela prefeitura municipal entre os dias 13 de março e 22 de dezembro de 2020 foram essenciais para a composição da discussão pretendida. Amparada por essa documentação, a reatualização dos rituais funerários passou, num primeiro momento, por restrições severas que foram sendo flexibilizadas ao longo dos meses quando novos conhecimentos acerca da doença foram armazenados.

Contudo, mesmo diante dessa flexibilização, a forma como os corpos mortos tem sido manuseados afetam profundamente os familiares que, em muitos casos, sequer chegam a rever o ente após decretado o óbito. Fato que, segundo especialistas, incide objetivamente sobre a vivência do luto entre familiares e amigos (Brasil, 2020c; Crepaldi et al., 2020; Feitoza; Cordeiro; Belmino, 2020).

Diante das novas configurações de controle sobre o corpo morto impostas pela pandemia, o conceito de gestão social do corpo proposto por Corbin; Coutine e Vigarelo (2012a, 2012b, 2011), permitiu empreender a análise aqui pretendida por expressar não só a materialidade do corpo, mas sua compreensão como um elemento social e cultural sobre o qual incidem e reverberam, não somente normas institucionais e culturais e, especialmente, emoções, afetos, crenças e histórias.

A gestão social do corpo

A “gestão social do corpo” é o termo utilizado pelos autores da trilogia sobre a História do corpo dirigida por Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello (2012a, 2012b, 2011) para explicar como o corpo se tornou objeto de estudo da história a partir do momento em que passou a ser compreendido como um elemento inserido numa cultura e, portanto, passível de sofrer inferências diretas e indiretas desse campo. Nesse sentido, o corpo deixa de ser visto apenas como matéria e torna-se um elemento sociocultural cuja apreensão necessita de referenciais simbólicos, espaciais e temporais para ser compreendido.

Até o século XIX o corpo era visto como um elemento secundário na vida do ser humano, mas, a partir do século seguinte estabeleceu-se como um corpo “animado” e não mais submetido à linha divisória que separava “corpo” e “espírito” (Courtine, 2011, p. 7). Coube, portanto, ao século XX inventar teoricamente o corpo por meio da psicanálise, do existencialismo e da antropologia quando o corpo foi ligado ao inconsciente, amarrado ao sujeito e inserido nas formas sociais da cultura (Courtine, 2011).

Paradoxalmente, o mesmo indivíduo que adquire consciência de seu corpo enquanto um eu-pele vê-se submetido aos programas de saúde que estabelecem a importância da profilaxia como elemento essencial para promoção do corpo são. Os médicos, amparados pelo poder público, tornaram-se os intermediários nesse processo de gestão do corpo manifestado sobretudo a partir de “uma rede de obrigações em concordância com os grandes acontecimentos da socialização: a entrada na escola, serviço militar, escolha de uma profissão” (Moulin, 2011, p. 19).

Emerge dessa citação a referência a dois agentes responsáveis pela gestão dos corpos que são os médicos e o poder público. Fato abordado por Michel Foucault (1979), quando o filósofo apresenta a arqueologia da disciplinarização dos corpos submetidos a instituições como prisões, hospitais e escolas.

Na modernidade, portanto, o olhar sobre o corpo adquire sentidos subjetivos. O corpo pós século XIX é objeto de cuidados individuais oriundos da conscientização de que o corpo é capaz de somatizar emoções e manifestá-las em termos de doenças bem como estar submetido aos poderes institucionalizados. Tudo em contraponto ao um corpo marcado pela cisão entre matéria e espírito, algo relegado ao período cartesiano (Courtine, 2011).

Libertos das amarras que concebiam os corpos como corruptos, os modernos abandonam o olhar punitivo herdado do cristianismo medieval e adotam a ciência médica, incluindo a psiquiatria, como referência para compreender e agir em relação a seus próprios corpos. Cientes de que corpos saudáveis são possíveis e inclusive preferidos, o indivíduo moderno passa a investir em tratamentos voltados para a profilaxia desde a simples lavagem das mãos antes das refeições até sessões agendadas com profissionais que manipulam o corpo com o objetivo de eliminar impurezas, como esteticistas por exemplo.

Em fins da década de 1930 Norbert Elias já apontava em “O processo civilizador” (2011), como os indivíduos necessitaram introjetar mudanças para transformar o comportamento humano ao longo do tempo submetendo suas mentes, costumes e corpos a novas formas de comportamento muitas deles voltadas para a higienização. E, Danièle Hervieu-Léger (2015), ao tratar a autonomia como elemento preponderante nos indivíduos modernos, demonstra como clínicas de estética podem agir como templos recheados de rituais quando o assunto é o culto ao corpo, ou seja, a religião deixa de ser o único caminho para a purificação. A medicina e toda a sorte de profissões voltadas para a saúde mental e corporal abriram caminho, não sem resistência, e se estabeleceram nesse processo.

No entanto, não somente corpos vivos são geridos socialmente. Corpos mortos também sofrem intervenções quer seja do universo religioso, quer seja das instituições. O zelo com a morte por meio de sepultamentos, identificados desde a pré-história, se tornou não apenas uma forma dos seres humanos olharem de frente para esse elemento comum a todo ser vivo, mas, principalmente um fator capaz de demonstrar os passos dados no sentido da humanização.

O que há de comum entre o útil que abre caminho através do mundo real obedecendo às leis da matéria e da natureza, e a sepultura que, abrindo-se para o mundo fantástico da sobrevivência dos mortos, transforma de maneira incrível e ingênua, ao mesmo tempo, a realidade biológica óbvia? Sem dúvida, a humanidade (Morin, 1974, p. 22, tradução nossa).

Phillipe Ariès (2000), ao estudar a forma como os homens reagem perante morte, observou que na Antiguidade corpos mortos eram geralmente sepultados ou simplesmente abandonados fora das cidades para impedir que infectassem os vivos. E, na Idade Média, igrejas passam a ostentar criptas ou cemitérios então compreendidos simbolicamente como campos-santos cujo acesso nem sempre era permitido tendo em vista a causa mortis.

No Brasil as primeiras preocupações como o corpo morto como poluentes do ar, do solo e da água estão ligadas à Carta Régia n. 18 publicada na Metrópole em 14 de janeiro de 1801 (Reis, 1991) que dispunha sobre o fim dos sepultamentos nas igrejas e a construção de cemitérios fora das cidades. Sem nunca ter sido cumprida, a Carta Régia n. 18 foi substituída pelas orientações dadas pela Lei Imperial de 28 de outubro de 1828 que visava, dentre outros assuntos, “civilizar o império” sendo a construção de cemitérios fora das cidades parte do processo urbanístico e higienista do governo (Reis, 1991, p. 276).

Com ou sem resistência por parte da população (Reis, 1991; Castro, 2007), os cemitérios passaram a fazer parte do equipamento comum aos projetos de urbanização elaborados a partir do século XIX e, uma vez institucionalizados, foram submetidos às normas sanitárias estabelecidas pelos programas governamentais. Considerados como campos-santos, no entanto, mais do que espaços nos quais corpos inanimados são dispostos, os cemitérios encerram entre seus muros sensibilidades que se iniciam a partir do momento em que a morte é constatada e são representadas por rituais de despedida nos quais se mesclam tanto elementos religiosos quanto normativos.

Até a chegada do coronavírus no Brasil, os rituais de despedida seguiam protocolos variados sendo possível que velórios acontecessem em ambientes diversos e com duração por vezes, de mais de 24 horas. Nesse período considerava-se possível que parentes distantes pudessem se deslocar com tempo hábil para se despedir do ente querido; que orações pudessem ser feitas em função da alma do falecido e, sobretudo, que os familiares e amigos pudessem dispor de mais alguns instantes para se prepararem para o último adeus.

Além disso, o período permitia que os trâmites legais fossem realizados de forma calma e respeitando o luto dos familiares. Com a pandemia, no entanto, os ritos funerários foram drasticamente alterados. O tempo de duração dos velórios foi reduzido e, nos casos em que a morte ocorreu devido a Covid-19, sequer eram realizados no início do quadro pandêmico.

Como ocorrido noutros momentos históricos que envolvem questões cemiteriais, cadáveres e poluição ambiental (Castro, 2007), o corpo morto gerido pelos protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde não pertence mais aos familiares. Ele é, sobretudo, um cadáver passível de contaminação e, relegando a segundo plano a individualidade no tratamento com o morto, são estabelecidas normas institucionalizadas que visam o atendimento ao coletivo principalmente em relação à contenção do contágio. Com a pandemia, portanto, a gestão dos corpos mortos passa por reconfigurações orquestradas pelas autoridades sanitárias nas quais as sensibilidades ligadas aos ritos funerários foram suprimidas em favor dos serviços funerários.

Estudos recentes têm denunciado que as alterações dispostas pelo Ministério da Saúde afetam sobretudo os grupos sociais mais carentes como apontam os Boletins sobre a Covid-19 publicados pela Unifesp em 2020.

Ao todo, a universidade publicou, até maio de 2021, 15 boletins com textos de opinião e entrevistas que abordam problemáticas como a subnotificação, os protocolos estabelecidos para o manejo dos corpos mortos, o colapso ocorrido na saúde manauara e entre os encarcerados, bem como sobre a resposta do governo federal, especialmente do Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, no enfrentamento da pandemia dentre outras problemáticas (Unifesp, 2021).

Esses estudos apontam, num primeiro momento, para a forma como o Brasil, via Ministério da Saúde, adequou as recomendações propostas para o combate à Covid-19 pela Organização Mundial da Saúde, a OMS, quando adotou medidas extremas para o manejo dos corpos mortos.

As situações narradas nos boletins identificam, por exemplo, que mesmo sendo de conhecimento que cadáveres não são contagiosos, a regra desde a chegada do coronavírus ao Brasil estabelece que não sejam realizadas autópsias para detectar a causa mortis. De forma que muitos enlutados tiveram seus entes queridos enterrados sem um diagnóstico preciso. Fato que é de extrema relevância para a família e a vivencia do luto, como denunciam Azevedo, Sanjurjo e Nadai (2020).

As autoras apontam ainda que a ausência de autópsia se deve ao fato de que inexistiam no Brasil do início de 2020 salas de necrópsia que atendessem às normas de biossegurança estabelecidas pela OMS. Devido a esse fator, o Estado de São Paulo, por exemplo, passou a caracterizar todos os casos de morte como risco. E, com isso, justificam a não realização das autópsias.

É a partir da inserção dos corpos como casos suspeitos, casos ou mortes confirmadas e casos descartados que os agentes de saúde pública e dos demais sistemas envolvidos no manejo institucional dos corpos - como o cartorial, o funerário e o prisional -, operam em um contexto pautado tanto pelas noções de risco e contaminação quanto de excepcionalidade (Azevedo; Sanjurjo; Nadai, 2020).

De forma geral, porém, os artigos e boletins não reconhecem a exaustão do sistema de saúde e funerário diante do aumento no número de falecimentos durante a pandemia, assim como não elaboram paralelos entre as ações tomadas pelas instituições de saúde e funerárias e suas capacidades de atendimento.

A pandemia trouxe para o cotidiano do brasileiro mais do que o temor constante de uma possível contaminação. Com a eclosão do vírus foram adotados protocolos e normas que visam combater o contágio e que são impostas de cima para baixo visando o bem coletivo em detrimento do individual. Compromisso com a coletividade que nem sempre foi aceito ou seguido por alguns membros da sociedade brasileira. Grupo que foi, em diversas ocasiões, incentivado pelo presidente da república como quando este foi questionado sobre as mais de 5 mil mortes por mortes por Covid ocorridas no dia 24 de março de 2020, e respondeu com um seco e debochado “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?” (Carta Capital, 2020, s./p.).

Independentemente dessas resistências e negacionismos, o Ministério da Saúde tem se organizado no enfrentamento ao coronavírus por meio de uma rede de relações que envolvem desde a política internacional até os protocolos de atendimento aos funerais e enterros.

De acordo com as primeiras orientações emitidas pela OMS, a Covid-19 é transmitida entre as pessoas por meio de gotículas, fômites e contato próximo. Dado o elevado nível de contaminação apresentado pelo vírus, as medidas objetivam conter o contágio que vão desde cuidados pessoais até o manuseio dos corpos mortos em decorrência ou suspeitos da doença (OMS, 2020b).

Dessa última condição a OMS estabelece que

Exceto em casos de febres hemorrágicas (como Ebola, Marburg) e cólera, cadáveres são, geralmente, não infecciosos. Apenas os pulmões dos pacientes com gripe pandêmica, se tratada de forma inadequada durante uma autópsia, pode ser infeccioso. De outra forma, cadáveres não transmitem doenças. É um comum mito de que pessoas que morreram de uma doença transmissível a doença deveria ser cremada, mas isso não é verdade. A cremação é uma questão de escolha cultural e recursos disponíveis (OMS, 2020b, p. 1, tradução nossa).

Com base na condição de não infecção por cadáveres, a recomendação é a de que:

  • A dignidade dos mortos, sua cultura e religião tradições, e suas famílias devem ser respeitadas e protegido por toda parte;

  • A eliminação apressada de um morto de Covid-19 deve ser evitada;

  • As autoridades devem gerenciar cada situação em um caso a caso, equilibrando os direitos da família, a necessidade de investigar a causa da morte, e os riscos de exposição à infecção. (OMS, 2020b, p. 1, tradução nossa).

A Organização reconhece que os familiares enlutados tenham o direito de ver o ente falecido antes do sepultamento e, ainda que não possam tocá-lo, devem fazer uso de “precauções padrão” como a higienização das mãos, por exemplo. Ao mesmo tempo, a OMS mostra zelo para com profissionais envolvidos nos pós-morte quando é extremamente rigorosa em relação ao uso de Equipamento de Proteção Individual (EPIs) e constante descarte desses materiais após seu uso pelos profissionais responsáveis por todas as etapas relativas aos procedimentos funerários.

De forma específica a Organização não estabelece um período mínimo ou máximo para os velórios salientando apenas que estes devem ocorrer em tempo hábil e de acordo com as práticas locais evitando-se funerais e cerimônias que não envolvam o enterro. Estas devem ser adiadas até o final da epidemia e, caso “uma cerimônia for realizada, o número de os participantes deve ser limitado. Os participantes devem observar o distanciamento físico em todos os momentos, além de etiqueta respiratória e higiene das mãos” (OMS, 2020b, p. 3, tradução nossa).

Em 23 de março de 20201 o Ministério da Saúde lançou a primeira versão do manual que dispõe sobre o manejo de corpos no contexto do coronavírus (Brasil, 2020a) e, em novembro do mesmo ano uma segunda versão foi disponibilizada (Brasil, 2020b). As orientações presentes nos manuais organizam a forma como os corpos mortos são geridos nos municípios que por sua vez utilizam documentos como as Portarias para transmitir as informações para cemitérios, funerárias, clínicas, hospitais e mesmo para a população em geral uma vez que os documentos são disponibilizados no site do Ministério.

A gestão de um grande número de cadáveres, como ocorre em situações pandêmicas, exige a adoção de medidas rigorosas para assegurar a documentação e a rastreabilidade do corpo desde o momento em que o óbito é atestado até sua eliminação final ou sepultamento, informam Finegan et al. (2020). Os pesquisadores basearam suas afirmações no documento produzido pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha acerca da manipulação e gerenciamento dos corpos mortos dada a experiência dessa organização em situações de emergência e epidemias.

Ao Comitê foi solicitado o aconselhamento em contextos operacionais sobre gestão de corpos mortos por infecção decorrentes da Covid-19 e suas orientações são correlatas às propostas pela OMS e adotadas pelo Ministério da Saúde no Brasil. De suas experiências, o Comitê considerou que,

Onde houver conflito potencial entre as práticas culturais existentes e salvaguardas adicionais para prevenir a exposição e propagação do vírus, o último deve prevalecer e devem ser feitos esforços para garantir que isso seja compreendido, aceito e apoiado pela comunidade em causa ou autoridades religiosas e o parente mais próximo (Finegan et al., 2020, p. 130).

Diante dos riscos das equipes manipuladoras de cadáveres se infectarem durante as primeiras horas após decretado o óbito, o Comitê considerou que os profissionais responsáveis por realizar a recuperação e identificação de restos mortais contaminados ou suspeitos de estarem contaminados com a Covid-19 devem receber treinamentos específicos para a tarefa de gerenciamento de mortos e o uso de EPIs. Devem fazer parte da equipe de manipulares profissionais qualificados com, no mínimo, “um profissional forense treinado e experiente no manejo de mortos em circunstâncias difíceis” (Finegan et al., 2020, p. 130).

Decretos e portarias: a gerência institucional do corpo morto em Maringá-PR

A Prefeitura de Maringá publicou entre os dias 13 de março e 30 de novembro de 2020, 46 Decretos com instruções gerais para o combate a Covid-19 e desses, dois mencionam os serviços funerários. Publicado no dia 18 de março de 2020, o Decreto 445/2020 (Prefeitura de Maringá, 2020a) declarou situação de emergência devido a pandemia e estabeleceu o lockdown no município pelo prazo de trinta dias. Nesse documento, a prefeitura informou ainda que, como atividades essenciais, os serviços funerários estariam mantidos. Trinta dias depois, por meio do Decreto 566/2020 (Prefeitura de Maringá, 2020b) a prefeitura informou no artigo 6º que “os serviços funerários deverão seguir as normas dispostas em portarias da Secretaria de Saúde” (Prefeitura Municipal de Maringá, 2020b, p. 2).

Os Decretos publicados seguem as orientações da OMS quanto ao manejo de corpos cujas mortes são suspeitas ou causadas pela Covid-19. As normas estabelecidas nos Decretos seguem o proposto nos manuais publicados pelo Ministérios da Saúde sobre o manejo de corpos no contexto do coronavírus (Brasil, 2020a, 2020b).

As orientações presentes nos manuais organizam a forma como os corpos mortos são geridos nos municípios, que por sua vez utilizam documentos como as Portarias para transmitir as informações para cemitérios, funerárias, clínicas, hospitais e mesmo para a população em geral uma vez que os documentos são disponibilizados no site da prefeitura.

Nos manuais estão dispostos os protocolos relativos ao manejo dos corpos a partir do momento em que acontece o óbito até o momento do sepultamento, sendo que esse último pode se dar por meio da cremação quando há identificação dos falecidos.

No primeiro momento da pandemia e com base nas orientações do Ministério da Saúde, a prefeitura municipal restringiu, via Portaria 019/2020 - Saúde, de 23 março de 2020, a visitação aos cemitérios; reduziu o tempo de duração das cerimônias para seis horas contadas retroativamente a partir do horário da realização do sepultamento e somente no período diurno. E o número de autorizados a participar da despedida foi restringido para dez pessoas. As notas de divulgação de falecimento passaram a ser permitidas até uma hora depois do sepultamento e, a abertura das urnas mortuárias, independente da causa mortis, deixou de ser permitida. O intervalo entre as inumações passou a ser de uma hora e os velórios em residências, igrejas, templos ou quaisquer outros locais que não salas de velório foram totalmente restringidos (Prefeitura Municipal de Maringá, 2020c).

Posteriormente novos protocolos foram adotados e restrições como visitações cemiteriais foram liberadas ainda que a prefeitura e instituições religiosas tenham feito campanhas informais solicitando principalmente que pessoas do grupo de risco e crianças evitassem as visitações aos entes queridos.

Com o lançamento da segunda versão do manual que dispõe sobre o manejo dos corpos em tempos da Covid-19 em novembro de 2020, a Portaria 019/2020 - Saúde foi revogada e os serviços funerários passaram a ser orientados pela Portaria 133/2020 - Saúde, publicada no dia 22 de dezembro de 2020. Constituída por 11 artigos, a Portaria 133/2020 - Saúde mantém algumas das orientações de sua antecessora enquanto insere protocolos mais específicos para a realização dos velórios (Prefeitura Municipal de Maringá, 2020d).

Sob a nova orientação, passam a ser permitidos velórios “nos casos em que o início o período de transmissão da Covid-19 ocorreu em tempo superior a 21 (vinte e um) dias da data do óbito” (Prefeitura Municipal de Maringá, 2020d, p. 58), sendo necessário que médico que assinou a Declaração de Óbito ateste essas informações. Em casos de morte “ocasionadas por qualquer tipo de síndrome respiratória aguda grave (sendo ou não diagnosticados/suspeitos com o COVID-19)” (Prefeitura Municipal de Maringá, 2020d, p. 58), a urna deve permanecer lacrada e encaminhada diretamente para o sepultamento ou cremação.

É salutar, entretanto, considerar questões relativas à permanência do coronavírus ativo em corpos mortos ainda se encontra em observação. A literatura médica atual carece de informações que atestem ou contestem que após 21 dias os cadáveres estejam ou não contaminados. Estudos nessa direção foram realizados por médicos plantonistas e da terapia intensiva da University Medical Center de Hamburgo, Alemanha, entre março e maio de 2020 e publicado em janeiro de 2021 e demonstraram a

infecciosidade mantida de SARS-CoV-2 em tecidos de pacientes falecidos. O RNA da SARS-CoV-2 persistiu ao longo do tempo com títulos constantemente elevados. Juntos, nossos dados indicam infectividade potencialmente alta de cadáveres humanos, exigindo avaliações de risco em campos profissionais envolvidos e manuseio cuidadoso e consciente (Heinrich et al., 2021).

O período de contaminação pelo coronavírus detectado pela equipe no post mortem foi de até 35,8 horas, em seis dos onze cadáveres utilizados para o estudo e em dois deles, o vírus sobreviveu por 24 horas. Dois testes foram descartados por falta de rigor no trato com as amostras. Uma das hipóteses levantadas pela equipe para a sobrevivência do coronavírus é que a células possuem tempos diferentes de morte. Células intestinais são as primeiras a se deteriorarem enquanto as células tronco de músculo esquelético têm maior durabilidade após a morte (Gozlan, 2021).

Diante dessa constatação, a equipe forense holandesa, liderada pelo dr. Heinrich, sugere que sejam mantidas as medidas de segurança como o uso de EPIs, sobretudo dos responsáveis pela manipulação do corpo morto desde funcionários do hospital, incluindo a equipe responsável pelos serviços funerários e de enterramentos (Heinrich et al., 2021).

Até o presente momento, no entanto, os velórios e sepultamentos realizados em Maringá seguem os padrões estabelecidos pela Portaria 133/2020 - Saúde, publicada no dia 22 de dezembro de 2020, que permitem que as urnas permaneçam abertas quando as mortes por coronavírus tenham data de contaminação superior a 21 dias retroativos ao falecimento.

Implicações emocionais decorrentes das mudanças nos protocolos relativos a velórios e enterramentos: a questão do luto

A importância dos rituais ligados aos velórios e aos sepultamentos envolve mais do que a aceitação da ausência do outro, falecido. Como eventos que marcam o processo de humanização, os sepultamentos registram um dos momentos em que os seres humanos desenvolveram a capacidade de significar fatos que lhe são alheios.

Achados arqueológicos revelam que os neandertais já realizavam rituais perante a morte. Fato que levou Edgar Morin a considerar o homem como o animal que supera a morte por acreditar quer seja na ressurreição quer seja na possibilidade da imortalidade (Morin, 1974), fortalecendo assim a ideia de eternidade no pós-morte bem como reorganizam a ordem perdida com o falecimento (Caillois, 1988).

O momento de excepcionalidade vivido atualmente apresenta-se como um momento de desorganização do cotidiano em todas as suas dimensões e nos ritos de morte em particular. Não bastasse as dores da perda, a pandemia causada por um vírus com alto poder de transmissão traz consigo a insegurança diante da possibilidade de contaminação em qualquer ambiente e por qualquer pessoa. O medo e a insegurança gerados, por sua vez, podem levar a imprevisibilidade de reações emocionais que vão desde tristeza, impotência, angústia, tédio e alterações do sono. Situações e emoções que provocam “sofrimento intenso e transtornos psíquicos entre um terço e metade da população” (Feitoza; Cordeiro; Belmino, 2020, p. 68).

São mudanças repentinas que se iniciam com o reconhecimento de que estamos vivendo num momento histórico marcado pela presença de um vírus, altamente contagioso e letal em muitos casos. E, que se desdobram sobretudo com o isolamento social e o fato de que a população foi colocada em situação de desenvolver, criativamente, novos modos de existência individual e coletiva. Para aqueles que perderam alguém significativo as mudanças são ainda mais expressivas haja vista que foram levados a vivenciarem duas diferentes formas de luto: uma marcada pela perda da rotina, dos hábitos e da realidade conhecida e outra pela vivência do luto pela perda de um ou mais entes queridos.

Ao medo da contaminação se associa a imprevisibilidade quanto à forma como o organismo vai reagir ao ser infectado. Serão apenas sintomas leves ou um caso de internamento com intubação? E se a condição social do contaminado for o provedor ou a provedora da família, a imprevisibilidade é sentida em meio a sofrimentos e temores ainda mais expressivos. O medo, portanto, é um fator de geração de insegurança a ser considerado em situações pandêmicas.

O isolamento, sinalizado como uma das medidas mais eficazes pelas autoridades para o controle da disseminação do coronavírus, juntamente com a possibilidade contaminação pelo próprio cadáver, é outro fator que impede que velórios e enterramentos sejam compartilhados coletiva e presencialmente. A ausência desses momentos de despedida coletivos traz sofrimentos psíquicos para os enlutados que ficam impedidos de realizar os rituais de despedida conhecidos e que agem como organizadores simbólicos no processo de luto. A não vivencia desses momentos, as restrições e proibições protocolares, embora necessárias no contexto de crise, podem gerar mudanças de humor e sentimentos de raiva, horror, choque e melancolia, ponderam Feitoza, Cordeiro e Belmino (2020).

O luto, via de regra, é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal etc. É também digno de nota que nunca nos ocorre considerar o luto como estado patológico, nem encaminhá-lo para tratamento médico, embora ele acarrete graves desvios da conduta normal da vida. Confiamos que será superado depois de algum tempo e consideramos inadequado e até mesmo prejudicial perturbá-lo (Freud, 2011, p. 7).

Ou seja, a dor sentida pela perda de alguém ou de algo abstrato, isto é, o luto, é um sentimento reconhecido, respeitado e estudado. Vivenciar o luto, portanto, é uma ação que acompanha os seres humanos desde períodos pré-históricos como visto e, quando os vivos não conseguem ultrapassar a dor e ressignificar sua vivência na ausência da pessoa querida falecida o luto passa então para o âmbito do luto complicado (Brasil, 2020c).

Na tentativa de evitar complicações relativas à vivência do luto, a Fiocruz elaborou estratégias baseadas em novos formatos para velórios e sepultamentos que atendam tanto às recomendações sanitárias quanto de ritualização do processo de despedida.

Uma dimensão importante a ser considerada é que as mortes causadas pelo novo coronavírus trazem algumas características particulares que, assim como em outros contextos de crise, podem interferir no luto das pessoas envolvidas. Devido ao contexto de pandemia e suas especificidades de contágio, as mortes podem ser mais frequentes do que aquelas com as quais estamos acostumados a lidar, podendo ocorrer abruptamente e demandando rituais díspares do que aqueles com os quais as culturas estão familiarizadas. Outra implicação é que, devido ao isolamento, a presença junto ao paciente infectado e até mesmo os ritos de despedida, ações integrantes do processo de luto não podem ser realizadas por seus entes queridos como habitualmente o fazem. Nesse contexto, as possibilidades são aumentadas para o desenvolvimento de um luto complicado, ou seja: quando o processo de luto se dá de forma mais intensa e duradoura do que o esperado, por não ter conseguido processar a situação nem se despedir de forma que lhe permita ter um senso de realidade e concretude (Brasil, 2020c, p. 4).

Para alcançar o senso de realidade e concretude perante a perda de um ente querido, a Fundação listou uma série de ações que objetivam minimizar os efeitos emocionais e sobretudo complicações ligadas ao luto causadas pela ausência dos rituais mortuários tradicionalmente realizados. Uma dessas reconfigurações ritualísticas diz respeito ao uso da tecnologia e das redes sociais como forma de compartilhar a vivência dos últimos momentos com o ente querido.

A Fiocruz, inclusive, sugere que sejam desenvolvidos rituais fúnebres alternativos que vão desde cultos e missas virtuais até a realização de homenagens coletivas quando a pandemia assim o permitir (Brasil, 2020c). Páginas do Facebook podem ser utilizadas para anunciar informações sobre o óbito ou funeral, postar lembranças quer seja por mensagens, vídeos ou fotografias como uma forma de homenagem bem como de tornar o processo de luto compartilhado uma vez que favorece as manifestações de apoio aos familiares e de comunicação emocional (Crepaldi et al., 2020).

Escrever uma carta, criar um memorial em local específico da casa, fazer um desenho ou mesmo escrever um diário são ações que podem minimizar a dor e colaborar na construção da vida sem o ente querido acredita a “Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais” (ABEC, 2020) que traduziu para o português, elementos do guia para pessoas que perderam um ente querido em tempos de coronavírus elaborado na Espanha.

Na cidade de Maringá, as funerárias se adequaram e se reinventaram a partir das sugestões feitas pela Fiocruz. E, atualmente muitos velórios são organizados de forma a serem transmitidos ao vivo desde que haja consentimento da família (Prever, 2021). Instituições como a Igreja Católica local, por exemplo, transmitiram ao vivo e por meios de comunicação próprios da Arquidiocese o velório de um sacerdote morto pela Covid-19 (Arquidiocese de Maringá, 2021), na tentativa de aproximar paroquianos, familiares e a comunidade em geral.

Essas expressões de condolências, afeto e espiritualidade ressignificadas no contexto da pandemia, no entanto, não substituem os rituais funerários tradicionais. Mas, auxiliam nos processos de resolução da aceitação do luto uma vez que ajudam a lidar com a situação de perda, conforme acredita Crepaldi et al. (2020). Por isso tem sido importantes as medidas adotadas por hospitais e equipes de saúde que tem disponibilizado apoio psicológico para os enlutados durante e após o processo do luto.

Em Maringá, desde o início da Pandemia, a Prefeitura organizou plantões psicológicos nas dependências da Secretária Municipal de Saúde para o atendimento ao público em geral e para os casos envolvendo pessoas infectadas pelo coronavírus bem como para os familiares que tiveram perdas pela Covid-19. Em sala específica, psicólogos contratados pelo município se revezavam em três turnos entre sete horas da manhã e uma da manhã quando atendimento era feito por telefone durante os sete dias por semana até aproximadamente o mês de maio de 2020. Posteriormente esses horários foram sendo reduzidos à medida que os atendimentos nas unidades básicas de saúde foram sendo retomados até que em dezembro do mesmo ano os plantões psicológicos foram encerrados.

Durante o período de vigência, os plantonistas passaram a ser orientados por estudiosos da área do luto por meio de lives e pela apostila elaborada pela Fiocruz. Profissionais envolvidos com os plantões informam que a procura por esse serviço não foi expressiva tanto para casos envolvendo o luto quanto para os positivados ou mesmo pessoas que se sentiam necessidade de saber mais sobre o coronavírus.

Observa-se, portanto, que a Prefeitura Municipal de Maringá adotou todos os protocolos relativos ao controle e prevenção da contaminação por Covid-19, bem como estabeleceu normas para os serviços funerários em acordo com os documentos que passaram a reger esses serviços. Quanto ao atendimento psicológico visando o bem estar emocional e o apoio aos enlutados, a Prefeitura e as instituições locais demonstraram estar cientes da necessidade de adotar novas configurações e o fizeram, procurando manter o controle da pandemia e a preservação dos profissionais.

Considerações finais

Considerando a excepcionalidade do momento e as ações propostas para a gestão dos corpos mortos ou suspeitos de Covid-19 bem como os formatos apresentados pelos serviços funerários, esse artigo pretendeu demonstrar que os protocolos estabelecidos pela Prefeitura de Maringá sobre as orientações dadas em relação aos atendimentos às pessoas enlutadas seguiram os protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde que, em si, são bem mais rigorosos que os propostos pela OMS. Seguem, no entanto, dúvidas quanto ao período de contaminação por cadáveres. Algo que certamente será verificado por pesquisas futuras.

Como não houve sobrecarga quer seja do sistema de saúde e funerário até o início de março de 2021, não se verificou abusos em relação aos protocolos como visto em cidades como São Paulo e Manaus por exemplo. Observou-se, no entanto, que embora investidos do rigor proposto pelo Ministério da Saúde os velórios ocorridos em Maringá parecem ter seguido trâmites que garantiram alguns momentos de direito à dor e ao sofrimento vividos pelos enlutados.

Para David Le Breton (1998, p. 123), “o que provoca a dor não é a morte e sim, a significação que esta tem para os indivíduos”. Nesse sentido, a Fiocruz, ao elaborar uma apostila de apoio às equipes de saúde envolvidas com os familiares enlutados, respondeu a uma demanda bastante significativa no contexto pandêmico que é a impossibilidade de experienciar o luto nos moldes conhecidos antes do coronavírus criando um padrão para o atendimento nos municípios que vai, desde o atendimento psicológico, até sugestões de modalidades inéditas de compartilhamento da experiência de velórios e enterramentos.

Todas essas medidas, a saber, gestão do corpo morto e vivências de luto em contexto pandêmico adotadas no Brasil são a expressão de um movimento em nível internacional e demonstram a existência do interesse em organizar esse momento por meio do compartilhamento de informações e experiências de ordem prática, científica e, ao menos teoricamente, emocional e foram adotadas pela prefeitura municipal maringaense.

Material suplementario
Fontes
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Notas
Notas
1 Há uma incoerência entre a publicação das orientações da OMS e a publicação do Ministério da Saúde. O manual publicado pelo MS tem data anterior à publicação da OMS. Não foi possível esclarecer os motivos dessa incoerência.
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