Resumo: Neste artigo, parte-se de um levantamento de abordagens sobre a escravidão atlântica com vistas a avaliar a pertinência da história global para o tratamento de determinadas temáticas. Em primeiro lugar, realiza-se um balanço historiográfico rastreando-se trabalhos e abordagens passadas e presentes sobre o tema, produzidos no âmbito da história comparada e, mais recente e explicitamente, da história global, cujas contribuições fornecem subsídios importantes para o campo de nosso interesse. Em seguida, apresentam-se algumas considerações teóricas e metodológicas para fundamentar a construção de uma agenda de pesquisa para a história global que tenha como cerne de suas preocupações a multiplicidade temporal da escravidão atlântica em suas relações com a dinâmica do capitalismo histórico.
Palavras-chave:História globalHistória global,Escravidão atlânticaEscravidão atlântica,HistoriografiaHistoriografia.
Abstract: In this article, we start with a survey of the approaches on Atlantic slavery, aiming to assess the relevance of global history when dealing with specific themes. Firstly, a historiographical balance is presented, tracing past and present approaches on the theme produced within the framework of compared history and, more recently and explicitly, of global history, whose contributions provide important subsidies for our field of interest. Next, some theoretical and methodological considerations are presented to support the construction of an agenda of research that has as its core concern the temporal multiplicity of Atlantic slavery in its relation with the dynamics of capitalism.
Keywords: Global history, Atlantic slavery, Historiography.
Dossiê "Virada global: tensões, limites e desafios"
A história global da escravidão atlântica: balanço e perspectivas
The global history of Atlantic slavery: evaluation and perspectives

Recepção: 20 Setembro 2018
Aprovação: 10 Dezembro 2018
A discussão atual sobre a história global procura responder, em grande parte, ao distanciamento entre as demandas do tempo presente e a maneira como as experiências humanas vêm sendo narradas, descritas e interpretadas pelas correntes historiográficas dominantes. A reordenação geopolítica e econômica que se seguiu ao término da Guerra Fria, as lutas emancipatórias de diferentes grupos ao redor do planeta, a revolução nas formas de comunicação trazida pela disseminação da internet, a magnitude das crises recentes do capitalismo mundial, os fluxos internacionais de trabalho e de capital e a correspondente tensão entre a abertura e o fechamento de fronteiras são fatores que pressionam para a construção de uma abordagem historiográfica mais abrangente.
Mas essa abrangência não pode ser apenas geográfica ou mascarar conflitos e contradições, sob o risco de se equiparar à já puída ideologia da globalização. Faz--se necessário construir uma perspectiva que seja capaz de contemplar diferentes dimensões temporais e espaciais, variando escalas de observação, articulando estruturas e eventos e evitando, ao mesmo tempo, o etnocentrismo e determinismos de ordens variadas. A questão é como fazer isso sem recair no problema de outras “viradas historiográficas” que surgiram como grandes novidades e acabaram reafirmando sem maiores acréscimos pressupostos, narrativas e conclusões já bem conhecidos. Em resumo, precisamos de mais do que uma bela carta de intenções.1
Há duas dificuldades básicas a serem superadas. A primeira diz respeito ao fracasso reputado a empreendimentos anteriores de ímpeto semelhante (como a história universal ou a world history) em dar conta da multiplicidade de perspectivas, fenômenos e arranjos históricos. A demanda pelo rompimento com o nacionalismo metodológico é antiga. No entanto, os trabalhos realizados com esse fim no passado não foram, em seu conjunto, plenamente satisfatórios quanto ao seu real alcance.2 Por isso, parte da desconfiança em torno da história global provém do fato de ela parecer, aos olhos de muitos observadores, um rótulo novo para um perfume velho.
A segunda dificuldade se reporta à existência de definições divergentes a respeito do que seria, efetivamente, a história global. A historiadora mexicana Sandra Kuntz (2014) fez um extenso levantamento de obras historiográficas e de ciências sociais publicadas entre a década de 1960 e o começo do século XXI contendo a palavra “global” no título.3 Ela encontrou seis acepções: história global como uma história mundial onicompreensiva (história do mundo todo em um determinado período); como uma perspectiva mundial (compilações de dados e informações diversas em escala mundial); como estudos sobre o fenômeno da globalização propriamente dita, abordando temas transnacionais (redes, processos, crenças e instituições que transcendem os Estados nacionais); como contexto global (dimensão global como pano de fundo, não como foco central); e como análise de um “mundo” analiticamente construído. O historiador alemão Sebastian Conrad (2016), por seu turno, e no que pode ser considerado como a melhor síntese disponível sobre as práticas correntes da história global, destaca três variantes ou paradigmas: a mesma história do mundo todo em um determinado período; história das conexões; e uma história baseada em um conceito de integração.
Um caminho possível para evitar o problema que afetou outros historiographic turns, superar as dificuldades específicas da história global e, efetivamente, sustentá-la como uma resposta possível à crise de representação mencionada é conferir coesão teórica e metodológica ao campo. Nesses termos, ganham força as últimas acepções identificadas e adotadas por Kuntz e Conrad, que dizem respeito a um determinado nexo histórico de escala abrangente. Kuntz localiza a raiz epistemológica dessa formulação na diferenciação braudeliana entre economia mundial – a soma de todas as práticas econômicas do mundo – e economia-mundo – “um fragmento do universo, um pedaço do planeta economicamente autônomo, capaz, no essencial, de bastar-se a si próprio e ao qual suas ligações e trocas internas conferem certa unidade orgânica” (BRAUDEL, 1996, v. 3, p. 12).
Mais do que assinalar o elemento econômico da equação braudeliana, o importante a se ressaltar aqui é o enfoque que pressupõe uma articulação entre diferentes regiões do planeta e que, mesmo não correspondendo à totalidade do globo, nem à totalidade das práticas, nem à totalidade dos tempos, encerra em si uma totalidade no sentido de um todo integrado. Esse tipo de concepção dá lugar a muita confusão quanto a um possível “enrijecimento” analítico resultante da presunção da determinação das partes pelo todo. Conferir um caráter aberto à noção de totalidade permite driblar esse risco. Henri Lefebvre (1955) forneceu há bastante tempo um caminho possível ao contrastar as chamadas totalidades fechadas (conceituadas como acabadas, absolutas, imutáveis) com as totalidades abertas (que pressupõem contradições e movimentos, podendo ganhar contínuos acréscimos analíticos e envolver outras totalidades igualmente abertas). A promessa da história global – eis meu argumento – reside no estudo de totalidades abertas, isto é, de fragmentos do globo integrados por meio de laços diversos (econômicos, sociais, políticos, culturais) que assumem uma dada configuração dinâmica e sistêmica.
Neste artigo, a história global será abordada a partir do campo de possibilidades que se descortina em torno de uma dessas totalidades abertas: a escravidão atlântica, isto é, os sistemas de exploração do trabalho escravo africano que foram implantados pelos europeus no Novo Mundo. Em primeiro lugar, realizarei um balanço historiográfico rastreando trabalhos e abordagens passadas e presentes sobre o tema, produzidos nos ramos da história comparada e, mais recente e explicitamente, da história global, cujas contribuições fornecem subsídios importantes para o campo de nosso interesse. Em seguida, apresentarei algumas considerações para fundamentar a construção de uma agenda de pesquisa para a história global que tenha como cerne de suas preocupações a multiplicidade temporal da escravidão atlântica em suas relações com a dinâmica do capitalismo histórico.
Como filha do movimento abolicionista anglo-saxão e francês da virada do século XVIII para o XIX, a historiografia sobre a escravidão moderna foi marcada desde seu nascimento por uma perspectiva claramente internacionalista. Na medida em que a reprodução da instituição que combatiam operava na escala transnacional dos fluxos negreiros africanos e deitava raízes no mundo clássico, os abolicionistas cedo aprenderam que sua luta demandaria um mergulho na história e um combate para além das fronteiras imperiais que lhes eram contemporâneas. Daí a importância de comparar as particularidades históricas da escravidão em unidades políticas distintas ao longo do tempo. Em 1785, por exemplo, Thomas Clarkson ganhou um prêmio na Universidade de Cambridge ao escrever um tratado em cuja primeira parte historiava as transformações ocorridas na instituição do mundo antigo para o mundo moderno, enquanto, na segunda parte, comparava a escravidão africana em várias colônias europeias do Novo Mundo, procurando demonstrar, com sua obra, como a marcha do progresso humano exigia a abolição da escravidão.4 A tal modelo se filiaram as duas primeiras histórias da escravidão produzidas no Brasil. Publicado no contexto dos debates que dariam origem à Lei do Ventre Livre, o livro de Perdigão Malheiro (1976) continha comparações sistemáticas da escravidão brasileira no tempo e no espaço com o objetivo de depreender das experiências passadas e coevas os meios pelos quais seria possível encaminhar politicamente o fim da escravidão no Império do Brasil. Do mesmo modo, a obra máxima do movimento abolicionista brasileiro, a de Joaquim Nabuco (1999), foi travejada a cada passo por uma mirada histórica transnacional como método para identificar a especificidade do problema da escravidão no Brasil.5
Contudo, ao se profissionalizarem no século XX, as historiografias nacionais tenderam a abandonar a perspectiva comparativa que inspirara os militantes políticos antiescravistas na centúria anterior. O caso mais significativo dessa inflexão talvez resida nos Estados Unidos. A comparação histórica – notadamente com o Império do Brasil e com o Caribe britânico – fora um aspecto central da produção intelectual do abolicionismo nos estados do Norte (AZEVEDO, 2003; RUGEMER, 2009; SKIDMORE II, 2018). A derrota da Reconstrução Radical, em 1877, e a consolidação da segregação institucionalizada nos estados do Sul, no final do século XIX, impulsionaram não somente a reversão da mirada internacionalista anterior, como também deram ensejo ao aparecimento de uma interpretação profundamente racista do passado escravista norte-americano. A escravidão negra passou a ser conceituada como uma “instituição peculiar” do Sul, afastada das linhas mestras da formação da nacionalidade norte--americana.6 A despeito de a conjuntura pós-Segunda Guerra Mundial e de o nascimento em escala nacional do movimento pelos direitos civis terem levado à erosão da escola de interpretação criada pelo historiador Ulrich Bonnell Phillips, os pressupostos do nacionalismo metodológico persistiram até bem entrada a segunda metade do século XX. Basta lembrarmos do próprio título do principal responsável pela demolição definitiva da historiografia racista que predominara na primeira metade do século XX, o livro chave de Kenneth Stampp, The peculiar institution: slavery in the Antebellum South, publicado em 1956.7
Enquanto, nos Estados Unidos, a historiografia da escravidão permanecia presa a uma visão paroquial e nacionalista do fenômeno – e, até meados da década de 1950, abertamente racista –, nas periferias do Novo Mundo produziam-se inovações de peso. Como ressaltaram em diferentes ocasiões Reinhart Koselleck (2014, p. 63-72) e Emília Viotti da Costa (1990, p. 38-45), com frequência a posição de derrotado ou a situação periférica levam o historiador a mirar de forma inovadora o passado. C.L.R. James (2000), ao estudar a revolução escrava de São Domingos em suas múltiplas e contraditórias interfaces com a Revolução Francesa, e Eric Williams (2012), ao investigar as relações também contraditórias entre o complexo escravista atlântico e a ascensão do capital industrial na Inglaterra, jogaram luz de forma pioneira sobre o papel decisivo que a escravidão negra nas Américas desempenhou na gênese do mundo moderno. Assim procedendo, esses dois historiadores negros de Trinidad e Tobago, bebendo no materialismo histórico, abriram caminho não apenas para entender o problema do desenvolvimento desigual na esfera do capitalismo global, mas, igualmente, para compreender como processos históricos desenrolados em diferentes partes do espaço atlântico constituíram uma unidade orgânica, com eventos do Velho Mundo (Europa e Ásia) e do Novo Mundo (Américas) condicionando-se em um jogo de determinações recíprocas.
Paralelamente, sem saberem das obras caribenhas de James e Williams, Gilberto Freyre (1963) e Caio Prado Jr. (1978) lançavam as bases para uma interpretação nova, cosmopolita e comparada do passado escravista brasileiro. Freyre o fez retomando o padrão de cotejamento elaborado no século XIX pelos abolicionistas norte-americanos e pelos defensores da escravidão no Brasil, que contrastaram o caráter aberto da escravidão brasileira ao caráter fechado da escravidão anglo-saxã. Caio Prado Jr., por seu turno, chamou a atenção para o padrão econômico comum de todas as zonas tropicais escravistas do Novo Mundo, apreendidas a partir da categoria de “colônias de exploração”, em um esquema analítico bastante próximo ao proposto por James e Williams e que encontraria desdobramentos de fundo nas formulações posteriores do pensamento econômico cepalino e da teoria da dependência.
Williams e Freyre foram referências centrais para o que é tomado por muitos especialistas como a primeira obra acadêmica explicitamente comparada no campo da escravidão negra nas Américas: o pequeno, porém inovador livro de Frank Tannenbaum, Slave and citizen, de 1946. De Eric Williams, Tannenbaum retirou o argumento relativo ao caráter capitalista da escravidão anglo-saxã; de Gilberto Freyre, a percepção de que a escravidão ibérica teria um caráter aberto no que se refere às maiores possibilidades de os escravos obterem a alforria e se inscreverem positivamente nas hierarquias sociais do mundo dos livres. Para além dessas duas apropriações, destacava-se em Tannenbaum o esforço de apreensão conjunta dos sistemas escravistas do Novo Mundo, assim estabelecendo o terreno em que doravante se daria a discussão em perspectiva comparada sobre a escravidão atlântica e, de certo modo, também a escravidão antiga.8
A contraposição proposta por Tannenbaum entre o sistema escravista ibérico e o anglo-saxão foi importante para Stanley Elkins (1959) questionar, ao lado de Kenneth Stampp, os fundamentos da interpretação racista de Ulrich Phillips sobre o caráter pré-capitalista da escravidão norte-americana. Elkins, no entanto, continuou preso ao nacionalismo metodólogico que informara a historiografia norte-americana desde o final do século XIX.
No campo da história comparada, a reação ao modelo de Tannenbaum tomou de empréstimo, novamente, a contribuição da periferia. David Brion Davis (1988, p. 223-261), em seu livro sobre o problema da escravidão na cultura ocidental, afirmou que as distinções entre os sistemas escravistas americanos foram mais de grau do que qualidade; segundo ele, todas as experiências de escravização dos africanos promovidas pelos poderes coloniais europeus nas Américas teriam tido um denominador básico na violência, no racismo e nas restrições de acesso à liberdade. Já o antropólogo Sidney Mintz (1969) argumentou que, para além desse chão comum, as variações entre os sistemas escravistas se deveram às relações distintas, no tempo, que cada espaço escravista americano manteve com a economia mundial e seus respectivos poderes metropolitanos: o que, em um momento, fora um sistema elástico poderia se tornar, em outro, inelástico. Tanto Davis como Mintz se valeram, para reavaliar a contraposição de Tannenbaum, de uma poderosa historiografia brasileira de inspiração marxista e sociológica – inspirada na obra anterior de Eric Williams – que criticara duramente Gilberto Freyre.9
Na passagem da década de 1960 para a de 1970, houve um salto qualitativo no debate dentro do campo do marxismo. Eugene Genovese (1983; 1979) apresentou um ambicioso programa de história comparada da escravidão nas Américas que abarcou da formação das classes senhoriais à resistência dos trabalhadores escravizados. No caso específico do primeiro tema, o modelo proposto por Genovese ressaltou, por um lado, o peso do passado nacional de cada um dos poderes coloniais europeus na determinação do caráter burguês ou senhorial das classes proprietárias de escravos de regiões específicas do Novo Mundo e, por outro, os contextos sociais e econômicos imediatos em que esses senhores operaram (taxas de absenteísmo, formação da população escrava, gêneros produzidos, articulações comerciais). Submetidas aos ditames do capital mercantil, porém explorando uma mão de obra que constituía a antítese do modo de produção capitalista – necessariamente fundado no trabalho assalariado –, as classes senhoriais americanas teriam, segundo Genovese, vivido sob um regime de dualidade integrada, na qual a face interior e arcaica da escravidão negra se integrou, via mercado mundial, à face exterior e moderna do capitalismo global (GENOVESE; FOX-GENOVESE, 1983).
Tal elaboração teórica encontraria um desdobramento mais completo na obra dos historiadores brasileiros Ciro Flamarion Santana Cardoso (1973; 1979) e Jacob Gorender (2010), que, a partir de uma vasta mirada comparada, elaboraram o conceito de modo de produção escravista colonial. No ambiente historiográfico brasileiro, o contraponto a tal modelo foi apresentado por um seguidor próximo de Eric Williams, Fernando Novais, que combinou a perspectiva analítica do historiador caribenho sobre as relações contraditórias entre capitalismo e escravidão com as formulações dependentistas sobre as relações entre centro e periferia do sistema mundial (NOVAIS, 1979). No final da década de 1970, as antinomias desses dois modelos – o do modo de produção escravista colonial e o do antigo sistema colonial – foram criticadas por cientistas sociais brasileiros que apontaram a ausência de sentido em contrapor abstratamente as categorias da produção e da circulação. Ao invés de conceituar as relações entre escravidão (colonial) e capitalismo (metropolitano) como uma dualidade integrada via mercado mundial, essa alternativa crítica propunha analisar substantivamente os momentos distintos mas necessariamente articulados da produção e da circulação como uma “unidade contraditória” na qual colônia e metrópole obedeciam a uma mesma lógica de acumulação do capital (CARVALHO FRANCO, 1984; CASTRO, 1980; MARQUESE; SALLES, 2016, p. 102-103).
Essa historiografia de inspiração marxista das décadas de 1960 e 1970, que, malgrado suas divergências, teve no exame do problema das relações entre capitalismo e escravidão o cerne de suas preocupações, compartilhou alguns pontos em comum, notadamente a visão abrangente e hemisférica da instituição escravista. Em razão mesmo do objeto que investigaram – a escravidão africana nas colônias europeias do Novo Mundo –, muitos desses trabalhos romperam com o nacionalismo metodológico e enfatizaram a comparação e a integração de espaços apartados, dois dos aspectos que estão reconhecidamente no coração da proposta atual da história global.
Depois da década de 1970, contudo, houve um certo refluxo na prática da história comparada da escravidão negra nas Américas, em que pesem trabalhos pontuais que continuaram a ser publicados nos anos seguintes (KLEIN, 1988; KOLCHIN, 1987). Da mesma forma, o cosmopolitismo que marcara a obra de C.R.L. James e Eric Williams, autores capazes de examinar em um quadro integrado todos os poderes coloniais europeus que operaram no espaço caribenho,10 não foi seguido pela historiografia que tratou do problema da escravidão na era das revoluções. Com efeito, o amplo debate gerado pela segunda tese de Williams – a consolidação do capitalismo industrial como força impulsionadora crucial para o movimento antiescravista – passou a ser travado com as lentes voltadas exclusivamente para o universo anglo-saxão (ANSTEY, 1975; BENDER, 1992; DAVIS, 1999 [1975]; DRESCHER, 1977). No livro em que Seymour Drescher (1987) se esforçou para analisar o abolicionismo britânico em um contexto mais amplo, a mirada comparada foi muito pontual, empregada apenas para reforçar o caráter singular e normativo da trajetória da Grã-Bretanha. Ao examinar o crescimento econômico do Brasil e Cuba na primeira metade do século XIX, fundado no tráfico negreiro da era industrial e a contrapelo da pressão britânica, David Eltis (1987) acabou por tratar aqueles dois espaços como o papel em branco sobre o qual, no fim das contas, a Grã-Bretanha escrevera sua história. Seria necessário esperar o primeiro volume de Robin Blackburn, de 1988, para ver reatada a abordagem integrada das relações contraditórias entre escravidão e capitalismo nos universos francês e britânico, a marca de nascença do trabalho conjunto de Williams e James.11 Uma observação semelhante vale para a primeira tese de Williams, a de que foram os capitais gerados pelo sistema escravista atlântico que financiaram a Revolução Industrial: até o aparecimento do livro do economista nigeriano Joseph Inikori (2002), publicado já no século XXI, todo o debate girou em torno das relações entre as colônias britânicas e sua economia metropolitana.12
O relativo abandono das perspectivas comparadas, entretanto, não significou estagnação para a historiografia sobre a escravidão negra. Na década de 1970, ao mesmo tempo em que reforçava o nacionalismo metodológico, a historiografia norte-americana experimentou uma transformação quantitativa e qualitativa que a converteu no principal polo mundial de inovação teórica e metodológica nos estudos sobre a matéria. Primeiro, no campo da história econômica: o locus por excelência da revolução cliométrica, que estabeleceu os parâmetros básicos para a abordagem neoclássica do passado econômico das sociedades humanas e que ainda hoje é hegemônica na academia anglo-saxã (tendo lhe rendido inclusive um Prêmio Nobel de Economia em 1993), foi exatamente o estudo da escravidão oitocentista. Segundo, no campo da história social: a escrita da história vista da perspectiva escrava e praticada por meio de uma aliança estreita com a antropologia se enraizou primeiramente nos Estados Unidos, espalhando-se, de lá, para os outros quadrantes das Américas. Esse duplo movimento de renovação, no entanto, acabou por estimular – muito em razão de seu próprio sucesso – uma cisão crescente entre a história social e a história econômica nos estudos sobre a escravidão norte-americana, resguardadas por suas respectivas comunidades de praticantes como dois campos que caminhariam em linhas estritamente paralelas, jamais convergentes.13
O que se passou na academia estadunidense na década de 1970 teve, nas duas décadas seguintes, impacto direto sobre a academia brasileira, que então dava início ao arranque que a levaria a atingir sua pujança atual. Para além do hiato entre história social e econômica que acabo de assinalar, a aproximação crescente entre as agendas teóricas e metodológicas prevalecentes no meio norte-americano e no meio brasileiro produziu um segundo efeito sobre nossa historiografia, cujas origens, evidentemente, não se encontram apenas nesse movimento de convergência. Trata--se do abandono das perspectivas de análise abrangentes, fundado no argumento de que, sendo demasiado “estruturalistas”, olvidariam a capacidade volitiva do sujeito histórico subalterno, isto é, sua capacidade de moldar por conta própria seu destino. A cliometria poucos frutos rendeu no Brasil. A resposta prioritária da historiografia brasileira consistiu em mergulhar no exame denso dos sujeitos escravizados e de sua visão de mundo, construções culturais, estratégias familiares e padrões de resistência em estudos bastante circunscritos no tempo e no espaço. Nesse sentido, ao aporte da história social anglo-saxã somou-se a contribuição da micro-história italiana. No meio desse caminho, a compreensão da escravidão como uma relação social total, como um sistema histórico, acabou por ser abandonada, e o nacionalismo metodológico voltou a reinar.14
Em uma nova cisão, exatamente na década de 1970, algumas vozes na academia norte-americana estavam se levantando contra o paroquialismo embebido no nacionalismo metodológico prevalecente. Foi nesse terreno que ganhou força a proposta original da chamada “história atlântica”, com dois grandes polos irradiadores. O primeiro foi o Programa de História da África elaborado na Universidade de Wisconsin por Philip Curtin e Jan Vansina. Mirando o espaço atlântico a partir da África, essa foi a origem de obras referenciais – como a do próprio Curtin (1969) ou as de Joseph Miller (1987) e Paul Lovejoy (2002) – sobre a escravidão africana em suas interfaces com as demandas do Novo Mundo. O segundo foi o Programa em História e Cultura Atlântica que Jack Greene construiu e dirigiu na Universidade de Johns Hopkins com o propósito explícito de inscrever a história norte-americana em quadros de análise mais amplos, não nacionais (GREENE; MORGAN, 2008, p. 3). No âmbito deste segundo programa, foram elaborados trabalhos que marcaram fortemente o campo, como os dos antropólogos Richard Price e Sidney Mintz (PRICE, 1983; 1990; MINTZ, 1974; 1986; MINTZ; PRICE, 2003) e os dos historiadores Franklin Knight (1978), John Russell-Wood (2005; 2014) e Philip Morgan (1998).
Tanto o programa de Wisconsin como o de Johns Hopkins reconheceram, nas obras pretéritas de C.L.R. James e Eric Williams, um ponto de partida radical para o que implementaram institucionalmente ao longo da década de 1970. Quando, na primeira década do século XXI, alguns programas de pós-graduação no Brasil voltaram seus olhares para a história atlântica norte-americana como uma saída para o nacionalismo metodológico em que a historiografia da escravidão local havia se colocado, as afinidades eletivas pretéritas existentes entre os historiadores marxistas caribenhos e o pensamento social brasileiro de viés estrutural e cosmopolita passaram relativamente despercebidas.15 É nesta disjunção que se encontra a força do trabalho de Luiz Felipe de Alencastro (2000), de todo seu poder explicativo, que trouxe ao encontro da virada africanista e atlantista norte-americana as tradições anteriores do pensamento historiográfico e social brasileiro, fundadas em uma combinação particular de marxismo e Escola dos Annales.
Voltamos ao problema crucial das “viradas” nas ciências humanas, com o qual iniciei minha exposição. Não foi apenas no Brasil que se romperam os fios de poderosas tradições intelectuais pregressas. Veja-se a chamada “nova história do capitalismo e da escravidão” nos Estados Unidos, que tem adquirido notável ressonância nos últimos anos. Os livros que vêm sendo publicados sob essa ótica se destacam justamente pelo esforço de religar a história social à história econômica ao mesmo tempo em que levam seriamente em consideração os problemas colocados pela virada linguística e pela perspectiva pós-colonial (JOHNSON, 2013; BAPTIST, 2014; ROCKMAN, 2009; BECKERT; ROCKMAN, 2016). Com isso, os historiadores associados a tal vertente se inscrevem explicitamente nas trilhas abertas por James e Williams, reconhecendo-os como os “pais fundadores” da matéria. Todavia, salvo uma ou outra exceção – como os livros de Sven Beckert (2014) sobre a história global do algodão ou o de Daniel B. Rood (2017) sobre tecnologia e escravidão em Cuba e na Virginia –, os trabalhos até agora publicados se ressentem do mesmo procedimento que marcou as discussões sobre a primeira tese de Williams, a saber, o olhar voltado exclusivamente para o universo anglo-saxão – no caso, a trajetória nacional dos Estados Unidos. Observação semelhante vale para os trabalhos altamente meritórios que, ainda dentro dessa perspectiva, têm procurado inscrever a política escravista norte-americana nos quadros da geopolítica global do século XIX. Até agora, o exame tem sido feito por meio da análise da projeção do poder norte-americano sobre as demais unidades políticas atlânticas com as quais lidou, sem levar-se em consideração a natureza das respostas locais nem em que medida elas teriam modificado as diretrizes que emanavam dos Estados Unidos.16
Para escapar dos riscos da reiteração do nacionalismo metodológico embutidos em abordagens como a que acabei de mencionar, a historiografia sobre a escravidão atlântica tem abraçado com força crescente as promessas da história global. Dentro de uma pluralidade de esforços relativamente desconexos entre si, é possível identificar três eixos gerais em torno dos quais as ações têm se concentrado.
O primeiro incide na revisão dos modelos de tratamento da escravidão global construídos a partir do trabalho pioneiro de Moses I. Finley (1968; 1991), dentre os quais o mais relevante é, sem dúvida, o de Orlando Patterson. A partir de um importante livro sobre a sociologia da escravidão na Jamaica (PATTERSON, 1969), ele empreendeu um vasto estudo comparado da escravidão ao longo da história humana, propondo um modelo geral para compreender a instituição independentemente do tempo e do espaço. De fato, seu objetivo foi identificar, descrever e explicar os componentes invariantes da relação escravista. Trata-se de uma obra matricial, obrigatória para todos os que pesquisam o objeto, seja no mundo antigo ou no mundo moderno, por explorar as várias dimensões da escravidão como uma instituição social total (PATTERSON, 2004). Slavery and social death, contudo, costuma causar arrepios em muitos historiadores pelo emprego sem rodeios de uma sociologia funcionalista anistórica.
Um exemplo paradigmático de tal recepção negativa pode ser lido no ensaio crítico de Vicent Brown (2009).17 Outro exemplo: o artigo que serviu de abertura para o mais novo periódico especializado em escravidão, The Journal of Global Slavery. Para seu autor, o classicista Kostas Vlassopoulos (2016), a saída para enfrentar a tarefa de se escrever a história global da escravidão evitando-se os problemas colocados pelo modelo sociológico de Patterson consistiria em abraçar uma perspectiva radicalmente histórica de tratamento do fenômeno, enfatizando suas múltiplas variações no tempo e no espaço. O que Vlassopoulos nos oferece como programa de investigação, todavia, é simplesmente uma classificação tipológica da multiplicidade de empregos de escravos. Sua história global da escravidão equivale tão somente ao estudo da instituição ao longo de toda a história humana.
Não é por acaso que Vlassopoulos toma como paradigma positivo o último livro de Joseph Miller (2012), onde o autor propõe a análise não da escravidão como uma instituição social (algo que Miller entende ser uma abstração), mas da escravização como estratégia histórica. O problema é que essa perspectiva acaba caindo no próprio desvio que se propõe a corrigir, isto é, a perda da historicidade, já que, nela, a escravização aparece como algo quase que imanente à humanidade, que ganharia forma por meio de competições variadas em torno da distribuição de recursos. Além disso, ao adotar a visão que os contemporâneos tinham do que estavam fazendo como a única porta de entrada legítima ao estudo do passado, Miller descarta por completo a possibilidade da identificação analítica de coerências e dinâmicas parcial ou inteiramente imperceptíveis aos olhos dos sujeitos históricos. Em definitivo, as propostas de análise global da escravidão contidas na sociologia funcionalista de Patterson e no historicismo radical de Miller convergem em um aspecto crucial, qual seja a anulação do tempo histórico na análise concreta do passado escravista.18
O segundo eixo de análise da história global da escravidão que tem adquirido força nos últimos anos faz parte do que vem sendo chamado de “história global do trabalho”. Tal proposta se destaca por descentrar as histórias canônicas das classes trabalhadoras, voltadas exclusivamente ao estudo do operariado branco, assalariado e industrial dos países centrais e sempre escritas a partir de bases nacionais. Essa produção revisionista tem demonstrando grande dinamismo. Um de seus pontos de partida foi o provocativo livro de Peter Linebaugh e Marcus Rediker (2000) sobre o proletariado atlântico na era moderna, e seu manifesto programático mais acabado, a coletânea de ensaios de Marcel Van Der Linden (2013). Tanto em um caso como em outro, um dos propósitos centrais apresentados pelos historiadores em tela foi o de examinar as modalidades compulsórias de trabalho mobilizadas globalmente pelo capital – entre elas, a escravidão negra nas Américas – ao lado de outras formas de trabalho livre, autônomo ou assalariado, rural ou urbano. Após inventariar as múltiplas formas de trabalho à disposição do capital, Van Der Linden salienta que seu ponto de convergência consiste justamente na constante produção e reiteração de uma “heteronomia institucionalizada dos trabalhadores subalternos”. No que se refere à investigação concreta dessa heteronomia, e malgrado a advertência de que “não deveríamos estudar separadamente os diferentes tipos de trabalhadores subalternos, levando em conta, o tanto quanto possível, as ligações existentes entre eles” (VAN DER LINDEN, 2013, p. 42-43), o que se oferece ao leitor, novamente, é uma classificação tipológica, em escala global, das formas de trabalho exploradas pelas distintas classes capitalistas nacionais e imperiais. No caso específico da abordagem da escravidão, não será sem surpresa que um leitor brasileiro associará a exposição tipológica e atemporal das variáveis que conformavam tal relação de trabalho às formulações mais duras do conceito de modo de produção escravista colonial.
Nas discussões sobre as propostas de Patterson e Miller, o conceito de capitalismo não é levado em conta como um constructo heurístico capaz de iluminar as variações históricas da escravidão negra das Américas. Para a história global do trabalho, o conceito é crucial, porém a historicidade das relações entre as forças capitalistas e as diversas formas de trabalho compulsório e livre que elas empregaram ao longo do tempo tampouco é tratada de forma detida.
O terceiro e último eixo a ser nomeado neste balanço tem por alvo central justamente o exame das múltiplas temporalidades da escravidão atlântica em suas relações com o capitalismo histórico. Esta é uma das características distintivas da obra de Robin Blackburn (1997; 2011), que, por meio das categorias “escravidão barroca” (séculos XVI ao XVIII), “escravidão moderna” (século XVIII) e “nova escravidão”, do século XIX, tem chamado a atenção para as descontinuidades estruturais das várias idades do trabalho compulsório dos africanos e de seus descententes no Novo Mundo. Blackburn escora seu argumento na tradição crítica da historiografia de fundo marxista que trabalhou as articulações entre capitalismo e escravidão, mas a renova ao historicizar a instituição do cativeiro, isto é, ao salientar que, sob o manto de uma aparente continuidade temporal, é possível identificar constelações de relações históricas substantivas e globais transformando e sendo transformadas pelo capitalismo mercantil e, posteriormente, pelo capitalismo industrial. Para conceituar a novidade da escravidão oitocentista, Blackburn se vale do modelo de Dale Tomich (2011) acerca da “segunda escravidão”, que aponta como os arranques escravistas de Brasil, Cuba e Estados Unidos no século XIX romperam com as estruturas históricas da escravidão colonial que lhes precederam, inaugurando, assim, uma nova temporalidade estritamente ajustada às forças globais da economia de livre mercado construída sobre as bases do capitalismo industrial. Ao mesmo tempo em que Tomich recorreu às mesmas tradições historiográficas que serviram de base para Blackburn, a elas acrescentou a contribuição decisiva da perspectiva analítica do sistema-mundo.
No Brasil, os trabalhos de Blackburn e Tomich inspiraram a formulação sobre as estruturas históricas do escravismo do sistema atlântico ibérico e do sistema atlântico do noroeste europeu como dois estratos de tempo distintos, porém inter-relacionados, do longo século XVIII, cujas construções se articularam aos ciclos sistêmicos de acumulação do capital identificados originalmente por Giovanni Arrighi (MARQUESE; PARRON; BERBEL, 2016). Será em torno do programa deste terceiro eixo que, enfim, introduzirei uma proposta para a escrita da história global da escravidão atlântica.
O arranjo assumido pela economia global na virada do século XX para o século XXI desmontou a projeção de que o capitalismo evoluiria rumo à plena proletarização e a uma consequente oposição absoluta entre detentores dos meios de produção e trabalhadores livres assalariados. Afora a crescente flexibilização nos arranjos clássicos do trabalho industrial – no que economistas e sociológos têm chamado de “crise global do trabalho assalariado” (McMICHAEL, 1999) –, são incontáveis as mercadorias em circulação na economia global que, em um momento ou em outro de seu circuito mercantil, são produzidas a partir da exploração de indivíduos que não dispõem livremente de sua força de trabalho. Múltiplos arranjos laborais com diferentes graus de liberdade e compulsoriedade se integram ao redor do planeta, e ninguém contesta a sua ligação com o sistema capitalista. A consequência lógica disso é a relativização das afirmações de que a forma do trabalho assalariado seria o componente definidor por excelência do modo de produção capitalista e de que a Revolução Industrial britânica seria seu marco inicial.19
Tal constatação forneceu, há mais de 40 anos, o ponto de partida da perspectiva analítica do sistema-mundo, que, como se sabe, foi tributária da conceituação braudeliana sobre a economia-mundo capitalista e sobre a pluralidade dos tempos históricos (BRAUDEL, 1983; 1996). Immanuel Wallerstein (1974; 1980; 1989; 2001 [1995]) oferece uma definição que, se parte de Braudel, traz uma novidade importante ao equiparar a gênese de uma economia-mundo (a capitalista), em uma região específica do globo (a Europa Ocidental), à gênese do moderno sistema mundial. No cerne da definição do capitalismo histórico de Wallerstein – a orientação racional à maximização do lucro por meio da mercantilização generalizada de processos (de troca, de produção, de distribuição e de investimento), ou, em outras palavras, a busca incessante da acumulação pela acumulação – estão contidos dois argumentos espaciais. Primeiro argumento: o capitalismo não se formou primeiro na Europa e depois se expandiu pelo mundo; antes, ele se formou em seu próprio processo de expansão espacial, isto é, na constituição de uma economia-mundo. Segundo argumento: o trabalho livre sempre foi um elemento crucial do capitalismo, mas seu emprego tendeu a ser dominante apenas nas regiões centrais, que contavam com maior estoque de recursos e menor interferência externa; e onde os trabalhadores tinham maiores condições de organização. Já nas regiões periféricas, normalmente dedicadas à produção de matérias-primas e de itens agrícolas que demandavam mão de obra de baixa especialização, houve maiores oportunidades para a utilização do trabalho semiproletário ou compulsório, como foi o caso da escravidão. A eventual baixa produtividade individual era compensada, então, pela quantidade de produção ao longo do tempo e pela facilidade de alocação em regiões de difícil acesso ou pouco atrativas. O capitalismo histórico não tenderia à generalização absoluta da forma de trabalho assalariado, produzindo, em seu movimento global de expansão espacial, uma complementaridade entre diferentes modos de controle do trabalho.
A perspectiva de Wallerstein é bastante sugestiva para a escrita da história global do trabalho escravo na medida em que nos permite pensar mais diretamente a combinação variável de formas de exploração da mão de obra (assalariamento, servidão por contrato, meação, colonato, escravidão e assim por diante) como um traço essencial do capitalismo.20 Seu modelo, no entanto, peca por um esquematismo algo rígido na conceituação da divisão internacional do trabalho e por um padrão explicativo no qual o todo (o sistema-mundo) sobredetermina as partes (centros, semiperiferias, periferias). Além do mais, sua análise do capitalismo histórico pouco histórica é, haja vista que o capitalismo – para além da mutação geográfica dos espaços dominantes e dominados – pouco ou nada teria mudado do século XVI aos dias atuais. O modelo é notavelmente falho em incorporar uma explicação adequada para a profunda ruptura trazida pela Revolução Industrial (TOMICH, 2011, p. 32-36; MINTZ, 2003, p. 117-145; STERN, 1987).
Giovanni Arrighi (1996), ao se reaproximar de Braudel casando-o com uma leitura inspirada de Marx, imprimiu forte dinâmica à perspectiva analítica do sistema-mundo. Sua análise do capitalismo histórico se volta para sua flexibilidade e alternância inerentes, nas quais o capital financeiro ocupa papel central na busca incessante do lucro. Seu modelo chama a atenção para os múltiplos estratos de tempo do capital. Teria havido, na história do capitalismo, diferentes estruturas de longa duração, articuladas, porém, à longuíssima duração ditada pela lógica unitária da acumulação pela acumulação. Tais estruturas de longa duração são apreendidas por meio do conceito de ciclos sistêmicos de acumulação, cada um dos quais envolve padrões específicos de organização da empresa capitalista (o que permite a Arrighi analisar, por exemplo, as especificidades da era de monopólios estatais do mercantilismo, da Revolução Industrial ou da flexibilização produtiva pós-fordista), distintas áreas geográficas de produção e circulação de mercadorias e capitais (“espaços-de-fluxo não territoriais”) e diferentes poderes políticos em confronto (“espaços-de-lugares nacionais”). As estruturas de longa duração dos ciclos sistêmicos de acumulação são conceituadas, em resumo, como totalidades abertas. E, se Arrighi pouco espaço deu em suas investigações para as demais totalidades abertas dos mundos do trabalho nos espaços ultramarinos americanos, seu modelo nos fornece uma entrada poderosa para tanto.
Todas essas observações incidem diretamente sobre a historiografia da escravidão atlântica. Como mencionamos acima, os trabalhos de Eric Williams têm encontrado uma boa fortuna crítica nas pesquisas da chamada “nova história do capitalismo e da escravidão”. Ainda assim, alguns problemas persistem no campo. Os autores dessa corrente raramente definem o que entendem por capitalismo. E, ainda que sejam analisadas suas conexões pontuais, via de regra, capitalismo e escravidão são tomados como fenômenos exteriores entre si, apreendidos fundamentalmente em bases nacionais. Falta a incorporação do ponto de fuga da perspectiva analítica do sistema-mundo, sob cujas lentes o capitalismo, apesar de assumir contornos nacionais ou regionais, só pode ser plenamente entendido em termos de sua globalidade. Trata--se de um fenômeno internacionalmente integrado, de uma economia-mundo. O seu nexo é a criação de mecanismos geradores de formas permanentes e ilimitadas de geração de lucro e acumulação. Trata-se igualmente de um sistema maleável, historicamente mutável, que compreende amplos movimentos de deslocamentos espaciais, de expansões e de reordenamentos materiais e financeiros. Nesta chave, não há sentido em diferenciar as esferas da produção e da circulação como polos analíticos privilegiados e excludentes. O capitalismo histórico se desenrola em ambas, com taxas variadas de intensidade e de retorno conforme o tempo e o espaço. Sua viabilidade é garantida pela mobilização de aparatos institucionais e coercitivos (sistemas políticos, regras jurídicas, normas de conduta etc.) e pelo recurso a modalidades variadas de exploração do trabalho que, por sua vez, são reconfiguradas permanentemente pela dinâmica da correlação social de forças. Por essa razão, tais formas não se apresentam como simples relações mecânicas entre exploradores e explorados, mas, antes, configuram formações sociais específicas, complexas e não menos dinâmicas (TOMICH, 2011, p. 53-79).
Assim como a economia de mercado e o próprio capital, a escravidão preexistiu e pôde se constituir independentemente do desenvolvimento do capitalismo histórico, o que lança luz ao fato de ela também ser uma instituição atravessada por múltiplos estratos de tempo e, portanto, prenhe de história. Afirmá-lo não significa repisar os estudos globais da escravidão citados anteriormente, que, no mais das vezes, se resumem a demonstrar que ela se manifestou de modo diverso no tempo e no espaço. Significa, pelo contrário, investigar sistematicamente os diferentes ritmos temporais presentes em cada configuração histórica da escravidão, ou seja, o permanente jogo das estruturas e dos eventos que reiteraram e transformaram tais modalidades. Ao fazê-lo, os diversos sistemas escravistas identificáveis ao longo da história poderão ser efetivamente conceituados como totalidades abertas, contraditórias e em permanente movimento.
Para a escrita da história global da escravidão atlântica, entendê-la como tal, em permanente relação com a totalidade aberta do capitalismo histórico, parece ser um caminho promissor. A construção da economia- mundo capitalista a partir do longo século XVI teve como um de seus elementos basilares a escravização dos africanos. Desse momento em diante, a escravidão atlântica assumiu arranjos específicos em tempos plurais, mantendo-se até o final do século XIX como força indissociável do capitalismo histórico. Em suma, ao investigador interessado na história global desse objeto cabe observar, descrever e explicar como os múltiplos estratos de tempo da escravidão atlântica se relacionaram aos múltiplos estratos de tempo do capitalismo histórico.21
Para encerrar, cabem algumas observações sobre o método comparativo. Sebastian Conrad (2016) chamou a atenção para o fato de que a história global demanda algo mais do que comparar e conectar, na medida em que tais procedimentos pouco inovam em relação ao que já se fazia antes. Vimos como a perspectiva comparada é bastante antiga no campo de estudos da escravidão. Após um refluxo decorrente da crítica ao paradigma de Tannenbaum, observa-se atualmente uma retomada de estudos comparados. Em sua maior parte, os trabalhos pretendem observar o campo de possibilidades de atuação dos sujeitos escravizados ou libertos em diferentes jurisdições, combinando história social e micro-história (GROSS; DE LA FUENTE, 2013; REIS; GOMES; CARVALHO, 2010; SCOTT; HÉBRARD, 2014). As áreas comparadas, contudo, são tomadas como unidades estanques, faltando uma perspectiva teórica que abarque a escala estrutural e a pluralidade dos tempos históricos. As conclusões ficam limitadas à demarcação de estratégias adotadas e à narração das proezas das vítimas do cativeiro com vistas a vencerem as dificuldades para a sua mobilidade. Dificilmente é superada a escala dos indivíduos e analisada a relação dialética entre trajetórias e conquistas individuais e a dinâmica que envolve a reprodução do sistema de escravidão, muito menos suas relações com o capitalismo histórico.21
A proposta das histórias conectadas surgiu como uma alternativa à comparação histórica, vista pelos proponentes da nova abordagem como demasiado rígida e mais atenta à contraposição do que aos fluxos, às ligações, aos movimentos, às aproximações, quando não representou – os termos são de Sanjay Subrahmanyan (1997) – “uma ressurgência insidiosa do etnocentrismo”.22 Recentemente, Serge Gruzinski (2016), um dos grandes promotores das histórias conectadas, manifestou--se favoravelmente ao desenvolvimento da história global, o que, em sua letra, aparece como um possível prolongamento das histórias conectadas.
Novamente, creio que devemos ir mais além, por duas razões. Primeiro, as histórias conectadas produzem com frequência narrativas que menoscabam a assimetria entre indivíduos, grupos e países. A despeito de certo empenho em contrário dos adeptos das histórias conectadas, especialmente no campo da história cultural, salta aos olhos mais um panorama de equivalências e reciprocidades do que de processos de dominação e exploração. Segundo, uma conexão pode deixar transparecer influências, pressões e reações sem esclarecer propriamente a integração. É possível, por exemplo, conectar a política antiescravista da Grã-Bretanha à abolição do tráfico no Brasil expondo-se as motivações britânicas, as ações voltadas para a consumação daquele fim e a forma como o governo imperial brasileiro acabou com o infame comércio sem necessariamente examinar a unidade do processo para além da interação direta entre aqueles países, isto é, a transformação estrutural em escala global envolvida nesse processo.
Uma alternativa advém da proposta sistematizada há quase três décadas por Philip McMichael (1990). Em um inspirador artigo, esse sociólogo mostrou como as concepções globais de mudança social vão de encontro aos métodos comparativos usuais (formais), que simplesmente identificam semelhanças e diferenças entre fenômenos que apresentam certa analogia essencial entre si. Necessita-se, segundo McMichael, de uma comparação incorporada que leve em consideração, em escala global, multiplicidades e singularidades, diacronias e sincronias. Nessa abordagem, o todo é, antes de mais nada, uma construção metódica obtida pela análise integrada das partes. Ao invés de uma premissa teórica ou empírica, a totalidade seria resultado de um procedimento analítico (tal é o mundo analiticamente construído de que nos fala Sandra Kuntz, citada na abertura deste artigo). Philip McMichael contrasta sua proposta de comparação incorporada tanto com a comparação abrangente de Charles Tilly (1984) quanto com a perspectiva de sistema-mundo de Immanuel Wallerstein porque estas considerariam a interconexão sistêmica entre experiências, mas explicariam similitudes e divergências entre elas como consequências de suas relações com o todo. O resultado, no fim das contas, acabaria sendo a criação de um campo mecânico de determinações que projetaria um modelo preconcebido sobre a história, deixando escapar boa parte de sua dinâmica e de suas particularidades. Em vez de presumir o governo das partes pelo todo, busca-se, na comparação incorporada, capturar as interconexões sistêmicas globais em sua fluidez tendo em vista o mútuo condicionamento entre partes e todo.
Mais recentemente, a geógrafa Gillian Hart (2016) buscou avançar em relação ao método descrito por McMichael com uma modalidade que denomina comparação relacional. Dos acréscimos trazidos pela autora, é possível referendar dois: a recusa da separação convencional entre tempo e espaço (tomando-se explicitamente tempo e espaço como uma unidade histórica plural, tal como o Atlântico, por exemplo); e a inclusão da dimensão da vida cotidiana como um aspecto essencial da análise (ponto importante para a articulação entre evento e estrutura, entre micro e macroanálise). Mas também é possível efetuar aqui uma certa inversão do terceiro acréscimo de Hart. Ela incluiu em sua proposta o método regressivo-progressivo de Henri Lefebvre,23 bastante sugestivo e operacional, porém mais afeito ao campo da geografia do que ao da história. Por abarcar diretamente a questão da totalização histórica, creio identificar, para a história global, maior pertinência heurística no método progressivo-regressivo de Jean-Paul Sartre (1978), que, partindo da proposição de Lefebvre, supõe um permanente “vaivém” entre o geral e o particular, entre o concreto e o abstrato, entre a estrutura e o evento, entre os fluxos gerais da história e a esfera da biografia, tomada como produtora e produto de seu tempo.
Em vez de substituir o método de McMichael por uma nova denominação, talvez a comparação incorporada deva ser considerada tal como o enfoque que ela enseja, isto é, um repertório aberto, passível de adequações e sofisticações para a consecução de seu escopo. Ela é pertinente para a história global da escravidão atlântica, pois faculta o estudo dos múltiplos tempos da escravidão, do desenvolvimento sincrônico de arranjos distintos, de sua combinação local e transnacional com outras modalidades de exploração do trabalho e de sua integração com os múltiplos estratos de tempo do capitalismo. Ao invés de serem tratadas como externas e independentes umas das outras, as regiões escravistas submetidas à observação devem ser compreendidas como momentos particulares de um mesmo processo histórico de longa duração, ou seja, de uma mesma estrutura histórica que as forma e é por elas formada. Prestando--se atenção às múltiplas mediações entre a economia e a política mundial e às condições locais (nas quais sobressalta a agência dos sujeitos históricos), tornar-se-á viável examinar como regiões apartadas espacialmente se condicionaram mutuamente ao longo do tempo em um processo simultaneamente desigual e combinado e que, ao se desenrolar, alterou em ritmos distintos as condições de reprodução do todo (a economia mundial e o sistema de Estados) e das partes (as regiões produtoras e as unidades políticas que as compunham).
https://periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/article/view/2175-7976.2019v26n41p14/38434 (pdf)
Agradeço os comentários de Alain El Youssef, Leonardo Marques, Ricardo Salles, Dale Tomich e João Paulo Garrido Pimenta, bem como aos demais colegas pesquisadores do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (Lab-Mundi/USP) que discutiram este artigo em um seminário interno. Cabe agradecer especialmente as muitas conversas sobre esses assuntos que tenho mantido com Waldomiro Lourenço da Silva Jr., sem as quais o artigo não teria alcançado seu formato final.