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A outra face da desigualdade: a articulação das elites no campo da filantropia e investimento social privado
The other face of inequality: the articulation of elites in the field of philanthropy and private social investment
A outra face da desigualdade: a articulação das elites no campo da filantropia e investimento social privado
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 4, núm. 07, pp. 135-174, 2016
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepção: 30 Março 2016
Aprovação: 01 Agosto 2016
Resumo: O que está em jogo para as elites econômicas e políticas transnacionais quando se fala em filantropia e investimento social privado? Como esses atores desenvolvem suas práticas e discursos filantrópicos? Como se inserem em uma rede transnacional de elites filantrópicas? Essas são algumas das questões deste estudo, realizado por meio de observação participante em eventos e entrevistas em profundidade com filantropos, investidores sociais e experts na área. Foi possível analisar indivíduos e organizações que buscam desenvolver no Brasil o que norte-americanos têm chamado de filantrocapitalismo ou filantropia centrada na lógica de mercado, por um lado, e a filantropia progressista ou de justiça social, por outro. No cenário nacional, recorrendo à formação histórica do Estado patrimonial e a centralidade do financiamento público, proponho o termo filantroestatismo. Por meio destas estratégias, a elite desenvolve práticas de governança e projetos que impactam os setores mais pobres da população, mas que ainda pouco ou nada fazem pela redução da concentração de renda e desigualdade social no país.
Palavras-chave: Filantropia, Elites, Desigualdade social, Justiça social, Investimento social privado.
Abstract: What is at stake for economic and political transnational elites when it comes to philanthropy and private social investment? How do these actors develop their philanthropic practices and discourses? How do they connect in transnational networks of philanthropic elites? These are a few questions addressed in this paper. I conducted fieldwork through participant observation and in depth interviews with philanthropists and experts in the sector, and attended specialized events. I analyzed individuals and organizations that seek developing in Brazil what north-Americans call Philanthrocapitalism, or market oriented philanthropy, on one side and progressive or social justice philanthropy, on the other. In the Brazilian national context, I refer to the historic patrimonial formation of the State and the centrality of the government sector on addressing social issues, proposing the concept of philanthroestatism. The elites develop governance practices and projects through these strategies, affecting the poorest niches of the population, but that little do for the redistribution of wealth and inequality in the country.
Keywords: philanhtropy, elites, social inequality, social justice, private social investment.
1. Filantropia, dom e interesse
O setor filantrópico mobiliza bilhões de dólares anualmente para doação a sujeitos e comunidades considerados carentes. Nos Estados Unidos, país visto como o “modelo ideal” de filantropia por unanimidade de minhas interlocutoras e interlocutores, parece prevalecer o apelo a doações destinadas a causas específicas de escolha dos indivíduos doadores. No Brasil, a produção acerca da filantropia nas Ciências Sociais mostra-se incipiente, com preponderância desta nos campos da Administração e Economia. Tendo em vista contextos que mobilizam recursos para doação, de forma e com montantes de valores tão distintos, parece fundamental entender as diferentes lógicas, moralidades e juízos de valor associados a estas práticas a fim de apreender e analisar significados e construtos sociais que mobilizam os agentes a dedicarem-se à filantropia em cada país (Brasil e Estados Unidos).
Robert Bremner (1960), em sua obra “American Philanthropy” já indica a centralidade da lógica filantrópica na constituição da sociedade norte americana. O autor destaca a presença massiva da temática – e das disputas acerca das doações – nos veículos de comunicação nacionais e aponta os Estados Unidos como “um país com coração”, indicando que doar é “o grande jogo americano”, e que a filantropia aparece como uma das indústrias líderes do século vinte.
No Brasil, por outro lado, mostra-se tarefa praticamente impossível encontrar obras ou até mesmo matérias de jornais que tratem de uma cultura da filantropia no país[1]. Argumento que atentar para produções acerca da forma como os diferentes contextos concebem a pobreza e a desigualdade pode lançar uma forte luz aos cenários que me proponho a estudar.
Elisa Reis (2004) indica a disposição das elites brasileiras em enfatizar a temática da desigualdade social como uma problemática a ser enfrentada, embora rejeitando reformas distributivas. A autora mostra ainda que as elites do país “preconizam medidas patrocinadas pelo Estado que proporcionem a todos melhores condições de vida, ou seja, as elites favorecem uma orientação de política que privilegia a superação da pobreza, mas não da desigualdade” (REIS, 2004, p. 49).
No contexto dos Estados Unidos, recorro a Tocqueville (1969) que, em sua obra “Democracia na América”, indica: “Quando um habitante de um país democrático se compara, individualmente, a todos os outros à sua volta, sente com orgulho que é igual a qualquer deles (...) o público tem portanto, entre os povos democráticos, um poder singular”. Para o autor, a fim de conquistar o amor e o respeito da população “mister se faz uma longa sucessão de pequenos serviços prestados e de obscuras boas ações, o hábito constante da delicadeza e uma sólida reputação de desinteresse” (TOCQUEVILLE, 1969, p. 173).
A figura do filantropo – bem como a imagem de famílias e empresárias e empresários que fazem filantropia – parece acionar significados e imaginários distintos, de acordo com o contexto onde ele está inserido, além de jogar constantemente com a obtenção de capitais simbólicos e sociais (seja em termos de reconhecimento entre seus pares, inserção e/ou legitimidade na esfera política, reconhecimento enquanto líder[2] e admiração frente às comunidades para a sustentabilidade de uma posição e de seus negócios, por exemplo).
Em conversa com um interlocutor, diretor de um reconhecido Instituto empresarial brasileiro, este apontava como um dos grandes motivos da ausência da figura pública de filantropos no Brasil o que chamou de “uma crise de liderança”. Uma hipótese a ser pensada para tal ausência, parece ser justamente a não legitimação no Brasil de uma economia moral[3] - ( Fassin2012: 37) diferentemente dos Estados Unidos. Atreladas à filantropia, as próprias noções de lucro, dos modos de uso do dinheiro, as disputas acerca dos riscos no investimento social privado e do protagonismo dos que estão autorizados - ou capacitados para atuar no campo - geram uma série de categorizações do que são consideradas como boas ou más práticas, aquilo que é certo ou errado, legítimo ou não.
Este escopo moral do universo da filantropia mostra-se bastante relevante por permear justificativas para a doação ou sua negativa, bem como suscitar polêmicas entre atores e pensadores que trabalham com a temática. A abordagem da filantropia estratégica ou altruísmo eficaz, defendida fortemente por autores como o filósofo Peter Singer e Eric Friedman, identifica causas e formas de doação que seriam consideradas mais “eficientes”. No entanto, o caráter arbitrário dessa eficácia e a hierarquização de causas e recipientes que este enfoque promove, vêm sendo alvos de diversas críticas.
Em matéria publicada pelo IDIS[4][5] intitulada “Especialistas criticam ’altruísmo eficaz‘ por fazer juízo moral do investimento social privado” é apresentada uma crítica elaborada por dois representantes da Charity Navigator, organização que analisa entidades e orienta doadores nos Estados Unidos. Para estes, a filantropia estratégica seria uma filantropa elitista, promovendo avaliações morais das causas a serem financiadas e legitimando cada vez mais que especialistas escolham os destinos dos recursos doados.
Devido a essa dinâmica de avaliação de causas por especialistas de setor filantrópico, Singer e Friedman são chamados de utilitaristas radicais, em uma revisão5 do livro de Friedman Reinventing Philanthropy: A Framework for More Effective Giving. Os autores propõem a definição de indicadores e métricas para o quanto e como as pessoas devem doar. Peter Singer em seu livro “Salvar una vida. Como terminar com la pobreza” (2012) abre um capítulo intitulado “Cuanto cuesta salvar uma vida y cómo averiguar qué organizaciones lo hacen mejor” e baseia-se em dados do Charity Navigator para hierarquizar organizações sem fins lucrativos. Trata-se de disputas colocadas em campo, não somente em termos das diretrizes morais a serem seguidas por doadoras e doadores, mas também das possibilidades de acesso de organizações de distintas escalas aos recursos existentes (como as organizações não governamentais locais de pequeno porte ou grassroot organizations e ativistas, de um lado e as grandes Fundações e Institutos privados, de outro)[6].
Além do debate sobre concepções de pobreza e desigualdade que são trazidas ao estudo – atentando sempre que aliviar a pobreza não é o mesmo que reduzir a desigualdade social - a fim de entender os diferentes contextos e moralidades que os pautam no exercício da filantropia, parece-me fundamental pensar também o tema à luz das produções acerca da “dádiva” (ou “dom”) de Marcel Mauss (2003) e autores do contemporâneo movimento francês antiutilitarista das ciências sociais (M.A.U.S.S). Alain Caillé (2006) e Jacques Godbout (2002), partem deste movimento e linha de pensamento, apontam a impossibilidade de reduzirmos a figura do homem total – encontrada em Marcel Mauss (idem) – ao homo oeconomicus – figura central das teorias da ação racional. Podemos pensar a dádiva como um paradigma da construção da sociedade civil moderna, tendo a filantropia papel importante dentro desta. No entanto, como aponta Mary Douglas no prefácio à obra de Marcel Mauss sobre a dádiva, o desinteresse e a não obrigatoriedade desta são meras ilusões. A impossibilidade de reciprocidade, desconectando a dádiva da solidariedade social mantém os recipientes em posições inferiores na hierarquia social bem como em situações de dependência. Philippe Chanial (2009) chama a atenção para a dupla realidade do dom, o caráter híbrido da natureza e da sociabilidade humanas, a articulação de interesse e desinteresse, que se fazem presentes nas práticas sociais.
Com base no paradigma da economia de bens simbólicos (BOURDIEU, 1996), o dom pode ser abordado como uma estratégia para a conservação ou aumento de seu capital simbólico, como o define Bourdieu (idem, p. 149). Tal ideia pode nos remeter à proposição dos elos ou laços sociais estruturados pelo dom como parte deste tipo de capital, em especial em uma sociedade dita globalizada que valora as redes de contatos, os chamados networks, e que precisa lidar com o paradoxo da primazia do individualismo versus dependência mútua, solidariedade e colaboração.
Outro elemento ainda a ser considerado é o da confiança no estabelecimento de relações e contratos sociais. Diversas autoras e autores que trabalham com a sociologia e antropologia do dinheiro[7] demonstram como este, mais do que uma coisa desprovida de agência, está embasado em e performa relações e situações de confiança, bem como dela depende. Niklas Luhmann em seu texto “Familiarity, Confidence, Trust: Problems and Alternatives” (1988) demonstra como a noção de confiança ainda aparece muito atrelada nas pesquisas sociológicas a termos como solidariedade, significado e participação. Para o autor, as sociedades complexas necessitam de instituições sociais, redes de amizades e relações patrono-cliente que reatulizem a confiança encontrada em (algumas) famílias e sociedades tradicionais. Luhmann argumenta que esta não pode ser automaticamente transferida para sociedades complexas com divisão do trabalho[8]. No entanto, autoras feministas da antropologia econômica como Karen Ho (2009[9]), a partir da crítica do trabalho deGranovetter, demonstram como essas relações e laços de confiança e solidariedade nos altos níveis econômicos, como na irmandade de Wall Street, ainda se restringem ao que é considerado semelhante e hierarquicamente dominante, a saber os homens de negócio da alta cúpula política e econômica global.
Enquanto alguns modelos de filantropia distanciam-se dessa conexão entre alteridades e a constituição de laços de confiança entre projetos diversos e distintos de vida, outras já começam a reconhecê-la. Argumento que são essas novas abordagens e linguagens para o estabelecimento de relações mais horizontais e de confiança mútua entre alteridades que apresentam caráter alternativos revolucionários para lidar com a desigualdade social.
O dom maussiano pode ser encarado ainda como ficção, formalismo uma mentira social, regendo práticas que repousam sobre a questão do interesse e/ou do poder. Kelly Cristiane da Silva (2008), em seu texto intitulado “A Cooperação internacional como dádiva: algumas aproximações”, traz à luz uma questão bastante ilustrativa deste caráter de poder e interesse envolto em doações aparentemente desinteressadas. Ao analisar as práticas de cooperação internacional vigentes na construção do Estado-nação do Timor Leste, a autora destaca dois pontos de extrema importância para reflexão: a disputa – velada ou não – dos países doadores por uma posição de destaque e reconhecimento do alto valor doado e de sua importância, ganhando uma posição de superioridade em relação aos demais. O poder e o prestígio por eles assim conquistados no que tange à influência no desenvolvimento de políticas do Timor Leste, interfere diretamente no planejamento e execução das mesmas de acordo com seus interesses e aquilo que julgam ser o melhor modelo a ser implementado, muitas vezes cópias de seus próprios modelos. Inúmeros destes elementos são encontrados no cenário da nova filantropia. Desde a disputa, a criação de rankings até a imposição de modelos empresariais e de gestão. São estes elementos que viriam a compor o caráter agonístico destas prestações, na analogia que se poderia fazer com a instituição do potlatch[10].
Na esteira das discussões acerca do papel de práticas de beneficência, Philippe Chanial (idem) traz o olhar para o registro de generosidade, caracterizada por sua incondicionalidade - termo para mim bastante questionável, pois Mauss em seu paradigma da dádiva assim como Bourdieu em seu trabalho sobre interesse e desinteresse reconhecem o caráter obrigatório e condicional da “generosidade” - que se traduz por sua obrigação própria: a obrigação de doar. À ideia de incondicionalidade podemos pensar uma oposição, bastante recorrente em práticas de caridade, explicitada no texto de Ariel Wilkis (2008), “Os usos sociais do dinheiro em circuitos filantrópicos. O caso das ‘publicações de rua’”, que é a da moralidade subjacente ao uso dos recursos recebidos via filantropia. Marcel Hénaff (2009), em “Sur la Norme de Réciprocité” aponta o que ele chama de “três formas maiores do dom”: 1 – dons cerimoniais das sociedades tradicionais que são sempre recíprocos; 2 – os dons graciosos que são oferecidos a fim de gerar prazer e felicidade; 3 – os dons de solidariedade para aqueles que têm necessidade (pessoas vítimas de pobreza ou de uma catástrofe natural ou social). Dentro do quadro deste terceiro tipo de dom, podemos enquadrar aqueles feitos pelas fundações de caridade/filantropia, como apresentado por Marc Abélès (2002), em seu texto “Les Nouveaux Riches. Um Ethnologue dans la Silicon Valley”.
Mais do que a prestação de dons unilaterais às pessoas e comunidades em necessidade, tais fundações se prestam a construir e afirmar identidades, unir a elite de empresários em ações reconhecidamente caridosas e criar toda uma rede que por meio delas estabelece carreiras na área na mesma medida em que obtém capital simbólico e social. No entanto, esta pretensa intenção de intervir pela comunidade muitas vezes não parece diminuir a distância interposta pelos recursos financeiros e econômicos entre as duas pontas da prática filantrópica, a saber, doadores e recipientes.
Jéssica Sklair (2010), em sua obra “A filantropia paulistana: Ações sociais em uma cidade segregada”, apresenta uma abordagem bastante interessante dos pontos de encontro dos filhos e parte da elite com as comunidades e sujeitos que se prestam a atender. A autora demonstra como essa elite depende – para serviços de faxineiras, motoristas, babás, jardineiros, etc. – de trabalhadores de baixo salário e há um interesse em manter as relações com baixo grau de conflito. O mesmo pode ser pensado em meu universo de estudo, recorrentes foram as falas de que a desigualdade extrema pode levar a conflitos e “contestação do formato atual da sociedade”.
Sklair recorre à noção de redes para pensar as relações entre populações de perfis socioeconômicos muito diferentes e relativizar a noção da cidade segregada e “mundos sociais apartados”. Minha abordagem pretende-se distinta. Embora conheça e visualize algumas das relações entre comunidades tão distantes por meio do voluntariado, essas aparecem ritualizadas e muitas vezes burocráticas. A dinâmica moral e mesmo o caráter obrigatório destas prestações parece promover uma manutenção estrutural de hierarquias e segregação[11]. A autora explica também a impossibilidade que teve em abordar os beneficiários, esta outra ponta das ações de filantropia investigadas. Argumento que essa impossibilidade ilustra uma segmentação do campo, também em disputa, com iniciativas que excluem as vozes dos beneficiários e restringem as tomadas de decisão às elites filantrópicas, como no caso da abordagem filantrocapitalista, em oposição a iniciativas que se pretendem de justiça social e mais horizontais como no caso da filantropia progressista, ambas analisadas ao longo deste artigo.
2. Antropologia das Elites
O estudo das elites parece não ter encontrado ainda um lugar na antropologia. Pelo menos não um lugar cômodo[12]. Encontramos, a partir dos anos dois mil, um novo fôlego de pesquisas qualitativas, de cunho etnográfico, que se aproximam das elites, entendendo estas como “grupos de agentes sociais que ocupam posições dominantes em uma ou mais esferas do mundo social, como as elites políticas, jurídicas, religiosas, econômicas, culturais, burocráticas” (SEIDL, 2013). No entanto, em busca por legitimidade na leitura dos temas de pesquisa, as abordagens são as mais diversas e, como também indica Seidl (idem, p.185): “ressalte-se, de qualquer modo, que o interesse pelas elites tem aparecido com muito maior intensidade na sociologia e na ciência política do que na antropologia”.
Este artigo está centrado no entrecruzamento da elite econômica com a elite política do Brasil, por meio de observação participante e entrevista com bilionários brasileiros que se identificam como filantropos e investidores sociais, bem como com experts, em geral com grau de mestres e doutores que atuam na área. A dificuldade de inserção em eventos, encontros e reuniões voltados para esse público, bem como o alto custo das atividades, parecem ser fatores que ainda limitam muito o estudo do universo das elites.
Desta forma, destaco a relevância e interesse em desenvolver uma antropologia das/com as elites, mas não se restringindo a este escopo, bem como adentrar de forma mais profunda e complexa o universo da filantropia brasileira contemporânea, utilizando o cenário da filantropia nos Estados Unidos como parâmetro comparativo, por ser indicado por meus interlocutores como a principal referência para a área (benchmarking)[13]. Tendo como interesse principal entender o universo da filantropia empresarial, ao iniciar o mapeamento do campo fui levada a pensar as duas pontas das ações filantrópicas: os beneficiários – se assim podemos chamar os grupos construídos como alvo das ações – e os doadores. Da mesma forma, passei a atentar para a construção da pobreza e desigualdade, bem como de um ideário social, a partir da ótica das elites, empresários e profissionais que se articulam para dar rentabilidade ao mercado filantrópico, ou como no campo se define: filantropia estratégica, uma questão de investimento e geração de lucro.
No ano de 2011 noticiava-se uma pretensa escassez das doações brasileiras e clamava-se por “estímulo fiscal” para aumentar a filantropia no país[14]. Como parâmetro comparativo, um dos principais jornais do país trazia as cifras estadunidenses destacando o protagonismo do casal Bill e Melinda Gates que já teria doado, sozinho, vinte e oito bilhões de dólares para filantropia, quase três vezes o valor passível de ser arrecadado no Brasil inteiro no período de um ano[15].
Em 2014, a Revista Filantropia #68 produzida pelo Instituto Filantropia, apresentava os dados de uma pesquisa realizada em 2012 pela ChildFund Brasil indicando que “os brasileiros doam mais de 5 bilhões de reais [ou o equivalente a uma média de 2 bilhões de dólares] anualmente para projetos sociais e ambientais”. No entanto, figurava uma completa ausência de dados referentes aos valores arrecadados no ano de 2014 no país e nenhuma menção honrosa aos grandes filantropos do ano rechearam as páginas desta revista e das publicações de institutos voltados à temática (tais como o Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social – IDIS – e o Grupo de Institutos Fundações e Empresas - GIFE).
De acordo com a matéria da Folha de São Paulo[16],[17], o Brasil, “pouco generoso”, teria arrecadado no ano de 2009 cerca de 4,7 bilhões de dólares em doações, o equivalente a 0,3% do PIB, tendo sido ranqueado em 76º lugar no ranking do World Giving Index da Charities Aid Foundation (CAF)17. Enquanto isso, os Estados Unidos arrecadaram 303 bilhões de dólares, o equivalente a 2,1% de seu PIB, liderando o mesmo ranking. Nos anos seguintes, este se manteve no topo enquanto o Brasil decaía da 76ª posição em 2009, para a 85ª posição em 2011, após para a 91ª em 2013. Em 2014 o país fecharia o ano emplacando a 90ª posição no ranking e, em 2015, a 105ª.
A partir destes dados e de uma série de inquietações acerca não somente dos valores doados, mas dos imaginários e disputas que cercam as práticas filantrópicas, mostrou-se interessante, no sentido bourdieusiano[18] do termo, lançar um olhar antropológico para as práticas e discursos presentes no universo da filantropia brasileira tendo o cenário norte americano como referencial empírico para problematizá-la. Lembrando a proposta do autor de, por meio da análise sociológica, buscar entender a razão pela qual os atores fazem o que fazem, e assim dar sentido a um composto difuso de práticas a partir de “um princípio único ou um conjunto coerente de princípios” abandonando um olhar ingênuo e postulando que “os agentes sociais não realizam atos gratuitos”, esta pesquisa se volta a entender por que se faz ou não filantropia, como ela é feita em diferentes contextos e o que pretendem os atores que protagonizam a sua prática.
Ao passo em que alguns anunciam o fim da luta de classes – termo que aparece na fala de um interlocutor – outros justificam as ações sociais como forma elementar de diminuição das distâncias sociais – ou seria possível pensar em uma forma de mascaramento das mesmas? – e prática essencial para evitar confrontos e violência urbana. Ao mesmo tempo que argumentos de busca por desenvolvimento e ajuste à economia global aparecem permeando as práticas filantrópicas, é recorrente a contraposição de discursos de ordem local para justificar a discrepância do sucesso das mesmas nos contextos analisados.
3. As elites e os Estados – Filantrocapitalismo e Filantroestatismo
Se a mobilização da razão e da ciência pelo homem Iluminista no século das luzes dá novo fôlego à prática da ação filantrópica, seus ideais de progresso e reforma são por vezes diretamente ligados ao despotismo esclarecido em alguns estados da Europa continental[19]. Com referência no trabalho de Raymundo Faoro é possível traçar e entender a formação do Estado brasileiro e sua estrutura de estamento-patrimonial que sufoca a nação – e o será referido por meus interlocutores em campo, precisamente naquilo que diferiria do Estado norte-americano. Nessa mesma chave analítica, de recuperação do legado da colonização portuguesa no Brasil, acredito ser possível entender os moldes da filantropia à brasileira.
No modelo apresentado por Faoro, que argumento se fazer presente até os dias atuais, “O estamento, quadro administrativo e estado-maior de domínio, configura o governo de uma minoria. Poucos dirigem, controlam e infundem seus padrões de conduta a muitos” (FAORO, 2001, p. 107). Parece que não há muito de novo até aqui se não nos perguntarmos quais são esses padrões de conduta de poucos, que aparecem como discursos hegemônicos e que estão sendo impostos a populações diversas. Talvez a novidade seja a lógica do management e essa espécie de filantropia científica que cruza dirigentes políticos, empresariais e os deságua no que alguns agora propõem chamar setor 2.5 ou negócios sociais. É possível observar, ao longo desse estudo, como essa imposição de padrões segue sendo reproduzida, como ocorre e como disputa espaço.
Ao falar de Faoro é impossível não pensar em suas referências a categorias weberianas. Nesse estudo, por minha vez, busco traçar “tipos ideais” da filantropia à brasileira e da filantropia capitalista norte-americana ou o que conveniei chamar de Filantroestatismo e Filantrocapitalismo – este último à leitura de outros autores, visto que este termo não foi por mim cunhado – respectivamente. Faoro, ainda ao tratar das elites brasileiras sublinha essa disputa pelo poder, ao mesmo tempo que deixa clara sua necessária vinculação à estrutura estatal como forma de manutenção e mesmo condição sine qua non de existência (FAORO, 2001, p. 110).
Retomando as referências lusitanas, ao tratar do Iluminismo Filantrópico de Pina Manique em Portugal – e que acredito abrir uma chave explicativa preciosa para a prática filantrópica no Brasil – José Norton (2005) indica que este “corporizava o modelo idealizado pelo ministro de D. José para a elite de poder que devia protagonizar o ‘despotismo esclarecido’ (...). Avançado em muitos aspectos, era, contudo, e naturalmente um conservador em política, um defensor encarniçado do Trono e do Altar”. O autor vai mais além apontando a centralidade do Estado no pensamento de Manique, “Para ele, a recuperação dos que se desviavam do bom caminho, a assistência aos indigentes, órfãos e desocupados era dever do Estado e os encargos que daí resultavam por este deviam ser suportados” (NORTON, 2005, p. 126).
No entanto, no Brasil, observa-se ainda que as ações podem ser administradas por empresários, profissionais liberais e agentes de ONGs, mas o dinheiro colocado em projetos de institutos e fundações empresariais ou para os beneficiários da filantropia estratégica ainda é buscado massivamente junto aos governos e via renúncia fiscal[20]. Assim como Faoro, diversos outros autores se dedicaram e se dedicam a trabalhos minuciosos sobre estruturas de poder, cidadania e identidade no Brasil, como José Murilo de Carvalho, Sérgio Buarque de Holanda e Ruben George Oliven, mostrando a construção do Estado e da nação, do povo e das identidades brasileiras, na conjunção sempre presente das elites e dos governos. A centralidade do papel do Estado, que argumento perseverar até os dias atuais, é também traçada em uma leitura histórica da realidade brasileira, sendo esta um dos elementos mais fulcrais daquilo que podemos pensar como uma cultura política brasileira. A ação dos filantropos e investidores sociais, atualmente, aparece estreitamente articulada com atores e agentes dos governos, o que, a partir da noção aqui cunhada de Filantroestatismo no país, remete à própria concepção de cidadania existente no cenário nacional – ou estadania, como com maestria delineou José Murilo de Carvalho (CARVALHO, 2002, p. 221).
Sérgio Buarque de Holanda em “O Homem Cordial”, demonstra como, com a herança da tradição portuguesa, do estamento patrimonial e da estrutura familiar patriarcal, o cidadão brasileiro “recebeu o peso das ´relações de simpatia´, que dificultam a incorporação normal a outros agrupamentos. Por isso, não acha agradáveis as relações impessoais, características do Estado, procurando reduzi-las ao padrão pessoal e afetivo” (HOLANDA, [1936] 1995, p. 16). Para o autor, tais características presentes fortemente nos processos de urbanização brasileiros, acarretaria no desequilíbrio social e desigualdades “cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje”.
A questão emotiva e o apelo afetivo aparecem o tempo todo no universo da filantropia, caridade e solidariedade brasileiras. Lembro-me, especialmente da fala de um Diretor da Secretaria Municipal de Direitos Humanos de município, que ao tratar das doações realizadas via Fundos da Criança e do Adolescente e do Idoso enfatizava: “Assim, eles ganharam um caminhãozinho, um elevadorzinho, uma kombizinha, um dinheirinho, uma obrinha (...). Para fazer o pagamentinho, temos um modelinho, o videozinho, a vidinha, obrinha, servicinho [na Instituição], notinha, talãozinho, gavetinha, pastinha”; “Aquele dinheirinho tá lá”, e por mais de uma hora, em sua fala, era gritante o uso de infindáveis diminutivos.[21]
Ainda, o protagonismo do Estado na resposta aos “problemas sociais” permeia discursos e práticas muito diversos como o paternalismo, o clientelismo, o autoritarismo, a cidadania etc. Estes autores ajudam a pensar como isto se constitui. Temporalmente, isto ocorre nas primeiras décadas do século XX e se expressa em movimentos como o Tenentismo e a Semana de Arte Moderna, que como indica Oliven (2006) é um “divisor de águas” no processo de alternância das elites em relação à cultura nacional, hora desvalorizando-a, hora exaltando-a. É neste momento que aparece uma “reatualização do Brasil (...) e busca de raízes nacionais valorizando o que haveria de mais autêntico no Brasil”. O Tenentismo parece ter aberto caminho para a Revolução de 1930 que alternaria as estruturas de poder no país, findo o período da República Velha. Ao longo de quinze anos de governo, Getúlio Vargas, institui o Estado como agente da modernização nacional em contraposição (retórica) às oligarquias que expressariam o atraso.
Leitura indicada por um interlocutor, na década de noventa Simone de Castro Tavares Coelho publica “Terceiro Setor. Um Estudo comparado entre Brasil e Estados Unidos”, pesquisa encomendada pelo Banco Mundial e supervisionada por Ruth Cardoso. Uma vez justificada a importância da comparação destes dois universos, e com a qual estou de acordo, especialmente pela “visível e lamentável escassez de informações, interpretações e publicações disponíveis no Brasil e sobre o caso brasileiro”, Luiz Eduardo Soares, autor do prefácio de referenciado livro, indica que o conteúdo nas páginas que seguirão tomará um rumo completamente distinto, se não oposto, do que tomo em minhas análises.
Em uma tentativa de separar o Estado e o Terceiro Setor praticamente em esferas hostis[22], corremos o risco de cair na despolitização das demandas sociais[23]. No entanto, Soares acusa: “Os cientistas sociais.... Esquecemo-nos, com frequência, de que esteve em marcha um processo autopoiético, por assim dizer, gestando e construindo uma complexíssima sociabilidade invisível, trançada por elos que nada devem ao Estado, senão indiretamente” (COELHO, 2002, p. 12).
Ele separa ainda em duas dimensões o “mundo social”: a primeira seria “correspondente aos domínios do mercado e do Estado” enquanto a segunda seria aquela na qual se ergue “a débil arquitetura do voluntariado, da filantropia, dos investimentos não orientados para o lucro, das iniciativas dificilmente redutíveis à lógica individualista da maximização de benefícios e redução de custos, dos esforços gregários de tantos e distintos atores e agências, [que] recebe o título genérico ‘Terceiro Setor’”. Ao tratar do título da obra e da escolha da autora pela categoria “Terceiro Setor”, Soares justifica, mas a meu ver, equivoca-se radicalmente, pelo menos de acordo com a lógica que encontramos no cenário atual: “... evita-se, assim, a carga de preconceitos que se projetariam sobre categorias já conhecidas, de uso corrente no vocabulário ordinário, exigindo-se, consequentemente, definição analiticamente dirigida. A categoria filantropia, por exemplo, dificilmente se livraria das críticas de paternalismo promotor de acomodação e reprodução das desigualdades” (COELHO, 2002, p. 12). No entanto, hoje, são políticas sociais – especialmente como o Programa Bolsa Família do Governo Federal[24] – que no universo das elites que lidam com filantropia e voluntariado recebem os rótulos de “paternalista” e “assistencialista” como por inúmeras vezes escutei em campo. Enquanto isso a filantropia estratégica ou filantrocapitalismo, o terceiro setor e o investimento social privado são conclamados cada vez mais a ajustarem-se e apropriaram-se das lógicas de gestão e da economia ortodoxa neoliberal da maximização do lucro (e aí passa-se a defender o lucro no terceiro setor), otimização de processos e foco na escolha racional. Soares prossegue “Por outro lado, é digna de nota a transferência metonímica das críticas de um alvo para outro, ou melhor, da parte para o todo. Assim, o que se diz da filantropia, diz-se também do Terceiro Setor, geralmente, de uma perspectiva que não admite qualquer ação social senão aquela proveniente do Estado”. (COELHO, 2002, p. 13) Esse afastamento, ou melhor, essa ausência do Estado no Terceiro Setor é pura ficção, talvez um equívoco contingente e de um contexto histórico específico, para não pensar em má fé. Como indicado em matérias de veículos nacionais, muito pouco é repassado de fundos particulares para doação, como demonstrado em reportagens acerca do tema, como em matéria publicada na Revista Isto é de 19 de março de 2014, na qual encontramos a seguinte chamada “O Mito da Solidariedade Brasileira” e em entrevista publicada na Folha de São Paulo de 8 de março de 2014, intitulada “Os milionários não doam quase nada à pesquisa no Brasil”. Lembro aqui que as pesquisas de Leilah Landim e Celi Scalon (1998) demonstram como as classes mais baixas doam sim, e muito, no país.
As afirmações de Soares tornam-se ainda mais contrastantes com os achados desta pesquisa: “Portanto, não há, de fato, como evitar a reiteração do senso comum crítico, restando apenas, como antídoto, a demonstração dos equívocos contidos nessas generalizações empobrecedoras, insensíveis à pluralidade de níveis nos quais se desdobram as relações sociais indiferentes ao cálculo” (grifos meus) (COELHO, 2002, p. 15) Voltando à questão do dom, aparece como premissa fundamental que essa ausência de cálculo é pura ilusão. Soares, como diversos outros pensadores que advogam pelo terceiro setor, partem de um argumento a meu ver extremamente problemático, qual seja, a falência do Estado de bem-estar social ou welfare state. No entanto, como teria este falhado no Brasil se nunca chegou a existir e se desenvolver enquanto tal?
Advogando a ausência do Estado, o que vai na confluência de muitas das falas de meus interlocutores que dizem estarem fazendo “o que o Estado não faz, mas deveria”, estes atores conduzem à lógica perigosa de privatização das funções do Estado, como indicado por Bill Maurer em seu texto “Philanthropy or the State? Modern Feudalism”, ao tratar da filantropia nos EUA[25]. Tratam-se assim de disputas acerca da governança econômica em escala global.
Acerca da noção de noblesse oblige, Bourdieu (1996) aborda-a em função do aristocrata que “não pode deixar de ser generoso, por fidelidade a seu grupo e por fidelidade a si mesmo, como digno de ser membro do grupo. É isso que significa “noblesse oblige”. A nobreza é a nobreza como corpo, como grupo que, incorporado, toma corpo, disposição, habitus, torna-se sujeito de práticas [consideradas] nobres e obriga o nobre a agir nobremente” (BOURDIEU, 1996, p. 115).
Soares afirma que “... mesmo dispondo de um Terceiro Setor já antigo e forte, a sociedade brasileira o tem ampliado e lhe tem transferido crescentes responsabilidades, seja pela ausência do Estado – em seu sentido mais negativo, injusto e socialmente irresponsável , seja pela assunção espontânea e crescente de iniciativas por parte da sociedade civil” (COELHO, 2002, p. 16)
Dessa forma, enquanto Bill Maurer lança a analogia da prática filantrópica como uma espécie de feudalismo moderno nos EUA - e noblesse oblige - penso vermos no Brasil um cruzamento do Despotismo Esclarecido nos moldes do management – em que o Estado não mais seria visto come legítimo para governar e conduzir ao progresso, mas sim os experts e gestores - com a participação ativa do Estado nos moldes do (talvez ameaçado) estamento-patrimonial e ainda com práticas que acionam diretamente a lógica clientelista.
Assim, parece de fundamental relevância problematizar as distintas concepções das elites sobre o Estado no Brasil e nos Estados Unidos. O papel que teve a ideologia positivista no Brasil (e, especialmente, a defesa da centralidade do Estado na condução do desenvolvimento/civilização do país) na conformação de nossas elites (políticas, militares, intelectuais e, provavelmente, econômicas) é algo que não parece ter paralelo nos EUA (onde sempre houve uma resistência ao Estado, especialmente o Federal). Esta diferença do papel (efetivo ou imaginado) do Estado fica bem clara no livro coletânea “Bringing the State Back in”, em cujo prefácio já se anuncia uma suposta ausência do Estado nas Ciências Sociais dominantes, na qual acredito podemos incluir a estadunidense. De acordo com Evans, Rueschemeyer e Skocpol (1985): “paradigmas teóricos dominantes nas ciências sociais comparadas não destacaram os Estados como estruturas organizacionais ou como atores potencialmente autônomos. De fato, o termo “Estado” raramente era usado”.
Enquanto autores que analisam os Estados Unidos salientam que as ciências sociais norte-americanas desconsideraram a importância do Estado, o capítulo de Alfred Stepan (1985, p. 317) “State Power and the Strength of Civil Society in the Southern Cone of Latin America” mostra que na América Latina (e no Brasil, em especial) o Estado sempre teve centralidade nos processos sociais e nas análises. Esta centralidade conferida ao Estado levou, inclusive, a que autores criticassem o “estatismo” das ciências sociais brasileiras[26]. No entanto, autores como Soares partem da problemática premissa de que o terceiro setor tomaria a si as incumbências não satisfeitas pelo Estado de bem-estar social, projeto que nem ao menos se concretizou no Brasil. Desta forma, diversos mitos vão se criando ao redor do caso brasileiro, dentre eles a ausência de cultura da doação, a inerente separação das elites econômica e política (de que tratei até aqui) e pouca solidariedade.
Apesar da constante reclamação de que o Governo não incentiva as doações e de que é preciso ter um marco regulatório[27] mais claro, Elisa Reis (2004) já indica a concepção que a elite brasileira tem da intervenção estatal quando se trata de trabalhar com a pobreza. Apostando ainda fortemente no papel do Estado – embora condenando-o como paternalista incessantemente – essa elite espera que o Estado intervenha melhorando as condições de vida de toda a população, ou seja, não se trata de uma questão de redução da desigualdade, menos ainda de redistribuição de renda – fator também demonstrado por Sklair (2010, p. 98 e 223): “Não acho que deva ser assim: por ter dinheiro, tenho que fazer alguma coisa” (trecho de entrevista, SKLAIR 2010, p.98). Além das ONGs e OSCIPs alinharem-se cada vez mais à lógica empresarial, as elites que desenvolvem as ferramentas, discursos e práticas a dominar este universo insistem no argumento de que estão cobrindo uma lacuna, fazendo aquilo que o Estado não faz, mas deveria.
Entretanto, parece que com a entrada em cena de estímulos e isenções fiscais para atores (sejam eles pessoas físicas ou jurídicas) doadores de significativas quantias para caridade, a própria lógica da filantropia pode ser observada muitas vezes como uma ação de mercado. Campanhas de conscientização dos consumidores, de sustentabilidade, e de responsabilidade social auxiliam a fortalecer essas novas linhas de atuação e a despolarizar uma visão do mercado econômico enquanto produtores de um lado, versus consumidores de outro. Como indica Abélès (2002) em seu estudo sobre filantropos no Vale do Silício: “Aparece a ideia de uma sociedade compexa com linhas de clivagem, desigualdades, trajetórias diferenciadas” (p.126). Abélès sinaliza ainda a entrada em cena da figura do consultor filantrópico (conseiller en philantropie), nos Estados Unidos que, concomitante a uma nova geração de empresários, a partir dos anos 90, estabelece o campo da filantropia enquanto mais um campo de negócios e indica a presença de uma lógica que concebe a filantropia como um produto, atentando ainda para a retórica de alguns de seus interlocutores, que colocam a figura do empresário enquanto verdadeiros e únicos protagonistas do desenvolvimento da região. Segundo o pesquisador, no cotidiano do Vale, poder-se-ia comparar à mobilização em volta da filantropia ao lançamento de um novo produto high-tech.
No Brasil, este mercado filantrópico parece estar se estruturando e aqui não penso o mercado enquanto uma instância abstrata autorregulada, noção naturalizada muitas vezes nas ciências econômicas, como indica Callon (1998). Penso antes em um construto em constante elaboração e disputa, legitimado por meio de discursos e práticas dos agentes em questão. Busca-se formar profissionais que possam atuar no que agora é, por alguns empresários, chamado como setor 2.5, uma associação das lógicas do segundo e do terceiro setor, ou também negócios sociais[28]. Quanto à figura do consultor filantrópico, a menciono a um entrevistado, que sorrindo responde:
É isso. Somos nós. É isso, é a departamentalização [dentro das empresas, antes da criação de Institutos e Fundações]. Primeiro começa com a departamentalização, mas o departamento também se quebra. Porque não adianta, a Patrícia [por exemplo], ela vai fazer comunicação, mas não política pública e o que nós estamos atuando é em política pública, cada vez mais. Principalmente quando a Constituição começa a pressionar e o conjunto da legislação e das políticas públicas começa a pressionar (...) Quer dizer, a própria sociedade está pressionando que o mundo empresarial pare de fazer filantropismos, doaçõezinhas aleatórias, doações baseadas só na boa vontade e passe a entrar de acordo... começa a surgir até algum destaque, algumas autuações do ministério público, algumas cobranças da comunidade, dos movimentos sociais, começa a surgir isso, então os empresários cada vez mais são empurrados a fazer política pública.
Por meio de premissas que regulam moralmente e pretendem legitimar este mercado, valores que devem ser compartilhados pelos agentes tidos como filantropos são acionados na elaboração de um discurso de progresso e busca por desenvolvimento. Da mesma forma, demanda-se cada vez mais profissionais e experts[29] no ramo, uma rede constantemente tecida para construção e circulação de capitais específicos.
O meu primeiro interlocutor, Ricardo[30], apresenta-se como o decano da Responsabilidade Social Corporativa no Brasil, trabalha como consultor, é sócio em uma Cooperativa e está presente no quadro diretor de Fundações e Associações trabalhando com responsabilidade social corporativa, investimento social privado, terceiro setor, filantropia e políticas públicas.
Questionado sobre a dificuldade em encontrar referências a uma cultura da filantropia no Brasil, bem como sobre a ausência da figura pública do filantropo, Ricardo recorre à figura do mecenas[31], enquanto estratégia para obtenção de capital social (BOURDIEU, 2008, p. 112). Ele explica:
...Eu levanto uma hipótese quando eu digo o seguinte: que a responsabilidade social... bom, o lucro pra empresa não é só recurso monetário, o empresário ele quer ter sucesso no seu negócio e sucesso não significa só retorno econômico, ele quer ser admirado como líder, como um cara mecenas, como um cara inteligente... e a responsabilidade social ela traz isso pra ele, ele não quer apenas ter lucro no balanço, ele quer entrar num restaurante e ser olhado com admiração e nesse sentido a responsabilidade social pode ser que traga esse tipo de retorno intangível, imponderável que é o prazer institucional, que é prazer subjetivo institucional de quem é admirado na sociedade (...). O Jorge Gerdau hoje mostra isso claramente... a minha hipótese eu vejo no Jorge Gerdau. Jorge Gerdau tem um garbo da sua posição de filantropo, de mecenas, ele tem um garbo que ele já... ele abandonou o discurso empresarial, o discurso dele hoje é “mudar o mundo, mudar o Brasil”.
Na esteira desta fala é possível observar uma espécie de confusão conceitual também mencionada de formas distintas por pesquisadoras como Lúcia Müller (2009), Jessica Sklair (2010), Leilah Landim (1998), Landim e Celi Scalon (2000) e Fabíola Rohden e Sérgio Goes de Paula (1998). Termos como filantropia empresarial, nova filantropia, investimento social privado, responsabilidade social corporativa, cidadania corporativa, setor 2.5, estão em disputa no campo. São discursos de hegemonia[32] que vão se estabelecendo, ao passo que ferramentas de gestão e avaliação vão sendo desenvolvidas e apresentadas como legítimas para estruturar práticas, quantificar a mensuração de resultados, converter dados qualitativos em números e assim pleitear financiamento – seja de doações de pessoas físicas, seja de edital de empresas privadas e de órgãos públicos para projetos sociais.
4. Fórum de Filantropos e Investidores Sociais[33]
No dia 24 de outubro de 2013, às oito horas da manhã, no Hotel Tivoli Mofarrej, cidade de São Paulo, região de Jardins[34] a um quarteirão da Avenida Paulista, teve início o II Fórum Filantropos e Investidores Sociais. Na fala de abertura, feita em nome do IDIS, foi trazido então o termo filantropia estratégica para o desenvolvimento da sociedade brasileira. Outro representante do Instituto enfatizou a necessidade de “desenvolvimento, da evolução das potencialidades humanas” e sublinhou que “a exclusão leva a graves conflitos”. Seguindo as falas, os temas abordados tratavam das novas tecnologias, novos métodos, diminuição na utilização de recursos e davam as boas-vindas aos convidados, destacando “a diferença que vocês fazem. São pessoas iluminadas, diferentes”, remetendo à ideia de “distinção” (BOURDIEU, 2008, p. 294).
Ainda nas palestras ocorridas pela manhã, destaco a fala do Ministro Gilberto Carvalho, que gerou um clima de tensão no auditório. O Ministro colocou o Governo à disposição para dialogar com os empresários e investidores sociais, ao passo em que era questionado sobre a criação de um marco regulatório para as organizações da sociedade civil (OSC). O Ministro fez uma espécie de autocrítica, dizendo que “a burocracia administrativa para utilização dos recursos engessa os processos”. Esse aparece como um elemento distintivo no incentivo a doações no Brasil: recorrente foi a queixa de que o Governo não incentivaria doadores e que os abatimentos fiscais seriam muito baixos[35].
Outro fator indicado, ao longo do evento, como causa de poucas doações no país, seria a desconfiança em relação às instituições e ONGs. A assessora especial do Ministro Laís de Figueirêdo Lopes apontou como parte da culpa o “cenário de criminalização colocado no país com duas CPI’s de ONGs no Governo Lula” e acrescentou: “isso é da nossa sociedade. Quando falamos da Siemens[36], especificamos, não culpamos todos, mas no Brasil haveria uma generalização” [contra ONGs].
Na sequência, o Diretor de um Instituto internacional, palestrante do evento, que se encontrava na plateia dispara: “o que me impressiona no Brasil, porque moro fora [nos Estados Unidos] há muitos e muitos anos (...) é a quantidade de coisas que se pede do Governo, precisa sempre o Governo decidir (...). Qual deve ser a participação do Governo nisso? Porque eu fico pensando nos endowments[37] nos Estados Unidos, onde eu moro, e eu não sei qual é a participação dos Governos federal e estaduais lá, porque eu acho que não passa pela cabeça de ninguém que o Governo Federal tenha qualquer coisa a ver com isso, a não ser, via IRS, da receita federal, que terá os códigos e aquilo deve ser seguido”. Ainda em sua fala é lançada a seguinte perspectiva: “a filantropia está no DNA dos americanos, é a forma de participar na sociedade (...) os EUA foi feito de baixo para cima, a Nação inventou o Estado e o Brasil foi de cima para baixo, o Estado inventou a Nação”. A questão da associação filantropia com a identidade nacional nos EUA aparece de forma recorrente.
É interessante ainda perceber como se agrupam noções evolucionistas e de desenvolvimento, do avanço da sociedade, a percepção do disciplinamento e aqui lembro das seguintes falas no evento: “precisamos de uma sociedade civil organizada...” e “nós estamos tendo um encontro civilizado aqui, mas há estupradores e assassinos lá fora... …[38]”; A ideia, repetida exaustivamente, é a de que “como empresários temos mais responsabilidade, nós sabemos organizar as coisas”. Conforme retirado do relatório anual de um dos Institutos com os quais tive contato, o público das ações seriam pessoas “sem regras, horários, rotinas de trabalho... como descrito na literatura especializada, há um pequeno percentual da população que não adere ao modo de produção socialmente aceito e constrói formas alternativas de sobrevivência”. Chama também a atenção como, neste e em outros eventos acompanhados nesta fase de estudo, seja por seus públicos-alvo e/ou objetivos, embora tenham aparecido falas no sentido de “temos que manter o foco nos beneficiários”, pareceu haver um silêncio ou uma invisibilidade desses sujeitos alvos das ações.
5. Filantropia progressista ou para a justiça social - Edge Funders Alliance[39]
De 19 a 21 de abril de 2016, na cidade de Berkeley, California, acontecia a 16ª edição da conferência anual do Edge Funders Alliance, intitulada “Just Giving” e com o tema “Build the New: Resourcing change for a world in transition”. A organização, de presença ativa desde a primeira edição do Fórum Social Mundial, diferentemente dos defensores mais ferrenhos do filantrocapitalismo, abre espaço e reúne ativistas – como a Via Campesina na América Latina e o Fundo ELAS Brasil – e beneficiários. No entanto, há atores e organizações que se cruzam nestas distintas abordagens, como dirigentes da Fundação Rockefeller, por exemplo.
Minha participação na conferência remonta ao trabalho de campo que fiz em Seattle, em fevereiro de 2016, quando visitei a Fundação Bill e Melinda Gates, onde entrevistei um program officer e dois experts que trabalham na Intelectual Ventures, parte da iniciativa Global Good[40] de Bill Gates. Na mesma ocasião, tive a oportunidade de entrevistar a diretora de uma pequena Fundação com foco no direito das mulheres, trabalhando especialmente com mulheres indígenas. Carla[41] acabaria se tornando uma de minhas principais interlocutoras, colaboradoras e amiga. Nosso contato se deu por meio da Universidade Federal da Califórnia, UCI[42]. Eu estava fascinada com o seu trabalho. Durante o almoço no qual tivemos nossa primeira conversa, ela me perguntou sobre minha rede de pesquisa. Ao indicar a abordagem do filantrocapitalismo, nova filantropia ou filantropia estratégica e o Global Philanthropy Forum, Carla me disse que estes eram abordagens “muito de direita”. Ela então me falou do Edge Funders Alliance, suas colegas de trabalho e lesbofeministas ativistas e uma filantropia progressista, ou com abordagem de justiça social. Recomendou-me participar da conferência a fim de obter um novo parâmetro de comparação e análise. Por meio de seu contato, mediei minha participação trabalhando como voluntária na relatoria da sessão temática intitulada “Governança Econômica”.
Apesar do foco em justiça social e movimentos sociais estar presente, a conferência ainda mantém um tom de negócios. Não me hospedei no luxuoso hotel dos demais participantes e onde se realizou a conferência, o Double Tree da rede Hilton, localizado na marina de Berkeley no Eastshore State Park.
Durante nossa primeira sessão do laboratório de Governança Econômica, quatro participantes apresentaram suas iniciativas e propostas: Tax Justice Group[43]; David Bollier sobre the Commons44 (com quem falei sobre as geógrafas Gibson-Graham, que fazem uma crptica feminista a economia política e escrevem sobre pós-capitalismo. Bollier me disse então ser colega e amigo das autoras, bem como utilizar seus trabalhos como referência); microcrédito e, a proposta mais polêmica, o “quarto setor”.
Esta última proposta é bastante semelhante ao que alguns milionários e investidores sociais brasileiros têm proposto como setor 2.5, sobre o qual escrevi alhures. O quarto setor, ou setor 2.5, seria uma espécie de novo setor da economia (em contraposição ao primeiro setor ou setor público, Governos e Estado; o segundo setor ou setor privado e o terceiro setor[44], ou o setor das organizações da sociedade civil sem fins lucrativos. Começam a surgir os chamados “negócios ou empreendimentos sociais”, que abarcariam em um novo setor a lógica de mercado dos negócios privados e obtenção de lucro com a prestação de serviços e ofertas de produtos considerados com “impacto social”, ou seja, para algum problema social identificado como tal por seus proponentes e dirigentes.
Interessante perceber que essas propostas se colocam como “a” solução para o que a elite considera como problemas sociais. O quarto setor, proposto por um grupo de Stanford que trabalha com angel investors e uma advisor da filantropia Rockefeller, encontrou oposição em diversas pessoas no grupo, incluindo um dirigente do Edge Funder Alliance Europa. Seus proponentes foram questionados em como isso se diferencia de B Corps[45] mas apontaram que a proposta era inicial e estaria se desenhando, o que os deixava no momento sem respostas.
Tendo sido uma das pessoas a questionar esse modelo e tendo feito a comparação com o que conheci no Brasil do setor 2.5, fui abordada no corredor a sós, após a sessão, por um dos proponentes. Ele me perguntou por que eu não achava que os negócios sociais seriam a solução para um novo sistema de governança econômica e me disse conhecer exemplos muito bons no Brasil como o da empresa Natura e sua responsabilidade social. Comentei então que acreditava ser uma questão mais complexa e que estávamos discutindo justamente isso em grande grupo.
Ele então, de forma intimidadora e também debochada, perguntou o que discutimos no grupo. Apontei que ele estivera presente na sessão a tarde toda e ele disse não se lembrar mais do que fora dito. Frente a isso pedi licenças e me retirei. As disputas são bastante acirradas e somas altas de financiamento estão em questão, creio que não calculei o “incômodo” que meu comentário poderia causar. No entanto, o modelo apresentado consistia de fato em um modelo de negócios, agrupando governos, corporações e organizações não governamentais em um quarto setor, uma suposta transição do modelo “for profit” para o modelo “for benefit” das organizações.
Durante os dias que seguiram de conferência, pude observar um discurso distinto do que vinha percebendo até agora no universo do filantrocapitalismo. Os diretores do Edge Funders apontaram estarem presentes desde a primeira edição do Fórum Social Mundial e ter esse espaço como um vetor central de sua lógica de atuação.
Diversos movimentos sociais, inclusive da América Latina estavam presentes e são financiados por membros da organização que agrupa financiadores e filantropos. Ao final do primeiro dia de evento fomos ao famoso cinema De Castro em bairro LGBTQI de São Francisco para o lançamento do documentário longa-metragem “Not without us” sobre ativistas e ambientalistas contra o aquecimento global na COUP em Paris. Diversos participantes da conferência estavam envolvidos no projeto do documentário, ativismo e financiamento.
No ônibus de volta ao hotel da conferência, sentou-se a meu lado uma senhora. Prontamente ela fez as mesmas perguntas que se escuta incessantemente: “olá, com qual organização você está?” Expliquei que era antropóloga. Ela prontamente respondeu: “Eu também”. E começou a me contar que fizera uma pesquisa há alguns aos atrás na filantropia de elite norte-americana e que seu livro estava intitulado “Charity begins at home: generosity and self-interest among the philanthropic elite”. Como se fala no circuito de estudantes: eu estava sentada ao lado de minha bibliografia: Teresa Odendahl. Ela me deu um de seus cartões de visita e me explicou que hoje dirige uma Fundação Filantrópica e que havia “posto dinheiro” no filme ao qual assistimos.
A sua presença no evento me fez pensar mais uma vez nas distintas categorias de experts que fazem sua carreira no setor e as distintas abordagens e linguagens utilizadas por distintos grupos, organizações. E em que medida a linguagem e o discurso utilizados têm potencial transformador e/ou alternativo em contrapartida com demandas sociais institucionalizadas nessas redes e espaços[46].
Assim, um discurso emerge da associação de movimentos sociais e de membro do Edge Funders em tom de crítica ao capitalismo e à prática filantrópica. A partir de um reconhecimento no espaço do congresso de que há muitas falhas – e ao contrário do discurso do GPF em que o capitalismo é visto como o melhor sistema, embora sujeito a falhas que serão remediadas por meio, inclusive, da filantropia – e de que o capitalismo se provou impraticável, necessitando agora uma transição para uma nova economia, uma economia justa e um novo modelo de governança econômica.
Considerações finais
Ao longo deste artigo busquei evidenciar as implicações de realizar uma pesquisa com elites, em um campo de disputas, no qual os sujeitos pesquisados possuem interesses muito específicos na sua própria configuração e domínio. Além de percorrer uma trajetória específica, ilustrada em uma rede, e falar com indivíduos indicados pelos interlocutores, as informações são de difícil acesso, não ficam claras as cifras do quanto é doado nem os nomes de quem exatamente doa no Brasil – como indicado nas pesquisas trazidas ao longo do texto e na fala da Professora Patrícia Mendonça. É interessante perceber como discursos e práticas distintas se colocam nos espaços percorridos e imbricam a formação de profissionais para compor uma elite focada em investimento social e filantropia, institutos e fundações, empresas, consultorias e agências do Governo. Assim sendo, o campo da filantropia no Brasil, que se estrutura a partir de redes e articula-se para ganhar força enquanto mercado – com produtos, serviços, valores de troca e expertise específicos – apresenta-se como um campo complexo, no qual se articulam uma série de atores desde beneficiários, voluntários, ongueiros, captadores de recursos, consultores, empresários, governos, ONGs e sociedade civil, bem como engloba iniciativa privada, terceiro setor e políticas públicas. Com o intuito de operar em um mercado chamado de social, são ofertados inúmeros cursos, palestras, congressos e conferências, sendo a quantidade de opções e os valores das inscrições e custos envolvidos, muitas vezes, impeditivos da participação. Da mesma forma, a restrição do público-alvo destas ações marca o distanciamento entre a elite que circula nesses espaços de formação e o universo da pobreza sobre a qual intervém.
Talvez emergente dessa complexidade, foi possível identificar uma série de conceitos, que aparecem em campo e se articulam nas falas de interlocutores, compreendendo, principalmente: filantropia, responsabilidade social corporativa/empresarial e investimento social privado. As definições utilizadas por Ricardo, principal interlocutor, são derivadas do Instituto Ethos – organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP) vinculada à RSC – e do GIFE – referência no campo do Investimento Privado. De acordo com Ricardo: “Responsabilidade Social Corporativa é uma forma de conduzir os negócios da empresa de tal maneira que a torna parceira e co-responsável pelo desenvolvimento social” e Investimento Social Privado é “o uso planejado, monitorado e voluntário de recursos privados – provenientes de pessoas físicas ou jurídicas em projetos sociais de interesse público”. Quanto à noção de filantropia estratégica – que engloba, por vezes, essas práticas distintas -, ou marketing de causas (RENDEIRO, 2012), ela é definida como o “estabelecimento de parcerias, facultando a promoção conjunta de causas” e com o objetivo de gerar lucro.
Percebe-se entre essa elite a operação da lógica evolutiva de que o capitalismo seria um sistema complexo, sujeito a falhas, que iriam progressivamente sendo ajustadas em suas novas versões[47]. Quanto aos fatores levantados referentes aos motivos pelos quais se doa ou não no Brasil, destaca-se a valorização do sujeito, da figura do mecenas, do filantropo e/ou investidor social junto a seus pares, enquanto um valor positivo para doação. Quanto à desconfiança, no Brasil, em relação às instituições, é o fator que aparece como uma das principais causas de não doação, associado a uma noção êmica[48] de fator cultural pelo qual o brasileiro não doaria.
A realização dessa pesquisa junto ao universo da elite que compõe – e disputa – o cenário contemporâneo da filantropia brasileira, denota a acentuada dificuldade em encontrar figuras públicas que se destaquem como filantropos doadores de altas somas, como indica minha interlocutora Joana: “tem quem doe, mas muitas vezes essas pessoas não querem ser identificadas”. São inúmeras as figuras de empresários, gestores e administradores de ONGs que povoam o campo, circulam em eventos e premiações. Observa-se uma série de atores estabelecendo carreiras no que proponho chamar de o mercado do social, identificando-se como aqueles que fazem o que o Governo não faz e que darão as bases e diretrizes de um devir da sociedade. No entanto, no universo do investimento social privado, negócios sociais e da filantropia que se identifica capitalista ou estratégica, as ações e debates focados em justiça social, desigualdade e mesmo as vozes dos chamados beneficiários não estão presentes, ao contrário da filantropia progressista ou de justiça social.
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Notas