Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
Variações nos percursos de vida de jovens de mesma origem social: sequências, eventos e pontos de virada
Ricardo Bernardes Pereira
Ricardo Bernardes Pereira
Variações nos percursos de vida de jovens de mesma origem social: sequências, eventos e pontos de virada
Variations in life paths of young people from the same social background: sequence, events and turning points
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 4, núm. 07, pp. 83-110, 2016
Sociedade Brasileira de Sociologia
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Como jovens de mesma origem social seguem percursos de vida distintos? A partir de vinte entrevistas narrativas, mostro como sequências de eventos, contingências, trajetórias e pontos de virada são elementos centrais para a compreensão dos processos pelos quais trajetórias parciais e potenciais variam entre jovens de mesma origem social. Os resultados mostram que os percursos de vida dos jovens não são totalmente determinados a partir das características individuais e das disposições. Os eventos vivenciados ao longo das trajetórias podem alterar os percursos de modo a criar novas oportunidades ou barreiras.

Palavras-chave:Trajetórias de VidaTrajetórias de Vida,JuventudeJuventude,Sequência de eventosSequência de eventos.

Abstract: How could be it explained that young people, despite sharing the same social origin, follow different life paths? Based on twenty biographical narratives, I show how sequences of events, contingencies, trajectories and turning points are fundamental aspects to understanding young people’s partial and potential trajectories. The research results show that young people’s life paths are not completely predetermined by individual characteristics and dispositions. Events can change life trajectories, creating both new opportunities and barriers.

Keywords: Life trajectories, Youth, Sequence of events.

Carátula del artículo

Artigos

Variações nos percursos de vida de jovens de mesma origem social: sequências, eventos e pontos de virada

Variations in life paths of young people from the same social background: sequence, events and turning points

Ricardo Bernardes Pereira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 4, núm. 07, pp. 83-110, 2016
Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 30 Março 2016

Aprovação: 13 Junho 2016

Como jovens de mesma origem social[1] seguem percursos de vida distintos, alguns ingressando no ensino terciário, outros abandonando precocemente a escola, outros, ainda, entrando em conflito com o sistema de justiça? Este artigo trata de um aspecto da estratificação social pouco teorizado na sociologia, a saber, a alocação diferencial de recursos socialmente desejados entre pessoas de mesma origem social. Compreender por que alguns jovens de origem popular conseguem escapar do “destino” de reproduzir as suas posições sociais, enquanto outros não, pode servir como uma ferramenta para entender em maiores detalhes como operam processos de desigualdade social.

Fatores e processos estruturais exercem uma forte influência sobre as chances de os indivíduos seguirem determinados percursos de vida. Contudo, uma parcela considerável escapa do “destino” de reproduzir o percurso esperado dado pelas condições sociais iniciais. Em 2011, entre os jovens de 18 a 29 anos de idade do quintil mais pobre de renda, 11,5% acessaram o ensino superior, enquanto 88,5% não acessaram. Em relação ao quintil mais rico, essas proporções são 64,6% e 35,4%, respectivamente (PICANÇO, 2015). Apesar de modelos baseados em variáveis[2] explicar, em certa medida, os destinos individuais típicos, as pesquisas que abordam as “trajetórias improváveis” (LAHIRE, 1997) evidenciam que as possibilidades de seguir certas trajetórias dependem de condições que esses modelos não conseguem identificar.

Este artigo insere-se na discussão acerca das variações dos percursos de vida de jovens nascidos e criados em condições sociais semelhantes. Empregando o método de narrativas biográficas, tendo por casos vinte jovens de 18 a 24 (com uma concentração entre aqueles de 18 a 20 anos) de uma cidade pequena do sul do estado de Minas Gerais, busco compreender como os eventos vivenciados ao longo dos percursos podem alterar a direção das trajetórias, de modo a tornar prováveis trajetórias consideradas “improváveis” se fossem levadas em consideração somente as condições iniciais, inclusive as características familiares. Mostro que os efeitos dos eventos sobre a mudança das trajetórias acontecem de forma sequencial, ou seja, os eventos significativos de um percurso de vida condicionam o leque possível de eventos futuros e o ponto final de uma trajetória é resultado de um sequência de eventos significativos.

1. Referencial teórico

A sociologia do percurso de vida oferece um conjunto de orientações e ferramentas analíticas para analisar as inter-relações entre os eventos que compõem o percurso de vida (MAYER, 2009). É uma forma “objetivista” de reconstruir a estrutura diacrônica de eventos e situações.

Os pressupostos analíticos dessa perspectiva são os seguintes:

  1. 1. 1. Experiências anteriores têm um forte impacto sobre os resultados futuros. As mudanças nas vidas humanas são consideradas em um longo período de vida.

    2. Os percursos de vida devem ser estudados de maneira comparativa. 3) Os diferentes domínios da vida têm efeitos uns sobre os outros. Isso significa, por exemplo, que as experiências escolares afetam a inserção no mercado de trabalho.

    3. Experiências anteriores afetam experiências posteriores dentro de um mesmo domínio. Por exemplo, experiências nos primeiros anos da escola têm efeitos sobre as chances de ingresso no ensino superior;

    4. O desenvolvimento do percurso de vida é decorrente de características individuais e da agência, bem como de enquadramentos culturais e de condições institucionais e estruturais;

    5. As vidas humanas se desenrolam em contextos coletivos, tais como família, coortes e grupos de amigos. Isso implica observar os atores sociais sempre em relação com outros atores (MAYER, 2009; VERD; ANDREU, 2011).

Alguns conceitos centrais compõem a perspectiva do curso de vida. São eles: pontos de virada, eventos críticos, trajetórias, transições e estágios, dentre outros. Nesta pesquisa, adoto a teoria de Andrew Abbott (1995, 2001), que basicamente utiliza os conceitos de trajetória, pontos de virada, sequência e eventos.

Os eventos de uma narrativa compõem as sequências. Tratar das sequências implica tratar do ordenamento dos eventos. Sequência é definida simplesmente como uma lista ordenada de elementos (ABBOTT, 1995). Os elementos de uma sequência são eventos, tirados de um conjunto de todos os eventos possíveis em um conjunto de sequências – o universo dos eventos.

  1. 1. 1. As sequências possuem algumas propriedades:

    2. Os eventos de uma sequência podem ser únicos ou podem se repetir. No primeiro caso, trata-se de eventos não recorrentes e no segundo de eventos recorrentes. Eventos não recorrentes, em relação ao curso da vida, são o nascimento, o casamento (em alguns casos) e a morte de uma pessoa. Eventos recorrentes podem ser exemplificados pela ida diária a uma escola;

    3. As sequências podem ter dependência entre os seus estados. Isso significa, na sua forma mais simples, que um elemento da sequência é função dos elementos anteriores;

    4. Podem existir níveis variados de dependência entre as várias sequências. Pode haver sequências em que a ocorrência de um evento impede a ocorrência de um evento em outra sequência. Um exemplo é a ocupação de determinados cargos. Só pode haver um presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia por vez. Assim, o fato de alguém ocupar esse cargo impede a sequência de eventos de outras pessoas, que não poderão ocupá-lo;

    5. A sequência pode ser estudada como variável dependente ou independente (ABBOTT, 1995).

Os eventos de uma sequência são ordenados e a ordem desses eventos importa para a análise. Ter um mau relacionamento com o padrasto durante a infância é diferente de ter um mau relacionamento com o mesmo durante a vida adulta, quando a pessoa possui mais recursos financeiros e maturidade para lidar com a relação. Da mesma forma, a duração é relevante. Contudo, no que diz respeito à duração, é preciso levar em consideração o significado dessa duração. Não se deve assumir que o simples fato de um evento ter longa duração em termos de tempo real signifique necessariamente que seja mais importante do que eventos de curta duração em termos de tempo real. Deve-se também considerar a diferença de tempo entre os eventos de maneira relacional. A diferença de duração entre quatro e dois anos pode ser mais relevante para a explicação de uma sequência do que a diferença de vinte e dezoito anos.

Dentro da teoria sobre narrativas de Abbott, na sua discussão direta com a teoria do percurso de vida, dois conceitos são centrais: trajetórias e pontos de virada (turning points). Os pontos de virada interrompem padrões regulares nas trajetórias de vida. São definidos como mudanças curtas e consequentes que redirecionam um processo (ABBOTT, 2001, p. 258). Nem todas as mudanças podem ser consideradas pontos de virada. Somente assim o são aquelas que sucedem um novo regime.

É na relação entre padrões regulares e coercivos que se distinguem pontos de virada e trajetórias. As trajetórias são inerciais. São episódios da vida com capacidade de se autorregenerar e de se autoperpetuar. Além disso, as trajetórias são coercivas. Elas colocam constrangimentos às variações dos percursos de vida. As estruturas de ações de uma trajetória limitam as possibilidades de seguir percursos alternativos. Abbott coloca o exemplo de um curso de pós-graduação. Uma vez que alguém ingressa num programa de pós-graduação, essa pessoa entra numa trajetória estável constituída por disciplinas, exames e o trabalho da dissertação ou tese. Fazer a pós-graduação estabelece uma rotina de atividades, estável durante certo período, a qual abre pouca margem para mudança.

Os pontos de virada, por outro lado, mudam o rumo dos percursos de vida de forma relativamente abrupta. Ao término de um mestrado, por exemplo, muitos estudantes enfrentam pontos de virada, tendo de decidir entre continuar na pós-graduação, ingressar no mercado de trabalho ou fazer outra coisa da vida.

Portanto, as trajetórias e os pontos de virada são altamente programados nas instituições sociais. Contudo, os pontos de virada também podem acontecer a partir das dinâmicas internas dos percursos de vida, como nos casos da gravidez e do divórcio.

Os pontos de virada distinguem-se dos eventos aleatórios e de pequenos distúrbios para Abbott. O que faz com que um ponto de virada se distinga dos outros dois é que os pontos de virada estabelecem trajetórias com uma duração suficiente para tornar claro que a direção da trajetória mudou.

2. Perspectivas teóricas sobre as variações nos percursos de vida

Três perspectivas teóricas auxiliam a compreender como jovens de condições socioeconômicas relativamente parecidas seguem percursos de vida distintos, diferenciando-se de acordo com o enfoque analítico. São elas: a perspectiva culturalista (BOURDIEU, 2011a, 2011b; LAHIRE, 1997), a perspectiva da escolha deliberada (BOUDON,1974, BREEN; GOLDTHORPE, 2006) e a perspectiva do percurso de vida (ABOTT, 2001). Enquanto a perspectiva culturalista se concentra nos processos de internalização de valores, de esquemas de percepção e de gostos culturais, a perspectiva da escolha deliberada enfatiza as decisões individuais em contextos de riscos, constrangimentos e oportunidades. A perspectiva do percurso de vida, por sua vez, enfoca os eventos vivenciados ao longo das trajetórias.

A perspectiva da “reprodução” ou culturalista postula que a forma mais importante de desigualdade educacional é a relação que os diferentes grupos sociais mantêm com a cultura legítima. Um conceito central nesta perspectiva é o de habitus. Bourdieu define esse conceito como “um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações” (BOURDIEU, 1994, p. 61). O conceito de habitus para Bourdieu é um princípio de apreciação e percepção formado a partir de condições estruturais comuns aos membros de um grupo. Rege as estratégias dos agentes sociais. Pode ser observado na forma de gostos e preferências; visões de mundo; maneiras de gerir o tempo, o orçamento e o corpo; o uso da linguagem e traços de personalidade.

Além do habitus, que explicita a internalização das condições sociais objetivas, a teoria de Bourdieu coloca que as diferenças nas trajetórias segundo a classe social de origem ocorrem cumulativamente e dependem da configuração institucional. Os agentes sociais ajustam as suas ações às condições objetivas, apesar de esse ajuste ser realizado, em larga medida, inconscientemente. É nesse sentido que Bourdieu e Passeron compreendem a expansão do ensino superior francês. Apesar da expansão na oferta de vagas, as diferenças na relação com a cultura legítima, nas orientações escolares e nas aspirações e expectativas, juntamente com a hierarquização das instituições de ensino superior, mantêm as desigualdades sociais[3] (BOURDIEU; PASSERON, 2014; NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2015).

Bourdieu preocupava-se principalmente com a causalidade do provável (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2015), ou seja, com o percurso de vida típico do grupo social ao qual o agente pertence. Lahire, de certa forma, altera a unidade de análise, tratando das trajetórias improváveis. Lahire trata em maior medida das questões de transmissão de disposições e de heterogeneidade das experiências de socialização das classes baixas (LAHIRE, 1997; SETTON, 2005). Segundo o autor, as configurações familiares das classes baixas podem criar disposições que se alinham às exigências escolares, tais como obediência, estabelecimento de uma rotina diária e autodisciplina, dentre outras.

Um segundo campo de teorias assenta-se em maior medida em processos deliberativos. A perspectiva da escolha racional enfatiza as escolhas, os constrangimentos, as preferências, os custos, os benefícios e os riscos.

Breen e Goldthorpe (1996) usam um modelo de escolha racional para explicar as decisões educacionais. Esses autores se baseiam em uma versão fraca de racionalidade. Isso significa que os atores têm objetivos e, ao escolher o curso de ação, tendem em algum grau a avaliar os prováveis custos e benefícios, em vez de seguir irrefletidamente as normas sociais ou expressar valores culturais de forma automática. De acordo com os modelos da escolha deliberada, os atores conhecem em certa medida a sociedade e as situações nas quais estão inseridos.

No modelo de Breen e Goldthorpe (2006), os autores assumem, como primeiro pressuposto, tendo como base a obra de Boudon (1974), que a classe social age sobre as escolhas por meio de efeitos primários e secundários. Efeitos primários são aqueles expressados pela associação que existe entre as origens de classe das crianças e o nível médio de habilidade acadêmica de uma determinada classe social. Efeitos secundários são expressos, por sua vez, pelas escolhas das crianças, feitas juntamente com os pais, que explicam dentro do sistema de ensino as diferenças escolares depois de se controlar por habilidade acadêmica. Um segundo pressuposto do modelo é de que os indivíduos têm como aspiração fundamental evitar a mobilidade descendente.

A decisão de permanecer no sistema de ensino, segundo os modelos da escolha deliberada, depende de três fatores: 1) dos custos financeiros de permanência, os custos esperados referentes à dificuldade de ingresso e de permanência num nível de ensino ou num campo de estudo, e os custos de oportunidade; 2) da probabilidade de sucesso no estágio seguinte de educação, definido pela crença subjetiva sobre as chances de sucesso; e 3) do valor da utilidade atribuída pelos pais e pelos filhos para o abandono, reprovação e aprovação escolares (BOUDON, 1974; BREEN; GOLDTHORPE, 1996).

No Brasil, Picanço (2015) utilizou essa perspectiva para analisar as diferenças nas trajetórias educacionais de pessoas de 18 a 29 anos que concluíram o ensino médio. A pesquisa dessa autora aborda as diferentes estratégias disponíveis entre os jovens: somente trabalhar, trabalhar e estudar, somente estudar, estudar e procurar trabalhar e somente procurar trabalho. Os dados de Picanço mostram uma redução de desigualdades no acesso ao ensino superior entre os anos de 1993 a 2011. Uma parcela dos jovens se mantém fora da aposta no ensino superior apesar de conjunturas mais favoráveis se comparadas ao início da década de 1990. O trabalho de Picanço se assenta na ideia de que os jovens têm diferentes alternativas de ação e que jovens de mesmas características de classe ou “raça” fazem apostas diferentes em suas vidas.

A perspectiva do percurso de vida se contrapõe às perspectivas anteriores no sentido de entender a vida como um processo no qual as experiências, os eventos e os pontos de virada podem alterar ou fortalecer a trajetória dos percursos. Diferentemente da abordagem de disposições, se assume que podem haver mudanças drásticas no percurso de vida se houver pontos de virada e mudanças de contexto consideráveis. Além disso, essa abordagem é menos determinística.

Oferece ferramentas para compreender casos em que os jovens têm trajetórias escolares de sucesso apesar de não terem nascido num ambiente familiar propício para o desenvolvimento de disposições condizentes com as exigências escolares. As decisões têm um papel importante, mas não no sentido de uma escolha racional, mas no de interpretações sobre a realidade as quais geram tomadas de decisão com consequências de longo prazo, estruturando novas trajetórias.

Dois elementos centrais nesta perspectiva são eventos e trajetórias[4]. Assume-se que os indivíduos vivenciam eventos que, a depender das contingências, das interpretações e decisões tomadas, podem criar possibilidades de trajetórias diferentes daquelas traçadas pelas condições iniciais de vida. Portanto, as condições iniciais de vida influenciam os “destinos” sociais, mas não são determinantes (GOMES; TAVARES JÚNIOR, 2016), pois as experiências ao longo da vida podem criar novas possibilidades e constrangimentos. Esses eventos podem gerar rótulos (BECKER, 2009), possibilitar novas carreiras morais (GOFFMAN, 1988), criar identidades, estabelecer novas relações sociais e gerar processos de desvantagens acumuladas ou vantagens cumulativas (RECIO, 2010; DiPRETTE; EIRICH, 2006).

Bittar (2015) utilizou esse referencial teórico para compreender as trajetórias educacionais de jovens residentes em um distrito da periferia de São Paulo. Tomando como base os conceitos de sucesso escolar, a autora cria categorias para diferenciar as trajetórias. O critério utilizado para distinguir as trajetórias escolares de sucesso foi a continuidade na trajetória escolar, observando a distorção idade-série, repetência, evasão escolar e expulsão. A autora mostra que as relações estabelecidas com os elos das esferas de sociabilidade e as formas como os jovens lidaram com as crises explicam as diferenças entre as trajetórias de jovens de origem social semelhante e que tiveram acesso, de um modo geral, a uma mesma escola. Dessa forma, as experiências vivenciadas ao longo do tempo na família, na escola, no mercado de trabalho, na vizinhança, na igreja, no lazer e nos programas sociais (os elos de sociabilidade) estruturam percursos de vida, mas as formas como os jovens lidaram com as crises também parecem explicar as diferenças encontradas.

Neste artigo, abordarei a questão das variações das trajetórias de jovens de mesma origem social segundo as sequências de evento. O objetivo é compreender de que modo eventos vivenciados em um determinado ponto no tempo afetam as experiências posteriores, possibilitando mudanças nos percursos de vida. O método de análise dos dados ancora-se, principalmente, na perspectiva metodológica de Andrew Abbott (2001). A opção por esse autor justifica-se por ele ter sido um dos poucos autores que dialoga com a literatura do percurso de vida a tratar extensivamente dos problemas das sequências, contingências, ordem, recorrência e duração dos eventos. Nas seções seguintes, apresento os procedimentos metodológicos e os resultados da pesquisa. Foram elaboradas duas categorias principais para diferenciar os percursos de vida: os bem-sucedidos na escola - que são aqueles que já concluíram o ensino médio – e os trabalhadores, que são os jovens em que as experiências no mercado de trabalho são centrais em suas vidas.

3. Procedimentos metodológicos

Conduzi entrevistas narrativas com vinte jovens entre 18 a 24 anos de idade, de origem popular, residentes ou nascidos em Campestre-MG. Origem popular foi definido de acordo com a escolaridade dos pais. Foram assim definidos os jovens em que nenhum dos pais tivesse ensino superior completo.

As entrevistas se iniciavam com uma pergunta sobre quem eram os pais dos jovens, o que eles faziam atualmente e até qual ano escolar seus pais tinham estudado. A pergunta seguinte era quais eram as suas primeiras lembranças da vida do entrevistado. A partir daí se desenhava uma entrevista sobre a vida familiar, a trajetória escolar, as experiências no mercado de trabalho, atividades de lazer e vida noturna, envolvimento com a polícia, expectativas futuras, discriminação, problemas de saúde na vida do jovem ou de seus familiares, acontecimentos marcantes e outros possíveis temas relevantes para se compreender a vida do jovem ou os problemas de pesquisa.

Depois de cada entrevista, eu decidia qual seria o perfil ideal dos novos entrevistados para as próximas entrevistas. Dentro do grupo da classe popular, procurei jovens com trajetórias distintas. Entrevistei jovens que ingressaram na universidade, jovens que tiveram envolvimento com furtos e tráfico de drogas, que se casaram, que conviviam com os jovens da elite da cidade, que viveram na extrema pobreza e moradores da zona rural ou urbana.

De um modo geral, as entrevistas duraram de uma hora a uma hora e meia. A entrevista de menor duração foi de trinta minutos e a maior, uma hora e cinquenta.

Com relação às características dos participantes, dezessete do total de vinte entrevistados têm idade compreendida entre 18 a 20 anos. No total dos entrevistados, doze autoclassificam-se como negros, se considerarmos dessa forma aqueles que se autoidentificam pelos termos negro, pardo, preto e correlatos, tais como moreno, mulato e mestiço[5].

No que diz respeito às características familiares, de um certo modo, a escolaridade da mãe ou do responsável variou entre analfabeto (quatro casos[6]) a ensino superior completo (um caso)[7]. A maioria dos entrevistados tem pais com o ensino fundamental incompleto (12 casos). Três mães ou responsáveis têm o ensino médio completo.

Nove dos vinte entrevistados foram criados em uma estrutura familiar biparental. Nos demais, observa-se casos em que o entrevistado, durante a maior parte de sua vida, foi criado pelos avós, pela mãe, por pais adotivos ou com a presença do padrasto.

Os responsáveis dos entrevistados estão ocupados, de um modo geral, em postos de baixa qualificação no mercado de trabalho. Apenas em dois casos, o responsável está inserido em atividades profissionais, sendo que, em um deles, o pai é empregado de uma empresa pública e no segundo a mãe é professora. A ocupação mais precária entre os entrevistados é a de safrista. Neste caso, o responsável trabalha de três a cinco meses no ano na lavoura de café, principal atividade produtora do município. É uma ocupação temporária de salário flexível e de alto esforço físico em que, em muitos casos, o empregador não registra formalmente os seus empregados.

A análise dos dados buscou identificar os principais pontos de virada dos percursos de vida dos participantes por meio da definição do próprio entrevistado sobre os principais pontos de virada de seu percurso de vida e pela análise do pesquisador sobre o fluxo dos eventos.

4. Resultados

A fim de se compreender as variações atuais nos percursos de jovens de mesma origem social, esta pesquisa focalizou em dois aspectos: educação e mercado de trabalho. Foram elaboradas duas categorias: jovens bem-sucedidos na escola e trabalhadores. A primeira categoria refere-se àqueles que já concluíram o ensino médio. Essa definição justifica-se pelo fato de que dezessete do total de vinte entrevistados tinham entre dezoito a vinte anos e muitos tinham terminado o ensino médio recentemente. Apenas três já tinham ingressado no ensino superior. A segunda categoria diz respeito aos jovens que já estão inseridos no mercado de trabalho, não terminaram o ensino médio e não têm perspectiva de terminá-lo nos próximos anos.

5. Os bem-sucedidos na escola

Esta categoria é formada por três subcategorias: os estudantes no ensino superior; os pretendentes a uma vaga no ensino superior e os sem planos de ingressar na próxima etapa de formação.

As configurações familiares desses jovens são variadas. Apenas seis de onze jovens bem-sucedidos na escola foram criados durante toda a vida em uma configuração biparental. Dois deles nasceram de relacionamentos casuais, nunca tendo a figura paterna em casa. Em dois casos, os pais se separaram durante a infância e, em um deles, o pai faleceu quando o entrevistado ainda era criança.

A característica mais comum neste grupo é, em primeiro lugar, a regulação familiar. Em todos os casos, é descrito um monitoramento da rotina e das atividades ou uma expectativa de que o filho aja de acordo com as normas. A regulação acontece por meio do monitoramento de quem são as amizades do filho, dos lugares onde o filho frequenta e dos horários de chegada e partida. Além disso, há uma segunda forma de regulação relacionada à educação. Neste caso, os pais monitoram as atividades escolares, conferem o desempenho escolar, participam das reuniões escolares, conversam com os professores ao encontrá-los na rua, exigem que o filho reserve um horário de estudos e compram livros e revistas educativos. Há, também, uma regulação moral, relacionada ao uso de drogas lícitas e ilícitas, aos relacionamentos afetivos e sexuais dos filhos e ao desenvolvimento do caráter de uma “pessoa honesta”.

Uma segunda característica que perpassa a maioria das trajetórias é que, em comparação com os jovens inseridos em outras categorias, eles tiveram relações familiares relativamente harmoniosas. Nenhum deles teve problemas com o padrasto ou com os irmãos. Nenhum entrevistado viveu por um longo período em uma casa de constantes conflitos. Nenhum viveu em casas abarrotadas de pessoas da família extensa. Nos casos em que os pais se separaram, observa-se um período de instabilidade, mas que, devido ao processo de regulação da trajetória, isso não desencadeou em alterações drásticas nas trajetórias.

5.1 Os bem-sucedidos na escola: os estudantes de ensino superior

São três os casos de jovens ingressantes no ensino superior. Esses jovens apresentam poucas características diferentes dos jovens que se preparam para entrar na universidade, nem mesmo em termos de desempenho escolar.

5.2 As sequências dos estudantes de ensino superior

O modelo analítico é uma aproximação da teoria de Andrew Abbott (1990, 1995, 2001, e ABBOTT; HRYCAK, 1990). As sequências abaixo descrevem os eventos-chave para a compreensão do ponto atual do percurso de vida. Deve-se notar que os eventos se sobrepõem em muitos casos, que eles se dividem em eventos recorrentes e não recorrentes e que o sinal -> não significa necessariamente uma relação de causa e efeito. O tipo de análise realizado é métrico, pois o que interessa é comparar as sequências para saber a distância entre os percursos de vida, e não elaborar uma sequência típica como faz o método algébrico.

Alberto[8]: Características individuais e familiares – Autodeclara-se pardo. Sua mãe o teve quando ela ainda era adolescente num relacionamento casual com um vizinho. Foi criado pela sua mãe, sua avó paraplégica e, durante parte da infância, pela sua bisavó. Sua família era católica praticante, sendo que o desejo de sua mãe e de sua avó era de que se tornasse padre. Era controlado pela família durante a infância, não podendo sair de casa depois do anoitecer. Sua avó controlava as suas amizades. Não era cobrado pela mãe e pela avó nos estudos. Seu pai é considerado pelas mulheres que o criaram como um homem “festeiro”, “mulherengo” e usuário de drogas ilícitas. Seu pai era utilizado como um exemplo daquilo que Alberto não deveria ser. Atualmente estuda numa universidade privada em São Paulo-SP.

Sequência até o ensino superior: Nascimento –> mal aluno na escola –> pouco exigido nos estudos pela família –> repetiu a sétima série –> insatisfação com o mercado de trabalho local –> entrada no mercado de trabalho aos 17 anos –> oportunidade de emigrar para São Paulo devido às condições específicas de sua família –> ingresso em uma universidade privada de São Paulo-SP.

Mariano: Características individuais e familiares – Autodeclara-se moreno escuro. Nasceu numa família biparental. Seus pais são católicos praticantes. Ambos os pais estudaram até a sétima série. Possui duas irmãs. Era intensamente cobrado nos estudos. Tinha o comportamento regulado pelos pais. Estuda numa universidade privada numa cidade vizinha.

Sequência até o ensino superior: Nascimento –> melhor aluno na escola –> nível moderado de cobrança dos estudos pelos pais –> convívio com jovens que aspiram ao ensino superior –> rotina de estudos intensa no ensino médio –> ingresso no mercado de trabalho aos 18 anos –> ingresso no ensino superior em uma instituição privada em uma cidade vizinha três meses depois de ingressar no mercado de trabalho;

Matias: Características individuais e familiares –Autodeclara-se branco. Sua mãe o teve num relacionamento casual durante a juventude. Foi criado pela mãe, pela avó e por alguns tios. É o único entrevistado em que a mãe possui ensino superior completo. Foi fortemente regulado durante toda a sua vida. Sua rotina era controlada pela sua mãe, mesmo durante o ensino médio. Atualmente, estuda numa universidade pública da região. Nunca trabalhou.

Sequência até o ensino superior: Nascimento –> ótimas notas na escola –> nível elevadíssimo de cobrança da mãe pelos estudos –> intenso controle familiar –> conquista de bolsa de estudos em uma escola privada –> aprovado em uma universidade pública da região.

Comparando as sequências desses jovens, observamos que o ingresso no ensino superior distingue-se de acordo com o tipo de universidade e a localidade. Matias foi o único a ingressar numa universidade pública. Esse jovem teve a característica de ser cobrado pelos estudos durante toda a sua trajetória escolar. Sua mãe controlava a sua rotina de modo a reservar diariamente um tempo de seu dia para estudar. Depois de ter terminado o ensino fundamental em Campestre, conseguiu uma vaga numa escola privada em Poços de Caldas, seguindo uma trajetória escolar típica de quem é de classe média no município. Ao término do ensino médio, o intenso investimento de sua mãe nos estudos de seu filho e a relativa aceitação de Matias a essa ação dela fizeram com que Matias estivesse preparado para ingressar em algumas universidade públicas. Ingressou numa universidade da região, mas sua nota não lhe possibilitou ingressar na universidade que desejava.

Mariano ingressou na universidade privada mais prestigiada da região com uma bolsa integral do PROUNI. Durante todo o ensino fundamental, ele não tinha o hábito de estudar fora do período de aulas, mas sempre realizava os deveres de casa e as atividades exigidas pelos professores em sala de aula. No primeiro ano do ensino médio, por pressão de sua família e por interesse próprio, iniciou a preparação para o ingresso na universidade. Frequentava as aulas da escola de manhã, passava as tardes estudando para o vestibular e à noite fazia curso técnico de informática. Lançou mão do aprendizado da autodisciplina e autocontrole, que já tinham sido desenvolvidas na infância, para que alterasse a sua rotina de modo a preparar-se para conquistar uma vaga na universidade. Diferentemente de Matias que desde criança foi treinado a estudar, Mariano apenas intensificou sua rotina de estudos quando vislumbrava de modo palpável o ingresso na universidade. Devido ao sentimento de apego ao lar, optou por uma universidade na própria região. Observa-se nesse caso que a decisão deliberada de ingressar na universidade acionou disposições potenciais a fim de atingir o objetivo almejado.

Alberto é o único a ter saído do sul de Minas para ingressar no ensino superior. Diferentemente dos outros dois, não tinha altas notas na escola nem era cobrado pela família para que estudasse e ingressasse na universidade. O seu ingresso à universidade é explicado principalmente pela sequência de eventos do seu percurso de vida. Alberto era um jovem altamente adaptado ao ambiente escolar. A escola era percebida de forma positiva por ele por ser o espaço onde encontrava os seus amigos, fazia novas amizades e ocupava o seu tempo. Evadir a escola não lhe era uma opção desejável, pois estava ajustado à essa situação. Assim como os outros dois, Alberto sofria um intenso controle familiar, mas que era dirigido principalmente à regulação de seu comportamento moral. O controle familiar de Matias era mais intenso com relação aos estudos e já no caso de Mariano as duas formas de controle estavam presentes.

Algumas condições específicas possibilitaram o ingresso de Alberto ao ensino superior. A principal delas é a relação de sua família com os parentes de São Paulo, o que garantiu a esse jovem a possibilidade de emigrar para um grande centro urbano com poucos custos. Além disso, Alberto conseguiu uma bolsa parcial pelo PROUNI e ainda foi contemplado com um financiamento do FIES. A nota que Alberto obteve no ENEM não o diferencia do grupo dos pré-universitários, mas o fato de ter uma família que o possibilitou emigrar para São Paulo-SP ampliou as suas chances de ingresso e, além disso, possibilitou ampliar as suas aspirações uma vez que a restrição de viver em cidades pequenas e médias não condiz com a profissão de cineasta.

Observamos nesses casos que a família tem, em certa medida, capacidade de controlar as experiências dos filhos a fim de evitar trajetórias indesejáveis. Além disso, os recursos familiares diferenciam-se entre os jovens. O principal fator que possibilitou Alberto a ingressar no ensino superior foi o capital social provido pelos seus parentes. Finalmente, eventos, disposições e decisões deliberadas agem conjuntamente. A decisão de Mariano partiu de uma escolha deliberada, que acionou disposições potenciais de modo a condicionar eventos que possibilitaram o ingresso ao ensino superior.

Dois dos jovens ingressantes eram calouros no momento da entrevista. Diferenciá-los do grupo de pré-universitários é uma tarefa que exige muito cuidado, pois espera-se que alguns dos jovens do último grupo consigam uma vaga nos próximos semestres ou anos.

6. Os bem-sucedidos na escola: os pré-universitários
6.1 As sequências dos jovens que pretendem ingressar na universidade

A fim de ilustrar as sequências dos jovens pré-universitários, foram selecionadas três sequências.

Geraldo: Seus pais se separaram quando ele tinha 12 anos. Autodeclara-se negro. Não nasceu numa família religiosa. Possui dois irmãos. Sua mãe possui ensino fundamental incompleto e seu pai, ensino médio completo. Apresentou precocemente um elevado desempenho escolar. Não era cobrado pela mãe nos estudos. Pretende ingressar em uma universidade pública. Começou a trabalhar aos dezessete anos. Autodeclara-se negro. Nasceu em uma família “inter-racial”.

Sequência: Nascimento -> entrada na escola -> separação dos pais quando Geraldo tinha 13 anos -> abandonou a escola no 2º ano do ensino médio por um desentendimento com um professor -> obtenção do diploma de ensino médio por meio do ENEM -> dois anos de depressão -> inscrição no curso de Física em uma universidade pública -> não aprovação

Nicolau: Nasceu numa família monoparental. Autodeclara-se branco. Seu pai morreu quando tinha quatro anos de idade. Possui três irmãos. Sua mãe controlava a sua rotina e o seu comportamento por medo de perder a guarda de Nicolau. Ela possui ensino médio completo. Nasceu numa família católica praticante. Seu irmão mais velho assumiu o papel de pai, o que foi legitimado por Nicolau. Prepara-se para ingressar no ensino superior, de preferência numa universidade pública fora do sul de Minas Gerais. Começou a trabalhar no negócio da família aos oito anos.

Sequência: Nascimento –> pai morreu quando tinha quatro anos –> ingresso na escola –> aos oito anos começou a ajudar o irmão no bar da família –> matrícula em um curso técnico em Poços de Caldas –> fechamento do negócio da família aos 17 anos de idade –> inscrição no SiSU –> não aprovação

Olívio: Nasceu numa família biparental. Autodeclara-se branco. Possui um irmão, que sempre serviu a ele como uma figura exemplar. Sua mãe é católica praticante. Seu irmão o cobrava nos estudos. Ambos os pais estudaram até a sexta série. Atualmente, prepara-se para ingressar num curso da área da saúde numa universidade pública da região.

Sequência: Nascimento –> separação dos pais quando tinha quatro anos de idade –> mudança para a zona rural –> reatamento do casamento de seus pais quando tinha seis anos de idade -> mudança para a zona urbana aos 10 anos de idade -> entrada no mercado de trabalho aos 15 anos de idade -> conclusão do ensino médio -> entrada na academia de musculação -> mudança de identidade -> emigração para Poços de Caldas -> retorno para Campestre oito meses depois -> inscrição no SiSU por três anos seguidos -> não aprovação

A característica mais comum desse grupo é não ter passado por pontos de virada que alteraram drasticamente a trajetória de suas vidas. Eles entraram na escola e terminaram o ensino médio. Nenhum deles foi reprovado na escola. Eles vivenciaram eventos com possibilidades de gerar pontos de virada, como separação dos pais, mudança de cidade e morte, mas esses eventos não interferiram nas suas trajetórias escolares. Para compreender porque esses pontos de virada não aconteceram é preciso analisar cada caso.

No caso de Geraldo, os principais pontos de virada por que passou foram a separação dos pais e a evasão escolar no segundo ano do ensino médio. Ele nasceu numa família com poucos recursos econômicos. Sua mãe trabalha como serviços gerais, enquanto seu pai não paga a pensão familiar há sete anos. A baixa escolaridade de seus pais, a baixa renda familiar, o ambiente familiar conflituoso no período anterior à separação dos pais e a residência em um bairro relativamente distante do centro e de pouca infraestrutura urbana podem ser facilmente convertidos em uma trajetória de fracasso escolar, a depender de alguns eventos recorrentes e não recorrentes. Geraldo apresentou um desempenho escolar elevado tão logo iniciou os estudos.

Aos dez anos de idade, segundo sua narrativa, conta que já tinha um forte interesse por estudar que se manifestou, provavelmente, pela precocidade no aprendizado da leitura e da escrita. A precocidade no aprendizado na leitura contribuiu para a formação de uma identidade que valoriza os estudos, a qual foi alimentada pelo fato de ter proporcionado reconhecimento social. O evento que possibilitou a formação de uma identidade favorável aos estudos é, no caso de Geraldo, em larga medida, contingencial. Os seus pais nunca lhe exigiram um bom desempenho nos estudos e os irmãos de Geraldo seguiram uma trajetória escolar bastante diferente da dele, marcada por abandono e reprovação.

Nicolau, por sua vez, perdeu o seu pai quando tinha quatro anos de idade. Como era muito jovem, não possui lembranças do ocorrido. A morte precoce de seu pai associa-se à entrada no mercado de trabalho aos oito anos de idade, para ajudar o irmão no negócio da família. A ausência de mudanças na trajetória de Nicolau explica-se pelo intenso esforço de sua mãe em controlar as suas atividades e a forma pela qual Nicolau definiu certas situações.

No caso de Olívio, o principal ponto de virada capaz de alterar a sua trajetória escolar foi a separação dos seus pais. Esse evento aconteceu quando ele ainda era criança, idade em que manter o filho na escola é uma obrigação prevista em lei. O fato de ele ter se tornado um bom aluno apesar da baixa escolaridade de seus pais é explicado pela influência do seu irmão e pelas amizades que fez com jovens da cultura “nerd”. Os elos de sociabilidade de Olívio são um dos elementos para a compreensão da formação de uma identidade “nerd” durante a infância e início da adolescência.

Portanto, para compreender as razões pelas quais o percurso de vida dos jovens não foi alterado de modo a se resultar numa evasão escolar, é preciso compreender cada caso. A socialização prévia, as identidades formadas no início da infância, o momento em que os eventos ocorrem (como o exemplo da reprovação escolar) e o controle da trajetória pelos pais são elementos que explicam por que certas trajetórias acontecem (ou não acontecem).

Campestre é uma cidade em que, em 2010, somente 39% dos jovens de 18 a 20 anos possuíam ensino médio completo (PNUD, 2013). Terminar o ensino médio dado que a pessoa possui uma origem popular já é algo digno de ser explicado. Entretanto, também é preciso entender os motivos pelos quais esses jovens ainda não ingressaram no ensino superior.

Geraldo, Nicolau e Olívio concentraram os seus esforços em ser aprovados em instituições públicas. A nota obtida no ENEM, pelo que contam, oscilou entre 550 a 580. Essas notas os colocam acima da média nacional, que é de 500, mas ainda assim abaixo das notas de corte em instituições públicas concorridas ou em cursos disputados. O jovem que tentou uma vaga em um curso na área de saúde numa universidade pública da região relata que apenas não conseguiu uma vaga no curso que pretendia pelo fato de a sua nota na redação ter sido inferior à nota mínima exigida.

Os meios alternativos para ingressar na universidade, como conseguir uma bolsa pelo PROUNI ou pelo FIES, ou, então, trabalhar para pagar a mensalidade, ainda não foram utilizados. É provável que, caso não sejam aprovados nos próximos anos, esses jovens tenham de procurar outras formas de ingressar no ensino superior.

7. Os trabalhadores

Os trabalhadores são os jovens que não terminaram o ensino médio, já estão participando no mercado de trabalho e nunca entraram em conflito com a lei. São jovens que, de um modo geral, atribuíam pouco valor à escolarização, foram constantemente reprovados, não percebiam a escola como um bom lugar para se estar e valorizavam mais o trabalho e os relacionamentos afetivos do que a escola. Foram criados em famílias menos harmoniosas do que os jovens bem-sucedidos na escola, tendo enfrentado problemas de relacionamento com o padrasto, de brigas constantes entre o pai e a mãe, de morte de membros da família e de familiares alcoólatras. Problemas de morte na família e de briga constante entre o pai e a mãe também estiveram presentes nas trajetórias de alguns jovens bem-sucedidos na escola. A diferença entre as sequências dos bem-sucedidos na escola e dos trabalhadores disciplinados é a duração, o momento e a intensidade do evento e a forma como os eventos interagem com outras condições.

7.1 Sequências dos trabalhadores

Foram selecionadas três sequências de jovens trabalhadores.

Hélder

Características: Autodeclara-se “moreno escuro”. Nasceu numa casa onde moravam sua mãe, um irmão, dois tios, duas primas e sua avó. Sua mãe é analfabeta e trabalha como apanhadora de café.

Sequência: Nascimento -> entrada na escola -> sentimento de que aqui não é o meu lugar -> adoecimento de sua avó -> entrada no mercado de trabalho aos oito anos de idade -> mudança para uma comunidade religiosa -> morte de sua avó -> retorno para a casa de sua família -> abandono escolar -> torna-se um dos principais provedores aos doze anos de idade -> consegue emprego no setor de serviços aos 15 anos de idade.

Rubens

Características: Autodeclara-se moreno. Foi abandonado pela mãe biológica quando ainda era recém-nascido. Morou num orfanato até os quatro anos de idade, quando foi adotado pela família atual. A mãe adotiva de Rubens tem sete filhos, enquanto seu pai adotivo tem onze. Juntos, sua mãe e seu pai adotivos possuem apenas uma filha. Sua mãe biológica possui quatro filhos. Não sabe ao certo quantos filhos tem o seu pai biológico. Nasceu na zona rural do município e mudou-se para a zona urbana por volta de dez anos de idade. Aos dezessete anos de idade, passou por uma transformação radical na sua identidade, tornando-se religioso. Atualmente é casado há um ano.

Seus pais adotivos são analfabetos.

Sequência: Nascimento -> abandono pela mãe -> entrada no orfanato -> adoção -> entrada na escola -> mudança para a zona urbana -> entrada no mercado de trabalho -> reprovação escolar -> apaixona-se por uma moça aos 17 anos -> radical mudança de identidade -> evade a escola no primeiro ano do ensino médio para passar mais tempo com a namorada -> casamento.

Valdir

Características: Autodeclara-se branco. Sua mãe mudou-se para o interior de São Paulo quando tinha dois anos de idade para morar com o ex-padrasto de Valdir. Por ser o filho mais velho de sua mãe, narra que tinha a responsabilidade de cuidar dos seus três irmãos para que sua mãe e seu padrasto pudessem trabalhar nas lavouras de laranja. Tem baixa autoestima devido à sua posição social, considerando-se “feio”, “burro” e “pobre”. É uma pessoa de poucas amizades. Atualmente, encontra-se desempregado, mas trabalha na colheita de café de quatro a cinco meses no ano. Sua mãe é analfabeta funcional.

Sequência: Nascimento -> mudança para o interior de São Paulo -> entrada na escola -> responsabilidade de cuidar dos irmãos -> abandono escolar na sexta série -> mudança para Campestre -> dois anos desempregado -> entrada no mercado de trabalho -> separação da sua mãe e do seu padrasto -> perde o emprego -> passa os últimos quatro anos trabalhando apenas na colheita de café.

As sequências desses jovens evidenciam, em comparação com os bem-sucedidos na escola, um maior número de pontos de virada. Esses jovens inseriram pontos de virada em suas vidas que provavelmente não aconteceriam na maioria dos casos de jovens bem-sucedidos na escola. Evadir a escola para investir num relacionamento amoroso, morar em uma comunidade religiosa aos nove anos de idade e mudar-se para São Paulo durante o início da puberdade são eventos que dificilmente aconteceriam nas famílias dos bem-sucedidos na escola. A capacidade das famílias de controlar as trajetórias dos filhos é menor nesse grupo. Esses eventos se justificam pela instabilidade moral, material e afetiva dos lares em que foram criados.

Além disso, a trajetória desses jovens é comparativamente mais contingente do que a dos jovens inseridos em outras categorias. A relação amorosa de Rubens aos dezessete anos de idade teve várias consequências para a sua vida. Primeiramente, esse evento está associado ao abandono escolar. Como Rubens trabalhava e estudava, e essas atividades consumiam uma elevada quantidade de tempo, ele optou por abandonar a escola para conseguir passar mais tempo com a sua namorada. Além do mais, o seu namoro alterou a sua identidade. Rubens deixou de associar-se, em certa medida, a uma subcultura rebelde para tornar-se um fiel religioso. Do mesmo modo, uma série de contingências aconteceu na vida de Hélder. Aos oito anos de idade, ele mudou-se para uma comunidade religiosa, o que aliviou a situação de pobreza em que estava inserido. A morte de sua avó e de seu tio, associada à pobreza que sua família já experimentava, contudo, tiveram como consequência a responsabilização de Hélder, aos doze anos de idade, pelo provimento do lar e a saída da comunidade religiosa.

Considerações finais

Um dos elementos centrais para compreender como jovens de mesma origem social seguem percursos de vida distintos são as sequências de eventos ao longo das trajetórias. Os eventos vivenciados são um dos elementos centrais para compreender as variações dos percursos de vida de jovens de mesma origem social, agindo de maneira conjunta com a socialização e as decisões deliberadas. As decisões deliberadas podem acionar disposições potenciais e condicionar novas trajetórias que estruturam os percursos de vida. Existe um elevado grau de contingência nos percursos de vida, de modo que não é totalmente previsível a trajetória de um jovem segundo aspectos estruturais como renda dos pais, ambiente familiar e regras institucionais. Sequências, eventos e definições de certas situações são capazes de mudar o rumo das trajetórias, estabelecendo pontos de virada que redirecionam os percursos de vida de modo a tornar prováveis trajetórias que seriam improváveis se levadas em consideração apenas aspectos estruturais.

As sequências dessa pesquisa mostram que eventos fortuitos como apaixonar-se por alguém aos dezessete anos, ter uma desavença com um professor de ensino médio e o adoecimento e morte de um membro da família podem alterar as trajetórias. Além disso, eventos não fortuitos, mas que também não são totalmente pré-determinados pelas características dos jovens, influenciam as trajetórias. Exemplos disso são a reprovação escolar, o aprendizado precoce da leitura, a decisão de emigrar, o vício em drogas, o curso universitário escolhido e a inserção em uma nova turma de amigos[9]. O controle ativo e permanente da trajetória exercido pelos pais é um dos processos pelos quais a sequência “nascimento -> entrada na escola -> conclusão do ensino médio” se torna possível, embora a força de alguns eventos e a ação dos jovens enfraqueçam, em alguma medida, esse controle.

As variações nos percursos de vida de jovens de mesma origem social podem ser analisadas segundo diversas lentes. Nesta pesquisa, optou-se por diferenciar os jovens segundo a conclusão do ensino médio e a evasão escolar. Nesse sentido, foram criadas as categorias bem-sucedidos na escola e trabalhadores. Pesquisas futuras podem trabalhar com outras categorias, baseadas na inserção em carreiras criminosas ou na não participação no mercado de trabalho nem nas instituições escolares (o grupo popularmente chamado de “nem nem”).

Uma limitação dessa pesquisa é que a maioria dos jovens entrevistados tem entre 18 a 20 anos de idade, momento em que a posição social está pouco definida. Pesquisas futuras podem tratar desse problema com pessoas que estão em um momento de suas vidas mais bem definido em termos de escolaridade e inserção no mercado de trabalho.

Material suplementar
Referências bibliográficas
ABBOTT, A.; HRYCAK, A. (1990), “Measuring Resemblance in Sequence Data: an Optimal Matching Analysis of Musicians’ Careers”. American Journal of Sociology, vol. 96, nº1.
ABBOTT, A. (1990), “A Primer on Sequence Methods”. Organization Science, vol. 1, nº 4.
ABBOTT, A. (1995), “Sequence Analysis: New Methods for Old Ideas”. Annual Review of Sociology, vol. 21, 1995.
ABBOTT, A. (2001), Time Matters: On Theory and Method. Chicago: University of Chicago Press.
BECKER, H. S. (2009), Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, p. 231.
BITTAR, M. (2015), “Trajetórias educacionais de jovens residentes em um distrito da periferia de São Paulo”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 30, n. 89, p. 47-61.
BOUDON, R. (1974), Education, opportunity, and social inequality. New York J. Wiley.
BOURDIEU, P. (1994), “Esboço de uma Teoria da Prática”. In: ORTIZ, Renato. Pierre Bourdieu: Sociologia. 2ª edição, São Paulo: Ática, 1994.
BOURDIEU, P. (2011a), Razões práticas: sobre a teoria da ação. 11. ed. Campinas: Papirus, p. 224.
BOURDIEU, P. (2011b), A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk.
BOURDIEU, P. PASSERON, J. C. (2014), Os Herdeiros: Os estudantes e a cultura. Florianópolis: Editora da UFSC.
BREEN, R.; GOLDTHORPE, J. (2006), ”Explaining Educational Differentials: Towards a Formal Rational Action Theory”. In: The Inequality Reader: Contemporary and Foundational Readings in Race, Class, and Gender, 2nd Edition, edited by David B. Grusky and Szonja Szelényi.
DiPRETE, T.; EIRICH, G. (2006), “Cumulative Advantage as a Mechanism for Inequality: A Review of Theoretical and Empirical Developments”. Annual Review of Sociology, vol. 32.
GOFFMAN, E. (1988), Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC.
GOMES, V.; TAVARES JÚNIOR, F. (2016), “Jovens em Contextos Sociais Desfavoráveis e Sucesso Escolar no Ensino Médio”. Educação e Realidade, v.
LAHIRE, B. (1997), Sucesso Escolar nos meios populares: As razões do improvável. São Paulo: Ática.
MAYER, K. U. (2009), “New directions in life course research”. Annual Review of Sociology, v. 35, p. 413-433.
NOGUEIRA, C.; NOGUEIRA, M. A. (2015), “Os Herdeiros: fundamentos para uma sociologia do ensino superior”. Educação e Sociedade, vol.36, n.130.
PEREIRA, R. B. (2016), “Como jovens de mesma origem social seguem percursos de vida distintos: O caso de Campestre-MG”. Dissertação de mestrado, Porto Alegre: UFRGS.
PICANÇO, F. (2015), “Juventude por cor e renda no acesso ao ensino superior: somando desvantagens, multiplicando desigualdades?” Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 30, n. 88, p. 145-181.
PNUD (2013), Atlas do Desenvolvimento Humano. Disponível em: http:// www.atlasbrasil.org.br/2013/. Acesso em 21 de março de 2016.
RECIO, M. E. M. (2010), Desigualdades na pobreza: trajetórias e transições em uma favela paulistana. Tese de Doutorado. USP - São Paulo.
SETTON, M. G. J. (2005), “Um novo capital cultural: Pré-disposições e disposições à cultura informal nos segmentos com baixa escolaridade”. Educação e Sociedade, Campinas, vol. 26, n. 90.
SMALL, M. L. (2009), “How many cases do I need? On the logic of caseselection in field-based research. Ethnography, vol. 10, nº 1.
VERD, J. M.; ANDREU, M. L. (2011), “The Rewards of a Qualitative Approach to Life-Course Research: The Example of the Effects of Social Protection Policies on Career Paths”. Forum Qualitative Social Research, v. 12, n. 3.
Notas
Notas
1 Origem social, neste artigo, diz respeito tanto a questões de classe social quanto ao espaço geográfico onde os jovens nasceram ou foram criados.
2 Por modelos baseados em fatores estruturais, refiro-me, especialmente aos modelos que explicam a sociedade a partir de “forças causais”, tais como a “raça”, o gênero, a classe social de origem, a escolaridade dos pais, dentre outros fatores (ABBOTT, 2001).
3 Em trabalhos posteriores, Bourdieu complexifica a questão da durabilidade das desigualdades apesar de mudanças institucionais com a análise sobre os capitais.
4 A definição desses conceitos será feita mais abaixo.
5 Para classificar os entrevistados segundo a cor ou a “raça”, perguntei a eles como se autoclassificam. Diversas respostas foram dadas, como “moreno escuro”, “moreno”, “mulato”, “negro, apesar de ser moreno”, dentre outras. Agregando as respostas dos termos não-brancos (moreno, pardo, mulato, negro e preto), doze entrevistados foram classificados como negros.
6 Analiticamente, utilizei a diferenciação de casos e amostras de Small (2009). O termo amostra, segundo esse autor, exige estudar a representatividade de algo. Nesta pesquisa, eu analiso a complexidade de cada entrevista em si mesma. Essa diferenciação tem várias implicações para o desenho da pesquisa e sobre a postura do pesquisador. A saturação teórica, por exemplo, é obtida segundo a lógica de entrevistas como casos pelo esgotamento de todas as possibilidades de variação.
7 Embora a definição de origem popular exclua os filhos de ao menos um dos pais com ensino superior, incluí um caso que não se encaixa nessa definição pelo fato de ele ter sido criado principalmente pela avó, que é semianalfabeta.
8 Todos os nomes são fictícios.
9 Estas conclusões estão mais evidentes em Pereira (2016).
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc