RESUMO: Este artigo propõe um diálogo historiográfico a partir das conexões históricas e culturais entre o Brasil e o continente africano, enfatizando a centralidade da experiência dos trabalhadores que detinham conhecimentos mineralógicos para a história da exploração aurífera. O objetivo é analisar como metalúrgicos africanos ajudaram ou resistiram aos empreendimentos de mineração colonial, moldaram práticas científicas e ofereceram visões criativas do trabalho em metal. Pretende-se, por fim, analisar os impactos da exploração aurífera de Minas Gerais no Reino de Angola, onde os portugueses também investiram na prospecção do ouro.
PALAVRAS-CHAVE: Mineração, África, Trabalhadores.
ABSTRACT: This article proposes a historiographical dialogue based on the historical and cultural connections between Brazil and the African continent, emphasizing the centrality of the experience of workers who had mineralogical knowledge for the history of gold mining. The aim is to analyse how African metallurgists helped or resisted colonial mining projects, shaped scientific practices and ofered creative insights into metalworking. Finally, we intend to examine the impacts of gold exploitation of Minas Gerais in the Kingdom of Angola, where the Portuguese also invested in prospecting for gold.
KEYWORDS: Gold mining, Africa, Workers.
DEBATE: Colapso ambiental e histórias do capitalismo
CADEIAS MERCANTIS E HISTÓRIA GLOBAL DAS AMÉRICAS COLONIAIS A PARTIR DO CONTINENTE AFRICANO
Market chains and the global history of the colonial Americas from the point of view of the African continent
Recepção: 14 Julho 2021
Aprovação: 23 Agosto 2021
Oartigo “Cadeias mercantis e a história ambiental global das Américas coloniais” (MARQUES, 2021) retoma perspectivas de análise que encontramos em Eric Williams, Caio Prado Jr., Fernando Novais e outros autores latino-americanos que, como quer Marques, combatendo o nacionalismo metodológico, procuraram as conexões da história das Américas com a história global, pela perspectiva econômica (WILLIAMS, 1944; PRADO JR., 1942; NOVAIS, 1979). Algo que tem sido retomado por uma historiografia mais recente que busca, por exemplo, os vínculos do Brasil com Angola, após a expulsão dos holandeses, no século XVII. Alencastro (2000) pondera nas primeiras páginas do seu livro: “Quer dizer então que o Brasil se formou fora do Brasil?”. A pergunta é antiga e as respostas têm sido variadas.
Por um lado, os nexos entre América portuguesa e a formação do “sistema mundo” está presente nessa historiografia brasileira de tradição marxista, que retoma Wallerstein e apresenta o lugar das Américas na formação do capitalismo histórico. De outro, tais abordagens foram criticadas por aqueles que mostraram que o “sentido da colonização” era, no mínimo, plural. Além da crítica do “capital residente”, João Fragoso e seus alunos, em diálogo com as teorias da formação dos estados Ibéricos, têm se voltado para questões de “comunicação política”, formação de “redes administrativas”, advogando por uma “unidade política pluricontinental”, evidenciada por uma convivência de “sistemas atlânticos” na Época Moderna, que estavam vinculados às monarquias europeias a que pertenciam — Portugal seria singular pelos seus nexos com Angola, municipalidade que por sua vez, tinha “autonomia diante da Coroa” (FRAGOSO; KRAUSE; GUEDES, 2013, passim). Em contrapartida, a noção de sistemas atlânticos — ibérico e do noroeste europeu — também é desenvolvida por Rafael Marquese que retoma as teorias sobre as relações entre escravidão atlântica e capitalismo histórico, além de explicar as crises de tais sistemas por causa da Revolução do Haiti e o abolicionismo britânico (MARQUESE, 2019).
Esse apressado panorama tem o objetivo de evidenciar que a noção sistêmica permanece em voga na historiografia brasileira, seja pela perspectiva econômica clássica, seja pelo seu avesso, as refexões sobre culturas políticas que garantiam autonomia das partes (portos escravistas, no caso Atlântico) ante o Centro, por meio de constantes negociações entre elites ultramarinas, singularizando o “sistema atlântico luso”. Não é o objetivo deste texto retomar a polêmica sobre a monarquia corporativa e o sistema colonial e suas contradições, basta pontuar que por meio de diferentes explicações, o Atlântico tem sido reconhecido como espaço que conecta a história do Brasil à história do mundo. Desse modo, não parece ser o caso de reintegrar essa história a processos mais amplos (algo que já tem sido feito), como afirma Marques, porém, como também o autor aponta, o desafo é redescobrir de modo mais qualificado, por meio de densa pesquisa empírica, caminhos que enquadrem o ouro explorado no Brasil a processos históricos globais.
A senda aberta no artigo para repensar os circuitos globais, em que as Américas se inserem, é a das “cadeias mercantis” e a história do dinheiro. A construção narrativa é arguta e demonstra trajetórias do ouro brasileiro, carregado em navios construídos na Nova Inglaterra. O autor entrecruza impérios europeus, conecta terras americanas que raramente são consideradas em conjunto, enfatiza o peso do tráfico transatlântico de escravizados e a ligação dessas mercadorias (inclusive a humana) com a história de um mercado mundial, em que Londres emerge como capital financeira. Destaca-se o esforço de síntese, com diálogo constante com a historiografia da História do Capitalismo e suas consequências ambientais, e a metodologia de pesquisa proposta de rastrear uma mercadoria e, portanto, trocas comerciais amplas, sem deixar de analisar manobras diplomáticas, padrões de consumo e os envolvidos no processo, inclusive trabalhadores escravizados e camponeses.
O artigo instiga muitas refexões e quero apresentar conexões e problemas de pesquisa dele decorrentes, a partir do continente africano e suas ligações com a América portuguesa. Recentemente a ideia de “restaurar a África ao Atlântico” (GAMES, 2006) é uma das reivindicações daqueles que criticam os pesquisadores que constituíram o campo de estudos da História Atlântica (BAILYN, 2005) por terem se fixado nas trocas do Atlântico Norte e raramente a partir do protagonismo africano. A crítica incide na visão do continente como mero fornecedor de braços ou matéria-prima para as economias atlânticas. Apesar de enunciarem a heterogeneidade de interações entre a diversas partes envolvidas pelo oceano, a África não ganha o mesmo tratamento teórico e complexidade histórica. Devido às suas conexões indeléveis com o Brasil, gostaria de propor a análise da presença africana nas Minas Gerais e os impactos do ouro no lado africano do Atlântico.
Marevedí era como espanhóis chamavam sua moeda de ouro (séc. XI-XIV), uma referência às moedas utilizadas pelos reinos Almorávidas, no Sahael, AlMurabitũn. Essa é uma evidência de um comércio monetário antigo entre a Península Ibérica e a África Ocidental. Ou ainda, mostra como a busca europeia por ouro, na África, baseou-se na monetarização do ouro, na produção e tecnologia de extração da África Ocidental, que proveu o ouro que financiou a expansão das economias mediterrâneas e, posteriormente, as viagens para as Américas. Nos séculos XIV e XV, houve uma superprodução de ouro que ocasionou na expansão de estados e o crescimento urbano, como a figura do homem mais rico da História, Mansa Musa, do Mali, bem representa. Nesse mesmo período, o veneziano Cada Mosto citou que as moedas cunhadas em Portugal, Espanha e Itália eram feitas com o ouro africano. O mesmo ocorria para a Holanda, no século XVII, que dependia inteiramente do ouro da Guiné para cunhar suas moedas, algo similar ocorria com a Royal African Company, da Inglaterra (GREEN, 2019, p. 109-122).
No entanto, como aponta Toby Green (2019), em seu novo livro sobre as raízes históricas do empobrecimento da África, o ouro (em pó ou amoedado) era apenas uma entre muitas moedas (algumas permanecem até hoje com valor de troca) no continente africano: cobre, ferro, conchas, cauris e nzimbu, tecido, noz-de-cola, sal, papel, prata, marfim etc. Isso nos leva a outra contribuição relevante deste livro, o perigo de adotar um ponto de vista puramente econômico do dinheiro e do poder; para Green, a acumulação econômica caminhou ao lado do poder religioso e do acúmulo de prestígio social. Um exemplo disso é a “golden regalia”, descrita por viajantes, na Costa do Ouro, ou seja, o uso de objetos feitos de ouro por elites políticas e religiosas. Logo, o valor comercial não se desvencilha do poder ritualístico e do status social. Esse padrão se repete para muitas moedas e regiões do continente (GREEN, 2019, p. 121).
A obra retoma argumentos expressos na tese de Rodney (1972), porém com inegável ganho analítico, fruto de vasta pesquisa em diferentes suportes documentais — tradições orais, música, arquitetura, culinária. O autor combina contextos locais e análise qualitativa, a panoramas globais, articulando transformações econômicas a culturais. Em um capítulo voltado para a África Centro-Ocidental, Green reconstrói cadeias de produção, cultivo e comercialização da mandioca. Esse alimento ajudou a colapsar o Reino do Kongo, pois alimentava exércitos que derrotaram as tropas do rei africano. Esse é um bom exemplo da dimensão cultural das trocas globais. A globalização de alimentos, ideias e estruturas militares, para o autor, era parte de um processo de declínio político, associado ao incremento do tráfico transatlântico de escravizados (GREEN, 2019, p. 190). Se partirmos da América do Sul, sabemos que as velhas tupinambás eram quem conhecia os segredos do cultivo de mandioca e preparava o cauim, bebida fundamental para ter acesso ao mundo dos espíritos. Em dia de antropofagia, só o guerreiro vingador não bebia o cauim. A mandioca foi o alimento que sustentou o tráfico, a escravidão atlântica, os soldados de tropas lusas e africanas e os bandeirantes.
O universo das moedas é o fo condutor da narrativa de Green, o Reino do Kongo formou-se a partir do estabelecimento de uma base monetária — o nzimbu. E um dos indicadores chaves do contínuo declínio econômico regional foi a desvalorização do nzimbu (GREEN, 2019, p. 222). Esse mesmo paradigma pode ser observado na África Ocidental, houve um processo de desvalorização das moedas africanas, contudo, naquela região o fenômeno foi outro: a exportação massiva de ouro (que com o passar do tempo manteve e aumentou seu valor) tinha como contrapartida tecidos, cobre, cauris, ferro (moedas que perderam valor ao longo do tempo). Quando as veias auríferas passaram a ser exploradas, no Brasil, o ouro africano já não era tão importante para as economias europeias. No século XVIII, fica latente a mercantilização de corpos humanos, quando as trocas passam a ser reduzidas ao valor de um escravo. Ao fim, o escravizado foi a única moeda que pôde resistir à pressão infacionária que o comércio com a Europa trouxe para os mercados africanos. Esse foi um processo gradual, em que as elites políticas africanas são vistas como diplomatas em acordos decisivos, conformadores de processos históricos mais amplos. Portanto, a partir do séc. XIII, os povos africanos e seus governantes foram participantes ativos na formação do mundo moderno. De modo que é preciso contestar o olhar imperialista, em voga desde o século XIX, que considera a desigualdade econômica que assola o continente como evidência da superioridade econômica e cultural europeia — eterna, inevitável e correta. A África não foi simples vítima da depredação externa, o peso das manobras diplomáticas das elites religiosas, letradas e políticas africanas nesse processo é prova disso, assim como as inúmeras contestações populares, revoltas, quilombos (e outras comunidades de fugitivos) contra a concentração de poder e o tráfico de escravizados.
Quando Leonardo Marques comenta a importância do ouro do Brasil para o comércio de escravizados, na Costa da Mina, creio que é importante reconhecer o contexto maior das trocas comerciais entre África-Europa-Américas, afinal, as viagens portuguesas no Atlântico foram, em muitos aspectos, uma resposta a processos já iniciados na África Ocidental. Dialogar com Toby Green também é uma alternativa teórica e metodológica válida porque seu objetivo é integrar o continente à História mundial, algo que Marques também pretende com a história do ouro brasileiro e outras cadeias mercantis nas Américas. Ambos partem da histórica econômica, em especial do dinheiro, e parecem interessados nas transformações políticas, nos arranjos políticos e diplomáticos, e nos diferentes usos das moedas, metais preciosos — religioso, ritualístico, símbolo de prestígio e poder.
Ressalto por fim que ao refetir sobre a importância da política para redimensionar modelos econômicos, há um diálogo possível com a historiografia da comunicação política, herdeira dos estudos de Hespanha (1994). Contudo, ao levar em consideração a agência política de indianos, africanos, indígenas é preciso recorrer a um vocabulário histórico-conceitual que vá além da Segunda Escolástica e da cultura política de Antigo Regime. Caso contrário, a narrativa continua concentrada nos valores e transformações tomados como ocorridos apenas na Europa. Green (2019) nos convida a uma descentralização histórica instigante e que está em estágio inicial.
Marques apresenta uma “outra ponta do processo” de produção e comercialização do ouro, em que se localizam escravizados, camponeses e questões referentes aos impactos ambientais (que apesar de enunciados, não aparecem muito em sua análise). Tanto na abordagem de Toby Green quanto na de Marques, há a preocupação de analisar diferentes modalidades de trabalho e desenha-se aspectos gerais sobre o trabalho forçado, contudo, no artigo em questão conhecemos muito pouco sobre o cotidiano de trabalho na prospecção e exploração do ouro e como trabalhadores lidaram com as condições que lhes eram impostas.
No âmbito do tráfico transatlântico de escravizados, há uma contradição contínua: o comércio das almas pautou-se na desumanização dos escravizados, ao mesmo tempo que, contou com suas habilidades e conhecimentos para a exploração das terras americanas — técnicas construtivas, de cultivo, culinária, mineração, transformação de metais em objetos vários etc.
Sobre conhecimentos africanos na mineração do ouro e na fundição e forja desse e outros metais, basta dizer que na África sul-saariana trabalha-se com metais há mais de dois milênios. O ouro, tanto em forma aluvial como em minas, se distribui amplamente por todo o continente. Da tecnologia Akan aos habilidosos artesãos que produziram o rinoceronte de ouro, no Grande Zimbabwe, vestígios de tais saberes abundam na pesquisa histórica e arqueológica.
Os administradores régios e viajantes, no Brasil, apontaram a importância dos africanos oriundos da Costa da Mina para o bom êxito da prospecção de ouro nesta margem do Atlântico. O governador do Rio de Janeiro dizia na época: “…os negros minas são os de maior reputação para aquele trabalho, dizendo os mineiros que são os mais fortes e vigorosos” (SOBRE A INFORMAÇÃO..., 18 set. 1728, p. 28-30). Eschwege e John Mawe descreveram algumas contribuições técnicas: a introdução da bateia e o uso do couro de bois (MAWE, 1978, p. 134; ESCHWEGE, 1979, p. 167-168). Historiadores têm analisado criticamente a circulação desses saberes, afinal, não é possível afirmar que todas as pessoas trafficadas da Costa Ocidental africana portassem tais conhecimentos. No caso dos artesãos relacionados aos metais, sabe-se que constituíam uma camada privilegiada em diferentes regiões do continente. É preciso considerar contextos específicos que têm a ver com as dinâmicas internas do continente africano — confitos internos, instabilidade política — e o funcionamento do trato das almas. Ainda assim, a participação de mulheres “Mina” na economia aurífera mineira recebeu atualmente uma análise que busca descortinar o universo dos saberes mineralógicos da África Ocidental em Minas Gerais (FURTADO, 2021).
Uma conjuntura menos explorada é a dos africanos da Costa Centro-Ocidental, que compõem a maior região de escravizados que chegaram ao Brasil, temática de que tenho me ocupado recentemente e que pode dialogar com o objetivo de Marques de investigar os impactos da mineração brasileira, em contextos amplos e na longa duração. Raramente pensamos no trajeto de volta, ou seja, como a exploração das Américas impactou a África. A prospecção do ouro no Rio Lombige, na região próxima de Luanda, em meados do século XVIII, portanto, coetânea à exploração aurífera das Minas Gerais, é uma experiência histórica da qual temos poucas notícias e nenhuma atenção da historiografia. Em 1754, surgiram os primeiros rumores de que freire Lourenço de Jesus Maria e o mineiro Caetano Álvares de Araújo descobriram ouro nos rios Lombige e Lifua e andavam minerando pela região. O governador do Reino de Angola conseguiu uma amostra do minério e o enviou para o rei luso, que ordenou que continuasse a averiguar sobre o ouro e contabilizasse o quanto custaria o trabalho de um trabalhador local por dia. Os trabalhadores enviados para o trabalho da prospecção do ouro, em sua maioria dependentes dos líderes locais vassalos dos portugueses, deveriam ser remunerados. Caetano Álvares morou 18 anos em Minas Gerais e teria aprendido a minerar ouro lá; houve acusações de que o ouro em pó que exibia era na verdade oriundo de Minas.
De acordo com essa documentação, os portugueses concluíram as populações locais não exploravam o ouro aluvial — “não alcançam o modo de poderem limpar” (CARTA..., [entre 1754 e 1757]). Entretanto, o governador temia que as minas, se encontradas, jamais estariam seguras porque rapidamente a mineração do ouro seria apropriada localmente já que os africanos eram habilidosos e aprenderiam os descaminhos do ouro. Por isso, receava que qualquer tentativa de guardar militar e fscalmente as minas seria inútil. Não há evidência de que o ouro tivesse um significado especial, em objetos simbólicos ou de valor, para os moradores da região. Ao contrário do cobre que era considerado valioso e, por isso, “cuidavam muito em ocultá-lo” (OFÍCIO..., 28 jun. 1762.). Isso não significa que técnicas de mineração não existissem já que havia ferramentas e expertise em fundição e forja de outros metais e ligas metálicas. Ferreiros e fundidores locais eram conhecidos por sua habilidade em fundir ferro e fabricar objetos para diferentes usos (ALFAGALI, 2018).
As experiências de recrutamento e cotidiano de trabalho, que teria ocupado cerca de 170 mil dependentes dos líderes locais, foram tão traumáticas que, anos depois, outro governador orientava seus funcionários dizendo que era preciso evitar os “meios de que foi assistido o serviço de Lombige” porque desde então as populações locais resistiam a trabalhar para os agentes coloniais (CARTA..., 8 mar. 1766).
Em 1761, o rei de Portugal decretou o “perpétuo silêncio” sobre as minas de ouro do Lombige e a ameaçou aprisionar quem o desafasse. A resolução era tão séria que até mesmo os vestígios dos arraiais onde se trabalhou o ouro foram destruídos. Essa decisão aponta diretamente para a fragilidade do domínio português em Angola. Tantos os reinos e potentados africanos constituíam um perigo interno às frágeis fronteiras da ocupação portuguesa, quanto os franceses, ingleses e holandeses poderiam rapidamente cooptar redes de comércio que os levassem ao ouro. Ou algo ainda pior, o ouro poderia provocar disputas mais acirradas pela região do Reino de Angola, colocando em risco os lucros com a exploração do Brasil, pois os escravizados que abasteciam as economias da América portuguesa eram oriundos majoritariamente desta região do continente africano (CARTA..., 13 nov. 1761).
Ainda que o silêncio tenha reverberado na memória e na historiografia, ao longo do século XIX, outras empreitadas oficiais e de particulares foram feitas no Lombige e resultaram no registro de relatórios e na coleta de amostras de ouro. Em suas memórias, publicadas em Lisboa, em 1896, Francisco Salles Ferreira contou como seu irmão, o engenheiro civil José Damásio de Salles Ferreira, colaborou para Francisco Antonio Flores encontrando uma vasta área de ouro “em palhetas e pepitas, nos leitos e margens dos rios e ribeiras, disseminado nas areias ferruginosas em pó, invisível à olho nu” (FERREIRA, 1896, p. 47-48, 61-63). Não restava dúvida de que na região do Lombige, nos seus afuentes e nas montanhas vizinhas havia ouro. Quando, na segunda metade do século XIX, José Salles Ferreira investigou a região, encontrou mineiros locais ocupados em sistemas de lavagem em pratos ou gamelas côncavas, em “couros peludos de boi” e ferramentas de madeira localmente fabricadas como calhas para lavagem das areias. Por ora, não há como saber se essas técnicas eram empregadas antes da mineração no Lombige, no século XVIII, ou se foram aprendidas, por exemplo, com mineiros oriundos das Minas Gerais que trabalharam em Angola. O evidente é que a mineração aurífera adentrou o Oitocentos com os conhecimentos e adaptações dos mineiros locais.
Ao longo dos séculos XVII-XIX, há relatos de tentativas de controle colonial da exploração do ouro nas terras de Mutapa e Manyika (região atual de Zimbabwe e Moçambique), que também formam um outro elo dos circuitos globais da exploração do minério, que se relaciona aos planos coloniais lusos. O historiador Antonio Nogueira da Costa identifica impactos decorrentes da demanda lusa de aumento produção aurífera, em Mutapa: a desarticulação de comunidades agrícolas, a alta mortalidade dos trabalhos das minas e a expropriação de terras (COSTA, 1982, p. 22-28, 38). Dessa forma, ao analisar circuitos mercantis internacionais que eram mobilizados pelo acesso às minas, é preciso levar em conta seus impactos na produção agrícola e na posse de terras.
Por fim, Allison Bigelow (2020) tem um livro relevante sobre os conhecimentos indígenas e africanos na exploração de metais — ouro, prata, cobre, ferro — nas Américas e sua ligação com os continentes europeu e africanos. Analisa, entre outros, os escritos de Colombo e Oviedo e mostra como metalúrgicos indígenas e africanos ajudaram ou resistiram aos empreendimentos de mineração imperial, moldaram práticas científicas críticas e ofereceram visões criativas do trabalho em metal. Um outro campo de pesquisa pauta-se então nos estudos da linguagem e como ela constrói conhecimentos e a diferença cultural.
Neste breve comentário, apresentei um diálogo bibliográfico que pode ser profícuo, com Toby Green (2019), conexões históricas e culturais entre Brasil e a África Centro-Ocidental e a centralidade da experiência dos trabalhadores que detinham conhecimentos mineralógicos e também dos que contribuíram para o sustento das povoações mineiras.
Comentário historiográfico de um artigo publicado no mesmo número, a partir de pesquisas recentes do projeto “Domínio, política e cultura: relações de trabalho no Atlântico Sul (séculos XVII e XVIII)”.
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. Auxílio ao professor recém contratato – E-26/211.276/2019 (247795)
Não se aplica.
Não se aplica.
Não se aplica.
O artigo não é um preprint.
Não houve confito de interesses
Crislayne Gloss Marão Alfagali: Doutora. Professora Assistente, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Sociais, Departamento de História, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Fábio Augusto Morales
Flávia Florentino Varella (Editora-chefe)
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