Resumo: O objeto deste artigo é uma análise acerca do problema colonial no pensamento do escritor português António Sérgio . O objetivo é investigar como a temática evoluiu nos escritos do autor entre os anos 1919 e 1958, balizas temporais da sua intervenção mais efetiva no debate. O argumento central do artigo é que a posição de António Sérgio quanto às colônias só é compreensível no interior da tríade colonialismo-nacionalismo-cosmopolitismo e dentro das suas proposições teóricas gerais, especialmente no que concerne ao papel das elites nas transformações sociais.
Palavras-chave:António SérgioAntónio Sérgio,PortugalPortugal,ColonialismoColonialismo,NacionalismoNacionalismo.
Abstract: The subject of this article is an analysis of the colonial problem in the ideas of the Portuguese writer António Sérgio. The aim is to investigate how the issue developed in António Sérgio’s books between 1917 and 1958, temporal landmarks of his participation in the debate. The principal proposition of this article is that António Sérgio’s position about colonies only can be understood into the triad colonialism-nationalism-cosmopolitism and inside of his theoretical general propositions about elites’ functions on social transformations.
Keywords: António Sérgio, Portugal, Colonialism, Nationalism.
Artigo
A “Casa-mãe” e as “sucursais”: colonialismo, nacionalismo e cosmopolitismo no pensamento de António Sérgio1
The “mother-house” and its “subsidiaries”: colonialism, nationalism and cosmopolitism in António Sérgio’s thoughts

Recepción: 29/04/2017
Aprobación: 05/12/2017
Os homens comuns, de mentalidade mediana, reproduzem as modas intelectuais do seu tempo, “absorvem as noções de seu ambiente social”, mas as mentes superiores como Luiz Verney e Antero de Quental colocam questões universais, acima do lugar e do tempo, afirma António Sérgio.2
Levada às últimas consequências, a tese acima implica a supressão da história. Não faremos isso. Neste texto propomos uma discussão sobre o problema colonial no pensamento de António Sérgio, confrontando suas ideias com o tempo histórico em que elas foram produzidas.
Antonio Sérgio nasceu em 1883 em Damão (antiga Índia portuguesa), parte do império português. Por influência da família, estudou no Real Colégio Militar e depois na Escola Politécnica, tornando-se marinheiro e posteriormente tenente da Armada. Mas sua paixão principal era a filosofia. Em 1910, passou a trabalhar para uma editora norte-americana, ocasião em que começam a emergir as suas facetas de filósofo, educador e político3 (PINHO, 2012, p. 8-9). No mesmo ano licenciou-se da Marinha, para onde nunca mais retornou.
No início dos anos 1920, António Sérgio teve sua única experiência como gestor público. Foi Ministro da Instrução de Portugal entre 18 de dezembro de 1923 e 23 de fevereiro de 1924. Mas seu território era outro, embora jamais tenha se desligado dos embates políticos. Em 1958, o autor fez as suas últimas publicações, afastando-se a partir de então do debate público. Faleceu em 1969, em Lisboa.
Foi um dos mais influentes pensadores em Portugal ao longo de todo o século XX, tendo escrito sobre Política, Sociologia, Filosofia, História, Epistemologia, Educação e outras áreas. Foi, no dizer de Romana Valente Pinho, o reformador de Portugal.4
Durante décadas, especialmente entre 1910 e 1960, o autor foi personagem de proa na cultura portuguesa, ocupando “uma posição singular”, “única”, na “história das ideias filosóficas” do país, sendo “o mais alto representante do humanismo progressista burguês em Portugal (...), não é só um altíssimo escritor de ideias, o maior das nossas letras (...), é um grande homem na acepção completa destas palavras.”5
Embora a questão colonial tenha ocupado o centro do debate político em conjunturas cruciais da história de Portugal, a exemplo dos anos 1925/1926 e das décadas de 1950 e 1960, ela aparece com pouca frequência nos escritos do nosso autor.
Em janeiro de 1926, a Revista Seara Nova dedicou uma edição inteira ao “problema colonial”,6 com a participação de seus principais integrantes. Era uma conjuntura de forte pressão da Liga das Nações e de iminente ameaça de perda das colônias portuguesas, como então se julgava. Para Valentin Alexandre, a própria queda da Primeira Republica é condicionada pela questão colonial.7 Não poderia haver tema mais “atual” e importante. No entanto, Sérgio não está presente nas 36 páginas do número especial do famoso periódico onde ele era figura de primeira grandeza.
A constatação é especialmente curiosa porque o António Sérgio se notabilizou pela diversidade de objetos que abordou e pelo engajamento, pela atitude deliberada de intervir nas problemáticas que afetavam a ele e seus contemporâneos.
Este aspecto é, a nosso juízo, paradoxalmente instrutivo da sua visão sobre o tema. Nossa hipótese é que ao operar com temáticas “maiores” e se colocar como o pedagogo de valores universais, acima das fronteiras geopolíticas, ele contribui, não intencionalmente, para a hegemonia de uma visão de corte nacionalista sobre o mundo colonial português, embora estivesse no campo oposto do regime político vigente.
Sérgio se definia como humanista, racionalista, cosmopolista, idealista crítico e cooperativista-socialista. Envolveu-se em numerosas polêmicas, sempre reafirmando suas posições, jamais fazendo autocrítica ou admitindo erros, como assinala Fernando Catroga. Coerente com o suposto caráter atemporal das grandes ideias que esposava, ele afirmava conservar suas teses ao longo de toda a sua vida. De fato, observa Vasco Magalhães-Vilhena, é possível falar em um núcleo básico de seus postulados que se preservou em todo o seu percurso intelectual.8
Isso não significa, evidentemente, isolamento do mundo que o cercava nem uma visão estática. Como destaca João Príncipe, durante a Primeira República (1910-1926) o projeto maior do autor foi europeizar Portugal, arrancando-o do tradicionalismo em que se embrenhara desde o século XVII. Já durante o Estado Novo, após exílio na França onde conviveu com o movimento libertário e com as ideias de Charles Gide, sua ênfase foi no cooperativismo como estratégia para resistir à ditadura e enfrentar as desigualdades sociais.9
Após efusivos elogios aos portugueses do século XV por realizarem a “façanha mais grandiosa de toda a história da humanidade”, Sérgio encerra o ensaio “A conquista de Ceuta”, em 1919, afirmando que ele e seus contemporâneos haviam herdado a possibilidade de erguer “com um império na América, outra na África”, “uma grande Comunidade Ideal dos que falam a língua portuguesa.” Para tanto, seria necessário “reaver o sublime dom de por a clareza do entendimento — como os infantes — ao serviço do ‘talent de bien faire’ e da ‘virtuosa benfeitoria’”.10
O que seria essa comunidade ideal? Como seria esse império bi continental? Quem estaria à sua frente? Sérgio não responde. Quem o faz é Gilberto Freyre, décadas depois ao falar da civilização lusotropical criada pelos portugueses.11 Voltaremos a este ponto posteriormente.
Para o autor, a “clareza no entendimento” guiara as grandes navegações do século XV. O seu abandono, melhor expresso pelas ações da inquisição, levou Portugal ao isolamento da Europa, ao fechamento à experimentação e à racionalidade. Os dois movimentos teriam se refletido na obra colonizadora. À conquista, positiva, segue-se uma política colonial equivocada. Diz o autor:
Avançava a coluna de operações: ganhava-se o combate, triunfava a tropa; mas, vencido o gentio e acabada a guerra, não se desenvolvia metodicamente o trabalho de ocupação do território, numa colonização de todos os dias, sem desfalecer e sem parar.12
Deste equívoco decorre a necessidade de mais campanhas contra novas revoltas que surgiam. A partir dessa experiência, Sérgio propõe uma comparação com as batalhas intelectuais que se travavam no país:
Ora bem: na guerra da cultura tem sido assim. Deixamos sempre a possibilidade de um retorno ofensivo da grei selvagem, por isso que não víamos que também neste caso não basta o combate e o fragor das armas, — seja o combatente um Luis Verney, um Alexandre Herculano, um Antero de Quental (...). O que se impõe é o treino metódico, continuado, generalizado, de grande número dos nossos jovens nos melhores centros de investigação (...).13
A conquista dos novos territórios é exaltada. A herança atual (1919, 1926) é legítima. O que está equivocado, desde séculos anteriores, é a forma como se coloniza. Ao embate conquistador x gentio, Sérgio acrescenta e compara o embate agentes da razão x grei selvagem. E aponta um caminho: formar os jovens para integrarem uma “boa elite organizadora, elite de saber e de urbanidade”.14
“Somos um país colonial, e creio que devemos continuar a sê-lo; fomos um país de navegadores, de inovadores, de cosmopolitas, e creio que devemos continuar a sê-lo”, afirmava Sérgio em 1929, repetindo críticas aos erros cometidos no passado e na atualidade na política colonial: “De que nos serve o ter colônias, se não formos nós que as abastecermos, se não forem nossos o capital e a gente que as fizerem explorar e progredir ?”15
A identidade colonial ao invés de contradizer, amarra-se à identidade cosmopolita. Como isso é possível? Sérgio resolve o problema de forma engenhosa. As conquistas do século XV são tratadas a um só tempo como uma obra universalista e fundadora da nação portuguesa. Sou um “amante do meu país”, “consagrado a bem servi-lo”, mas não sou nacionalista, dizia o autor. E explicava:
[sou] filho de um povo cujo papel histórico foi o de ser por essência o navegador, e que, oriundo de uma faina cosmopolita, teve por missão abraçar a terra e pôr-se em contato com todas as raças; de uma gente, em suma, de quem disse o épico no seu poema: ‘e se mais mundo houvera, lá chegava’, pelo que só é profundamente português o que for como tal um cidadão do mundo. Fadados à sina de transpor limites, tivemos um caráter universalista pela nossa ação no mundo físico: está na índole da nossa história que o tenhamos também no mundo moral.16
Assim, as colônias são parte inseparável da identidade nacional e da missão de Portugal na história da humanidade. Embora Sérgio fosse oposição ao regime instaurado em 1926 e tenha sido por ele duramente perseguido, o discurso presente no Ato Colonial de 1930 e na Constituição de 1933, instrumentos legais que regeriam a política colonial pelas décadas seguintes, afirmam praticamente a mesma coisa, diferenciando-se por enfatizar o caráter civilizacional da sua presença nas colônias ainda no século XX e, evidentemente, pela visão racista na perspectiva oficial.17
Essa visão era, no geral, convergente com o pensamento hegemônico na Europa no entre guerras. Apesar de iniciativas contrárias como a Doutrina da Auto Determinação dos Povos de W. Wilson e da III Terceira Internacional, como sintetiza Valentin Alexandre, a colonização era apresentada como legítima pelas suas funções econômicas — aproveitamento dos recursos — como pelas culturais — civilizar as “raças atrasadas”:
Nestes termos, o domínio imperial era visto como um facto histórico natural e inquestionável, destinado a perdurar por longo tempo, com o consenso dos próprios colonizados, incapazes de se governarem a si mesmos.18
Mudanças significativas se dão no pós-1945. Os impérios europeus são colocados sob forte pressão produzida pelos movimentos emancipacionistas nas colônias e pela nova geopolítica internacional, com o crescente protagonismo norte-americano e soviético. A descolonização caminha a passos largos desde então. A Conferência de Bandung (1955) e o desfecho da Crise de Suez (1956) simbolizam de forma clara os novos tempos.19
Em Portugal, todavia, o império colonial permanece congelado, resistindo como se fosse um caso especial, distinto do restante da Europa e, nessa condição, imune aos novos tempos. A pretensa especificidade seria afirmada de forma oficial e intensa nos anos 1950, mas suas bases já haviam sido lançadas antes pelas mãos do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre.
Para Freyre, os portugueses seriam um tipo especial em relação aos demais europeus. A proximidade com a África e a convivência com judeus e principalmente com mouros teriam forjado um povo miscigenado biológica e culturalmente e um cristianismo cristocêntrico e não etnocêntrico, já em solo luso. O êxito na colonização nos trópicos se devia precisamente à sua disposição para miscigenar, dialogar e incorporar elementos da cultura indígena e negra. Por tudo isso, as possessões coloniais constituíam, junto com o Portugal europeu, uma só comunidade, regida por laços fraternos. Nos termos do autor:
Devemos crescer juntos, todos os luso-tropicais: juntos uns dos outros e próximos das fontes, não sei se diga europeias, da nossa cultura, que são principalmente as portuguesas. E quem diz cultura portuguesa diz uma cultura que nunca se contentou em ser apenas europeia, tendo com que nascido com a vocação de ser mais tropical que europeia: de harmonizar a Europa com os trópicos, sem imperialismo nem violência.”20
Esta nova civilização, como queria Freyre, foi por ele batizada como luso-tropicalismo em suas andanças pelas colônias portuguesas em 1951, mas os seus fundamentos remontam a Casa Grande & Senzala (1933) e “O mundo que o português criou” (1940).21
A obra de 1940 foi mal recebida pelo campo político em Portugal, onde reinavam as concepções racistas. Já no campo cultural, as ideias do autor foram bem acolhidas.22 António Sérgio escreveu o prefácio do livro. Admirador da cultura europeia, o prefaciador exalta a obra de Freyre sem aceitar as interpretações inferidas da obra do sociólogo por alguns intérpretes segundo os quais a cultura portuguesa, porque compósita, seria incompatível com os valores do continente.23
A mestiçagem, a capacidade lusa de se adaptar, destacada pelo brasileiro, é exaltada pelo escritor português. Mas a rigor, pode-se dizer que é o primeiro que concorda com o segundo uma vez que essa ideia já está presente em ensaios anteriores de Sérgio.24
Além de “descrever” o mundo lusotropical, Freyre estava interessado em definir as aspirações comuns desse povo. É um projeto transnacional, possível em virtude da hibridação enraizada na história desde a Idade Média. Sérgio e Freyre estão muito próximos no “diagnóstico”. Ambos veem os portugueses como um povo que fora capaz de respeitar e comunicar com outros povos, acima de peias nacionalistas. Quanto ao futuro, o brasileiro parece mais otimista que o português.25
Outra diferença importante é a interpretação que os autores apresentam da adaptabilidade do povo português. Em Freyre, este aspecto conduz à formação na história e no futuro de uma civilização transnacional, mas particular, a luso-tropical, possivelmente melhor do que as outras porque mais miscigenada, híbrida, temperada.
Para alguns intérpretes, no limite, o raciocínio freyreano deságua, paradoxalmente, em uma perspectiva racista, ao elevar o luso-tropicalismo à condição de superior às demais civilizações.26 Em Sérgio, a versatilidade portuguesa se relaciona ao seu cosmopolitismo nos tempos do descobrimento. Quanto ao futuro, mais do que uma civilização luso-tropical, os lusodescendentes devem ser universalistas como o teriam sido os seus predecessores de séculos antes.27
A ideia é desenvolvida pelo autor assentada no seu conceito filosófico de cultura. Culto é o “indivíduo de juízo crítico, afinado, objetivo, universalista, liberto das limitações de nacionalidade e de classe”.28 Nessa acepção humanista, continua o autor, não há cultura brasileira, árabe ou norueguesa:
brasileiros, noruegueses, árabes, quando são homens cultos, o são por aderência a um ideal absoluto, universal, humano, por uma série de qualidades adquiridas por todos e essencialmente idênticas em todos eles; e por isso um brasileiro, quando é homem culto, se sente mais próximo de um francês que o seja que de um conterrâneo e convizinho de rua que não siga esse modelo de validez absoluta, de aceitação universal, de exemplaridade humana.29
Coerente com este conceito, dizia Sérgio de si próprio: “Sou politicamente cidadão português; sou-o para os burocratas e administradores do mundo, e consoante o direito internacional vigente; em espírito, todavia, não mais português do que grego antigo”.30
Embora se possa notar estas diferenças, a obra de Sérgio está longe de ser uma crítica ao luso-tropicalismo. Essa civilização onde até a escravidão foi suave, como fala Freyre, não se verifica na história, apontam diversos críticos. É uma criação da mente de Freyre, apropriada (seletivamente) e difundida pelo Estado português nos anos 1950 e 1960.31
Ao nos filiarmos à corrente crítica do luso-tropicalismo, não vamos negar fatos históricos como a miscigenação, mas sim interpretá-los criticamente. Como diz Boaventura Souza Santos, o colonialismo português, diferentemente do britânico, promoveu de fato um hibridez colonizador-colonizado. O desafio é discernir as formas de hibridação:
O pós-colonialismo em língua portuguesa tem de centrar-se bem mais na crítica da ambivalência do que na reivindicação desta, e a crítica consistirá em distinguir as formas de ambivalência e hibridação que efetivamente dão voz ao subalterno (as hibridações emancipatórias) daquelas que usam a voz do subalterno para silenciá-lo (hibridações reacionárias).32
Repelindo idealismos, complementa o autor: “A miscigenação não é a consequência da ausência de racismo, como pretende a razão lusocolonialista ou luso-tropicalista, mas certamente é a causa de um racismo de tipo diferente.”33
Antes, porém, que o luso-tropicalismo se tornasse ideologia oficial portuguesa, António Sérgio apontava medidas concretas paras colônias. Para ele, havia um “Portugal europeu” (Metrópole) e um “Portugal mais amplo”. O primeiro deveria ser o “núcleo forte” do segundo. Nos termos de Sérgio: “Digamos que Portugal é uma Casa-Mãe de sucursais espalhadas pelo mundo inteiro.”34
Era preciso reformar a partir do próprio núcleo: “Coloniais? Sem dúvida alguma: mas, para que o sejamos de maneira plena, precisamos de ser na própria metrópole melhores lavradores e melhores artífices”.35 E acrescenta:
Criemos gente que ao sair da Pátria se não quede nos portos ultramarinos, mas que vá ocupar o interior das terras, fixar riqueza no hiterland — pela criação de gado e pela plantação, pela educação do negro na agricultura; e então, assegurados enfim no território europeu, ficaremos assegurados nas colônias também.36
Em 1947, falando aos socialistas, o autor afirmava que o Estado deveria “empreender uma mecanizada produção agrícola nas nossas províncias ultramarinas, com grande vantagem para alimentar o povo.”37
Em 1956, Sérgio propunha levar a população do Baixo Alentejo para “nossa África” (Angola ou Moçambique) para trabalhar em cooperativas agrícolas.38 Dois anos depois, repisava ideias semelhantes ao que propunha desde o final dos anos 1920, como se infere das notas dos Ensaios de 1958.39
Naquela conjuntura, a luta anticolonial já se colocara nas possessões portuguesas. O texto trata com detalhes e empenho o problema do agricultor de Portugal, mas não há uma linha sequer sobre a população das colônias. Ora, se esta é pensada de forma igual, com parte do “Portugal amplo”, por que é ignorada aqui? Parece que, concretamente, o autor pensa na Metrópole e “esquece” o discurso do Portugal amplo. Na prática, as colônias só aparecem como um destino para os agricultores do Baixo Alentejo. Não há qualquer preocupação em saber que pensariam os africanos disso.
Apesar de tudo, os anos 1950 assinalaram alguns deslocamentos no pensamento de Sérgio quanto às colônias. Ainda em escritos de 1956 o autor tece duras críticas aos projetos corporativistas e questiona, em tom indignado, a “solidariedade” (adesão) das pessoas do além-mar às estruturas corporativas:
Será que o mar solidariza, de facto, o colhedor de moliço da ria de Aveiro, o marujo dos paquetes de carreira da África e o pescador de bacalhau na Terra Nova? Que pode vinculá-los, a não ser a poesia? Que é o corporativismo, senão um poema? Ou antes, que é o corporativismo, senão uma retórica?40
Prosseguem os questionamentos: por que operários de fábrica de moagem se unirão com empregados das lojas? Por que estes e os operários têxteis se unirão “com os bons negrinhos que trabucam lá longe, à torreira, nos campos de algodão de Moçambique e Angola?”41
Pela primeira vez encontramos o autor incorporando a perspectiva de que o olhar e interesse do morador das colônias pode ser distinto do que se julga na metrópole. Caberia perguntar: será que eles também se solidarizavam com as propostas de Sérgio, suas “poesias”? O que eles pensavam do lusotropicalismo, o que pensavam da ideia de ser as “sucursais” da “Casa-mãe”?
De forma geral, os anos 1950 testemunharam grandes debates e algumas mudanças no tema colonial. No plano das ideias, alterava-se a visão hegemônica sobre a população africana. Desde o século XIX, havia a tese de que os africanos não eram suscetíveis à civilização. Tributário do darwinismo social, esse pensamento condenava com veemência a miscigenação. No pósguerra (1945), ele perdia espaço para uma abordagem “mais etnocêntrica que propriamente racista”: a civilização, não exatamente a raça, ocidental é vista como superior, de “validade universal”. Caberia a Portugal a missão de levá-la aos povos negros, educando-os.42
As pressões internacionais em favor da independência das colônias eram crescentes. Em 1951, após intensos debates, o regime aboliu o Ato Colonial de 1930, criando novos dispositivos legais para as terras do além mar. Mudavase, também, a nomenclatura. Saíram de cena as palavras Império e Colônias. Portugal foi declarado uma “nação pluricontinental”, integrada por províncias europeias e ultramarinas. A partir de então, o discurso da “unidade nacional” e da “assimilação” tornou-se frequente.43
No mesmo ano de 1951, após o fim do Ato Colonial, teve início a famosa viagem de Gilberto Freyre pelas terras portuguesas. Tudo foi cuidadosamente planejado para que o sociólogo pudesse “comprovar” in loco as hipóteses que lançara antes sobre o mundo que Portugal criou. A mudança da terminologia combinada aos argumentos “científicos” de Freyre tornar-se-iam a pedra de toque da resistência da diplomacia de Portugal na ONU, órgão a que o país passou a integrar em 1955.44
Apesar de todas as precauções oficiais para controlar o que Freyre veria na sua viagem, o autor diz que encontrou “separatistas”, “antilusistas” e “anticatólicos”, embora eles lhes parecessem “extremistas raros”. Em Angola ele foi abordado por um estudante de vinte anos, “pálido, ardente, romântico, como tantos de nós aos vinte anos” que o inquiriu: “Não lhe parece que chegou o momento de Angola se separar da República Portuguesa, como o Brasil no século passado se separou da Monarquia Lusitana?” A resposta é a que se poderia esperar de um agente oficial: “Respondi-lhe que não: que chegara o momento de o Brasil se reaproximar, como nunca, de Portugal, e Portugal do Brasil”45
A lei mudara. As colônias já não mais existiam. Nem o império. Eram províncias unidas em uma só nação. Mas o jovem angolano falava em separação. Nada surpreendente porque, na prática, observa Valentin Alexandre, o sistema colonial português não mudara. O regime permanecia muito fechado à concessão de cidadania aos negros colonos. A assimilação era mínima.46
Seis anos depois deste episódio, António Sérgio escreve sobre o problema na Antologia Sociológica, respondendo a um crítico sem nomeálo. Em um tom retórico, o autor dizia acreditar que há “indivíduos sinceros e de vontade límpida” na União Nacional, que o compreendem e que desejam,
a liberalização do nosso regime político, a transição para uma prática de convivência cívica, para o reconhecimento de dotes de autodeterminação autêntica dos portugueses que habitam no nosso território europeu, (nas províncias da Metrópole, no velho Portugal de aquém-mar), e que depois esse poder de autonomia autêntico seja enfim estendido aos cidadãos do Ultramar, em graus que correspondam aos vários níveis de cultura das diferentes camadas da população que lá vive; e que chegados, enfim, a essa unidade nacional (que se vai tornando urgentíssima) já estaríamos em condições de dar uma resposta plena aqueles que nos critiquem onde quer que seja. Mas só então, ao que julgo.47
Dito isso, o autor muda de tema, limitando nossa capacidade de análise. Ainda assim, é possível perceber que a cidadania dos cidadãos do Ultramar era algo a ser concedido, que ele pensa em níveis distintos de cultura desses povos e que, embora reconheça o caráter urgentíssimo das mudanças, o seu projeto não vai além do que a promoção da chamada unidade nacional.
Essa era, de resto, a visão dominante. A independência das colônias, sua inteira emancipação e autodeterminação não são consideradas. Sérgio pensava como a quase totalidade das pessoas do seu tempo. Era ele apenas um homem mediano?
Sua geração em sua quase totalidade abraçou o discurso nacionalista que liga as conquistas do século XV e a manutenção das colônias à existência da própria nação. É o “mito da herança sagrada” que ganha, como só os mitos podem fazer, corações e mentes e aparece com especial vigor quando se apresenta uma ameaça real ou suposta de perda das possessões do além-mar.48 Não por acaso o luso-tropicalismo foi adotado nos anos 1950, apesar de discordâncias pontuais, por pessoas das mais variadas posições políticas. Havia, nos termos de Cláudia Castelo, uma “quase convergência nacional” que tornava colonialismo e nacionalismo inseparáveis.49
Em qualquer fase da vida de António Sérgio vamos encontrá-lo condenando os nacionalismos diversos e se afirmando universalista/ cosmopolita. Foi também oposição ao regime ditatorial instaurado em 1926 por toda a sua vida. Seu universalismo é nítido nos seus escritos mais filosóficos e normativos. No entanto, quando precisa enfrentar questões imediatas, o universal se articula com o nacional, sendo o colonialismo a ponte que os liga.
Sérgio parece repetir o drama de outros grandes universalistas como Marx, que não pôde deixar dizer que o proletariado de cada país tinha sua “própria” burguesia,50 e Engels, que “era orgulhosamente alemão”.51
Gilberto Freyre, contemporâneo seu, também propôs algo para além do nacionalismo. António Sérgio concorda com a unidade cultural e linguística do luso-tropicalismo freyreano. A convergência, com diferenças, diga-se, dos dois autores revela um aspecto que lhes era comum: embora se colocassem acima das nações políticas, em nome do transnacionalismo cultural (Freyre) e do humanismo universalista (Sérgio), o discurso e projeto lusotropical é cômodo para ambos e conveniente para seus respectivos Estados-nações. Brasileiro, Freyre está fora do Portugal metropolitano, sua “teoria” eleva seu país; já Sérgio está no centro e assim permanecerá se o projeto lusotropical tiver êxito.
A combinação entre o nacional e o universal em Sérgio assenta-se sobre uma tradição humanista-iluminista. Como interpreta Vasco Magalhães-Vilhena,
o pensamento filosófico, dizíamos, surto da reflexão sobre o saber científico, amadurecido ao contato da cultura clássica (grega e moderna) afirma-se em consonância com o que fora o ideal filosófico da burguesia europeia culta e progressiva, na sua fase ascendente — a saber, o ideal do conhecimento racional, a valorização da razão. Filosoficamente, o idealismo consequente de Sérgio corresponde à posição ideológica de uma burguesia que, não desesperando ainda, não só não se atola ainda no pântano irracionalista como recusa mesmo os compromissos de “via intermédia” que buscará quando se sentir menos forte.52
Isso permitiu ao escritor português posicionar-se distante das ondas irracionalistas e obscurantistas que informaram as tendências políticas e intelectuais conservadores na Europa nas primeiras décadas do século XX e que perderam força com a derrota do Eixo na Segunda Guerra Mundial.53
É a partir dessa filiação teórica mais abrangente que se pode então definir o nacionalismo sergiano, um tipo cívico, radicado nas experiências revolucionárias a França e dos EUA no final do século XVIII. Naquelas experiências, a nacionalidade era definida pela adesão a um conjunto de ideias. Era uma opção político-ideológica e não uma condição biológica, fundada nos laços sanguíneos, como também não era consequência de um essencialismo histórico baseado em um conjunto de tradições.54
Possivelmente, António Sérgio representava um caso especial no interior do nacionalismo-colonialismo que reuniu a grande maioria dos portugueses. É preciso registrar, também, que haviam vozes dissonantes. Setores do movimento operário criticavam as bandeiras nacionalistas desde os anos 1920. A ala juvenil do MUD — Movimento de Unidade Democrática — em 1953, e o Partido Comunista Português – PCP — em 1957 propunham a emancipação das colônias.55
Com suas especificidades, Sérgio estava com a maioria. Mas ele não era um homem comum, um mediano que apenas reproduzia as ideias em voga no seu tempo. Sua visão do problema colonial não se explica apenas pelo compartilhar de algo comum a maior parte dos seus contemporâneos, embora isso, evidentemente, não possa ser ignorado como fizemos questão de destacar ao longo deste texto. A questão colonial em Sérgio se explica, também, talvez principalmente, pela sua visão do processo de transformação social como um todo, de forma especial no que concerne ao papel das elites, dos intelectuais, ao seu próprio papel.
Sérgio era capaz de discernir o hegemônico e, à sua maneira, se contrapor a ele. Ao analisar o “socialismo de Oliveira Martins” ele diz a que a “época” fez do escritor uma “vítima”. Martins viveu numa época “imatura” para suas ideias, assim como António Vieira no que diz respeito à “hediondez da escravidão do seu tempo”.56
Ainda assim, a margem de liberdade dos grandes está preservada. Vieira e Martins são apontados como superiores ao seu tempo. O que fazer, nessas circunstâncias? Nem o “pessimismo inerte”, nem o “ímpeto quixotesco de tentar o impossível; mas um apostolado com resignação activa”, “catequizar tenazmente”, educar “os espíritos”, preparar “as veredas aos reformadores do futuro”. “Mas catequizar que pessoas?”57
Catequizar a juventude que frequenta as escolas e os obreiros que constituem o genuíno escol popular, quer dizer: os trabalhadores capazes de encaminhar os outros pela obra quotidiana de criação positiva, nos sindicatos operários e nas associações de consumo.58
A passagem resume bem o projeto de Sérgio: formar uma elite que conduza o país às grandes reformas sociais, pela via cooperativista. A ênfase no papel da escol atravessa toda a sua obra.59 A elite é “a minoria dos melhores que estrutura uma nação, que a orienta e que a torna orgânica, que a inspira com o objetivo de se tornar dispensável, de preparar o povo para se governar por si próprio”.60
Embora não cite Karl Mannheim, seguramente Sérgio se apoia nele para pensar os papéis dos intelectuais, incluindo a si próprio. Ao estilo Mannheim, o autor português se autodefine como alguém acima dos condicionantes sociais e que integraria, junto com os colegas da elite que deseja formar, um grupo especial que se agrupa pelos laços comuns fornecidos pela herança escolarracional.61
Não é um grupo separado da sociedade. Inversamente, ele estaria nela enraizado, engajado, a seu serviço. A objetividade que regeria as ações deste grupo — a elite, os intelectuais — seria assegurada precisamente pelo fato de que ele é composto por pessoas provenientes de todos os extratos sociais, como explica o autor alemão.62 De forma similar, dizia Sérgio que havia “homens de elite de cada classe”, incluindo expressamente a elite operária, como fazia questão de dizer.63
Escrevendo em 1926, o autor afirmara:
O mais necessário em Portugal é uma boa elite organizadora, elite de saber e urbanidade. Composta de gente de superior cultura, que saiba resolver-nos os problemas técnicos, libertar o agrícola, continuar um Mouzinho, educar-nos para o uso das liberdades cívicas de maneira pacífica e criadora, sem histéricas dramatizações da vida pública.64
Quando analisava o problema da centralização operada pelo Estado em relação às províncias, Sérgio dizia que “a culpa não está nos governos, nem nas instituições, nem nos políticos, mas na rotunda incapacidade das elites provincianas”.65 Depois dilatava o raciocínio para os municípios: “Tudo depende dos munícipes: tudo depende, em suma, da capacidade das elites.”66
Três décadas depois de dizer que Portugal carecia de uma boa elite, o autor se mostrava disposto, em 1958, a catequizar jovens para formar, no futuro, a sonhada escol. Se nem o “Portugal europeu”, nem suas províncias do aquém-mar dispunha desse grupo indispensável, que dizer do “Portugal mais amplo”, das “sucursais”?
Daí é possível uma inferência simples do pensamento sergiano sobre as colônias: ainda que se tornassem independentes, autodeterminadas, elas estavam fadadas ao fracasso, tal como a metrópole, enquanto não dispusessem destes guias superiores, munidos da razão, que agem em nome de princípios universais, em favor da humanidade.
O problema é que, pelos padrões sergianos, ainda hoje não surgiu a tão sonhada elite: um grupo de pessoas isentas, altruístas, dispostas a trabalhar para se tornarem dispensáveis. E nem há, no horizonte, perspectivas de seu surgimento. Pode-se mesmo questionar se ela é possível em uma sociedade atravessada por múltiplos interesses e conflitos. Talvez seja nesse debate sobre a escolem que o idealismo de Sérgio se manifestou com mais vigor. Felizmente António Sérgio não foi seguido neste ponto, do contrário, o império colonial português ainda estaria de pé.
A ênfase na escol dirigente revela um pensamento aristocrático. E para Sérgio isso era um elogio: sou um aristocrata-democrata, dizia com convicção.67 Para um cidadão da Atenas da antiguidade clássica, seria uma combinação normal; para um humanista-socialista do século XX é uma proposta instigante. Valeria a pena discuti-la, mas se trata de uma problemática outra, tão relevante quanto a presente, mas seu adequado discernimento exigiria a redação de outro artigo.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/article/view/2175-7976.2018v25n39p197/37727 (pdf)
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