Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar o esforço de conceituação das classes sociais nas sociedades subdesenvolvidas, avançado por Rodolfo Stavenhagen nos idos dos anos de 1960. Também serão consideradas suas formulações relativas às características da situação colonial nos países subdesenvolvidos, fortemente permeadas pela estratificação interétnica e por suas influências sobre as situações de classe. Dois de seus mais notórios textos serão tomados como objeto de análise, Las clases sociales en las sociedades agrarias (1969), e suas Sete teses equivocadas sobre América Latina, pela primeira vez publicadas em 1965. Por fim, as ideias de Stavenhagen serão contrastadas com algumas das reflexões sociológicas, políticas e teóricas sobre o colonialismo, as classes sociais e as relações interétnicas produzidas no Brasil.
Palavras-chave:Rodolfo StavenhagenRodolfo Stavenhagen,SubdesenvolvimentoSubdesenvolvimento,ColonialismoColonialismo.
Abstract: The aim of this article is to present the efforts of Rodolfo Stavenhagen in conceptualizing social classes in underdeveloped societies, in the 1960s. His formulations about the colonial situation in underdeveloped countries, characterized by the effects of inter-ethnic stratification on class, will also be discussed. Two of his most important texts will be analyzed in this paper: Las clases sociales em las sociedades agrarias (1969) and his Siete tesis equivocadas sobre América Latina (1965). Last, but not least, the ideas of Stavenhagen will be compared to some sociological, political and theoretical reflections on colonialism, social classes and inter-ethnic relations produced in Brazil.
Keywords: Rodolfo Stavenhagen, Underdevelopment, Colonialism.
Artigos
Rodolfo Stavenhagen e a sociologia do subdesenvolvimento: colonialismo, classes sociais e estratificação interétnica[*]
Rodolfo Stavenhagen and the Sociology of underdevelopment: colonialism, social classes and inter-ethnic stratification
Recepção: 30 Julho 2016
Aprovação: 17 Dezembro 2016
O objetivo do presente artigo é recuperar um dos momentos fortes do trabalho teórico nas ciências sociais críticas latino-americanas da década de 1960, o da conceituação das classes sociais em sociedades nacionais subdesenvolvidas. Permeadas por profundas desigualdades de tipo étnico-racial e pela reprodução, em bases renovadas, das relações coloniais, a dinâmica das classes sociais nos países subdesenvolvidos apresenta determinações históricas específicas em comparação aos padrões de exploração capitalista consolidados nas nações desenvolvidas, centrais e hegemônicas. Uma dessas especificidades diz respeito à íntima imbricação entre os mecanismos de exploração de classe e da dominação étnico-racial, característica marcante dos povos asiáticos, africanos e latino-americanos. Tal imbricação não seria exclusividade, contudo, das nações do Sul Global, podendo ser encontrada na exploração do trabalho imigrante nos países de capitalismo central do Ocidente.
A reatualização do colonialismo – externamente, nas relações entre nações centrais e periféricas e, internamente, nas relações entre grupos nacionais diferenciados étnica e racialmente – impõe sérios obstáculos à consolidação de uma democracia de caráter ampliado nos países de desenvolvimento capitalista dependente. Mesmo condições mínimas para a realização de uma democracia efetiva, como a canalização institucionalizada dos conflitos entre as classes sociais, muitas vezes são deturpadas e desvirtuadas pelo monopólio da estrutura política e jurídica do Estado pelas elites dirigentes das classes dominantes. Estas resistem como um verdadeiro bloco ideológico excludente, a fim de resguardarem seus privilégios contra todas e quaisquer propostas de ampliação de direitos trabalhistas e civis para a maioria da população.
Trata-se de um fenômeno analisado na década de 1960 aqui no Brasil a partir da noção sociológica de “resistência sociopática à mudança” (FERNANDES, 1963). Essa noção ajuda a descrever o comportamento das elites dirigentes das classes dominantes nos países de capitalismo dependente. Não será, porém, a sociologia latino-americana dos anos 60 que irá perceber com profundidade os vínculos entre exploração capitalista e dominação étnico-racial como polos complementares dos processos históricos. Esse era um momento de transição quanto a reformulações teóricas mais rigorosas das especificidades e particularidades dos países da América Latina, e do Terceiro Mundo em geral, em comparação com as nações centrais. As ciências sociais latino-americanas nesse período – ainda em processo de consolidação institucional e, por essa razão, apresentando muitas vezes um caráter indiferenciado no que diz respeito às fronteiras disciplinares – tomavam como ponto de partida as teorias, conceitos e métodos de investigação produzidos nos contextos culturais dos países de desenvolvimento capitalista central, Estados Unidos e Europa Ocidental. Situação essa bastante compreensível, dado que a formação teórica desses cientistas sociais latino-americanos foi realizada ou por meio de estágios nas nações centrais, ou pela influência direta de modelos de organização da vida acadêmica prevalecentes na cultura ocidental.
Foi por intermédio de um esforço de crítica e reelaboração dessas ideias transplantadas – tarefa intelectual intensificada justamente na década de 1960, devido a novos acontecimentos que sacudiam politicamente a América Latina, como a Revolução Cubana (1959), a irrupção da ditadura civil-militar no Brasil (1964) e a repressão no México (1968), simbolizada pelo massacre da Praça de Tlatelolco, dentre outros acontecimentos marcantes, os quais alteraram os prognósticos apressados de que tais países passavam por um processo de modernização conducente à reprodução dos padrões de vida das nações avançadas – que os cientistas sociais latino-americanos se deram conta dos equívocos da aplicação de modelos teóricos, a exemplo das teorias da estratificação social e da modernização de matriz norte-americana, para a explicação dos dilemas sociais e políticos de suas próprias realidades.
Essas teorias equivocadas apresentavam mais uma visão normativa da sociedade, indicando os passos para que os países latino-americanos pudessem alcançar os padrões ideais das nações ditas avançadas ou superdesenvolvidas, do que analisavam suas condições reais de existência social, econômica, cultural e política. As ciências sociais das nações centrais, graças à rigidez de suas categorias explicativas que classificavam os países entre “arcaicos” e “modernos”, não puderam dar conta, naquele momento, da complexa imbricação entre desenvolvimento capitalista e formas de exploração e dominação não capitalistas, como a discriminação racial voltada contra negros e povos originários. Os vínculos entre modernização conservadora capitalista e estratificação étnico-racial, exploração de classe e racismo, são uma característica do desenvolvimento histórico das sociedades latino-americanas, de modo que uma teoria abrangente desses países explicitaria a integração entre o sistema capitalista de classes sociais e padrões de desigualdade provenientes de outros modos de produção.
No caso da América Latina, seria necessário apontar os vínculos existentes entre o modo de produção capitalista e modos de produção baseados na dominação e exploração étnico-racial do trabalho. Entretanto, tais vínculos não eram destacados – ou pelo menos desmascarados nas suas múltiplas dimensões estruturais e históricas – pelas diversas formulações das esquerdas comunistas latino-americanas, do pensamento cepalino, da ideologia nacional-desenvolvimentista e do estrutural-funcionalismo, fundamento das teorias da modernização. As críticas dirigidas a essas quatro perspectivas, formuladas pelas diferentes versões das correntes dependentistas das décadas de 1960 e 70, apontam justamente essa ausência de percepção e cegueira em relação aos aspectos mais dramáticos da junção entre os fatores internos e externos da exploração capitalista nos países periféricos, subdesenvolvidos e dependentes. A dupla espoliação, interna e externa, fazia com que nesses países a exploração capitalista se fizesse em combinação com o colonialismo interno, isto é, com formas de exploração e dominação baseadas no racismo e na discriminação étnico-racial.
A obra antropológica e sociológica de Rodolfo Stavenhagen, ao lado de nomes como Pablo Gonzalez Casanova, Aníbal Quijano, Florestan Fernandes, Orlando Fals Borda, dentre outros, constitui um dos momentos cruciais dessa crítica radical aos pressupostos políticos e metodológicos da intelectualidade comunista latino-americana, da CEPAL, do nacional-desenvolvimentismo e das teorias da modernização. No caso de Stavenhagen, contudo, seria preciso acrescentar que, apesar de perceber as limitações da teoria da modernização para explicar as realidades da América Latina, o seu ponto de partida teórico, conceitual e metodológico foram justamente tais ideias e categorias transplantadas. A sua vivência como investigador e colaborador de Gonzalo Aguirre Beltrán no Instituto Nacional Indigenista (INI) no México, ao estudar comunidades indígenas em Chiapas, Oaxaca e Veracruz (ZAPATA, 2014, p. 173), fez perceber que as realidades mexicana e latino-americana eram mais complexas do que as teorias com as quais trabalhava poderiam evidenciar. A própria perspectiva normativa e teleológica das teorias da modernização e da noção de desenvolvimento seria logo posta em questão pelo nosso autor, ao perceber que se tratava de uma reprodução do lugar da América Latina nas relações desiguais entre países no sistema capitalista mundial.
Apesar da amplitude da produção intelectual de Rodolfo Stavenhagen e das diversas facetas políticas de seu pensamento sociológico, a presente discussão ficará circunscrita a dois de seus trabalhos que, colocados lado a lado, indicam as tensões do processo de ruptura na sociologia latino-americana entre as teorias da modernização e as correntes teóricas da dependência. O primeiro deles é um pequeno, mas incisivo ensaio de 1965. Com o título Sete teses equivocadas sobre América Latina, o ensaio deterá grande repercussão no debate ideológico latino-americano de meados dos anos 60, em especial pelo caráter contundente de suas críticas ao que o autor considerava teses equivocadas, então pertencentes aos partidos comunistas atuantes em nosso subcontinente, a diversas formulações das teorias da modernização e aos intelectuais do nacional-desenvolvimentismo cepalino. Apesar das irredutíveis diferenças teóricas e ideológicas entre esses três grupos, cada um deles defendia o papel progressista da burguesia nacional na condução da revolução democrática e do desenvolvimento capitalista autônomo nos países da América Latina.
O segundo texto é a sua tese de doutorado, defendida em 1965 na Universidade de Paris sob orientação de Georges Balandier e, logo depois, publicada em espanhol sob o título de Las clases sociales en las sociedades agrarias (1969), na qual o intuito comparativo acabou por conduzi-lo a investigações sobre situações específicas de modernização capitalista no México, América Central (Guatemala), África do Norte (Egito) e África Negra, em especial Costa do Marfim. Apesar de mais amplas, as investigações comparativas de Stavenhagen entre África e América Latina em seu período na França (1959-1962), a delimitação desses países funcionou como estudos de caso capazes de sintetizar algumas características gerais dos dois continentes. Esse segundo texto sinaliza para algumas críticas e rupturas mais radicais com as teorias da modernização, mas ainda não apresenta formulações teóricas mais precisas que permitam abandonar completamente o equívoco da oposição dicotômica entre arcaico e moderno – apesar de nele figurarem suas primeiras indicações da categoria política e teórica de “colonialismo interno”. O autor passava a se dar conta dos graves equívocos das teorias da modernização para explicar a América Latina e as formações sociais periféricas do capitalismo dependente.
Apesar de datados historicamente, os dois textos fornecem indicações importantes para se compreender a mudança de perspectiva nas sociologias produzidas na América Latina entre as décadas de 1950, 60 e 70. A tese aqui defendida é de que o texto conhecido como Sete teses equivocadas sobre América Latina (1965) representa um novo ponto de partida teórico e político, pois nele Stavenhagen rejeita por completo as teorias da modernização e esboça uma visão geral mais integrativa das formações sociais latino-americanas, permeadas pela junção entre sistema de classes e discriminação étnico-racial. Esse não é ainda o caso de sua tese de doutorado, As classes sociais nas sociedades agrárias (1964), apesar de terem sido escritos mais ou menos na mesma época. Ao fazer isso, o autor traz uma contribuição altamente original para a teoria das estratificações sociais, ao relacioná-la intimamente com as investigações antropológicas e sociológicas do sistema de classes – algo que nem mesmo um dos maiores estudiosos das elites, Wright Mills, lograra realizar. Essa crítica das visões dualistas e/ou pluralistas sobre América Latina, segundo as quais suas sociedades estavam compostas por estruturas sociais distintas e estanques, foi um dos legados das ciências sociais latino-americanas atuantes na década de 1960. A obra antropológica e sociológica de Rodolfo Stavenhagen desse período permite levantar algumas pistas para elucidar como essas novas contribuições foram sendo formuladas, e daí a relevância de recuperar suas ideias, a fim de compreender como as ciências sociais latino-americanas foram alcançando perspectivas mais autônomas e originais.
Outra possível contribuição do presente artigo será, a partir do exame do pensamento de Rodolfo Stavenhagen, debater a atualidade política de sua caracterização teórica dos vínculos entre sistema de classes, relações de tipo colonial e estratificação étnico-racial. É possível que tais vínculos possam servir de base para desvendar as imbricações entre exploração de classe e dominação étnico-racial em diversas situações atuais do capitalismo contemporâneo. O presente artigo apresenta inicialmente o debate metodológico sobre a sociologia do subdesenvolvimento e, logo a seguir, abordará as relações entre colonialismo e exploração capitalista. Será com suas Sete teses equivocadas que Stavenhagen irá estabelecer um novo ponto de partida para a reflexão política e teórica sobre América Latina, ao sugerir a necessidade premente de perceber os polos arcaicos e modernos como duas faces da mesma realidade e, para tanto, seus trabalhos empíricos anteriores, a exemplo de sua tese de doutoramento, constituíram passos decisivos para essa reformulação teórica altamente original.
Por fim, o uso combinado dos termos antropologia e sociologia para dar conta da formação intelectual de Stavenhagen merece um rápido esclarecimento. Apesar de algumas particularidades da história das ciências sociais no México, como o papel singular do Estado como promotor de investigações nessas áreas com objetivos de resolver questões práticas do desenvolvimento nacional (REYNA, 2007; ZAPATA, 2014), sua característica em comum com o conjunto da América Latina seria a ausência de fronteiras disciplinares tão rígidas entre a história, a sociologia, a antropologia e a ciência política, quando comparadas com suas congêneres cultivadas nas nações de desenvolvimento capitalista central. Por isso, apesar de se identificar como antropólogo, Stavenhagen trouxe contribuições fundamentais para outros campos das ciências sociais, em especial a sociologia e a ciência política, ao tratar das questões do subdesenvolvimento e do papel do Estado na reprodução das formas de estratificação étnico-racial no México e América Latina. A sua concepção de ciência social era essencialmente interdisciplinar e, por isso, as contribuições de suas pesquisas antropológicas podem ser aqui tomadas no âmbito específico de uma sociologia do subdesenvolvimento ou das sociedades de capitalismo dependente.
No balanço da sociologia norte-americana realizado por Wright Mills, suas considerações críticas são direcionadas contra o vazio de conteúdo estrutural e histórico da Grande Teoria e do empirismo abstrato (MILLS, 1959[2000a]). A sua crítica é ao mesmo tempo epistemológica e política. O esforço de conceituação geral e abstrata, sem relações diretas com o mundo social concreto, à maneira de uma sociologia formal, no caso da Grande Teoria (leia-se: Parsons), e a coleta de dados quantificáveis sem um propósito definido de determinar seus vínculos com a estrutura e a história, no âmbito do empirismo abstrato, acabam por conduzir o sociólogo a uma aceitação passiva, e muitas vezes inconsciente, do sistema social e do status quo vigente. O trabalho teórico e o empírico são apartados numa cômoda especialização acadêmica, fragmentando-se aspectos da realidade social que estão indissociavelmente interligados. A abstração de componentes do mundo histórico e social conduz a vieses e generalizações apressadas, provocados por motivos ideológicos inconscientes ou pela cegueira conceitual respaldada em diferentes tradições sociológicas.
Isso se torna ainda mais grave quando se transplanta, acriticamente, conceitos e teorias construídos no contexto histórico, intelectual, político e cultural das nações centrais do desenvolvimento capitalista para investigar a realidade das nações de origem colonial, subdesenvolvidas, periféricas e dependentes. É assim que tais países, no viés da atualização da antiga teoria da modernização, são hoje definidos como emergentes ou em vias de desenvolvimento. A perspectiva crítica de que a dependência reproduz e amplia as condições do subdesenvolvimento foi abandonada, sendo substituída por uma caracterização conceitual anódina e insuficiente para dar conta das realidades específicas das nações de capitalismo dependente. Não se trata aqui apenas de um desmascaramento ideológico, segundo o qual as ideologias das nações centrais se tornam as ideologias das nações economicamente dependentes. O próprio procedimento metodológico de abstração conceitual, de isolamento entre teoria e empiria, é equivocado e responde a interesses solidários das classes sociais dominantes dos países subdesenvolvidos e das nações imperialistas.
Foi contra esse tipo de postura metodológica, e veladamente política, que a intelligentsia crítica latino-americana dos anos de 1960 e 70 se insurgiu, muitas vezes tendo como ponto de partida os próprios marcos conceituais e teóricos da sociologia produzida nas nações hegemônicas do Ocidente e, por isso mesmo, desempenhando um papel pioneiro na crítica dos conceitos, das metodologias, das posições epistemológicas e ideológicas, como meio de reconstruir uma visão sociológica original, que não se limitasse a ser “nem decalque, nem cópia”, sobre a realidade específica e concreta da América Latina e dos países subdesenvolvidos do Terceiro Mundo.
É nesses termos que se pode situar a contribuição metodológica de Rodolfo Stavenhagen em seus trabalhos de investigação sobre as classes sociais, a situação colonial e a estratificação interétnica nas sociedades subdesenvolvidas, algumas delas de base política ainda fortemente agrária e tradicional, mas experimentando processos bastante violentos de modernização industrial e ocidentalização cultural. Uma das principais contribuições do autor à teoria sociológica pode ser situada nesse plano, a saber, a combinação original entre sistema de classes e estratificação social. Mesmo cientistas sociais com propostas teóricas refinadas no campo de estudos da sociologia da estratificação social, como Wright Mills em seus clássicos White Collar (1951[1956]) e The Power Elites (1956[2000b]), não conseguiram alcançar uma elaboração teórica de igual rigor e amplitude. Stavenhagen renova os estudos de estratificação social, indo além de meras categorias descritivas e/ou agregados estatísticos, ao combinar o enfoque de tais sistemas de desigualdade (étnico-raciais, de gênero, geracionais etc.) com as perspectivas analíticas do sistema de classes sociais.
Para Stavenhagen, os sistemas de estratificação social são reflexos complexos e contraditórios dos sistemas de classes. Isso não se opera de maneira mecânica, mas de modo a limitar ou a ampliar as ações dos sistemas de classe. Para tanto, toda e qualquer análise da estrutura e dinâmica das classes, tais como definidas dentro das tradições marxistas de pensamento, deve ser empreendida sempre levando em conta as situações históricas específicas. “Se admitimos [...] que as classes sociais na América Latina constituem elementos fundamentais do capitalismo dependente latino-americano” – diz o nosso autor na qualidade de debatedor do texto de seu colega brasileiro Florestan Fernandes, Problemas de conceituação das classes sociais na América Latina, num seminário internacional realizado em 1971 na cidade de Mérida, no México – disso se poderia concluir imediatamente duas coisas:
a) que “nossos conceitos relativos a essas classes sociais (que permitem sua identificação, definição e compreensão) devem ajustar-se a essa realidade”; b) tais conceitos “não podem ser os mesmos que são manejados tradicionalmente na sociologia latino-americana e, sobretudo, na sociologia sobre América Latina produzida em outros meios (principalmente nos Estados Unidos)” (STAVENHAGEN, 1977, p. 248).
Os estudos sobre América Latina deveriam se concentrar especificamente sobre cada situação concreta e acompanhar o modo particular como se deram as transições capitalistas e sua simbiose com formas anteriores de estratificação social, a exemplo da discriminação étnico-racial, baseadas em modos de produção coloniais. Para Stavenhagen, a essência da noção de colonialismo interno residiria nessa combinação de modos de produção historicamente distintos:
Este fenômeno é o que chamamos de colonialismo interno, quer dizer, a subordinação de modos de produção e formas de acumulação pré-capitalistas ao modo de produção dominante, o qual se transforma na subordinação e exploração de certos setores econômicos e sociais, de certos segmentos da população, de certas regiões geográficas, por outras. O colonialismo interno é uma relação estrutural característica da justaposição de modos de produção correspondentes a tempos históricos diferentes dentro do quadro global do capitalismo dependente e da situação de subdesenvolvimento (STAVENHAGEN, 1977, p. 250)
As diversas formas de estratificação social não seriam um mero epifenômeno das relações de classe, porém estariam inseridas numa visão de conjunto que se vincula ao sistema de classes e, ao mesmo tempo, mantém uma especificidade própria. Em outras palavras, a estratificação étnico-racial, para usar um exemplo mais próximo ao do autor das Sete teses equivocadas, está imbricada de tal forma ao sistema de classes e à estrutura da sociedade capitalista que o racismo se torna parte integrante dos conflitos entre as classes sociais, opondo brancos, mestiços, indígenas e negros de maneira semelhante às noções marxistas das classes em si e para si. Rodolfo Stavenhagen vai além da perspectiva estrutural-funcionalista, presente em sua tese de doutorado, As classes sociais nas sociedades agrárias (1965), e transforma a noção sociológica de estratificação social numa categoria analítica para a investigação da estrutura, dinâmica e conflito das sociedades e suas respectivas formações econômicas. Essa complexa operação intelectual foi avançada sem reducionismos ou dogmatismos de quaisquer espécies, tão comuns na história do marxismo na América Latina.
Não se pode esquecer, entretanto, que sua principal investigação sobre o subdesenvolvimento foi produzida nos anos 60 e os processos históricos em curso então analisados passaram por profundas transformações durante mais de cinco décadas. Por isso, não apenas os quadros conceituais estariam em certa medida superados pelo transcurso histórico, como também o autor procurou desenvolver as ideias seminais contidas nas Sete teses equivocadas para os novos tempos e as novas linguagens das ciências sociais[1], mantendo, porém, a essência de suas posições elaboradas em meados da década de 1960. Em termos de posicionamentos metodológicos, contudo, os caminhos de análise trilhados por Stavenhagen apresentam surpreendente atualidade, por assumir os traços de uma verdadeira sociologia histórica.
Na contramão dos modismos da Grande Teoria, seus esforços estão voltados para a análise concreta de sociedades nacionais específicas, não somente do ponto de vista estrutural e histórico, mas também comparativo, ao mesmo tempo em que a incorporação crítica das teorias da estratificação social não ocorre pelo viés do empirismo abstrato, por intermédio de variáveis quantificáveis, mas sempre isoladas do contexto político e cultural mais amplo. Para Stavenhagen, não seria a tentativa de se igualar e reproduzir o padrão de trabalho teórico praticado nas nações centrais, a fim de angariar reconhecimento público, o caminho correto de conduzir o aprimoramento do conhecimento sociológico. Muito pelo contrário, contribuições teóricas de peso para a sociologia mundial viriam da dedicação do cientista social latino-americano ao enfrentamento dos dilemas decisivos dos países capitalistas dependentes.
É nesse sentido que o autor avança contribuições teóricas de grande relevância ao abordar dilemas fundamentais de sua sociedade nacional imediata, o México, e dos demais países subdesenvolvidos da América Latina e da África. Apesar de guiado pelo rigor analítico e acadêmico, os resultados de suas investigações não se pretendem cientificamente neutros e apolíticos, mas acabam por conduzir à crítica e desmascaramento ideológicos de estratos sociais conservadores e potencialmente reacionários, a exemplo de suas constantes referências à noção ambígua, imprecisa e ideológica de classes médias[2], ou por apontar as soluções necessárias às questões fundamentais de sua época e sociedade.
A investigação sociológica caminha lado a lado, nos trabalhos de Rodolfo Stavenhagen, com aspirações políticas. Em relação ao desenvolvimento social e econômico ele iria escrever, por exemplo, em sua tese de doutorado: “Reconhece-se cada vez mais que o desenvolvimento econômico não é um problema técnico, mas antes de tudo político”. E logo depois assumiria que os caminhos do desenvolvimento seriam decididos pela própria dinâmica das classes sociais e nas suas relações políticas com o Estado: “O problema que então se coloca é o da natureza mesma do Estado e das relações deste com as principais classes da sociedade”. O corolário político mais imediato de tais posições teóricas seria a mudança na orientação ideológica dos objetivos perseguidos socialmente: “o desenvolvimento econômico implica profunda modificação das relações de classe existente e, frequentemente, a substituição de uma classe por outra no poder” (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 19). Os propósitos políticos não seriam estranhos à construção de diagnósticos sociológicos rigorosos.
No momento em que Rodolfo Stavenhagen escrevia tais linhas, a geração de cientistas sociais latino-americanos de que ele mesmo faz parte, aqui mencionada um pouco anteriormente, se empenhava em superar os limites conceituais da sociologia europeia e norte-americana na tentativa de interpretar a realidade concreta específica da América Latina e demais países subdesenvolvidos. Alguns dos pressupostos teóricos e ideológicos da teoria da modernização foram em algum momento assumidos por tais pensadores, a exemplo da dicotomia tradicional/moderno, da imagem das sociedades plurais e duais, da perspectiva de uma dinâmica inexorável e quase fatalista do desenvolvimento econômico etc. – pressupostos esses que eles mesmos procuraram superar num árduo esforço de síntese historicamente conceitual, captando as características particulares que definiriam seus países a partir da combinação de subdesenvolvimento, dependência, situação colonial, sociedade de classes, hegemonia externa, dominação interna, exploração e imperialismo. A principal contribuição dessa geração seria no campo da sociologia histórica, embora os resultados de suas investigações pudessem conduzir à crítica das teorias sociológicas gerais.
No caso de Stavenhagen, o curioso a ser observado é que – no momento mesmo em que tece duras críticas ao que chamou de sete teses equivocadas sobre a América Latina[3], rechaçando ideológica e politicamente a teoria da modernização – parece trabalhar no limiar ou em tensão, por exemplo, com o par conceitual tradicional e moderno[4], os quais alimentam – tenha-se ou não consciência disso – a perspectiva de alguma inevitabilidade e/ou caráter fatalista do processo de modernização, quando analisa as transformações da propriedade rural em Costa do Marfim e no conjunto da África Negra[5]. A sua sagacidade e de outros cientistas sociais de sua geração, trabalhando de forma independente entre si, foi perceber os limites históricos das teorias com as quais dialogavam inicialmente. Entretanto, os dados da realidade coligidos e interpretados por Stavenhagen iam além da teoria da modernização e, para tanto, novas teorias precisariam ser construídas e as teses equivocadas, abandonadas. As Sete teses equivocadas representaram justamente esse momento preciso de mudança, na qual a inteligência dos cientistas sociais latino-americanos não aceitou mais trabalhar com teorias transplantadas inadequadas e passou a caminhar em direção ao desvendamento das especificidades e particularidades da América Latina.
Ao mesmo tempo, o autor avança na superação dos limites da caracterização das sociedades subdesenvolvidas como sociedades duais, ao considerar o meio rural como necessariamente vinculado à dinâmica da sociedade nacional e às transformações internacionais, que conduz à reprodução combinada do subdesenvolvimento e do desenvolvimento. Essa não é simplesmente a conclusão geral de sua tese de doutoramento, mas estará presente com toda carga política no texto de suas Sete teses equivocadas sobre América Latina, ao mostrar que os polos de riqueza se sustentam na pobreza de outras regiões: “o desenvolvimento e o subdesenvolvimento estão ligados na América Latina, e [...] com frequência o desenvolvimento de uma zona [implica] o subdesenvolvimento de outra” (STAVENHAGEN, 1965b[2010], p. 151). Por isso, não seria exato falar de sociedades duais ou plurais, mas de sociedades integrando de modo desigual e combinado diferentes formas de exploração e estratificação social.
As ambiguidades e indefinições conceituais – provenientes do fato de terem que contar com pontos de partida teóricos, conceitos e metodológicos muitas vezes inadequados às diversas realidades latino-americanas – então presentes no pensamento de Rodolfo Stavenhagen e de outros nomes de sua geração, algo bastante compreensível dado o contexto político e intelectual de construção das ciências sociais da América Latina nos anos de 1960 e 70, foram por esses mesmos cientistas sociais duramente criticados como sinal de uma inaceitável dependência ou colonialismo cultural. O nosso ponto de partida foram – como dificilmente não poderiam ter sido de outra maneira – as teorias transplantadas dos cenários culturais dos países centrais. O mais grave, contudo, é que ainda hoje tais teses equivocadas, tão incisivamente rechaçadas por Rodolfo Stavenhagen, são aceitas como válidas por setores e grupos sociais de países diversos da América Latina, que produzem novas versões da ideologia desenvolvimentista e/ou das teorias da modernização. Isso se explica em parte pela perda de contato entre as novas gerações e as ideias desses clássicos das ciências sociais latino-americanas.
As investigações empíricas desses mesmos cientistas sociais deram, assim, os primeiros passos para superar os limites colocados à compreensão sociológica dos dilemas históricos mais específicos da realidade latino-americana e dos países subdesenvolvidos. Tal superação se deve, em última instância, aos novos horizontes teóricos, metodológicos, empíricos e políticos então construídos nesse período de transição, rupturas e redefinições, estabelecendo um clima intelectual propício para a formulação das teorias da dependência em suas diferentes versões[6]. Se Rodolfo Stavenhagen não pode ser considerado diretamente um dos fundadores da teoria da dependência, as suas ideias sobre classes sociais, colonialismo interno e estratificação interétnica podem ser utilizadas para enriquecer as investigações sobre as especificidades históricas do capitalismo dependente. Uma das teses compartilhada pelas diferentes versões da teoria da dependência é que a dinâmica interna e externa das classes sociais nas nações subdesenvolvidas gera a combinação de modos de produção historicamente distintos nos países de capitalismo dependente. A noção de colonialismo interno proposta por Stavenhagen fornece justamente uma categoria teórica historicamente concreta, o colonialismo interno, para a investigação empírica da combinação de modos de produção diversos dentro de uma mesma sociedade.
Essa nova marca da sociologia latino-americana poderá ser observada no esforço teórico de Rodolfo Stavenhagen e de outros cientistas sociais à sua época em caracterizar histórica e estruturalmente o subdesenvolvimento em situações políticas de dependência, captando as particularidades das nações periféricas em comparação às nações de desenvolvimento capitalista central, e na maneira original como procuraram combinar metodologicamente a investigação do sistema de classes com o estudo da estratificação social, em especial a estratificação interétnica. A combinação entre as perspectivas estrutural e histórica será o traço principal dos esforços teóricos e da metodologia proposta por Stavenhagen e seus colegas de geração em diferentes países da América Latina, os quais procuravam aliar o cultivo do rigor acadêmico à crítica da ordem social existente e à atuação junto aos movimentos sociais e populares.
O subdesenvolvimento não é definido meramente pelos seus elementos quantificáveis (renda per capita, crescimento econômico, PIB, PNB etc.) e, muito menos, pela predominância do setor agrícola na economia nacional. Trata-se de uma concepção reducionista, utilizada de maneira ideológica para negar a existência do subdesenvolvimento em países que alcançaram certo grau de industrialização e crescimento econômico acelerado (a exemplo de Brasil, México, Argentina, Chile, África do Sul, Nigéria e vários outros), encobrindo as causas estruturais da exploração capitalista nos âmbitos interno e externo entre as classes sociais, de um lado, e entre as nações hegemônicas e dependentes, de outro. Economias de subsistência, sociedades agrárias e atraso não são simplesmente sinônimos de subdesenvolvimento, pois sociedades industrializadas podem reproduzir de modo ampliado estruturas subdesenvolvidas no seu interior e nas relações com outros países.
O subdesenvolvimento é caracterizado por um conjunto de relações sociais de dependência, exploração e subordinação que se verificam nos níveis intra e internacionais. Parafraseando Karl Marx, o método cientificamente exato para caracterizar teoricamente o subdesenvolvimento seria o procedimento sintético, que apreende o real concreto como uma “síntese de múltiplas determinações” ou “unidade na diversidade”. Os conceitos assim forjados não seriam tão específicos e, por isso, aplicáveis apenas à sua realidade social mais imediata, nem tão gerais e abstratos que deteriam uma aplicação universal, mas apanhariam de modo dinâmico as estruturas históricas particulares em seus aspectos essenciais.
Um país industrializado, de desenvolvimento capitalista acelerado, poderá ser caracterizado como subdesenvolvido e dependente desde que o conjunto de suas relações sociais, internas e externas, revele ausência de integração nacional e desníveis muito acentuados, pois os dinamismos econômicos se voltam quase exclusivamente para atender as necessidades das nações hegemônicas. Isso conduz a um empobrecimento relativo entre países centrais e periféricos dentro de situações mais ampliadas de subdesenvolvimento. É nesses termos que Stavenhagen define o subdesenvolvimento e diversos elementos de seu quadro conceitual se apresentam bastante atuais: “O que se chama de estado de subdesenvolvimento não é somente a soma de uma série de aspectos discretos quantificáveis. Trata-se, antes de tudo, de uma condição histórica” (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 10). Em outras palavras, o subdesenvolvimento se caracteriza como uma condição histórica construída pelos grupos e classes sociais no cenário internacional.
Essa condição histórica, por sua vez, seria o “resultado de muitos anos, incluso de séculos, de certo tipo de relações específicas que os países assim chamados mantiveram e mantêm, todavia, com os países desenvolvidos”. Tais relações específicas caracterizam (1) o colonialismo, “que estabeleceu entre os países colonizadores e os países colonizados um conjunto de relações de desigualdade (o estabelecimento de relações entre sociedades desiguais produziu uma desigualdade crescente)”; (2) as relações de dependência entre países, “tanto política como econômica”, mas também cultural e militar; e, por fim, (3) as relações de exploração econômica, ou seja, de “enriquecimento dos países colonizadores, esgotamento das riquezas naturais dos países colonizados, corrente de capitais dos países subdesenvolvidos aos países desenvolvidos, etcetera” (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 10). A ideia clássica de desenvolvimento desigual e combinado participa da construção conceitual do subdesenvolvimento.
Não se trataria tão-somente de uma substituição das relações tradicionais pela modernização do modo de vida, dos costumes e das relações políticas, sociais e econômicas, como sistemas bipolares e dicotômicos, mas de uma simbiose entre avanço e atraso, riqueza e pobreza, dado pelo conjunto de elementos que definem o subdesenvolvimento: “[...] não são as estruturas tradicionais por si mesmas as que constituem o sinal do subdesenvolvimento”; apenas quando tais relações ingressam no sistema capitalista mundial é que elas tendem a “se transformar em estruturas «subdesenvolvidas»”; as estruturas de dominação tradicional podem, inclusive, ser “reforçadas pelo capitalismo importado” e se tornarem funcionais para o próprio desenvolvimento capitalista, como seria “o caso de certas castas na Índia, de regimes políticos autoritários na América Latina, dos tribalismos fomentados pelas potências coloniais na África etc.” (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 11). O empobrecimento relativo dos países subdesenvolvidos seria, portanto, fruto desse conjunto de relações desiguais e assimétricas, que reproduzem as situações coloniais e/ou de dependência dentro dos marcos modernos do capitalismo mundial. Nas condições do subdesenvolvimento, a industrialização ficará subordinada aos interesses das nações de desenvolvimento capitalista central, provocando a falta de integração do mercado interno nos países subdesenvolvidos e dependentes.
O subdesenvolvimento afeta o conjunto da vida social, cultural, econômica e política dos múltiplos e interconexos blocos nacionais, inter-regionais e mundiais. Dentre as consequências negativas das situações de subdesenvolvimento em escala mundial, como “a destruição da agricultura tradicional de autoconsumo [que ameaça a segurança alimentar das camadas pobres dos países subdesenvolvidos], a perda de capitais [para as nações centrais], a instabilidade monetária, a inflação, o baixo nível de rendimentos” (STAVENHAGEN, 1965a [1969], p. 10), pode-se identificar como sendo o seu gargalo estrutural mais grave – capaz de obstaculizar o desenvolvimento nacional autônomo – a criação de uma infraestrutura voltada para as necessidades das multinacionais e empresas estrangeiras.
As causas do subdesenvolvimento decorreriam de razões políticas internas e externas atuantes sempre de modo recíproco e intercambiável. Exemplo mais notório disso seria a combinação entre, de um lado, a dominação dos setores tradicionais aliados aos estratos burgueses emergentes (que se pode tomar como uma das principais causas internas do subdesenvolvimento) e, de outro, as trocas desiguais entre nações e inversões estrangeiras que agravam a desarticulação das economias nacionais dos países subdesenvolvidos (fatores externos que passam a fazer parte da própria dinâmica do capitalismo dependente). A caracterização do subdesenvolvimento e suas respectivas situações de dependência em termos de suas relações históricas e estruturais, como propõe Rodolfo Stavenhagen, permite apanhar o desenvolvimento desigual e combinado entre nações e/ou dentro de uma mesma nação, sob a forma de colonialismo interno (CASANOVA, 2006), como uma das dimensões fundamentais do capitalismo contemporâneo nos centros hegemônicos e nas periferias dependentes.
O corolário mais importante de toda argumentação anterior pode ser resumido de maneira simples: a riqueza das nações centrais se deve à pobreza dos povos colonizados e das nações dependentes. “[...] se os países da Europa puderam desenvolver-se, não foi devido somente a condições internas, mas também à exploração de suas colônias e sua expansão econômica” (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 15). Do mesmo modo, a extrema concentração de riquezas no topo da pirâmide social nos países subdesenvolvidos é uma característica de seu modelo específico de desenvolvimento capitalista, que reproduz internamente as mesmas desigualdades observadas entre as nações. Há desenvolvimento capitalista acelerado, mas extremamente desigual e combinado a outras formas de exploração. Essa situação complica sobremaneira a investigação das classes sociais nas sociedades subdesenvolvidas.
As formas capitalistas de exploração e dominação nas nações subdesenvolvidas sofrerão influências decisivas de tipos diversos de estratificação social. A combinação entre formas capitalistas e não capitalistas se faz necessária à manutenção de privilégios em países de origem colonial, subdesenvolvidos e dependentes. Para que as elites das classes dominantes de tais nações possam desfrutar – em consórcio com as burguesias internacionais – de fatias cada vez maiores do bolo da mais-valia, não somente a fonte do sobre-valor deve ser aumentada pelos mecanismos econômicos de superexploração das classes trabalhadoras. Muito mais importante seria resguardar politicamente a concentração de poder e prestígio no topo da sociedade civil, restringido as oportunidades educacionais, o acesso à saúde, ao lazer e à cultura, o controle da informação, das fontes de riqueza e do trabalho para a ampla maioria da população e das camadas populares. Todo um conjunto de desigualdades sociais que possuem suas origens num passado colonial, neocolonial e dependente, remoto ou recente, passa então a se combinar com formas de exploração tipicamente capitalistas.
Num texto de cunho teórico bastante seminal, o segundo capítulo de sua tese de doutoramento, Stavenhagen se esforça por contrastar e, ao mesmo tempo, aproximar tradições de investigações sociológicas tão díspares entre si, para não dizer antagônicas ideologicamente, como os estudos de estratificação social, de matriz funcionalista, e a perspectiva marxista sobre as classes sociais. O autor identifica a estratificação social como um fenômeno da superestrutura do modo de produção, cuja base seria a própria relação entre as classes sociais. “As estratificações estão baseadas nas relações entre as classes, e tendem a refleti-las” (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 38). Isso não é visto, porém, como um mero reflexo passivo das condições materiais de existência ou do modo de produção. “Há estratificações que não descansam, à primeira vista, nas relações de classe”. Os exemplos seriam “as categorias ocupacionais de prestígio ou certas hierarquias baseadas em critérios de pertencimento racial ou étnico, nas sociedades plurais” (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 38). Como já dito anteriormente, as estratificações de raça, étnicas e de gênero não seriam meros epifenômenos das classes sociais. Sistema de classes e estratificação social aparecem na investigação da estrutura de uma sociedade como duas faces da mesma moeda.
Para Rodolfo Stavenhagen, no entanto, essas estratificações teriam proximidades com a situação de classe e “não podem ser realmente compreendidas se não as se relaciona com esta”. Como elementos da superestrutura, as estratificações poderiam ser chamadas “fixações ou projeções sociais, com frequência incluso jurídicas e, em todo caso, psicológicas, de certas relações sociais de produção representadas pelas relações de classe”. Ou ainda, as estratificações seriam formas de justificação ou racionalização do sistema econômico estabelecido, reforçadas por outros elementos como a religião, a raça, a etnia etc., isto é, as estratificações seriam ideologias (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 38-9). Como ideologias, elas apresentam aspectos reais que atuam nas relações sociais de produção e modificam as situações de classe. Estas últimas, por sua vez, são também determinadas por tipos diversos de estratificação, a exemplo da má remuneração do trabalho entre povos negros e indígenas, então motivada por formas abertas e/ou veladas de discriminação e racismo.
Na análise da situação concreta dos países subdesenvolvidos, o mero enfoque da estrutura de classes sociais não seria suficiente para apreender o conjunto das relações econômicas, sociais, culturais e políticas de tais tipos de sociedade. Embora não coincidam entre si a estrutura de classes e as diversas formas de estratificação (castas, raça, etnia etc.), pois estas últimas não constituem um mero reflexo passivo da primeira, podendo, de igual modo, as estratificações exercerem influência decisiva sobre a estrutura de classes (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 40), o exame conjunto de ambas permite revelar as forças sociais conservantistas que, em circunstâncias históricas particulares, resistem às transformações do sistema social vigente e ao aprofundamento de mudanças democráticas. “A estratificação desempenha, pois, um papel eminentemente conservador na sociedade” e, por dividir a sociedade em grupos, “tem por função a de integrar a sociedade e de consolidar uma estrutura socioeconômica determinada” (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 41). No caso, a manutenção das desigualdades interessa aos estratos superiores; na medida em que os estratos superiores, dentro do campo das diversas formas de estratificação, coincidem em larga escala com as classes dominantes (embora não sejam idênticos), essas diversas formas de estratificação representam uma forte barreira para o aprofundamento dos conflitos e contradições entre as classes sociais. Dentro de uma perspectiva marxista, portanto, o estudo dos fenômenos de estratificação social não pode ser desprezado, pois tais fenômenos indicam as potencialidades de aprofundamento e/ou depreciação da própria luta de classes e das mudanças radicais da estrutura social.
O papel conservantista de depreciação da luta de classes é comumente desempenhado pelos estratos intermediários nos sistemas que permitem uma mobilidade social ascendente, por diluir as oposições de classe, já que tais “grupos médios” são dependentes em grande medida das classes dominantes e, por isso, podem negar psicológica e politicamente sua origem nas classes trabalhadoras e subalternas. A situação de subdesenvolvimento corresponde a uma imbricação de elementos do capitalismo avançado, e de sua respectiva estrutura de classes sociais, com formas de estratificação social originadas em situações coloniais, neocoloniais e de dependência entre países e/ou entre grupos raciais e étnicos assimétricos em termos de distribuição do poder político e das riquezas materiais. Nas sociedades capitalistas subdesenvolvidas, as formas de exploração especificamente capitalistas podem ser reforçadas pelos sistemas de estratificação inter-racial e interétnico, como é o caso de países como Brasil, México, África do Sul, Moçambique, Chile, Peru, Bolívia, isto é, o Sul global em sua quase totalidade.
As posições teóricas e metodológicas de Stavenhagen permitem pensar as relações entre classe e etnia, ou entre classe e raça (utilizada aqui no sentido sociológico, sem quaisquer implicações biológicas), como constitutivas da situação concreta dos países subdesenvolvidos e como um dos fatores de reforço do subdesenvolvimento, pela reatualização da situação colonial e pela manutenção de antigos privilégios hoje aproveitados pelas elites das classes sociais dominantes e dos grupos médios que lhes são diretamente subordinados. O que poderia ser criticado como uma sorte qualquer de ecletismo metodológico, na tentativa de fundir o enfoque estrutural-funcionalista com a perspectiva dialética, funcionalismo e marxismo, não passa na verdade de um esforço teórico original de dar conta do caráter específico das sociedades subdesenvolvidas, caracterizadas historicamente pela combinação entre exploração de classe, exploração colonial e dominação étnico-racial.
As contribuições de Rodolfo Stavenhagen ultrapassam os horizontes da sociologia e da antropologia e se acercam também, em termos de crítica às teses da esquerda ortodoxa representada pelos Partidos Comunistas da América Latina, do debate marxista da década de 1960[7]. Isso porque suas investigações sociológicas das sociedades subdesenvolvidas não se limitam a verificar apenas as características da estrutura de classes. A dinâmica dessa estrutura de classes é modificada pela existência de situações coloniais internas e pela estratificação interétnica. A situação colonial na América Latina emerge da conquista, portuguesa e espanhola, como fruto da expansão mercantilista europeia. O sistema colonial, criado pela conquista, opõe entre si povos distintos, estabelecendo rígidas hierarquias e centralização política como uma forma de controle social e manutenção da ordem.
No colonialismo interno, a estrutura de classes polariza as categorias sociais responsáveis pelos “processos de produção e de circulação econômica” e diretamente partícipes da “estrutura de classes do sistema social”, de um lado, e a população subjugada, de indígenas e/ou de negros, que compõem a “estrutura de classes da colônia”, de outro (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 245). As relações étnico-raciais são constituídas, duplamente, pelas relações coloniais e relações de classe. As principais características da situação colonial podem ser assim resumidas: “discriminação étnica, dependência política, inferioridade social, segregação residencial, sujeição econômica e incapacidade jurídica” (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 245). No colonialismo mercantil, a rigidez da estrutura de classes, reforçada pela segregação étnica, se torna um elemento de manutenção da ordem colonial. Com a Independência formal e a transição para a sociedade de classes, a situação colonial não desaparece e passa a se expressar em termos de colonialismo interno. “Desta vez a sociedade colonial era a própria sociedade nacional que estendia progressivamente seu controle sobre seu próprio território” (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 248). A transição capitalista não conduziu o processo de descolonização até o fim, sendo incapaz de suplantar a rígida estratificação interétnica que sustenta a situação colonial internamente.
Na verdade, a discriminação e a segregação dos grupos étnicos e raciais subjugados, a depender das condições concretas das sociedades nacionais, se tornam um fator de reforço da dominação burguesa. Stavenhagen sugere a hipótese de que a estratificação interétnica, “ao refletir uma situação do passado [...] atua como freio sobre o desenvolvimento das novas relações entre as classes” (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 251). Nesse sentido, Stavenhagen refuta qualquer posição teleológica ou fatalista do processo histórico já mesmo em sua tese de doutoramento, Las clases en las sociedades agrárias (1965a[1969]), na qual colocava sob suspeição os conceitos das teorias da modernização, embora ainda não apresentasse categorias alternativas. Aí chegava apenas a vislumbrar como relações tradicionais e arcaicas se perpetuavam em novas bases nas sociedades capitalistas modernas. Seria o próprio Stavenhagen a esboçar hipóteses alternativas, segundo as quais a estratificação interétnica se combina de diversas maneiras com o sistema de classes, dado que a primeira surge como um reforço da dominação dentro do próprio modo de produção capitalista. Somente pesquisas empíricas bem delimitadas é que poderiam, enfim, dar conta das diversas formas de combinação entre estratificação interétnica e sistema de classes. Não seria uma questão teórica resolvida de modo a priori, antes de qualquer pesquisa de campo ou trabalhos comparativos com escopos mais abrangentes.
Nesse sentido, nas situações de subdesenvolvimento a estratificação interétnica concorre para concentrar ainda mais as riquezas, aumentando o fosso entre as classes sociais numa estrutura econômica já altamente concentrada e caracterizada por profundas desigualdades regionais, raciais e étnicas. Stavenhagen, no entanto, procurou apanhar a inter-relação entre as situações de classe e colonial, ao invés de encará-las como excludentes entre si, como muitos teóricos do estrutural-funcionalismo poderiam de maneira equivocada caracterizar nos planos teórico e empírico as formações sociais periféricas da América Latina. “Não se pode deixar de insistir que o caráter classista e o caráter colonial das relações interétnicas são dois aspectos intimamente ligados de um mesmo fenômeno” (STAVENHAGEN, 1965a[1969], p. 259). A articulação entre zonas de subdesenvolvimento relativo e áreas de pleno desenvolvimento e crescimento acelerados, internacionalmente ou nos quadros de uma mesma sociedade nacional, caracterizadas por situações coloniais, de dependência e/ou de colonialismo interno, é sustentada por uma estrutura de classes estratificada em termos raciais e interétnicos. As relações de classe e relações raciais e/ou interétnicas não são incompatíveis nos marcos do subdesenvolvimento e do capitalismo dependente.
Um último aspecto importante, talvez o mais fundamental, que se pode salientar nas preocupações teóricas de Rodolfo Stavenhagen seria o diálogo intelectual com a comunidade internacional de cientistas sociais. O sociólogo de origem alemã radicado no México não apenas realizou pesquisas comparativas entre México, América Central e África Negra. A sua produção teórica mesma ocorre por meio do diálogo entre as ciências sociais dos centros e das periferias do sistema capitalista. A noção de situação colonial, central ao mesmo tempo para a elaboração da ideia de relações interétnicas e da categoria de colonialismo interno, provém dos trabalhos do antropólogo francês Georges Balandier (2014), a partir de investigações realizadas no Congo e no Gabão em meados do século XX. Balandier pode ser considerado como um dos grandes nomes e fundadores da sociologia das sociedades africanas, ao perceber que elas assumiam seus ritmos próprios dentro dos horizontes da modernidade. De igual modo, Stavenhagen aproveita tais sugestões do orientador de sua tese de doutorado para perceber como os países latino-americanos desenvolvem modernidades alternativas e não se colocam de maneira simplista como estágios anteriores da evolução das nações centrais.
Aqui no Brasil, as ideias de Stavenhagen tiveram importante influência sobre uma das vertentes da antropologia indígena, a que investiga a relação entre nossos povos originários e a sociedade nacional por meio de noções como a de fricção interétnica (OLIVEIRA, 1996), seus conflitos e relações contraditórias com o mundo dos brancos. De certa forma, os estudos atuais de ressurgência étnica possuem raízes teóricas longínquas nas reflexões políticas e acadêmicas de nomes como Georges Balandier, Roberto Cardoso de Oliveira, Pablo González Casanova e Rodolfo Stavenhagen. Apesar do inegável padrão atual de desenvolvimento capitalista nas nações de origem colonial, subdesenvolvidas e dependentes, há elementos cruciais de suas respectivas formações históricas que só poderão ser apanhados a partir das perspectivas teóricas trabalhadas por noções como as de colonialismo interno, relações e fricções inter-raciais e/ou interétnicas. A obra sociológica de Stavenhagen continua bastante atual, por evidenciar que o enfoque centrado única e exclusivamente nas classes sociais será sempre insuficiente para dar conta da complexidade do real nas sociedades centrais e periféricas do capitalismo contemporâneo.
As ideias de Rodolfo Stavenhagen aqui apresentadas foram desenvolvidas em meados da década de 1960, num momento de reviravolta nas ciências sociais da América Latina. Muitos dos elementos da antiga teoria da modernização estavam sendo questionados e substituídos por uma visão mais integrativa das estruturas sociais subdesenvolvidas. A dicotomia tradicional/moderno, em especial, foi questionada pela concepção da articulação entre dependência e subdesenvolvimento. Stavenhagen traz uma grande contribuição para o referido debate, ao apontar o caráter contraditório e complexo das combinações entre sistema de classes, estratificação interétnica e colonialismo interno. Ao mesmo tempo, seu estudo sobre as classes sociais nas sociedades agrárias sugere a estratificação interétnica como um fator de reforço da dominação de classe e de manutenção do caráter desigual e combinado das disparidades sociais sob o subdesenvolvimento e o capitalismo dependente. Nesse sentido, as ideias de Stavenhagen constituem contribuições fundamentais para o pensamento sociológico atual, em termos da importância cada vez maior da articulação teórica entre raça, etnia e classe para investigar os conflitos sociais nos países de origem colonial, subdesenvolvidos e dependentes. Além disso, suas contribuições são também importantes para entender as contradições do capitalismo nas nações centrais, devido ao grau acentuado de exploração da mão de obra imigrante em países ocidentais, a qual envolve de modo combinado exploração capitalista e discriminação racial.