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Missões da Companhia de Jesus na Índia: uma leitura sobre o período de Francisco Xavier (1542-1552)
Felipe Augusto Fernandes Borges; Célio Juvenal Costa; Sezinando Luiz Menezes
Felipe Augusto Fernandes Borges; Célio Juvenal Costa; Sezinando Luiz Menezes
Missões da Companhia de Jesus na Índia: uma leitura sobre o período de Francisco Xavier (1542-1552)
Missions of the Society of Jesus in India: A Reading of the Period of Francisco Xavier (1542-1552)
Esboços: histórias em contextos globais, vol. 26, núm. 42, pp. 333-357, 2019
Universidade Federal de Santa Catarina
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Resumo: Este artigo trata da trajetória e do trabalho do padre Francisco Xavier, primeiro jesuíta a chegar à Índia sob as missões do Padroado Português. O objetivo do texto é apresentar estratégias e ações capitaneadas por Xavier no Oriente, mostrando que tais ações, comunicadas por cartas aos demais membros da Companhia de Jesus, influenciaram a formação dos métodos gerais de trabalho da nascente ordem. As fontes usadas são as Obras completas de São Francisco Xavier, organizadas pelo jesuíta Francisco de Sales Baptista. O recorte temporal abrange o período entre 1542, com a chegada de Xavier a Goa, até 1552, ano de sua morte. Concluímos que aquilo que, no período delimitado, Xavier pôs em prática foi, consequentemente, acompanhado por seus seguidores, bem como lido e praticado por outros tantos membros da Companhia de Jesus em outras missões.

Palavras-chave:Francisco XavierFrancisco Xavier,Companhia de JesusCompanhia de Jesus,ÍndiaÍndia.

Abstract: This article deals with the trajectory and work of the Jesuit priest Francisco Xavier, the first Jesuit to arrive in India under the missions of the Portuguese Padroado. The purpose of this text is to present the strategies and actions led by Xavier in the East, showing that such actions, shared through letters with the other members of the Society of Jesus, influenced the formation of the general work methods of the nascent order. The sources used are Obras Completas de São Francisco Xavier, organized by the Jesuit Francisco de Sales Baptista. The time frame covers the period from 1542, with the arrival of Xavier in Goa, until 1552, the year of his death. We conclude that, what Xavier established in the referred period was, consequently, adopted by his followers and also read and practiced by many members of the Society of Jesus in other missions.

Keywords: Francisco Xavier, Society of Jesus, India.

Carátula del artículo

Artigo

Missões da Companhia de Jesus na Índia: uma leitura sobre o período de Francisco Xavier (1542-1552)

Missions of the Society of Jesus in India: A Reading of the Period of Francisco Xavier (1542-1552)

Felipe Augusto Fernandes Borges
Instituto Federal do Paraná, Brasil
Célio Juvenal Costa
Universidade Estadual de Maringá, Brasil
Sezinando Luiz Menezes
Universidade Estadual de Maringá, Brasil
Esboços: histórias em contextos globais, vol. 26, núm. 42, pp. 333-357, 2019
Universidade Federal de Santa Catarina

Recepção: 14 Junho 2018

Aprovação: 10 Outubro 2018

Este artigo tenta destacar, de forma especial, a figura do padre Francisco Xavier, retomando sua biografia e os principais fatos e datas que envolveram seus anos de trabalho no Oriente, sob a Companhia de Jesus e o Padroado Português, no período que se estendeu desde sua chegada a Goa, em 1542, até sua morte, em 1552. As fontes utilizadas para a elaboração do texto pertencem às Obras completas de São Francisco Xavier, traduzidas e organizadas pelo jesuíta Francisco de Sales Baptista. Este estudo toma relevância quando considerado o fato de que Xavier foi o primeiro jesuíta a desembarcar na Índia e, até sua morte, o superior daquelas missões, tendo recebido inclusive a dignidade de Provincial daquelas partes.

O padre jesuíta Mário Martins inicia sua introdução geral às Obras completas de Francisco Xavier da seguinte maneira: “Na História de Deus, S. Francisco Xavier foi o maior conquistador do Oriente, embora não fosse o primeiro” (MARTINS apud XAVIER, 2006, p. 17). O peso histórico da pessoa de Francisco Xavier é inegável, assim como a influência de sua atividade sobre seus pares durante os anos de sua peregrinação no Oriente e mesmo depois de sua morte.

Francisco Xavier exerceu suas atividades missionárias no Oriente de influência portuguesa, que à época recebia, pelos lusitanos, a denominação de “Estado da Índia”. Tal conceito, segundo análise de Thomaz, não se referia à noção de Estado como “espaço geográfico bem definido”, e sim ao conjunto de territórios, estabelecimentos (feitorias, fortalezas...), bens, pessoas, interesses, comércio e Igreja, todos administrados pela Coroa Portuguesa, nos espaços de “Oceano Índico e mares adjacentes, ou nos territórios ribeirinhos, do cabo da Boa Esperança ao Japão” (THOMAZ, 1994, p. 207).

Thomaz defende a ideia de que o Estado da Índia, diferentemente de outras formas de organização política, não foi estruturado com base em “espaços geográficos”, e sim como uma “rede” (THOMAZ, 1994, p. 208). O caráter de rede do Estado da Índia leva em conta o conceito de “sistema de comunicação entre vários espaços”, portanto maior que os próprios sítios geográficos por ela interligados.

As lacunas abrangidas por essas grandes redes necessitaram, ao longo do tempo, também de elementos aglutinadores, culturais, econômicos e religiosos que fizessem com que os indivíduos participantes dessas redes se sentissem, de certa forma, unidos num propósito comum. Não é demais afirmar que a religião sempre prestou importante papel nesse sentido. Como afirma novamente Thomaz: “Ao longo dessas redes, produziram-se [...] fenómenos de difusão, nivelamento e uniformização cultural [...]. As grandes religiões de espírito universalista e cariz igualitário [...] desempenharam, frequentemente, essa função: [entre outras] o cristianismo, na expansão portuguesa” (THOMAZ, 1994, p. 208-209).

Vemos na expansão portuguesa que, desde seus primórdios, padres, soldados e mercadores dividiram os conveses dos mesmos navios. No enclave português do Oriente, a religião cristã seria igualmente importante para atração de nativos para a órbita de influência lusitana.

Nessa esteira, vemos, a partir de 1538, o início de uma relação muito próxima entre a Coroa Portuguesa e a recém-formada Companhia de Jesus (COSTA, 2004; MANSO, 2009; TAVARES, 2004). Em 1538, Diogo de Gouveia, então embaixador português em Paris, enviou uma carta a D. João III informando o monarca sobre os padres da nova ordem que se formava, indicando-os ao rei inclusive como possibilidade de reforçar o trabalho das missões no Ultramar português. O embaixador, então, contatou Inácio de Loiola e o papa, trazendo do rei português a solicitação de padres da Companhia de Jesus para as missões portuguesas.

Paulo de Assunção faz uma análise apurada da atuação e, sobretudo, das finanças da Companhia de Jesus. O autor afirma que a Coroa Portuguesa, durante o reinado de D. João III, enxergou nos jesuítas um poderoso instrumento de “efetivação do projeto civilizador e expansionista da nação portuguesa”. Assunção continua sua análise mostrando que o apoio da Coroa Portuguesa foi também acrescido de amplo suporte financeiro no que tangia a despesas dos jesuítas nas missões, “marcando o início de uma política amistosa do poder real com os jesuítas, e que seria bem acolhida pelos sucessores do trono durante a dinastia de Avis” (ASSUNÇÃO, 2004, p. 92).

Conforme Costa (2004), após tais tratativas, duas frentes de trabalho foram inauguradas: Francisco Xavier foi para a Índia, levando consigo um conceito e uma prática diferenciado de missão, e o padre Simão Rodrigues foi para Portugal, estruturando lá o trabalho da Companhia em parceria com a Coroa lusa. Segundo interpretação corrente na historiografia (BOXER, 2002, 2013; COSTA, 2004; MANSO, 2009; TAVARES, 2004), Francisco Xavier e a Companhia de Jesus operaram certa mudança no que tangia ao cotidiano, aos métodos e ao alcance das missões catequéticas orientais.

É importante, ainda, destacar que a historiografia aqui mencionada não tem uma posição única sobre o assunto, mas, em menor ou maior grau, os autores concordam com a premissa principal evocada, ou seja, a diferenciação das missões orientais sob a Companhia de Jesus. Enquanto Xavier se ocupou do Oriente, Simão Rodrigues se ocupou do reino, estruturando a Companhia de Jesus em Portugal, ganhando cada vez mais apoio na Corte — tanto político quanto financeiro.

Olhar a missão da Companhia de Jesus no Oriente é essencial para compreender seu desenvolvimento como um todo. Há discussões na historiografia que corroboram essa visão (COSTA, 2004; MANSO, 2009, 2011, 2005, 2010; MANSO; SEABRA, 2012; SOUZA, 2000; TAVARES, 2004, 2007). Consideramos que um olhar mais especial para a trajetória de Francisco Xavier é importante porque, como Provincial da Companhia no Oriente, o agir e pensar de Xavier se configura como modelo orientador de conduta e atuação de seus subordinados.

Além disso, na Europa e em outros territórios de atuação jesuítica, a imagem de Xavier era respeitada e vista por seus pares como “padrão” de trabalho e serviço a Deus. Dessa forma, acreditamos que as cartas de Xavier, quando extrapolavam a barreira do continente asiático a chegavam à Europa, levavam consigo a imagem de um modelo de trabalho cristão a ser seguido. Devemos ainda adicionar o fato de que a missão indiana foi a primeira da Companhia de Jesus como um todo, o primeiro terreno de missões catequéticas da nova ordem. Certamente, nos momentos iniciais, não se havia sistematizado ainda um “agir” ou “pensar” institucional jesuítico. Tais características tiveram seu desenvolvimento conforme as missões se desenrolaram. Olhar para Xavier e para as missões orientais como um todo é olhar para a gênese, para a formação dos modos de trabalho da Companhia de Jesus.

Compreendemos que as concepções e as formas de trabalho expressas nas cartas de Xavier não são fruto único de seu intelecto ou de ideais individuais. Essas situações e concepções expressam o meio político, religioso e social em que o missionário estava inserido. Como membro de uma instituição lusitana, o Padroado Real Português1 era também submisso à Coroa. Xavier, portanto, estava assim impulsionado e, ao mesmo tempo, limitado ao raio de ação portuguesa.

FRANCISCO XAVIER, A COMPANHIA DE JESUS E A MISSÃO NA ÍNDIA

Francisco Xavier era espanhol, nascido em 7 de abril de 1506, no castelo de Javier, ainda reino de Navarra. Entre 1525 e 1530, esteve envolvido nos estudos de Filosofia no Colégio de Santa Bárbara, em Paris, à época dirigido pelo português Diogo de Gouveia. Nesse período, Xavier conheceu Inácio de Loiola e se juntou a ele e aos demais irmãos,2 formando o cerne de fundação da Companhia de Jesus. Em 1534, eles fizeram seus votos em Montmartre. Juntamente com o grupo inicial da Companhia, Xavier foi ordenado padre em 24 de junho de 1537, em Veneza (ETAPAS, 2002, p. 15-31).

Impedidos de fazer a travessia para Jerusalém por conta de sinais de guerra entre venezianos e turcos, o grupo de Loiola e Xavier não conseguiu cumprir seu objetivo inicial: a reconquista da Terra Santa. Dessa forma, em 1538, seguiram para Roma, onde se colocaram à disposição do papa. Na época, havia tempos o monarca português, d. João III, pedia ao Sumo Pontífice o envio de missionários, no intuito de evangelizar as terras dominadas pelos portugueses, sobretudo no Oriente. Nesse sentido, foi aconselhado por Diogo de Gouveia, diretor do Colégio de Santa Bárbara, a pedir para tais missões os padres na nova Companhia, ou seja, da Companhia de Jesus.

Após o contato do embaixador português com Inácio de Loiola e a posterior autorização papal, os padres da Companhia de Jesus foram designados para as missões orientais do Padroado Português. Nesse movimento é que Xavier acabou por ser escolhido, junto com Simão Rodrigues, como os primeiros jesuítas incorporados às missões lusas (COSTA, 2004).

Em sua atuação no Oriente, Xavier adquiriu grande destaque nos meios religiosos, nas Cortes europeias e na própria Companhia de Jesus. Lemos em Londoño (2002, p. 22) que,

a partir de sua atuação na Índia, em diversas partes da Ásia até chegar ao Japão em 1549 e morrer em 1552, Francisco Xavier passou a encarnar o missionário, o apóstolo jesuíta por excelência. Essa imagem de Francisco, que serviria de modelo a todos os outros missionários da ordem, começou a ser construída ainda em Lisboa com a distinção que ele logo alcançou na corte, recolhida na correspondência dos primeiros jesuítas portugueses e nas suas próprias cartas. [...] A figura do dedicado e incansável missionário e dos frutos que produzia no anúncio da Fé católica foi se cristalizando no modelo de edificação que se podia extrair das missões entre infiéis, para ser espalhado nas cortes de Europa e entre os jesuítas. Ao mesmo tempo Xavier se constituiu no primeiro referencial para a definição de um método de atuação da companhia entre infiéis.

Todo o trabalho do missionário, como menciona Londoño, se cristalizou por meio de cartas, de suas correspondências. O epistolário jesuítico era uma importante ferramenta para que isso acontecesse. As cartas eram usadas, ao mesmo tempo, como meio de orientação local e de comunicação global entre os inacianos. Por meio delas, podemos ter uma visão ao menos panorâmica dos anos de atividade do padre Xavier no Oriente, compreendendo, assim, a dinâmica do dia a dia das missões.

É importante aqui fazer um hiato, a fim de afirmar a consciência com respeito às fontes a que temos acesso. As fontes utilizadas neste trabalho constituem uma coletânea organizada e comentada por um padre jesuíta. Além disso, são documentos e cartas produzidos também por religiosos, sobretudo Xavier. Na esteira dessas reflexões, dois trabalhos também devem ser mencionados como condutores de nosso processo de análise das fontes. O primeiro é o de Pécora (2008); o segundo, já citado, é o de Lodoño (2002).

Em seu artigo, Pécora faz uma análise dos cinco momentos formais que compõem as cartas dos padres da Companhia de Jesus. Baseados na “ars dictaminis”, ou seja, na “arte de escrever cartas”, os inacianos, segundo Pécora, tinham claros os cinco momentos principais delas: “salutatio, captatio benevolentiae, narratio, petitio e conclusio” (2008, p. 39-40). Toda essa metalinguagem, implícita nas cartas jesuíticas, tinha como objetivo principal captar a atenção do leitor para a missão religiosa. Fossem os leitores leigos ou mesmo superiores religiosos, o intuito das cartas era despertar o desejo de fazer o possível para auxiliar nas missões.

O trabalho de Pécora é importante para nós porque, sob sua interpretação, podemos compreender que a metodologia de escrever cartas aplicada pela Companhia de Jesus fez destas mais do que meros instrumentos de comunicação; fê-las também objetos de proselitismo. Tal visão precisa acompanhar o leitor de cartas jesuítas e de quaisquer documentos históricos.

Lodoño analisa as cartas jesuíticas mostrando, sobretudo, o caráter de intencionalidade delas. O autor afirma que

uma boa parte das cartas teria sido produzida com o propósito claro de edificar, na expressão ascética da época, que apontava para as ações que serviam para manifestar a presença divina, estimular a Fé do próximo e infundir piedade. As cartas estavam determinadas pela sua função, seus destinatários e objetivos particulares (LODOÑO, 2002, p. 12).

O autor continua nos mostrando como os jesuítas, por sua formação e doutrina, tinham clara consciência de que todas as suas atividades, por menores que fossem, estavam orientadas por um “princípio e fundamento”. Na concepção da Companhia de Jesus, todas as atividades e ações do indivíduo eram subordinadas ao “serviço de Deus”, o que não era diferente com a obrigação de escrever cartas.

Em sua escrita, ainda que subjetivamente, o jesuíta expressava tal princípio, o que se traduzia “nas expressões, nos assuntos e nos episódios referidos” (LODOÑO, 2002, p. 13). Há ainda o fato de que as cartas eram escritas de forma a serem reproduzidas e dispersas pela Europa, a fim de “edificar” leigos europeus, possíveis benfeitores da Companhia, assim como pelos locais de missão, para irmãos, missionários e padres distantes, sempre com o objetivo da edificação.

Em repercussão por toda a Europa e adjacências, “[a]s cartas serviam para montar a imagem geral da Companhia, portanto nada melhor que os feitos dos irmãos pela dispersão do evangelho, usados para ‘edificar’” (LODOÑO, 2002, p. 17-18).

Célia Tavares complementa o que foi trazido por Lodoño ao nos mostrar que, “em 1541, Inácio de Loyola instituiu a hijuela, em que determinava que os problemas enfrentados pelos jesuítas deveriam ser escritos em folha separada da carta que informava os feitos edificantes e exemplares” (TAVARES, 2004, p. 114).

Todos esses posicionamentos e advertências com relação às cartas jesuítas devem permear nosso olhar sobre elas. Além disso, entendemos ser importante estender tais cuidados a quaisquer fontes, mesmo que não originárias de membros da Companhia de Jesus. Tendo tudo isso em vista, podemos continuar nossa exposição e análise.

Xavier chegou a Lisboa ainda no mês de junho de 1540, ficou algum tempo na corte e partiu efetivamente para a Índia em 7 de abril de 1541. Chegou a Goa apenas em 6 de maio de 1542, onde iniciou logo seus trabalhos. Cabe lembrar que Xavier parte de Lisboa com mais dois companheiros jesuítas: o padre Paulo Camerino, chamado de Micer Paulo na documentação, e o irmão Francisco Mansilhas. Estes chegaram a Goa apenas no mês de outubro daquele ano, pois ficaram à espera de outra nau em Moçambique, onde ficaram mais tempo que Xavier.

Francisco Xavier ficou em Goa até fins de setembro de 1542, de onde embarcou para o sul da Índia para cumprir os objetivos de missão a que havia se proposto. Datada de 20 de setembro de 1542, temos uma carta destinada aos companheiros em Roma em que Xavier descreve o início das atividades missionárias em Goa e as primeiras viagens que empreendeu. Vemos que, sobre Goa propriamente dita, o missionário nos dá a impressão de que, naquela cidade, não havia muito o que fazer ou muitas pessoas para evangelizar.

Há quatro meses e mais que chegámos à Índia, a Goa, que é uma cidade toda de cristãos, coisa para ver. Há um mosteiro de muitos frades da Ordem de S. Francisco e uma Sé muito honrada e de muitos cónegos, e outras muitas igrejas. Coisa é para dar muitas graças a Deus Nosso Senhor em ver que o nome de Cristo tanto floresce em tão longínquas terras e entre tantos infiéis (XAVIER, 2006, p. 106-107).

Vendo Goa dessa forma, com uma cristandade já formada, sacerdotes e igrejas, Xavier voltou seus interesses para outros lugares, embarcando para o cabo de Comorim, correspondente ao sul da Índia – a costa da Pescaria no lado oriental e a costa de Travancor no lado ocidental. Vemos menção a tal viagem ainda nesta carta de 1542:

Agora me manda o senhor Governador para uma terra, onde todos dizem que tenho a fazer muitos cristãos. [...] Creio que havemos de fazer muito serviço a Deus Nosso Senhor. Em vindo Micer Paulo e Francisco de Mansilhas de Moçambique, disse-me o senhor Governador que logo os mandaria para onde eu vou [agora], que é a 200 léguas de Goa. Chama-se, a terra para onde vou, o Cabo de Comorim. Há-de prazer a Deus Nosso Senhor que, com o favor e ajuda das vossas devotas orações, não olhando Deus Nosso Senhor aos meus infinitos pecados, dar-me sua santíssima graça para que cá, nestas partes, muito o sirva (XAVIER, 2006, p. 112).

A expectativa de Xavier quanto àquilo que estava por encontrar se mostra grande. Os relatos sobre a quantidade de pessoas “por fazer cristãos” animaram o missionário, ao mesmo tempo que se impõe como desafio para ele. Entretanto, vemos que Xavier não pensava nessas conversões e nesses trabalhos como tarefas fáceis. O missionário tinha consciência das dificuldades e da resistência que enfrentaria não apenas no que dizia respeito à pregação e às conversões, mas também às adaptações necessárias com relação às viagens, aos perigos, às doenças, ao clima etc. Tanto é assim que, em carta ao Superior Geral da Companhia, Inácio de Loiola, ainda em 1542, o padre pedia mais missionários e dava ao superior uma descrição das características que os enviados deveriam ter. Segundo ele, seria preferível enviar missionários mais jovens. Se velhos, que fossem saudáveis, pois terra e mar os poriam “à prova”.

Certo estou de que, os que hão-de vir da nossa Companhia, hão-de ser pessoa ou pessoas em quem vós muito confieis [...]. Hão-de passar muitos trabalhos, pois os desta terra são grandes, tanto ela debilita os que não são criados nela. Pensai numa coisa: que tanto o mar como a terra os hão-de provar para quanto são. Não é esta terra senão para homens de grande compleição e não de muita idade. Mais é para mancebos que para velhos, embora para velhos saudáveis seja boa. [...]. Hão-de ser muito importunados para muitas confissões, Exercícios Espirituais e pregações (XAVIER, 2006, p. 118).

Na mesma missiva, Xavier pedia novos missionários. Mesmo sem ainda ter feito as primeiras viagens pela Índia, o padre já obtivera informações variadas a respeito de territórios e populações ali existentes. Tanto é assim que, ao longo dos anos, a cada carta enviada à Europa, o pedido por missionários aumentava, na medida em que cresciam sua visão e seu conhecimento a respeito das possibilidades de evangelização no Oriente.

Em outra carta, aos companheiros de Roma, datada de 15 de janeiro de 1544, descreveu sua primeira experiência de encontro e disputa com brâmanes. No relato, o padre acusou os brâmanes de se aproveitarem da simplicidade e da ignorância dos nativos para arrancar deles, como se fossem para seus deuses – os quais Xavier chama de “ídolos” – as dádivas que desejavam para si mesmos. Assim ele os descreve:

Há nestas partes, entre os gentios, uma classe a que chamam brâmanes: estes mantêm toda a gentilidade. Têm o encargo das casas onde estão os ídolos: é a gente mais perversa do mundo. [...] É gente que nunca diz a verdade. Está sempre a pensar como há-de subtilmente mentir e enganar os pobres simples e ignorantes, dizendo que os ídolos pedem que lhes levem, para oferecer, certas coisas; mas estas não são outras senão as que os brâmanes fingem e querem para manter as suas mulheres, filhos e casas. Fazem crer à gente simples que os ídolos comem; e há muitas pessoas que, mesmo que não almocem nem jantem, oferecem certa moeda para o ídolo. Duas vezes ao dia, com grande festa de atabales, comem, dando a entender aos pobres que são ídolos que estão a comer. Quando começa a faltar o necessário aos brâmanes, dizem ao povo que os ídolos estão muito zangados com ele, porque não lhes leva as coisas que, por eles, lhes mandam pedir; e que, se não lhas fornecem, tenham cuidado com eles, pois os hão-de matar, ou dar-lhes doenças, ou lhes hão-de mandar os demónios a suas casas. E os tristes simples, crendo que será assim, de medo que os ídolos lhes façam mal, fazem o que os brâmanes querem (XAVIER, 2006, p. 142-143).

A visão do missionário sobre os religiosos nativos que encontrou era essa que lemos no relato. Podemos inferir que, além de escrever aos seus confrades, Xavier usou os argumentos citados para sua pregação aos nativos. Certamente, a desqualificação daquilo que os nativos acreditavam — seus ídolos, deuses e sacerdotes — faria parte da estratégia para que deixassem sua religião e se fizessem cristãos. A respeito de “desmascarar” os brâmanes perante os nativos, o padre conta que,

aos tristes simples que, por puro medo, são seus devotos [dos brâmanes], manifesto-lhes os seus enganos e burlas, até cansar. Muitos, pelo que lhes digo, perdem a devoção ao demónio e fazem-se cristãos. Se não houvesse brâmanes, todos os gentios se converteriam à nossa fé (XAVIER, 2006, p. 144).

As estratégias jesuíticas sempre partem do princípio das lideranças, que, ao chegarem a uma localidade, procuravam converter e batizar chefes, reis e governadores. Acreditava-se que, com base no exemplo dos líderes, mais facilmente os comuns se converteriam e aceitariam a fé. Na margem da desqualificação, vemos o mesmo: mais força há em desqualificar os sacerdotes que os seguidores comuns de determinada religião. Ao atacar os brâmanes e “manifestar seus enganos”, Xavier procurava implantar a desilusão nos nativos hindus, de forma que estes abandonassem o hinduísmo e viessem ao cristianismo, ou, nas palavras do missionário, abandonassem os enganos do demônio. O cristianismo se assenta, como sabemos, em crer-se como única e verdadeira religião, considerando tudo aquilo que não faz parte da sua crença um erro, engano ou obra do Diabo.

Diferentemente de outros clérigos, os jesuítas se esforçaram por conhecer ao menos os fundamentos das religiões orientais. A observação de Xavier sobre os costumes locais é exemplo disso. Porém, o conhecimento dessas religiões nem de longe implicou aceitação; pelo contrário, eram artifícios usados como instrumento de refutação. Ainda que a adaptação jesuítica por vezes tenha envolvido a apropriação de costumes ou características que lembravam as religiões orientais, isso era feito de modo a não ferir nem contradizer os princípios básicos do cristianismo.

No seu relato, Xavier sugeriu que os brâmanes enganavam deliberadamente seus seguidores. Segundo ele, esses sacerdotes sabiam que aquilo que diziam era mentira, mas o faziam para angariar sustento próprio. São acusações fortes, no claro desejo de desqualificar a crença do Outro. O padre relata que os brâmanes da costa do Comorim ficavam muito preocupados com a possibilidade de o missionário “descobrir” seus enganos e lhe diziam crer na existência de um só Deus.

Aos brâmanes desta Costa onde ando, pesa-lhes muito que eu nunca outra coisa faça senão descobrir as suas maldades. Eles confessam-me a verdade, quando estamos a sós, de como enganam o povo: confessam-me, em segredo, que não têm outro património senão aqueles ídolos de pedra, dos quais vivem, fingindo mentiras.

[...] Tudo isto fazem, para que eu não descubra os seus segredos, dizendo-me que eles bem sabem que não há senão um Deus, e que eles rezarão por mim (XAVIER, 2006, p. 143-144).

Considerando os propósitos das cartas jesuíticas, esse é um relato que pode ser visto, no mínimo, como exagerado. Sabemos que os escritos destinados aos companheiros na Europa normalmente tendiam a exaltar mais os sucessos do que as dificuldades das missões. Por vezes, os relatos foram “aumentados” no intuito de atrair mais voluntários e doadores para as atividades missionárias do Oriente. Quanto ao trecho acima, é difícil imaginar um grupo de sacerdotes de uma religião qualquer confessando a um sacerdote de outra religião os enganos e as mentiras que supostamente usavam para enganar seus fiéis seguidores.

Não fazemos aqui juízo de valor sobre o relato do missionário, mas olhamos para ele com a devida desconfiança, que, nesse caso, se faz necessária. As conversas com os brâmanes da costa existiram, mas talvez a confissão do engano não tenha sido tão clara quanto sugere o relato.

Além desse, Xavier expõe na mesma carta outro contato com brâmanes, num pagode onde havia, segundo ele, mais de duzentos desses sacerdotes. A conversa, dessa vez, teria sido mais doutrinária, e o padre os inquiriu a respeito do paraíso e do que os deuses deles requeriam para que os homens fossem para lá.

Ao visitar os lugares de cristãos, passo por muitos pagodes. Uma vez passei por um, onde havia mais de duzentos brâmanes, e vieram-me ver. Entre outras muitas coisas de que falamos, pus- -lhes uma questão, e era: que me dissessem que é que os seus deuses e ídolos, a quem adoravam, lhes mandavam fazer para ir para a glória. Foi grande a contenda entre eles sobre quem me responderia. Disseram a um dos mais antigos que respondesse. O velho, que tinha mais de oitenta anos, disse-me que lhe dissesse eu primeiro o que mandava o Deus dos cristãos fazer. Eu, percebendo a sua ruindade, não quis dizer coisa alguma antes de ser ele a dizer. Então foi-lhe forçado manifestar as suas ignorâncias. Respondeu-me que duas coisas lhes mandavam fazer os seus deuses para ir para onde eles estão: a primeira era não matar vacas, as quais eles adoram; e a segunda era dar esmolas, e estas aos brâmanes que servem os pagodes. Ouvida esta resposta, com pena de os demónios escravizarem os nossos próximos de tamanha maneira, a ponto de em lugar de Deus se fazerem adorar deles, levantei-me, dizendo aos brâmanes que ficassem sentados e, a grandes vozes, disse o Credo e os Mandamentos da lei na língua deles, fazendo alguma detenção em cada Mandamento. Acabados os mandamentos, fiz-lhes uma exortação na língua deles, explicando-lhes que coisa é paraíso e que coisa é inferno, e dizendo-lhes quem vai para um e quem para outro. Depois de acabada esta prática, levantaram- -se todos os brâmanes e deram-me grandes abraços, dizendo- -me que verdadeiramente o Deus dos cristãos é o verdadeiro Deus, pois os seus Mandamentos são tão conformes a toda a razão natural (XAVIER, 2006, p. 144-145).

Salientamos a observação de que Francisco Xavier fez a declaração do Credo e dos Mandamentos na língua nativa, bem como sua posterior exposição sobre o cristianismo. Consideramos o uso das línguas nativas na pregação – um dos diferenciais da metodologia de trabalho dos jesuítas na Índia – um fator de grande importância, haja vista que os sacerdotes, naquele exato instante, tiveram um contato simplificado com as doutrinas cristãs. Sem necessitar de um tradutor que o repetisse, o próprio missionário dispunha da instrumentalização linguística necessária para transmitir sua prédica na língua local. Esse costume, iniciado na Companhia por Xavier e depois estendido aos demais missionários, facilitou a penetração do Evangelho e da catequese nos povos do Oriente.

O excerto também nos chama a atenção por conta da resumida forma com que o religioso descreveu a resposta que obteve do velho brâmane. Sabe-se que o hinduísmo é bem mais complexo do que as duas regras que ele transcreve na carta. Podemos imaginar que talvez a conversa tenha sido mais complexa do que a relatada, mas ao missionário interessava apenas descrever o sucesso e a vitória que teria obtido. Há, de forma geral, uma simplificação de crenças e religiões orientais, talvez por considerarem sem importância descrevê-las a fundo, por certa indiferença que, consciente ou inconscientemente, influenciava a escrita dos missionários, inclusive de Xavier.

No fim do fragmento reproduzido, temos o relato de que os brâmanes, mais de duzentos, teriam a um só coro declarado ser o Deus dos cristãos o verdadeiro Deus. O sucesso é tão grande que, mais uma vez, nos colocamos a perguntar sobre a totalidade do relatado. Ao lermos o excerto isolado, poderíamos mesmo pensar que mais de duzentos sacerdotes hindus se converteram imediatamente ao cristianismo sob a ação de Xavier, o que seria um incrível prodígio. Porém, na continuação de seus relatos, o próprio missionário informou que as coisas não aconteceram exatamente assim:

A todas as perguntas que me fizeram os satisfiz, a parecer deles. Mas, quando com eles chegava a conclusão de que se fizessem cristãos, pois já conheciam a verdade, respondiam o que muitos entre nós costumam responder: Que dirá o mundo de nós, se esta mudança de estado fazemos no nosso modo de viver? E outras tentações em pensar que lhes venha a faltar o necessário (XAVIER, 2006, p. 144-145).

Antes de descrever o que foi citado, Xavier contou como os brâmanes ainda o inquiriram sobre a imortalidade da alma, assim como a cor da pele de Deus. Ele teria para tudo lhes dado respostas, segundo seu relato. No entanto, mesmo após a pregação, nenhum brâmane se converteu ao cristianismo, embora, segundo o padre, tenham confessado ser verdadeira a religião cristã. Nesses e em outros pontos é que se torna necessário pensar os limites impostos pelas fontes históricas que utilizamos – no caso, as cartas jesuíticas. Elas nos mostram, como vemos, não os acontecimentos puros e imparciais, mas a visão de quem está contando uma história. Podemos, por meio delas, conhecer a ação missionária daqueles padres, com o cuidado de ler criticamente o conteúdo a que temos acesso.

Após sua temporada de missões na costa do Comorim, Xavier partiu, em agosto de 1545, para Malaca, aonde chegou no mês de setembro. Dessa vez, passou em missão pelas ilhas Molucas, Amboina, Termate e Moro. Nutria já desejos de ir à China (ETAPAS, 2002, p. 15-31). Nessa expedição, gastou pouco mais de dois anos, em intensa atividade registrada nas suas correspondências.

Escrevendo sobre as ilhas Molucas, em carta aos jesuítas da Europa datada de 10 de maio de 1546, disse-lhes que muitos habitantes que haviam se convertido deixavam de ser cristãos: “[Os seus habitantes], por falta de quem lhes requeira que sejam cristãos, deixam de o ser” (XAVIER, 2006, p. 271). Essa afirmação retrata, de forma implícita, o problema da falta de missionários que houve desde o início das missões de catequese na Índia. Muitas localidades receberam missionários itinerantes e tiveram certo número de conversões. Mas, deixados por padres ou irmãos que operaram tais conversões, os convertidos logo voltavam às antigas religiões, ou, mesmo que não voltassem a elas, não mais praticavam o cristianismo.

Quanto a essa situação, Xavier mostrou, nessa carta de maio de 1546, uma breve descrição geral das ilhas. Escreveu sobre mouros e gentios, sugerindo que deveria haver missionários que vivessem naquelas partes, a fim de instruir e zelar por aquelas pessoas. Ele escreveu aos companheiros na Europa que, mesmo os que não servissem para a Companhia, se tivessem o desejo e a vontade de servir a Deus naquelas partes, teriam a possibilidade de viver com aquelas gentes e, assim, trabalhar pela salvação daquelas almas. O missionário diz que, em uma comparação, os gentios daquelas partes preferiam ser cristãos a muçulmanos.

Os gentios, nestas partes de Maluco, são mais que os mouros. Querem-se mal os gentios e os mouros. Os mouros querem que os gentios ou se façam mouros ou sejam seus cativos, e os gentios não querem nem ser mouros nem menos ser seus cativos. Se houvesse quem lhes pregasse a verdade, todos se fariam cristãos, porque mais querem os gentios ser cristãos que mouros. [...] Estes mouros, o melhor que têm é que não sabem coisa nenhuma da sua seita perversa. Por falta de quem lhes pregue a verdade, deixam estes mouros de ser cristãos. Esta conta vos dou, tão particular, para que tenhais especial sentimento e memória de tanta perdição de almas, quantas se perdem por falta de espiritual socorro. Os que não tiverem letras e talento para ser da Companhia, sobrar-lhes-á o saber e talento para estas partes, se tiverem vontade de vir para viver e morrer com esta gente. Se, destes, viessem todos os anos uma dezena, em pouco tempo se destruiria esta má seita de Maoma e se fariam todos cristãos (XAVIER, 2006, p. 271-273).

Em contrapartida dessas informações, o padre contou também a respeito de práticas canibais em algumas daquelas ilhas, descrevendo situações em que certos grupos realizavam a antropofagia. Evidentemente, o missionário se mostrou estarrecido com tais práticas, que foram caracterizadas por ele como “abomináveis”.

Outra comparação interessante foi sobre manifestações da natureza nas Ilhas Molucas. Ao descrever a geografia local, contou aos companheiros a ocorrência de tremores em terra e mar, ou seja, terremotos e maremotos. Ao que parece, pelo relato, as ilhas também tinham atividade vulcânica, da qual Xavier deve ter tido notícia, pois não mencionou ter presenciado. Ao escrever sobre as atividades vulcânicas, sugeriu que tais catástrofes eram como “castigos divinos” pelo pecado e pelo engano com que, na visão cristã, se vivia naquelas partes. Essa ideia nos mostra um pouco da visão cristã que ele nutria acerca de Deus e do pecado, acreditando que este usava de castigos para alertar as pessoas daqueles locais ou mostrar o erro delas. Leiamos o que escreveu o missionário:

Muitas destas ilhas deitam fogo de si, com um ruído tão grande que não há tiro de artilharia, por mais grande que seja, que faça tanto ruído. Pelas partes donde sai aquele fogo, com o ímpeto grande com que vem, traz consigo pedras muito grandes. Por falta de quem pregue nestas ilhas os tormentos do inferno, permite Deus que se abram os infernos, para confusão destes infiéis e dos seus abomináveis pecados (XAVIER, 2006, p. 275).

Além disso, descreveu também, ao fim da missiva, uma dificuldade: a variedade de línguas na região. Segundo ele, cada ilha tinha uma língua diferente, o que se impunha como obstáculo à comunicação. Não obstante, identificou qual seria a língua mais geral daquelas ilhas, fazendo uma tradução do Credo e de algumas orações, seguindo a estratégia de traduzir o Credo os Mandamentos e as orações para as línguas nativas.

Cada uma destas ilhas tem língua para si. Há ilha que, quase cada lugar dela, tem fala diferente. A língua malaia, que é a que se fala em Malaca, é muito geral por estas partes. Nesta língua malaia [no tempo que eu estive em Malaca] com muito trabalho traduzi o Credo com uma explicação sobre os artigos, a Confissão geral, Pai-nosso, Ave-Maria, Salve-Rainha e os Mandamentos da lei, para que me entendam quando lhes falo em coisas de importância (XAVIER, 2006, p. 275).

A utilização das línguas nativas para catequese e pregação foi, de certa forma, uma das marcas dos jesuítas. Podemos entender como revolucionária essa atividade, muito usada na Índia. Depois, essa diretriz foi usada também na catequização dos índios no Brasil, onde o padre José de Anchieta chega a elaborar a primeira gramática da língua geral falada pelos nativos da terra, a Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil, utilizada para auxiliar os padres que chegavam à missão a apropriar-se do idioma local.

No Oriente, a tradução e o ensino das doutrinas cristãs nas línguas nativas surtiu um interessante efeito, levando em consideração as narrativas das cartas. O uso das línguas nativas permitia uma aproximação do cristianismo com a realidade daqueles povos a quem se queria evangelizar (BORGES, 2015).

Outra faceta para aproximar as atuações jesuítas na Índia e no Brasil é a importância dada pelos padres da Companhia ao ensino, à doutrina e ao batismo das crianças. Xavier, em suas cartas, é abundante nas orientações e nos cuidados que ordenava aos missionários que tivessem com relação às crianças. Em busca de cristãos “melhores” e de resultados missionários mais duradouros, a Companhia de Jesus percebeu na formação das crianças a chance de incutir, desde cedo, os ideais da religião cristã, bem como a cultura que desejavam desenvolver nos convertidos indianos.

Em cartas e documentações da missão jesuítica na Índia, vemos relatos de padres pesarosos pelo fato de que muitos adultos, mesmo depois de evangelizados e catequizados, retornavam às suas antigas religiões e práticas, consideradas “pagãs” pelos missionários. As crianças representavam, assim, a esperança de que uma formação dada em tenra idade facilitaria o trabalho, uma vez que não estariam tão ligadas às religiões e aos costumes locais quanto seus pais. Nesse sentido é que Xavier e outros jesuítas deram especial atenção ao denominado “ensino dos meninos”.

Além do ensino, vemos que, na concepção jesuítica, era muito importante batizar as crianças assim que nascessem, pois, considerada a alta mortalidade infantil, ao menos aquelas pequenas almas, se batizadas, iriam direto para o paraíso. Como escreveria várias vezes Xavier, o batismo dessas pequeninas crianças era “muito serviço de Deus” (BORGES, 2015).

A catequese infantil tem outra faceta interessante de abordarmos. Paiva denomina o fenômeno como “instrumentalização dos meninos pregadores” (PAIVA, 2006, p. 71-73). Tal estratégia consiste em instrumentalizar os meninos que iam à doutrina como pequenos pregadores, dispersores dos ensinos cristãos por vilas e aldeias. Instruídas pelos jesuítas, essas crianças deveriam repassar a seus pais, servos, vizinhos e outras crianças aquilo que aprendiam sobre o cristianismo, sobre a doutrina, os costumes. Era uma verdadeira maximização de pregadores. São inúmeros os relatos de meninos fazendo orações nas casas, ensinando outras crianças ou mesmo os adultos, além dos eventos públicos que as envolviam, como as grandes procissões que aconteciam em Goa.

Essa é, acreditamos, mais uma forma estratégica de disseminação da religião cristã e da cultura repassada dos jesuítas a esses pequenos, que, por sua vez, as replicavam à frente, sucessivamente criando uma grande rede de pessoas em contato com os ensinos da religião cristã. Reside aí também uma das explicações para a importância dada pelos jesuítas às escolas, aos colégios e aos seminários, centros privilegiados de ação, evangelização e doutrina cristã. No Brasil, tal estratégia foi empregada pensando na educação dos “curumins” (BITTAR; FERREIRA JÚNIOR, 2000).

Ao fim de sua carta, Xavier escreveu a respeito da China. Nessa missiva, já demonstrava curiosidade sobre esse país, seus habitantes e sua religião. O missionário vislumbrava nessas conversas a possibilidade de evangelização naquelas partes:

Encontrei em Malaca um mercador português, o qual vinha de uma terra de grande trato [comercial], a qual se chama China. [...] De Malaca, vão todos os anos muitos navios de portugueses aos portos da China. Eu tenho encomendado a muitos, para que saibam dessa gente, pedindo-lhes que se informem muito das cerimónias e costumes que entre eles se guardam, para por elas se poder saber se são cristãos ou judeus. [...] Se souber coisa certa, [eu vo-la escreverei para o ano que vem: escrever-vos- -ei o que por experiência destas partes tiver visto e conhecido] (XAVIER, 2006, p. 276-277).

Xavier não chegou a alcançar a China, mas, durante parte de sua vida, nutriu o desejo de ir para lá. De certa forma, podemos dizer que quase chegou ao país. Mas, como veremos ainda neste texto, encontrou a morte antes que pudesse atravessar as fronteiras.

MISSÃO NO JAPÃO

Enquanto planejava sua ida à China, Xavier rompeu as barreiras fronteiriças da Índia rumo ao Japão, localidade que também foi alvo de sua ação missionária. Vemos o início desse projeto quando, ainda sobre as ilhas Molucas, escreveu novamente aos companheiros em Roma, no dia 20 de janeiro de 1548 (XAVIER, 2006, p. 303). Dessa vez, relatou as atividades pastorais que teve antes de regressar à Índia, além de compartilhar informações que recebera a respeito do Japão.

Estando nesta cidade de Malaca me deram grandes novas, uns mercadores portugueses, homens de muito crédito, de umas ilhas muito grandes, de pouco tempo a esta parte descobertas, as quais se chamam as ilhas de Japão. Nelas, segundo parecer deles, se faria muito fruto em acrescentar a nossa santa fé: mais que em nenhumas outras partes da Índia, por [a de lá] ser uma gente desejosa de saber em grande maneira, o que não têm estes gentios da Índia (XAVIER, 2006, p. 315-316).

Em Malaca, o padre conheceu Anjirô, um japonês nascido em Kagoshima que, convertido ao cristianismo, foi batizado em 1548 com o nome de Paulo de Santa Fé, em referência ao Seminário de Santa Fé, instituição dos jesuítas em Goa em que foi catequizado e batizado. Em 1549, Anjirô, ou Paulo de Santa Fé, acompanhou o sacerdote em sua viagem ao Japão. Por intermédio dele, Xavier recebeu muitas informações a respeito do Japão, da cultura e da religião locais. Impressionou-se com Anjirô, sua curiosidade e a forma como abraçou a religião cristã. Enalteceu isso na carta supracitada e o usou como argumento para imaginar que talvez fossem os japoneses todos desejosos de conhecimento como Anjirô. Na realidade, o encontro com esse japonês serviu para instigar ainda mais o missionário no seu desejo de ir ao Japão conhecer, evangelizar e converter naquelas partes.

Se assim são todos os japoneses, tão curiosos de saber como Angirô, parece-me que é a gente mais curiosa de quantas terras são descobertas. Este Angirô escrevia os artigos da fé, quando vinha à doutrina cristã. Ia muitas vezes à igreja a rezar. Fazia-me muitas perguntas. É homem muito desejoso de saber, o que é sinal de um homem se aproveitar muito e de vir em pouco tempo em conhecimento da verdade (XAVIER, 2006, p. 316-317).

Em sequência, escreveu sobre uma conversa com Anjirô em que lhe inquiriu a respeito das possibilidades de conversão em sua terra. Perguntou-lhe se seria possível que os japoneses, após ouvirem o Evangelho, se tornassem cristãos. A resposta que descreveu na missiva teria sido positiva, sendo que Anjirô lhe apresentou algumas condições para que isso ocorresse:

Perguntei a Angirô – se eu fosse com ele à sua terra – se se fariam cristãos os de Japão. Respondeu-me que os da sua terra não se fariam cristãos logo, dizendo-me que primeiro me fariam muitas perguntas e veriam o que lhes responderia e o que eu sabia e, sobretudo, se vivia conforme ao que falava. Se fizesse duas coisas – falar bem e responder às suas perguntas, e viver sem que me achassem em que me repreender – que, em meio ano depois que tivessem experiência de mim, o rei e a gente nobre e toda a outra gente de distinção se fariam cristãos, dizendo que eles não são gente que se regem sem razão (XAVIER, 2006, p. 317).

Certo é que, no momento em que escrevia a carta, Xavier já tinha fixo em seus planos uma ida ao Japão, sua ou de outro jesuíta. Ainda escreveu: “Parece-me, pelo que vou sentindo dentro em minha alma, que eu ou algum da Companhia, antes de dois anos, iremos ao Japão” (XAVIER, 2006, p. 317-318). Ao ler essa pequena afirmação, podemos entender os planos que eram feitos pelo missionário, os quais, sabemos, não demoraram a se solidificar como realidade.

Costa (2004) afirma que as informações recebidas sobre o Japão fizeram despertar em Xavier uma euforia por aquele lugar e pelas possibilidades de conversão e salvação de almas que ali se vislumbrava. As características do lugar e das pessoas de que recebeu notícia formavam na mente do missionário a imagem de um local promissor, onde se poderia fazer “muito fruto”.

[...] pode-se afirmar que as informações que Xavier recebeu a respeito do Japão e dos japoneses despertaram nele uma euforia que não somente tocou sua alma de missionário, mas também, e principalmente, sua inteligência. Os japoneses seriam pessoas racionais, que julgariam com sabedoria qual religião seria a verdadeira – se a dos bonzos, que eram os sacerdotes do budismo e do xintoísmo, ou a dos padres cristãos; teriam uma universidade na qual os sacerdotes eram formados, mais ou menos à moda das universidades ocidentais; teriam um Rei que mandava no país todo, tal qual os reis ocidentais (COSTA, 2004, p. 172).

Vemos assim que os relatos a respeito do Japão muito animaram Xavier a respeito da possibilidade de ir até lá. Além disso, Costa (2004) nos mostra que, a essas promissoras informações recebidas sobre as terras japonesas se somou um lento e paulatino desânimo que o missionário desenvolveu com os anos de missões na Índia. Costa aponta que ele teria se abatido muito, principalmente com o sincretismo ritual que os cristãos da Índia praticavam, em consonância com a religião dos brâmanes.

Segundo o mesmo autor, Xavier se decepcionou muito com algo que já era objeto de queixas desde as cartas dos primeiros padres das missões indianas: os maus costumes e exemplos que os próprios portugueses davam como cristãos na Índia. Ele constatou que capitães, comandantes e gente de autoridade portuguesa não se portavam como cristãos naquelas paragens, além de não agirem com os gentios da maneira que o missionário considerava realmente cristã.

O padre, aos poucos, tomou ciência de que, ao contrário de influenciarem positivamente os nativos no sentido de que adotassem a fé cristã, “muitos dos ‘péssimos’ costumes daqueles povos, como o concubinato, tinham sido absorvidos pelos portugueses”, e que, “pela riqueza adquirida, muitos deles viviam com todo o conforto, fazendo de muitos gentios escravos domésticos” (COSTA, 2004, p. 171). Costa destaca a informação de que Xavier chegou, por tais motivos, a advertir o próprio rei d. João III a respeito daquilo que considerava um mau andamento das missões da Índia.

Frente a tudo isso, em janeiro de 1548, chegou a Cochim e iniciou uma jornada para passar novamente nas missões. As viagens em retorno às missões já feitas duraram até 1549, quando partiu para o Japão com Anjirô, em 24 de julho, chegando a Kagoshima 22 dias depois.

O apostolado de Xavier no Japão diferiu bastante das situações experimentadas por ele nos tempos de missão na Índia. A cultura encontrada no Japão exigiu do missionário formas de adaptação maiores do que aquelas usadas na Índia. Além disso, a pregação e a catequese demandaram, para além da explicação da religião por fé e por emoção, a inserção de métodos racionais, de ciência propriamente dita. Não obstante, o Estado Português da Índia não se fazia presente no Japão. Dessa forma, o poderio militar da Coroa Portuguesa também não se fazia presente para proteger o missionário, ou mesmo para exigir – como era feito em Goa desde 1540 (TAVARES, 2004) – o culto cristão, proibindo os cultos locais. Nessas condições, impossibilitado de impor sua religião, o missionário jesuíta necessitava com mais premência modular e adaptar sua pregação aos costumes e à realidade local.

Muitas das expectativas que o missionário havia construído com base nos relatos que ouviu sobre o Japão seriam frustradas. Entre elas, estava a existência de um rei com poder absoluto, o que, com o passar do tempo, ele percebeu não existir no Japão. As informações a respeito das universidades de formação dos sacerdotes japoneses também se mostraram inconsistentes, além do que a suposta racionalidade da religião dos bonzos se mostrou não tão sólida (COSTA, 2004).

Na verdade, em sua missão no Japão, acabou se dando conta de que a cultura e a religião daquele povo eram influenciadas por outra, vinda de um império maior e mais sólido: a China. Ele percebeu aos poucos que as informações que recebeu estavam, de certa forma, distorcidas. Costa resume o quadro da seguinte forma:

As informações que [Xavier] tinha antes da chegada foram, aos poucos, se desfazendo. A religião dos bonzos era muito forte, impregnada na vida do povo, mas pouco racional; a universidade, tal qual imaginou, não existia, pois as verdadeiras e ocultas bases racionais da religião e da cultura daquele povo vinha da China, um império maior, mais forte, mais rico e mais fechado que o japonês; o Rei, à maneira clássica feudal ocidental, não tinha poder nenhum, não havendo uma corte real sólida e centralizada (COSTA, 2004, p. 173).

Tais constatações fizeram com que o missionário mudasse o foco inicial de sua estratégia. Não havia um rei com tanta autoridade que, convertido, influenciasse seu povo. Então, o objetivo deveria ser o próprio povo e os líderes locais. Nesse sentido é que o missionário traçou as estratégias para aproximação e conversão dos japoneses. Sobre suas primeiras impressões a respeito do Japão, escreveu uma carta aos jesuítas de Goa, em 5 de novembro de 1549. Ainda sem total conhecimento a respeito do lugar, devido ao pouco tempo que lá estava, o missionário já reconhecia que o local seria, a seu ver, frutuoso para fé. Além disso, apontou qual seria o primeiro e principal instrumento para o sucesso de seu trabalho, ou seja, o domínio da língua japonesa.

Uma coisa vos faço saber para que deis muitas graças a Deus Nosso Senhor: que esta ilha do Japão está muito disposta para nela se acrescentar muito a nossa santa fé. Se nós soubéssemos falar a língua, não ponho dúvida nenhuma em crer que se fariam muitos cristãos. Provera a Deus Nosso Senhor que a aprendêssemos em breve, porque já começámos a gostar dela e declarámos os dez mandamentos em quarenta dias que nos demos a aprendê-la (XAVIER, 2006, p. 513).

Mais à frente, reiterou a necessidade de aprender e usar o idioma local, dando como exemplo a conversão da família de Anjirô, ou, como fora batizado, Paulo de Santa Fé:

Crede uma coisa e dela dai graças a Deus: que se abre caminho para onde os vossos desejos se podem executar. Se nós soubéssemos falar, já teríamos feito muito fruto. Deu-se Paulo tanta pressa com muitos dos seus parentes e amigos, pregando-lhes de dia e de noite, que foi causa de sua mãe, mulher e filha e muitos dos seus parentes, assim homens como mulheres, e amigos, se fazerem cristãos. Cá não estranham, até agora, o fazer-se cristãos e, como grande parte deles sabem ler e escrever, depressa aprendem as orações.

Prouvera a Deus Nosso Senhor dar-nos línguas [tradutores] para podermos falar das coisas de Deus, porque então faríamos muito fruto com a sua ajuda e graça e favor. Agora estamos como estátuas entre eles, vendo-os falar e conversar de nós muitas coisas, e nós, por não entender a sua língua, calamo-nos (XAVIER, 2006, p. 522)

É interessante perceber e pensar na angústia de Xavier ao desejar falar, comunicar a fé e o cristianismo, mas sentindo-se, como ele próprio relata, “uma estátua”, ainda impotente diante da situação. Como visto desde sua estada e missão na Índia, o domínio da língua local seria primordial para a missão no Japão.

Além do domínio da língua, com o passar do tempo, chegou à conclusão de que, para essa cultura particular, seria necessário aliar explicações mais racionais e científicas aos conteúdos cristãos. No Japão, para sucesso da missão e para atrair a atenção e o respeito das pessoas, os jesuítas teriam de ser mais do que catequistas. Teriam de ser sábios, doutores (COSTA, 2004). Tanto é que, quando escreveu a Inácio de Loiola em 9 de abril de 1552 (XAVIER, 2006, p. 646-652), momento em que pediu missionários para o Japão, abandonou a tese com a qual pedia missionários para a Índia. Diversas vezes, ao pedir missionários para as terras indianas, salientava que não seriam necessários homens de muitas letras, o que, agora, tornava-se mais necessário.

Os jesuítas a serem enviados para o Japão deveriam ser letrados, ensinados e capazes de resistir a dificuldades climáticas, privações alimentares, perigos com ladrões e salteadores. O mais importante: deveriam ser capazes de responder às diversas perguntas constantemente feitas pelos japoneses e discutir à altura com os sacerdotes locais, os bonzos. Assim, o próprio Xavier descreveu a Loiola o perfil dos missionários jesuítas necessários ao Japão:

Pela experiência que tenho do Japão, aos Padres que hão-de ir para lá frutificar nas almas, principalmente os que hão-de ir às Universidades, são-lhes necessárias duas coisas: a primeira, que tenham sido muito provados e perseguidos no mundo e [tenham] muitas experiências e grande conhecimento interior de si mesmos, porque hão-de ser mais perseguidos no Japão do que nunca porventura o foram na Europa. É terra fria e de pouca roupa. Não dormem em camas, porque não as há. É estéril de mantimentos. [...]

Também é necessário que tenham letras, para responder às muitas perguntas que fazem os japoneses. Seria bom que fossem bons artistas;3 e não perderiam nada que fossem sofistas4 para, nas disputas, apanhar os japoneses em contradição; que soubessem alguma coisa da esfera, porque folgam em grande maneira os japoneses em saber os movimentos do céu, os eclipses do sol, [o] minguar e crescer a lua, como se gera a água da chuva, a neve e o granizo, os trovões e relâmpagos, os cometas e outras coisas assim naturais. Muito aproveita a explicação destas coisas para ganhar a vontade do povo. Esta informação sobre a gente do Japão me pareceu ser coisa conveniente a escrever a Vossa Santa Caridade, para que esteja ao cabo das virtudes que hão-de ter os Padres que para lá hão-de ir (XAVIER, 2006, p. 648-649).

Além das qualificações necessárias aos novos missionários que Xavier pediu a Inácio de Loiola, houve outras mudanças de comportamento do missionário na sua missão japonesa. Foram necessárias, segundo Costa (2004), uma inculturação dos jesuítas nos costumes japoneses e mudanças de hábitos do próprio Xavier, visto que a insistência ou relutância em alterar alguns hábitos poderia ser causa de fracasso na pregação.

Uma das transformações significativas foi quanto à postura de humildade carregada por ele e pelos jesuítas em geral. Xavier percebeu que a humildade exacerbada no Japão era própria das pessoas mais pobres, daqueles que não mereciam o respeito da sociedade. As pessoas de destaque, ricos ou sábios, portavam-se com certa altivez e orgulho, o que foi logo incorporado à sua forma de apresentar- -se àquela sociedade. “Na visão de Xavier e dos outros, essa postura, aparentemente contraditória com as virtudes evangélicas, facilitava o caminho das conversões, que era o objetivo deles” (COSTA, 2004, p. 176).

Foi adotada, assim, a postura mais altiva e orgulhosa, usada por ele e pelos missionários a fim de mostrar sua importância, bem como o merecimento de atenção e respeito das pessoas. Essa nova postura interna não condizia com a aparência externa de Xavier e dos missionários. Percebeu-se ainda que as túnicas que os jesuítas usavam, feitas de linhão preto, eram também próprias dos mais pobres daquelas terras. Vestidos daquela forma, os missionários jamais ganhariam o respeito que pretendiam. O modo humilde de Xavier trajar, nessa situação, longe de potencializar o respeito daquela sociedade, o colocava ainda mais distante dele. Com grande polêmica na Igreja e mesmo entre os jesuítas, decidiu adotar a seda como tecido das túnicas usadas pelos inacianos no Japão (COSTA, 2004).

O uso da seda no vestuário dos jesuítas combinado ao padrão mais altivo de comportamento trouxe resultados positivos ao trabalho missionário no Japão, pois, dessa forma, os padres se aproximavam daquilo que os japoneses consideravam o padrão de comportamento de sábios e eruditos, passando os nativos a darem mais importância aos jesuítas e aos seus ensinos. Assim, lemos novamente em Costa (2004, p. 176) que, “[a]o usarem os hábitos de seda e se comportarem com altivez, os jesuítas, liderados por seu Provincial para todo o Oriente, notaram que adquiriram mais respeito das pessoas e conseguiram abreviar a difícil tarefa das conversões”.

Xavier passou pouco mais de dois anos no Japão, entre agosto de 1549 e novembro de 1551 (ETAPAS, 2002). Observamos que foi um período muito produtivo para o missionário, apesar das desilusões mencionadas; período no qual muito se entusiasmou por conhecer e pregar aos japoneses e ter contato com a cultura que os influenciava, ou seja, a chinesa.

DE VOLTA À ÍNDIA E O DESEJO DE IR À CHINA: PLANEJAMENTOS E FRUSTRAÇÕES

Em 27 de dezembro de 1551, Xavier chegou a Malaca, onde recebeu, oficialmente, o cargo de Superior Provincial dos jesuítas no Oriente. Em 30 de dezembro do mesmo ano embarcou com destino à Índia, fazendo escala na cidade de Cochim, em fins de janeiro de 1552. Lá, encontrou-se com o novo governador da Índia, d. Afonso de Noronha, obtendo dele o apoio para levar uma embaixada portuguesa à China. Chegou a Goa em meados de fevereiro de 1552 (ETAPAS, 2002).

Em carta a d. João III, em 8 de abril de 1552, escreveu sobre a expedição à China, que já estava organizada para partir, dizendo ao rei que “[...] estava determinado a ir à China, pela muita disposição, que me dizem todos, que há naquelas partes para acrescentar-se nossa santa fé” (XAVIER, 2006, p. 642).

Com essa intenção, partiu de Goa com a embaixada em 17 de abril de 1552, chegando a Malaca em 31 de maio. A expedição da embaixada à China estava autorizada pelo vice-rei e pelo bispo de Goa, tendo todas as prerrogativas civis e religiosas necessárias para ser realizada. No entanto, não se sabe exatamente o motivo, foi impedida pelo capitão-mor da fortaleza de Malaca, d. Álvaro de Ataíde.

Como capitão-mor do mar, d. Álvaro tinha jurisdição sobre o porto e a marinha e, de posse dessa autoridade, aprisionou a nau Santa Cruz, de Diogo Pereira, no porto de Malaca, impedindo sua partida à China (XAVIER, 2006, p. 709).

Xavier apelou para sua autoridade como Núncio Apostólico, não obtendo sucesso. Em documento (“Libelo Suplicatório”) ao padre João Soares, vigário de Malaca, em junho de 1552 (XAVIER, 2006, p. 708), Xavier apontou todas as autoridades que d. Álvaro estava negligenciando e às quais estava se opondo. No documento, mostrou que o capitão opunha-se à autoridade de um prelado religioso com jurisdição espiritual sobre todo o Oriente, ou seja, o bispo de Goa. Ainda na esfera religiosa, impedia o livre exercício de Xavier, Núncio Apostólico, oposição que, segundo lembra no documento, poderia gerar sua excomunhão. Opunha-se, ademais, à superior autoridade civil portuguesa no Oriente, representante do poder real, o vice-rei.

Mesmo fundamentando todo o documento e usando de todos os argumentos possíveis, não conseguiu desembargar a embaixada à China. O missionário resolveu, mesmo sem a embaixada, seguir para lá. Assim, em 17 de julho, parte de Malaca rumo à China, acompanhado pelo irmão Álvaro Ferreira, o intérprete chinês António China e Cristóvão, um criado indiano (ETAPAS, 2002).

Em fins de agosto, chegou a Sanchão, onde esperava encontrar algum mercador que o levasse até Cantão, na província chinesa de Kwangtung. Após algumas tentativas frustradas de negociação para tal fim, Xavier encontrou um comerciante chinês que concordou em levá-lo clandestinamente em sua embarcação (ETAPAS, 2002). Sobre isso, escreveu em sua carta à Malaca, ao padre Francisco Pérez, em 22 de outubro de 1552:

Este porto de Sanchão está a trinta léguas de Cantão. Acodem muitos mercadores da cidade de Cantão a este Sanchão, a fazer fazenda com os portugueses. [Trataram diligentemente com eles os portugueses] para ver se algum mercador de Cantão me queria levar. Todos se escusaram, dizendo que punham suas vidas e fazendas em grande risco, se o governador de Cantão soubesse que me levavam. Por esta causa, por nenhum preço me queriam levar em seus navios a Cantão.

Aprouve a Deus Nosso Senhor que se oferecesse um homem honrado, morador de Cantão, a me levar, por 200 cruzados, em uma embarcação pequena onde não houvesse outros marinheiros senão seus filhos e moços, para não vir a saber o governador de Cantão, pelos marinheiros, qual era o mercador que me levava. E [a] mais se ofereceu: de me meter em sua casa escondido três ou quatro dias e, daí, pôr-me um dia ante-manhã à porta da cidade, com meus livros e outro fatinho, para daí ir logo a casa do governador e dizer-lhe como vínhamos para irmos onde está o rei da China, mostrando a carta, que do Senhor Bispo levamos, para o rei da China, declarando-lhe como somos mandados de Sua Alteza para declarar a lei de Deus (XAVIER, 2006, p. 737-738).

Nem tudo, entretanto, era tão simples como sugere o trecho acima, pois incorreria em perigo ao entrar sem autorização prévia em solo chinês. Também corria grande perigo, como mostrado no relato acima, o comerciante que, clandestinamente, introduzisse um estrangeiro na China, o que justifica a negativa de tantos outros mercadores. Xavier esperou algum tempo pelo mercador chinês, que não apareceu para realizar o combinado. Em cartas, declarou repetidamente o grande desejo de ir à China, mesmo que para isso fosse necessário entrar por Sião, ou ainda ser cativo.

Ele continuou no Sanchão rezando missas e fazendo trabalhos pastorais até novembro de 1552, quando, no dia 21, perdeu os sentidos após uma missa. Permaneceu doente, com febres e delírios, até o dia 25. Passou bem até o dia 27, mas ao 28 perdeu totalmente a fala e o conhecimento, não podendo sequer comer. Em 1º de dezembro recuperou a fala e o conhecimento. No dia 3 de dezembro de 1552, às duas da madrugada, morreu ao lado de seu criado Cristóvão e de António China, sem ter concluído seu intento de ir à China (ETAPAS, 2002).

CONCLUSÃO

Evidentemente, muitos fatos relevantes das missões da Companhia de Jesus na Índia e mesmo da vida de Francisco Xavier não foram aqui descritos e analisados. O recorte que fazemos e ora apresentamos tem como objetivo nos situar a respeito de formas, maneiras e estratégias de trabalho desse missionário. O objetivo deste texto foi pontuar as experiências da primeira missão jesuítica do além-mar, que foi a presença e a permanência nas missões do Padroado Português do Oriente.

Acreditamos que aquilo que nesse período foi posto em prática por Xavier foi, consequentemente, acompanhado por seus seguidores e lido e praticado por outros tantos membros da Companhia de Jesus em outras missões. Portanto, analisar a vida e as realizações de Xavier foi, de certa forma, uma forma de analisar a gênese do pensamento, do trabalho e do agir jesuítico. Além disso, tal exercício é um modo de pensar como, na expansão portuguesa do século XVI, houve a intenção e a tentativa de utilização do cristianismo como elemento aglutinador, como conformador social. Tal esforço visava fazer povos conquistados se sentirem parte do “Império português”, súditos do rei de Portugal, servos do Deus dos cristãos. A Companhia de Jesus, nesse contexto, teve importante papel e participação.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
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XAVIER, São Francisco. Obras completas. Tradução de Francisco de Sales Baptista, S. J. São Paulo: Edições Loyola; Braga: Editorial A.O., 2006.
Notas
Notas
1 O Padroado Real Português pode ser vagamente definido como uma combinação de direitos, privilégios e deveres concedidos pelo papado à Coroa Portuguesa, como patrono das missões católicas e instituições eclesiásticas na África, na Ásia e no Brasil (BOXER, 2013, p. 99).
2 Pedro Fabro, Alfonso Salmerón, Diego Laynez, Nicolau de Bobadilla e Simão Rodrigues.
3 O organizador da coletânea que ora utilizamos, padre Francisco de Sales Baptista, explica em nota que, aqui, o termo “artista” refere-se a filósofos, pois a formação universitária em filosofia, à época, chamava-se Artes (XAVIER, 2006, p. 581, nota).
4 Baptista explica também a utilização do termo “sofistas”, que aqui significa “bons dialéticos”, ou seja, padres que, numa discussão, pudessem colocar os sacerdotes bonzos em contradição com suas próprias afirmações (XAVIER, 2006, p. 581, nota).
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