Resumo: Este artigo analisa o conteúdo histórico dentro da Wikipédia e seu potencial como campo de atuação dos historiadores. A partir da compreensão da plataforma como um projeto global e multilinguístico, o artigo busca entender as relações de escrita e de divulgação do conhecimento estabelecidas entre as versões em diferentes línguas da plataforma. Utilizando como objeto os verbetes de conteúdo histórico destacados na Wikipédia em inglês e português, é realizado um levantamento de dados sobre a distribuição temporal e espacial dos verbetes, buscando identificar possíveis problemas e vieses nesse conteúdo. Por fim, o artigo busca colocar a Wikipédia dentro de um contexto mais amplo de discussões sobre o papel do historiador no público e as disputas de memória que permeiam a esfera social. Os resultados indicam a existência de um viés no conteúdo dos verbetes em direção a eventos e fenômenos históricos na Europa dos séculos XIX e XX, em ambas as línguas.
Palavras-chave:WikipédiaWikipédia,Digital HistoryDigital History,Global HistoryGlobal History.
Abstract: This paper analyzes historical contents on the Wikipedia platform and its potential as a field of activities for historians. By approaching the platform as a global and multi-linguistic project, the article seeks to understand the relations among writing and knowledge dissemination in multiple language versions of a number of Wikipedia articles. By examining these articles with historical contents both in English and Portuguese, a survey of data on the temporal and spatial distribution of entries is carried out in the attempt to identify possible problems and biases in these contents. Finally, the article seeks to consider Wikipedia within a broader context of discussions regarding the role of historians vis-à-vis their audience and the memory disputes that permeate the social sphere. The results indicate a bias in the contents of the website’s entries on historical events and phenomena that took place in Europe in the 19th and 20th centuries, in both languages.
Keywords: Wikipedia, Digital History, Global History.
Dossiê "História global e digital: novos horizontes para a investigação histórica"
Wikipédia: públicos globais, histórias digitais
Wikipedia: global audiences, digital histories

Recepción: 01 Noviembre 2019
Aprobación: 04 Febrero 2020
O profissional, social e até mesmo ético: como escrever sobre o passado em historiador e a historiadora do início do século XXI se encontram em um dilema tempos em que o tempo não apenas se acelera, torna-se profano, de domínio público, acessado, interpretado, politizado, mesmo negado, por qualquer pessoa com acesso à internet? Já longe de ser a única voz com autoridade para falar sobre História, a figura do historiador parece estar colocada em xeque frente às disputas de memória e às demandas dos novos espaços sociais do novo século – principalmente quando se pensa no infinitamente expansível espaço digital.
Nesse processo, o digital aparece não apenas na realidade inexorável (por vezes, monstruosa) das redes sociais, mas também enquanto campo de pesquisa. Ferramentas de pesquisa (e de pirataria) acadêmica, bancos de imagens, acervos de documentos digitalizados, tradutores, leitores de pdf, e-books, tablets, todos tornaram-se e tornam-se parte da rotina e do modus operandi do fazer história no atual tempo. As barreiras nacionais e linguísticas que separavam o pesquisador de suas fontes vão se dissolvendo com velocidade, deixando para trás, muitas vezes, apenas um paywall em euros. Como aponta Sebastian Conrad (2016, p. 72, tradução nossa), “a lógica de rede que a tecnologia computacional encoraja afetou o pensar dos historiadores, que cada vez mais aplicam uma linguagem de redes e pontos nodais para substituir antigas lógicas territoriais”.1
A Wikipédia é um exemplo de como o conhecimento vem sendo tratado no século XXI. Num mundo em que temos o direito e o dever ao imediato e às respostas rápidas na palma da mão, é na Wikipédia que encontramos boa parte de nossas respostas, seja nas buscas por biografias e curiosidades, seja em relação às nossas pesquisas acadêmicas. Em meio a hiperligações e páginas de discussão, a Wikipédia tem um território a oferecer para aqueles que por ela se interessarem.
Não são raras as discussões sobre a plataforma e os comentários que desacreditam o conteúdo editado, mas não podemos esquecer que a Wikipédia mobiliza conhecimento e que é nela, muitas vezes, que o público geral busca as respostas para todo tipo de perguntas. Como podem os profissionais da história ficar de fora desse debate? Não é novidade que existam verbetes de história na plataforma falando de guerras, personagens e períodos históricos. Porém, a questão que raramente se coloca é: quem escreve esses verbetes? Por que escrevem? Como escrevem? Qual o caráter do conhecimento histórico na Wikipédia?
Ao analisar as ferramentas de discussão que a plataforma oferece, assim como as regras apresentadas para edição, é possível encontrar disputas pela memória, reflexos da concentração do conhecimento histórico em temas que dizem respeito à Europa, e perspectivas historicamente apresentadas em um mundo eurocêntrico. Em suma, a Wikipédia é um campo em disputa, em que diferentes pontos de vista e abordagens são apresentados e lutam por espaço, mas sua realidade não está alheia ao mundo “real”.
Portanto, é importante que historiadoras e historiadores profissionais lancem seus olhares à Wikipédia, se preocupem em entender seu funcionamento e percebam como sua divisão por diferentes línguas não significa tradução de conteúdo, mas produções que corroboram com as discussões disponíveis e historicamente travadas territorialmente. Como a própria historiografia, tais produções permitem que fronteiras sejam transgredidas e que discussões locais tomem proporções globais.
É importante ressaltar que trabalhos analisando a produção sobre história na Wikipédia (e o papel dos historiadores dentro da plataforma) não são inéditos. O artigo de Roy Rosenweig, “Can History Be Open Source? Wikipedia and the Future of the Past”, publicado no Journal of American History em 2006, por exemplo, traça uma análise sobre os verbetes de história estadunidense na Wikipédia anglófona, e as diferenças disciplinares entre a escrita acadêmica e wikipédica da história. No Brasil, destaca-se o trabalho de Juliana Bastos Marques, que a partir de 2012 iniciou um projeto para que alunos de graduação na Unirio produzissem verbetes da Wikipédia sobre a história romana, tendo a autora escrito diversos artigos trazendo reflexões a partir da experiência do projeto (MARQUES, 2013, 2019).
O que buscamos entender neste artigo é como o conteúdo de história na Wikipédia se coloca no multilinguístico da plataforma, analisando artigos específicos da versão anglófona e lusófona, traçando as disputas e os interesses relacionados ao passado em um contexto global. Além disso, buscamos destacar os espaços que o trabalho especializado de historiadoras e historiadores pode encontrar para se inserir na discussão wikipédica, se engajar no debate público sobre o passado, ocupar discussões importantes à disciplina e trabalhar em prol da divulgação do conhecimento.
Criada em 2001 por Larry Sanger e Jimmy Wales, a Wikipédia surgiu como uma versão aprimorada de um projeto de enciclopédia on-line anterior criado por eles, chamado “Nupedia”. Ao contrário do caráter aberto e colaborativo pelo qual os projetos wiki se popularizaram ao longo da história da internet, a Nupedia tinha uma estrutura relativamente restrita, com um sistema de escrita e revisão dos artigos por experts, em que Wales e Sanger tinham o poder de veto editorial sobre os verbetes. Ainda assim, era uma enciclopédia digital, gratuita e construída coletivamente, se diferenciando do modelo de serviço pago das enciclopédias da época, operados por um pequeno grupo de escritores contratados pelas editoras (LUND, 2017, p. 46-47, 42-43). Nesse sentido, a Nupedia, assim como sua sucessora, tinha já nos seus princípios fundadores o objetivo de se tornar um projeto de proporções gigantescas, ao afirmar que “nosso objetivo a longo prazo é criar uma enciclopédia de conteúdo aberto, organizada, pesquisável, com referências cruzadas e disponível livremente na web e em vários outros formatos de baixo custo, e com uma quantidade de conteúdo maior do que qualquer outra enciclopédia teve na História”.2
Com o crescimento lento da Nupedia em razão do formato editorial mais restrito, Wales e Sanger criaram, em janeiro de 2001, a Wikipédia, com princípios similares aos da Nupedia, e servindo como uma espécie de rascunho para a criação de seus artigos, porém completamente livre de revisão editorial, seguindo os modelos wikiexistentes desde o início da década de 1990. Em março do mesmo ano, teve início o processo de internacionalização do projeto, com a criação da Wikipédia em alemão e catalão. A versão lusófona foi criada em maio, juntamente de uma série de versões em outras línguas, como francês, cantonês, italiano, espanhol e russo.3
Na comunidade, que rapidamente foi aumentando, diversas regras e políticas foram sendo discutidas e votadas para garantir o funcionamento da enciclopédia. É nesse contexto que se constitui uma das regras mais antigas e amplamente aceitas da plataforma: o princípio da imparcialidade, conhecido por sua sigla inglesa NPOV (Neutral Point of View, ou, Ponto de Vista Neutro). Defendida por Wales e Sanger desde a Nupedia, a regra do NPOV coloca a necessidade de os autores dos verbetes buscarem a imparcialidade na escrita de seus textos, evitando vieses e apresentando de forma justa todos os diferentes pontos de vista em determinado assunto (LUND, 2017, p. 48).
O NPOV se tornaria mais tarde um dos chamados “Cinco Pilares da Wikipédia”, uma espécie de regras gerais para a comunidade, amplamente utilizadas em todas as línguas. Conforme descrita na versão lusófona em 2019, os cinco pilares são: I) a Wikipédia é uma enciclopédia; II) a Wikipédia rege-se pela imparcialidade; III) a Wikipédia é uma enciclopédia de uso livre; IV) a Wikipédia possui normas de conduta; e V) a Wikipédia não tem regras fixas.4
Apesar de almejar ser um projeto que resuma todo o conhecimento humano de forma colaborativa e imparcial, a Wikipédia alcança percalços e vieses que levantam barreiras e questionamentos importantes à sua capacidade de realizar essa tarefa. Desde seus primeiros anos de operação, uma série de pesquisas têm demonstrado que, ao contrário do intuito de seus criadores em conceber uma enciclopédia editada por todo tipo de pessoa (com diferentes origens, visões políticas e especialidades), a ampla maioria dos usuários que editam e colaboram com a Wikipédia faz parte de grupos demográficos (e sociais) muito similares.
Em 2011, uma pesquisa. relacionada ao perfil dos editores da Wikipédia apontou que 91% eram homens, em sua maioria com ensino superior completo, com mais de 30 anos, morando geralmente na Europa ou nos Estados Unidos.5 Jemielniak (2014, p. 15), ao trabalhar com esses dados, sugere que os números podem esconder o receio feminino de se posicionar no que se refere ao gênero num espaço em que homens geralmente são maioria, como fóruns de internet. O autor segue a discussão alertando para a indissociabilidade entre o social no mundo físico e no mundo virtual. Ou seja, numa sociedade em que o machismo é estrutural, dificilmente as relações no universo da internet se darão de forma diferente.
O alto desnível entre o número de homens e mulheres “wikipedistas” vem sendo identificado desde os primeiros anos da plataforma. No entanto, o chamado gender gap não se reflete apenas no perfil dos editores, mas também nos assuntos dos verbetes, sobretudo considerando quem são as pessoas biografadas na Wikipédia. Uma pesquisa de 2018 que analisou mais de 2 milhões de verbetes biográficos em todas as línguas da Wikipédia concluiu que, entre as biografias que informavam o gênero dos indivíduos, 84,4% diziam respeito a homens, enquanto apenas 15,6% eram sobre mulheres (KONIECZNY, KLEIN, 2018, p.4615).
A defasagem (e, sobretudo, a má distribuição) no conteúdo da plataforma em determinados assuntos se agrava ainda mais quando diz respeito aos conteúdos de caráter histórico. Tratando apenas da distribuição temporal dos verbetes, a pesquisa de Samoilenko et al. (2017, p. 213) mostra que, dentre os verbetes de História nas trinta línguas mais editadas, há um viés grande em direção a eventos ocorridos nos últimos duzentos anos, sobretudo nos conflitos de maior profusão historiográfica desse período – as Guerras Napoleônicas e as duas guerras mundiais. Além disso, há um número muito reduzido de verbetes que tratam de períodos pré-modernos. Ou seja, a concentração temporal se dá no período pós-1500.
Ao pensar nas vias da historiografia e da história acadêmica, um fato que chama atenção ao olhar profissional é o tratamento da Wikipédia como fonte terciária. De acordo com a própria plataforma, “a Wikipédia resume descrições, interpretações e análises que são encontradas em fontes secundárias, e/ou baseia tais resumos em fontes terciárias. A Wikipédia ilustra tais resumos e descrições com o material que está tão próximo quanto possível das fontes primárias sobre o tema descrito”.6
Entender a Wikipédia como fonte terciária está intimamente ligado com dois de seus cinco pilares: o ponto de vista neutro, ou NPOV, e o princípio de que “Wikipédia é uma enciclopédia”. Sobre este último, ao se caracterizar como uma enciclopédia baseada em fontes terciárias, a Wikipédia proíbe explicitamente a produção e a escrita de conteúdos inéditos, sem referência prévia, conforme aponta a página “Nada de pesquisa inédita”:
[O]s artigos não devem conter conceitos, recolha de dados, pesquisas ou teorias que não tenham sido anteriormente publicados em veículos adequados e reconhecidos para o efeito. Ademais, os artigos não devem conter análises ou interpretações inéditas de temas, conceitos, dados, ideias já publicadas. Artigos desse tipo não devem ser criados na Wikipédia, pois a finalidade da enciclopédia não é defender uma posição ou visão sobre determinado tema.7
O fato de a Wikipédia ser uma fonte terciária e visar a neutralidade de ponto de vista leva a uma direção: ela é uma compilação de fontes secundárias, na qual, pensando em verbetes de história, não é possível realizar um diálogo crítico entre autores, como num debate historiográfico propriamente acadêmico, tampouco a tomada de um posicionamento por parte do autor (o próprio conceito de autoria na plataforma é diluído). Nesse sentido, as referências devem ser diversificadas, heterogêneas, visando a uma apresentação geral do tema, podendo ser dividido no verbete por localidade, temporalidade, perspectiva etc. Isso significa que, se ao editar um verbete, um marxista trouxer apenas fontes marxistas para o artigo, ou um liberal apenas fontes liberais, o texto será tratado como um texto enviesado, sem neutralidade de ponto de vista, e certamente novas referências deverão ser adicionadas.
É importante compreender que a Wikipédia, desde sua criação, tem um escopo internacional e multilinguístico, em que cada língua tem, efetivamente, sua própria Wikipédia. Até outubro de 2019, havia 296 versões da enciclopédia em línguas diferentes, sendo a versão em inglês aquela com maior número de artigos, edições mensais e usuários ativos.
De acordo com Jemielniak (2014, p. 12), muitos artigos presentes na Wikipédia anglófona, se comparados aos seus correspondentes em outras línguas, apresentam mais informações e atendem melhor a critérios de escrita e de verificabilidade. Essa atenção dada à Wikipédia anglófona pode nos mostrar como as relações dos centros globais e suas periferias também se manifestam na plataforma, não apenas com maior número de conteúdo trabalhado quantitativa e qualitativamente, mas a partir de critérios de escolha dos verbetes a ser editados. Em relação ao desequilíbrio da representação do continente europeu comparado ao resto do mundo:
Os Estados Unidos, medidos por sua atual população, são sub-representados no conteúdo da Wikipédia, enquanto a Europa por contraste é representada acima da média. Colocando de outra forma: a Wikipédia é uma instituição de conhecimento profundamente europeia. Através dela, a Europa (não os Estados Unidos) está escrevendo a geografia, a história e a enciclopédia do mundo, mesmo no século XXI (MAYER-SCHÖRNBERGER, 2014, p. 120, tradução nossa).8
O autor também afirma que a presença de Ásia, África e América Latina são muito baixas na plataforma e que, também em relação ao número de biografias presentes na Wikipédia em inglês, a Europa sai na frente, confirmando uma visão eurocêntrica inclusive em relação a quais pessoas têm importância suficiente para ser biografadas.
Esses dados apresentados também se relacionam a outro fenômeno na Wikipédia, que chamaremos de transgressão territorial. Essa transgressão acontece quando editores acessam páginas da Wikipédia em línguas das quais não são nativos para editar verbetes, e levam na bagagem as discussões locais em relação aos assuntos pelos quais se interessam em editar. Em muitas dessas interações fora de seu território linguístico nativo ocorrem disputas de memória intensas, sobretudo dentro dos verbetes de história. Esse fenômeno já foi documentado por Pereira (2015), e ganha novos contrastes quando o analisamos através da lente da transgressão territorial. Pereira cita o verbete em português sobre a ditadura militar como exemplo de um dos grandes focos dessa disputa de memórias, e, nesse sentido, decidimos analisar o verbete do mesmo assunto na Wikipédia anglófona.
Ao analisar a página de discussão do verbete “Regime militar no Brasil”, Pereira demonstra as relações do revisionismo e negacionismo9 da ditadura com as questões da memória histórica, e como esses temas se articularam com o início dos trabalhos da Comissão da Verdade no Brasil. O texto de Pereira ajuda a entender como a discussão historiográfica reflete nas argumentações dos editores que disputam a memória na discussão do verbete, assim como os debates em relação à Comissão da Verdade podem influenciar indiretamente a discussão feita pelos wikipedistas dedicados ao verbete analisado. Para além dessas questões, o texto de Pereira traz provocações referentes às “guerras de memória” que nos levam a perguntar: o debate referente à memória no Brasil, que se manifesta no verbete “Regime militar no Brasil”, estaria também em seu verbete correspondente na Wikipédia anglófona?
O texto apresentado pelo verbete “Military Dictatorship in Brazil” cita quatro referências em português, presentes também no verbete da Wikipédia lusófona. As afirmações que se baseiam nessas fontes variam no nível de informação em relação a seu correspondente lusófono, o que não nos dá certeza para afirmar se a utilização dessas fontes se dá a partir de traduções ou de utilização das fontes por alguém que interpreta textos em português. O resto do texto, quando referenciado, apresenta fontes escritas em inglês.10 Encontramos seis editores em comum nos dois verbetes, sendo que nenhum incluiu aquelas biografias em português encontradas no verbete anglófono.
Ao acessarmos a página de discussão (talk) do verbete encontramos um interessante caso de transgressão territorial: os debates em relação à memória, assim como revisionismos e negacionismos, se manifestam em boa parte da discussão, e alguns editores se declaram brasileiros e reivindicam sua nacionalidade enquanto elemento central no acesso às discussões sobre a ditadura militar brasileira. O tópico da discussão que mais chama atenção é intitulado “No mentions of military regimes abuse?”. Nesse tópico, criado em 2007, o(a) autor(a) afirma:
O artigo é bastante enviesado e não menciona de forma alguma os abusos do regime militar; esse assunto em si merece uma seção inteira. A estrutura do artigo também é esquisita: qual é a relevância dessa longa seção sobre ‘história da diplomacia brasileira’? O artigo em português está, como esperado, muito mais relevante e balanceado nesse sentido. Por favor façam uma limpeza.11
O autor ou a autora do tópico não assina o texto, deixando apenas o endereço do IP registrado, o que acontece quando o editor não está logado na Wikipédia. A discussão em relação ao viés é precisa: não se manifestar em relação aos abusos cometidos pelos militares é quebrar a neutralidade, é deixar de lado uma importante parte do debate sobre a ditadura militar no Brasil. A outra afirmação é em relação à estrutura do texto, na qual uma comparação é lançada e uma expectativa é confirmada: o verbete em português apresenta um maior equilíbrio em sua discussão, que é muito mais relevante.
A discussão desse tópico segue com postagens feitas entre 2007 e 2010, com debates relevantes em relação ao enviesamento do texto, a importância de citar fatos como a Operação Condor, a morte do jornalista Vladimir Herzog e o número de pessoas mortas pelos militares durante a ditadura. Porém, a resposta que mais chama atenção ao contexto aqui trabalhado é feita em 2017, dez anos após a última edição feita nesse tópico que analisamos. O editor que se identifica como Pedrix52 tem o hiperlink de sua assinatura em vermelho, o que significa que mantém uma página de usuário na Wikipédia de outra língua, tendo acessado a partir dela o verbete, mas que essa conta não tem uma página de usuário na Wikipédia anglófona. Numa busca rápida, encontramos esse mesmo usuário com uma página na Wikipédia lusófona, o que nos leva a acreditar que esse editor seja brasileiro. A edição de Pedrix52 no tópico abordado afirma:
Os comunistas estão tentando tomar o controle da Wikipédia em inglês também, é simples ridícula a manipulação da história nas mãos de pessoas que se chama de ‘intelectual’. A ‘Comissão da Verdade’, realizada recentemente no Brasil, fundou evidências factuais de cerca de quatrocentas mortes causadas pelo governo militar, sendo estes número muito questionável [sic] também, porque a maior parte das pessoas que morreram, eram realmente criminosos e terroristas, não podendo ser considerados ‘políticos perseguidos’. E é muito importante contrastar o número de mortes nas mãos dos ‘comunistas’ do período, um número de por volta de duzentas pessoas inocentes que morreu em ataques terroristas, incluindo americanos neste número.12
Poderíamos analisar com mais precisão esse comentário, mas acreditamos que se encaixe muito bem no contexto trabalhado por Mateus Pereira, de guerra de memória, revisionismo, negacionismo e Comissão da Verdade, que nesse caso foi trazida ao debate como ferramenta para um argumento revisionista. Vale, então, ressaltar que o editor traz informações, mas de nenhuma forma busca confirmá-las ou citar fontes verificáveis, o que impossibilita que o argumento se transforme em alguma reversão ou edição no texto do verbete. Combinado com os dez anos de intervalo desde a última edição feita no tópico, a ausência de fontes na postagem nos leva a acreditar que Pedrix52 não estava preocupado em editar o verbete, mas em proferir seu discurso e manifestar sua insatisfação com os “comunistas”, que “estão tentando tomar conta da Wikipédia em inglês também”, provavelmente referindo-se às discussões feitas no verbete correspondente, na Wikipédia lusófona. Acessando sua página de usuário, foi possível identificar, por meio dos registros da aba “discussão”, que Pedrix52 editou a página de discussão do verbete lusófono e teve algumas suas edições revertidas ou excluídas por ter sido identificadas como vandalismo.
Entre as edições na discussão do verbete lusófono feitas por Pedrix52, destacamos suas tentativas de argumentar sobre a inexistência de uma ditadura no Brasil entre 1964 e 1985, o que não justificaria o uso do termo “ditadura” no título do verbete, sugerindo sua troca pela palavra “regime”. Além de Pedrix52, outros três usuários brasileiros se dedicam a essa discussão específica, tanto na versão em português como na versão em inglês do verbete sobre a ditadura militar brasileira.13
A partir dessa discussão, podemos refletir sobre como a Wikipédia, enquanto instituição, é um ente global, e sua divisão por línguas, não por países, poderia ser uma forma de territorializar o global através de entes locais. Porém, na prática, essas barreiras acabam sendo transpostas, pois essa divisão em diferentes línguas não inibe editores nativos da língua portuguesa de, por exemplo, editar verbetes em inglês (ou em qualquer outra língua). Outro fenômeno interessante é o das traduções e das interações entre as línguas faladas por editores, como demonstrado por Hale, no texto Multilinguals and Wikipedia editing, publicado em 2014. De acordo com Hale (2014, p. 103, tradução nossa), “em média, 44,5% das edições em línguas não nativas por usuários multilinguísticos foram feitas em artigos cujo correspondente em sua língua nativa havia sido editado pelo mesmo usuário”14 e “73% dos artigos editados por usuários multilinguísticos em uma língua não nativa existiam em suas línguas nativas”15.
Uma pesquisa realizada nas versões em diferentes línguas da plataforma em 2009 mostrou que entre as seis maiores versões da Wikipédia, cerca de apenas 20% dos artigos existiam em todas as línguas. Já em uma análise com as 25 maiores versões, apenas 0,12% dos artigos (equivalente a cerca de 7 mil) existiam em todas as línguas (HECHT, GERGLE, 2010, p. 295). Dessa forma, fica claro que, no que tange à maioria dos verbetes, as versões em diferentes línguas da Wikipédia não são traduções literais umas das outras,16 mas sim de diferentes versões de um mesmo projeto, diferenciando-se não apenas em estrutura, língua e origem dos usuários, mas também em conteúdo.
Com o objetivo de entender o atual status quo dos verbetes de História nas wikipédias anglófona e lusófona, decidimos mapear e classificar temporal e espacialmente os verbetes destacados e categorizados enquanto “História” na plataforma.
Em todas as versões da Wikipédia, verbetes destacados são aqueles que foram submetidos à avaliação e foram aprovados pelos usuários da plataforma como sendo de alta qualidade, seguindo com rigor as normas de referência, conteúdo e linguagem. São esses os verbetes exibidos diariamente na página inicial de cada versão do projeto. No entanto, o método de avaliação é diferente em cada língua, uma vez que essas regras são determinadas pela comunidade de cada uma das versões da Wikipédia, e se dá a partir de necessidades específicas de cada contexto.
Na Wikipédia em português, por exemplo, nem todo usuário tem direito a votar para a aprovação ou não de uma candidatura. Para poder votar, é preciso ter registrado uma conta há pelo menos noventa dias, e efetuado trezentas edições, no mínimo. Para uma candidatura de artigo destacado ser aprovada, são necessários pelo menos sete votos a favor, além de ter mais de 75% de aprovação por parte dos votantes.17


No caso da Wikipédia em inglês, não há restrição ao voto – qualquer usuário pode revisar e apontar correções nos verbetes candidatos a destaque. No entanto, é necessário que se chegue a um consenso para a aprovação da candidatura. Além disso, três usuários cumprem um papel administrativo de coordenação dos verbetes destacados, cabendo a eles identificar os consensos e promover ou cancelar as candidaturas.18
A escolha por analisar apenas os verbetes de História destacados, e não todos os verbetes, tem dois motivos: os verbetes destacados são aqueles que passaram por avaliação de wikipedistas experientes, que conhecem as regras de edição da plataforma, assim como os critérios de destaque dos verbetes. Ou seja, os verbetes destacados são a maior manifestação prática das diretrizes da Wikipédia, e servem como uma revisão por pares interna da plataforma (MARQUES, 2019, p. 5). A segunda razão é uma limitação técnica, pois uma análise multilinguística mais ampla exige maiores conhecimentos de computação e análise de big data do que aqueles que possuímos.
Reconhecendo nossa limitação, mas entendendo a importância de trazer uma análise dos dados para ilustrar a discussão, decidimos dividir os verbetes em dois eixos: temporalidade, utilizando a divisão “tradicional” por períodos históricos (em idades Antiga, Média, Moderna e Contemporânea) e espacialidade, utilizando a divisão por continentes. Por mais que reconheçamos os problemas dessa padronização, entendemos que seja a mais viável, pois vai ao encontro da própria temporalização padrão wikipédica. Também separamos os verbetes no que se refere aos continentes, de acordo com a forma como ocorre hoje a espacialização do mundo manifestada na Wikipédia. (África, Américas, Ásia, Europa e Oceania).19
Em seguida, aqueles verbetes que não se encaixam nas divisões pensadas, por trabalharem com temporalidades longas ou com espaços que abarcam mais de um continente, são analisados de forma separada. São esses os verbetes que mais se diferem nas análises que fazemos aqui, pois trazem para a plataforma diferentes formas de se compreender o tempo e o espaço, servindo de combustível para discussões sobre a longa duração, a formação dos Estados nacionais e um debate sobre a história global para um ambiente digital não acadêmico.
Foram analisados os verbetes destacados dentro da categoria “História” em português (totalizando 103 verbetes) e os verbetes destacados na categoria “History” em inglês (totalizando 186 verbetes). Como a Wikipédia em inglês separa biografias de personagens históricos e batalhas militares em categorias à parte, verbetes desse tipo foram excluídos da análise em português.

Conforme já apontamos a partir da análise da discussão bibliográfica envolvendo espacialidade e temporalidade na Wikipédia, os resultados do levantamento confirmaram uma enorme concentração de verbetes no período chamado pela tradição francesa de “Idade Contemporânea”, a partir de 1789, além de uma grande quantidade de verbetes localizados no continente europeu. Como é possível analisar nos gráficos de 1 a 6, na versão lusófona, 58,8% do total dos verbetes de História são sobre eventos ocorridos na Europa,20 e 55,4% dos verbetes ocorreram durante a Idade Contemporânea. A versão anglófona, apesar de ter uma porcentagem menor de verbetes tratando do continente europeu (com 42,3% do total), apresenta um enfoque maior na contemporaneidade, com 64,4% dos verbetes situados nesse período.
A América do Norte, que ocupa a segunda maior parcela do total de verbetes destacados em inglês, com 25,5%, tem um destaque menor entre os verbetes em português, com apenas 9,3%, atrás de América do Sul (15,3%) e Ásia (11,3%).

Um número a ser destacado é o número pequeno de verbetes sobre a História de África: em português, são apenas quatro verbetes destacados, 4,1% do total – um se ambienta no período Antigo (Antigo Egito), um no período Moderno (República de Salé) e dois no período Contemporâneo (Independência de Moçambique e Independência de Angola). Além disso, as histórias da América Central e da Oceania não estão presentes entre os verbetes destacados em português, sendo que em inglês há seis verbetes localizados na Oceania, e apenas um na América Central.


Não podemos deixar de levar em conta que mesmo verbetes situados espacialmente nas regiões periféricas do mundo global podem estar ligados a uma visão colonizadora da História, como aponta o caso dos verbetes situados no Vietnã e escritos na Wikipédia em inglês. Todos os oito verbetes que tratam da história vietnamita na versão anglófona da Wikipédia estão relacionados especificamente aos conflitos com o exército estadunidense durante a Guerra do Vietnã, no século XX. O mais provável é que esses verbetes tenham sido escritos por sua ligação com a história dos Estados Unidos, não por um interesse efetivo em relação ao Vietnã. Portanto, aqui entendemos que os critérios de escolha para o conteúdo de um verbete (não apenas seu tema central) estão relacionados ao lugar em que foi escrito e os interesses ligados a essa localidade. A pesquisa de Samoilenko et al. (2017, p. 215) já mostrava uma tendência similar, com uma grande quantidade de verbetes sobre as Américas e a África situados temporalmente durante os processos de colonização e de descolonização, períodos de maior participação dos centros globais na história de países americanos e africanos.
Outra tendência observada nos dados é a grande frequência de verbetes com assuntos militares, em ambas línguas. Na Wikipédia em inglês, há dezoito verbetes focados unicamente no desenvolvimento do programa atômico estadunidense, por exemplo.
Analisamos aqui de forma separada aqueles verbetes que fugiram do padrão ao não se encaixarem dentro das divisões de tempo e espaço que utilizamos para a realização dos gráficos. São justamente esses verbetes que transcendem as divisões clássicas de temporalidade em eras, ou que tratam de temas desvinculados a uma lógica territorial tradicional, que levam à reflexão das possibilidades de assuntos a ser abordados na Wikipédia por historiadores. Ao contrário da análise quantitativa realizada anteriormente, realizamos aqui a análise do conteúdo de um desses verbetes para refletir como, aos olhos de profissionais, podem remeter a conceitos historiográficos como o de longa duração e de história global.
O verbete a ser analisado é o presente apenas na Wikipédia anglófona, “Ethiopian historiography”. O verbete trata da história da historiografia etíope, traçando uma narrativa desde os primeiros registros de escrita na região subsaariana no século V a.C. Até a historiografia etíope contemporânea. Para além de apresentar uma escala temporal longa, o verbete estabelece as relações da literatura do Império Etíope (sobretudo no período tido como o da dinastia salomônica) com a teologia cristã e suas interações comerciais com culturas ao norte do Saara e também da região do Chifre da África. Para além disso, trabalha com as influências e a recepção da historiografia etíope após o contato com historiadores europeus durante o século XIX, sobretudo após o contexto da Guerra Ítalo-Etíope de 1895.21
Trata-se de um verbete complexo e com uma bibliografia extensa, que aborda um período longo de uma das culturas escritas mais antigas daquela região do continente. Apesar de ser difícil atribuir a autoria de um verbete na Wikipédia, uma vez que qualquer usuário pode trazer novos complementos aos conteúdos, é possível analisar os usuários que contribuíram com a maior porcentagem do conteúdo de um verbete. No caso do verbete em inglês sobre historiografia etíope, o usuário que teve o maior número de contribuições ao conteúdo, e que indicou o verbete para destaque, se chama “Pericles of Athens”. Em seu pedido de destaque, o editor justifica sua escolha em escrever sobre o tema:
Eu já escrevi e nomeei vários artigos sobre história Chinesa e Europeia para o status de Artigo Destacado, mas este é apenas o segundo artigo relacionado à história Africana que nomeei, sendo o primeiro sobre literatura no Antigo Egito. É certamente minha primeira nomeação focada em um país da África Sub-Saariana e de cultura Semita, duas áreas da nossa Wikipédia em inglês que talvez precisem de muito trabalho e ainda tem informações essenciais em falta. Este é meu pequeno esforço em ajudar a remediar esse problema e esperançosamente em fazer com que outros editores se interessem em fazer o mesmo. Esperemos que sim!.22
Chama atenção como alguns dos membros da comunidade da Wikipédia, como é o caso de “Pericles of Athens”, não apenas reconhecem as lacunas no conhecimento da plataforma, mas buscam combatê-las a partir de suas contribuições e interações com outros usuários. Na página de usuário de “Pericles of Athens”, ele afirma, em seu texto introdutório, que seu nome é Eric Connor, estadunidense e especialista em história medieval, cursando doutorado em História. Nela, o autor resume sua trajetória de formação, afirma seu interesse e experiência de pesquisa sobre a História da Ásia Central, e lista todos os verbetes que vêm escrevendo na plataforma desde que criou seu perfil, em 2007, quando ainda estudante de graduação em História.23
É interessante resgatar casos similares ao de Eric Connor, em que pesquisadores tiveram a Wikipédia como um campo de atuação desde o início de sua formação. Tais casos demonstram ser possível que a formação e a escrita acadêmica não estejam dissociadas da produção de conteúdo de qualidade e de interesse público. Incentivar a atuação de historiadores acadêmicos não apenas enriquece o conteúdo histórico disponível na plataforma, também traz novas perspectivas e desafios de escrita.
Como comentamos na introdução deste artigo, os profissionais da história já não são mais as únicas autoridades do enunciado histórico, e a grande profusão causada pelas diversas formas de divulgação de textos históricos na internet em um contexto de redes sociais, blogs e wikis transforma a escrita e a divulgação em práticas mais acessíveis ao público em geral.
Como também vimos, o conhecimento histórico presente na Wikipédia anglófona e lusófona é eurocêntrico, marcado por biografias de sujeitos europeus (em sua maioria homens) e por assuntos históricos ligados majoritariamente à Europa. É a partir dessa crítica que pode começar a atuação dos(as) historiadores(as) na plataforma, tomando-a como objeto de pesquisa, e também a partir de colaborações, visando equilibrar a origem e o objeto do conhecimento histórico wikipédico. Uma possibilidade seria investir, nas diferentes versões da Wikipédia, em projetos relacionados a histórias latino-americanas, africanas e asiáticas, não necessariamente relacionadas aos Estados nacionais e “grandes feitos” de seus líderes, mas às dinâmicas transculturais e especificidades das histórias locais em períodos pré-colonização. Para isso, é importante a presença de profissionais da história gerando e mediando o debate, ocupando a Wikipédia de conhecimento especializado.
É difícil mapear a autoria dos textos de história na Wikipédia, tanto por conta da grande diferença entre as formas de lidar com a autoria na plataforma e na academia como por não termos disponíveis dados mais concretos do que aqueles que já apresentamos em relação ao perfil dos editores wikipedistas.24 Porém, é possível refletir em relação à parte “livre” da “enciclopédia livre”. Como também discutimos, basta estar logado e munido das fontes necessárias para que um verbete de história seja escrito. A manutenção do verbete na Wikipédia dependerá do cumprimento dos pilares da plataforma, e o pilar que mais nos interessa é o Princípio da Imparcialidade (NPOV).
A aplicação do NPOV pode acabar levando os verbetes de história na plataforma (aqueles que seguem os padrões propostos) a ser obras de síntese sobre o assunto que estão tratando. A necessidade de ser imparcial, citar fontes heterogêneas e não enviesar o texto transforma o verbete de história num grande compilado sobre aquilo que foi escrito de mais relevante e sintético em relação ao assunto tratado. Como aponta Jurandir Malerba (2014), esse debate sobre as sínteses é de extrema importância para historiadoras e historiadores, pois livros de história vêm sendo escritos e vendidos em grande quantidade por não historiadores nas últimas décadas, em um processo de alta demanda do público por história. A Wikipédia pode ser entendida como um possível campo de atuação nesse sentido, pois garante aos leigos não apenas o acesso ao conhecimento, mas também à sua produção. Trata-se de um espaço que está aberto tanto para leigos como para profissionais – um espaço que é terreno fértil para historiadores. Como aponta Rosenzweig (2006, p. 138):
Historiadores profissionais têm muito a aprender não apenas com o modelo de distribuição aberto e democrático da Wikipédia, mas também com seu modelo de produção aberto e democrático. Embora a Wikipédia como um produto seja problemática como única fonte de informação, o processo de criação da Wikipédia promove uma apreciação das próprias habilidades que os historiadores tentam ensinar.25
Dessa forma, o(a) profissional da história se encontra em um contexto em que “precisa negociar sua autoridade em outros espaços que não aqueles academicamente controlados” enquanto “o cidadão comum, por sua vez, mais do que nunca tem acesso aos meios de difusão da comunicação” (ARAUJO, 2017, p. 194-195). Seguindo esse raciocínio e pensando no espaço que geralmente está reservado ao grande público (redes sociais, blogs, wikis etc.), é importante relacionar não apenas a divulgação ampla do conteúdo, mas também a sua produção como uma escrita disciplinada de maneira diferente – é fora do ambiente acadêmico que os não historiadores encontram espaço para se manifestar historicamente:
O cenário atual se destaca não tanto pela centralidade da noção do público como audiência, mas pela reivindicação de uma cidadania que quer ser pensada como polo ativo na produção de uma historiografia socialmente distribuída, ou seja, da democratização das condições de escrita e apresentação de histórias, aqui entendida como intervenções sobre a historicidade que extrapolam os regimes discursivos estabelecidos ao longo do processo de modernização. Esse fenômeno não pode ser visto apenas como uma ameaça à historiografia profissional, mas como uma reação compensatória que não tem sido suficientemente respondida no interior do campo (ARAUJO, 2017, p. 206).
Destacamos que “democratização das condições de escrita e apresentação de histórias” significa “acolhimento crítico e a amplificação de oportunidades e ferramentas”. Ou seja, em vez de incentivar uma produção deliberada de textos sobre história sem conhecimento metodológico ou bibliográfico, é necessário esforço para possibilitar, ao público em geral, o acesso aos conhecimentos e às maneiras de se fazer o conteúdo específico da história.
[...] o historiador sempre teve e pode continuar a ter um papel central nessa luta pelo direito à história [...] mas deve partir do reconhecimento dos diversos sujeitos e suas produções locais e epistemologias, surgindo daí mais a imagem de uma circulação do que a de uma difusão para auditórios cada vez mais amplos. Nesse circuito, talvez o historiador possa desenvolver uma nova e distinta função social, aparecendo como ‘curador de histórias’ (ARAUJO, 2017, p. 209).
Também pensando na relação dos historiadores com o público mais especificamente na Wikipédia, uma das grandes questões caras aos profissionais da história é a mudança disciplinar que ocorre ao sair do meio acadêmico e inserir-se nas mídias de grande circulação:
A Wikipédia compele os historiadores a reconceituar a função das notas de rodapé, a excluir as fontes primárias, a tentar escrever de um ponto de vista neutro, e a colaborar com acadêmicos leigos. Esse é um espaço epistemológico desconfortável para historiadores, um espaço em que muitos historiadores podem não escolher se engajar, pois a Wikipédia restringe aquilo pelo que muitos historiadores se orgulham. Por qualquer combinação dessas razões, historiadores podem enxergar a Wikipédia como uma produção de história com pouco discernimento crítico e reflexivo, ou que simplesmente viola os princípios básicos da história acadêmica (PHILLIPS, 2016, p. 539, tradução nossa).26
Entendemos a citação de Phillips como um processo inserido no mesmo contexto das afirmações de Araujo (2017, p. 211), que defende, por parte dos profissionais da história, “o acolhimento crítico e a amplificação de oportunidades e ferramentas” que se relacionam com a maior possibilidade de produção histórica que a sociedade encontra na internet e em suas plataformas que se mostram disponíveis para compartilhar conhecimento. Apesar das diferenças de escopo e linguagem entre a academia e a Wikipédia, acreditamos que seja um espaço rico em possibilidades de análises acadêmicas, mas também aberto para a prática da curadoria, a inserção no debate público e, em conjunto com o público em geral, a produção de novas histórias e novos métodos de trabalho. É necessário sair da zona de conforto e buscar entender, assim como praticar, a transgressão territorial da linguagem acadêmica para a linguagem dos públicos (globais) através das histórias (digitais).
https://periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/article/view/2175-7976.2020.e68391/43624 (pdf)
Agradecemos ao projeto Teoria da História na Wikipédia e a sua equipe, sem o qual este artigo jamais teria existido: à Flávia Varella e Rodrigo Bonaldo, coordenadores do projeto, e também às pesquisadoras Sarah Pereira Marcelino e Danielly Campos Dias.
Avenida César Seara, 84, 88040-500, Florianópolis, SC, Brasil.





