Resumo: A intimidade pós-moderna constitui uma esfera estruturalmente marcada pela complexa convivência de disposições sociais de dissensão e de fusão. Por um lado, é permeada por condições propícias à individualização, à reflexividade e à electividade, o que contribui para reforçar idiossincrasias e aspirações pessoais nas relações íntimas. Por outro lado, encontra-se simbolicamente colonizada pela grande narrativa romântica, uma matriz cultural muito valorizada e desejada, que impulsiona os sujeitos no sentido da fusão passional. Delineado num formato ensaístico, o artigo assume como objecto de análise central as manifestações de forças antagónicas na configuração da intimidade, procurando compreender as muitas tensões, ambiguidades, contradições e volatilidades que tendem a caracterizá-la.
Palavras-chave:IntimidadeIntimidade,reflexividadereflexividade,fusão/dissensãofusão/dissensão.
Abstract: The postmodern intimacy is a sphere structurally marked by a complex coexistence of dissension and fusion social dispositions. On the one hand, it is permeated by conditions favourable to individualization, reflexivity and electivity, which contribute to strengthen personal aspirations and idiosyncrasies in intimate relationships. On the other hand, it is symbolically colonized by the great romantic narrative, a cultural matrix, very much valued and desired, which drives individuals towards a passional fusion. Outlined in an essayistic format, this article has as its main purpose of analysis the manifestations of antagonistic forces in the intimacy configuration process, seeking to understand the many tensions, ambiguities, contradictions and volatilities that tend to characterize it.
Keywords: Intimacy, reflexivity, fusion/dissension.
Artigos
Fusão, tensão e dissensão: forças de configuração da intimidade reflexiva
Fusion, tension and dissension: reflexive intimacy configuration forces
Recepção: 08 Maio 2016
Aprovação: 16 Novembro 2016
Nas décadas mais recentes temos vindo a assistir, não só no ocidente, como em contextos de outras latitudes, a significativas mutações nas identidades e relações de género, a uma crescente individualização e reflexividade da vida pessoal e a novas formas de organização dos vínculos conjugais e familiares (ABOIM, 2004; BAUMAN, 2008; BECK e BECK-GERNSHEIM, 2004; BUDGEON e ROSENEIL, 2004; GIDDENS, 2001; ILLOUZ, 1999; ROCA, 2007). Daqui têm resultado algumas das tendências que marcam o ordenamento da intimidade nos dias que correm: a dificuldade em estabelecer conexões sentimentais satisfatórias e duradouras, a proliferação de formas de conjugalidade alternativas ao casamento e a instabilidade das relações amorosas. Em conjunto, estas tendências são profundamente reveladoras do “caos do amor” (BECK e BECK-GERNSHEIM, 2004) na contemporaneidade e dos desejos antagónicos de fusão e fissão sentimental que o caracterizam (CHAUMIER, 2004a, 2004b).
Considerando as novas coordenadas e possibilidades de configuração da sexualidade, dos afectos e das relações de casal, o texto procura debater e compreender, em jeito de ensaio, a mecânica social das forças de fusão, tensão e dissensão que permeiam a construção da intimidade. A análise da manifestação destas forças, bem como das ambiguidades e volatilidades que lhes são intrínsecas, é delineada tendo em conta o quadro de processos de individualização, reflexividade e electividade que caracterizam a modernidade tardia, e a hiper-valorização capitalista do ideário romântico enquanto utopia de consumo (ILLOUZ, 1997). Embora eminentemente teórico-conceptuais, as reflexões aqui desenvolvidas são suscitadas pelo trabalho de campo etnográfico para doutoramento realizado em 2009/2010 pelo autor (SACRAMENTO, 2014)[1] sobre configurações transnacionais de intimidade entre mulheres brasileiras e homens europeus, iniciadas durante as estadias turísticas destes últimos no Nordeste brasileiro, sobretudo no contexto do sexo transacional. No âmbito deste trabalho foi possível constatar que as subjectividades e aspirações que guiam a construção dos relacionamentos passionais transnacionais euro-brasileiros inscrevem-se em transformações estruturais de género, sexualidade, conjugalidade e família, e na consequente emergência de espaços sociais de intimidade mais reflexivos e voláteis.
Na actualidade, os trajectos pessoais tendem a organizar-se segundo um registo de cariz reflexivo, por referência a quadros culturais amplos, abertos e fragmentados. O resultado é a crescente “individualização” (BECK e BECK-GERNSHEIM, 2002)[2], ou seja, uma maior referencialidade interna e electividade, tornando possível uma “biografia reflexiva” (GIDDENS, 2002) ou “auto-reflexividade” (LASH, 2001), marcada pela significativa autonomia individual na definição do estilo e trajecto de vida, da identidade e das redes de interacção e expectativas. Embora actuando sempre dentro de um determinado contexto de maiores ou menores constrangimentos e de um leque mais ou menos vasto de opções e de possibilidades, o indivíduo não está necessariamente limitado às imposições normativas, às certezas e ao controlo dos “modelos tradicionais”.
Neste processo de construção reflexiva do self assiste-se a uma maior vinculação dos sujeitos a “sistemas referenciais internos” compostos pelas suas próprias experiências individuais, sendo os percursos biográficos definidos a partir de “[…] uma interrogação mais ou menos contínua sobre o passado, o presente e o futuro”, num cenário pautado pela “[…] profusão de recursos reflexivos: terapia e manuais de auto-ajuda, programas de televisão e artigos de revista” (GIDDENS, 2001, p. 22). Ao não estar rigidamente constrangido pelos guiões da tradição, o self ganha capacidade electiva e torna-se mais individualizado. Esta individualização e reflexividade não significam, todavia, uma manifestação absoluta de liberdade individual, pois o planeamento biográfico está sujeito a múltiplos imperativos, nomeadamente aos imperativos do mercado de trabalho, como ressalvam Beck e Beck-Gernsheim (2004, p. 6): “trata-se, de fato, de uma labour market freedom, que implica que todos são livres para se conformarem a certas pressões e para se adaptarem às injunções do mercado de trabalho”.
A individualização associada à lógica de funcionamento do mercado de trabalho manifesta-se de forma transversal em todos os domínios da vida. Desde logo, nas esferas mais íntimas e pessoais, configurando transformações nas relações de género, nos modelos de convivência, nas estruturas familiares e no conceito de amor (ROCA, 2007). Aliás, a intimidade é um contexto central de expressão do projecto individualizante e reflexivo do self. Como se pode constatar no trabalho de Giddens (2001), as transformações que aí ocorrem são significativas: (i) as identidades e assimetrias de género “tradicionais” esbatem-se e, desse modo, criam-se condições favoráveis para a efectiva democratização da vida privada; (ii) as vivências amorosas tornam-se mais complexas e instáveis, e a sexualidade menos rígida e mais orientada para a concretização das aspirações eróticas individuais; (iii) a conjugalidade matrimonial, embora alvo de fortes expectativas românticas, deixa de ser sinónimo de união eterna, passa a conviver com o seu reverso da medalha (o divórcio) e a coexistir com outras formas de organização da intimidade; (iv) o modelo normativo da família nuclear é abalado e surgem novos arranjos familiares.
Estas mudanças na esfera da intimidade começaram a ganhar forma nas sociedades mais industrializadas, sensivelmente a partir de meados do século XX, numa conjuntura marcada por determinadas condições sócio-económicas e políticas impulsionadoras da emancipação feminina: a promoção da igualdade de direitos entre os géneros, que teve na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, um dos seus maiores estímulos iniciais; a expansão e consolidação do movimento feminista na segunda metade do século XX, reivindicando a paridade das mulheres face aos homens em todas as esferas da vida quotidiana e questionando valores de género hegemónicos; o acesso alargado das mulheres ao sistema de ensino e a sua progressiva incorporação no mercado laboral de um sistema capitalista em forte crescimento; a difusão da pílula anticoncepcional e a revolução sexual da década de 1960, resultando num extraordinário ganho de autonomia feminina em termos de sexualidade e de reprodução biológica, com reflexos óbvios na disponibilidade para a construção de uma carreira profissional e para a participação mais activa na esfera pública (ALCAÑIZ, 2004; BOURDIEU, 1999; FREEDMAN, 2002; SINGLY, 1996, 2004; THISTLE, 2006).
Num primeiro momento, estes factores de mudança emergiram nos países ocidentais mais desenvolvidos e só depois, por volta da década de 1970, começaram a manifestar-se na região da Europa mediterrânea (ALBERDI, 2003; FERREIRA, 1999; ROCA, 2007; SAROGNI, 2004; TORRES, 2003) e, mais lentamente, em países como o Brasil (GOLDENBERG, 2000b; MURARO e PUPPIN, 2001; PRIORE, 2004; VAITSMAN, 1994). Com eles, a dicotomia hierárquica de concepções e de papéis masculinos e femininos tem vindo a tornar-se mais flexível e esbatida. Muitos dos espaços sociais de construção da masculinidade e da feminilidade e mesmo alguns dos valores que lhes são inerentes tendem a sobrepor-se, deixando de estar estritamente associados a homens ou a mulheres. Uns e outras podem agora mais facilmente construir o seu próprio trajecto biográfico com relativa autonomia face às determinações de género. A identidade feminina já não se circunscreve, necessariamente, ao espaço doméstico e às responsabilidades de mãe e dona de casa, como era usual no passado. A identidade masculina é produzida em múltiplos contextos e a partir de uma ampla diversidade de discursos do que é ser homem, não estando agora tão rigidamente centrada nas esferas do trabalho e da (hetero)sexualidade, nem tão dependente da afirmação viril de potência económica, física e sexual. Hoje, mulheres e homens tendem a libertar-se mais facilmente dos modelos estereotipados e dos imperativos categóricos associados à feminilidade e à masculinidade (ARAÚJO, 2005, p. 48), podendo, assim, expressar as suas identidades de género com maior flexibilidade.
Ainda que lenta e sujeita a múltiplos constrangimentos, a progressiva emancipação das mulheres tem vindo a suscitar uma gradual redefinição não só das identidades femininas, como também das masculinas. Porém, a redefinição destas últimas parece estar sujeita a uma resistência acrescida por parte dos próprios homens. Atendendo a que as identidades de género são, como quaisquer outras, eminentemente relativas e relacionais, seria impossível as mudanças ficarem circunscritas apenas ao lado feminino. Como destaca Badinter (1996, p. 24): “[…] a masculinidade, qualidade do homem, é ao mesmo tempo relativa e reactiva. E é-o tanto quanto, sempre que a feminilidade muda – geralmente quando as mulheres querem redefinir a sua identidade –, a masculinidade se desestabiliza”. Contudo, seria redutor apresentar a gradual emancipação feminina como o quadro determinante das metamorfoses da masculinidade. Aliás, há mesmo quem inverta os termos da relação e veja nas crises identitárias masculinas desencadeadas pelo individualismo moderno do século XIX uma condição propiciatória da emergência do processo de emancipação das mulheres (NOLASCO, 2001, p. 14). O que tem vindo a acontecer de parte a parte deverá ser compreendido num cenário de amplas e complexas transformações estruturais, como é o caso daquelas que, directa ou indirectamente, foram induzidas pela instauração e desenvolvimento do sistema capitalista no mundo ocidental. Com ele foi-se atenuando a hegemonia do velho regime patriarcal, assente numa organização sexista do trabalho no seio da vida familiar e na afirmação do homem como o senhor da casa (TOLSON, 1983, pp. 47-53).
Neste processo, os preceitos ideológicos dominantes mais “tradicionais” do que é ser homem – “masculinidade hegemónica” (ALMEIDA, 1995; CONNELL, 1995; CONNELL e MESSERSCHMIDT, 2005; SEIDLER, 1994) – têm vindo a ser questionados, relativizados e, não raro, abandonados em detrimento de outros. Começa, então, a emergir uma masculinidade que já não se resume a determinada forma de ser ou de actuar e flui com relativa liberdade entre as muitas possibilidades de se concretizar, ampliando as suas próprias fronteiras por via da incorporação de novos elementos, alguns dos quais ainda denominados de femininos (PANIAGUA, 2000). Poder-se-á dizer que estamos a assistir ao “desmapeamento” – não necessariamente à crise – da masculinidade (GOLDENBERG, 2000a) e a processos de constituição de formatos identitários reflexivos, associados à individualização e a estilos de vida marcados pela maior electividade individual. O resultado é o advento de uma significativa diversidade de possíveis trajectórias e formas de manifestação da identidade masculina. Muitas delas seguem um “movimento de abandono da couraça” (PANIAGUA, 2000), no sentido do reconhecimento de vulnerabilidades e da reconciliação com os afectos e vários outros conteúdos identitários até então reprimidos por serem considerados femininos (BADINTER, 1996). Ao mesmo tempo, o homem vai deixando de estar refém das expectativas ideais e inalcançáveis em torno do poder e domínio que devem caracterizar a sua identidade. Começa a libertar-se de uma situação paradoxal em que é dominado pelos mesmos valores que suportam a sua dominação – “paradoxo da masculinidade”, segundo Bourdieu (1999) – e a aceitar e expressar dimensões subjectivas geralmente reprimidas pelo facto de serem consideradas uma ameaça à afirmação da virilidade.
As transformações no sistema de género que têm vindo a ser discutidas deverão ser encaradas como parte de um processo mais amplo de individualização que permeia a organização social dos afectos e da intimidade, a conjugalidade e as estruturas familiares (BUDGEON e ROSENEIL, 2004; SINGLY, 1996). O “normal caos do amor” parece ser o resultado deste processo: “a família nuclear, construída em torno do status de género, está a ruir nas questões de emancipação e igualdade de direitos, as quais não se restringem mais, e ‘convenientemente’, ao exterior das nossas vidas privadas. O resultado é o relativamente normal caos do amor” (BECK e BECK-GERNSHEIM, 2004, pp. 1-2).
Vivemos num tempo em que muitos homens e muitas mulheres procuram conciliar amor, casamento, família e carreira, em que aquelas últimas não dependem da economia masculina, em que os desejos individuais muitas vezes colidem com as exigências conjugais e familiares. Neste tempo, o modelo da intimidade baseada numa união matrimonial sacralizada e perpétua, dissolúvel apenas na morte dos cônjuges (até que a morte nos separe), vem perdendo a sua aura de instituição universal, natural e inabalável, e passa a assemelhar-se mais a um contrato passível de diluição e a co-existir com várias outras formas de convivência e de conjugalidade (ABOIM, 2004; TORRES, 2002). Os ordenamentos amorosos tornam-se, então, mais incertos, voláteis, complexos e, aparentemente, caóticos. A sua construção parece assentar num dos grandes dilemas do “eu pós-moderno” – unificação versus fragmentação (GIDDENS, 2002) –, representando a tentativa de conciliar aspirações paradoxais: paixão e independência, o amor que une com a liberdade que separa (BRUCKNER, 2010); ou, como destaca Roca (2007, p. 444), “el deseo de fusión, con la consiguiente aspiración al amor eterno, indivisible, libre de mentiras, y el deseo de individualización, con el consiguiente amor ‘con derecho de devolución’, […] consistente en su abandono cuando ya no se dan las imprescindibles dosis de pasión ni comunicación”. Nesta “nova ordem sentimental”, a intimidade tem por base disposições volitivas dificilmente conciliáveis, sendo edificada através da constante tensão e negociação entre a autonomia e o compromisso (BAWIN-LEGROS, 2004), entre a fusão e a fissão (CHAUMIER, 2004a, 2004b).
O crescimento do número de pessoas sós e, acima de tudo, o aumento dos divórcios e a diminuição dos casamentos nas últimas décadas – situações particularmente notórias na grande maioria dos países europeus – são alguns dos principais sinais das tensões que estão a transformar a organização da intimidade. Sobre a crescente recorrência da “vida a solo” como projecto de vida subversivo, porque fora da matriz familista, Kaufmann (2000, p. 22) diz tratar-se de uma manifestação clara “do movimento, difuso e multiforme, da centração do indivíduo sobre si mesmo”. Provavelmente poderá ser entendida como uma manifestação paradigmática do desejo contemporâneo de individualização ou, pelo menos, atendendo a que geralmente não implica fuga a relacionamentos passionais, a expressão do desejo de manter uma certa equidistância entre a liberdade individual e a união com o outro. As dificuldades em conjugar carreira e vida familiar e a procura narcísica de preservação da individualidade face aos constrangimentos da vida em conjunto parecem afastar ou fazer divergir muitas pessoas, designadamente as mulheres com maior capital escolar (KAUFMANN, 2000; PASTOR, 2008), de compromissos tão categóricos como o matrimónio, ao mesmo tempo que é reforçada a sua orientação para o mercado de trabalho (THISTLE, 2006). Por outro lado, criam condições para a emergência de biografias centrífugas e de antagonismos na esfera privada que tornam inevitável a separação entre muitas outras pessoas que, entretanto, assumiram vínculos de conjugalidade.
De acordo com as Estatísticas do Casamento e Divórcio do Gabinete de Estatísticas da União Europeia (EUROSTAT, 2011), nas últimas quatro décadas a proporção relativa de divórcios e casamentos na União Europeia (UE) sofreu uma alteração profunda: de aproximadamente um divórcio por cada 15 casamentos, em 1970, para quase um divórcio por cada dois casamentos, em 2009.[3] Enquanto desfecho das clivagens geradas na intimidade, as rupturas conjugais têm sido impulsionadas por um conjunto de circunstâncias, em que se destacam: (.) a progressiva aceitação social da interrupção dos laços matrimoniais; (ii) a gradual emancipação feminina e a maior autonomia financeira das mulheres; (iii) as reformas jurídicas que conduziram à legalização do divórcio e, já mais recentemente, à possibilidade de se concretizar de modo unilateral e sem a necessidade de serem apresentadas razões objectivas para a respectiva solicitação, agilizando-se o processo e reduzindo os respectivos custos[4]; (iv) os efeitos da individualização biográfica, em particular a escassa transigência individual para manter relações que não proporcionem retornos relevantes e não correspondam às expectativas quase mitológicas da grande narrativa amorosa que continuam, paradoxalmente, a ser bastante altas (BECK e BECK-GERNSHEIM, 2004).
As incertezas, instabilidades e rupturas que vêm moldando as relações íntimas expressam, de certa forma, a tendência de fragmentação e individualização das experiências, incluindo-se aqui as experiências passionais, que têm pautado a constituição reflexiva do self na modernidade tardia (GIDDENS, 2002). O affair é, no entender de Illouz (1999, pp. 175-177), o formato relacional (afectivo e sexual) que melhor ilustra esta tendência. É efémero, episódico, está em renovação constante, tem subjacente um espírito consumista de procura permanente de novas experiências e sensações, resulta de escolhas individuais e não impõe grandes deveres ou obrigações (v.g. fidelidade)[5]. Cada uma das partes participa na aventura amorosa enquanto assim o entender e, em simultâneo ou de forma diferida, com ou sem conhecimento do parceiro, pode envolver-se em múltiplas relações, que, de um modo geral, se constituem como episódios independentes. Por exemplo, no Brasil, sobretudo no contexto da produção de sociabilidades e identidades de jovens e jovens-adultos, são bastante recorrentes os relacionamentos casuísticos e descomprometidos, mais conhecidos por ficar – encontros fugazes que têm no beijo o principal elemento de interacção – e ficando – relação mais prolongada, embora desengajada, livre de compromissos relevantes e não sujeita à exclusividade (ALMEIDA, 2006; RIBEIRO e SACRAMENTO, 2009). Esta tendência de pulverização relacional é reveladora de uma certa fragilidade dos laços sociais e da fluidez do amor na “modernidade líquida” (BAUMAN, 2008), assinalando, como diria Chaumier (2004a, 2004b), a progressiva transição da fusão romântica para o desejo de independência, do “amor fusional” para o “amor fissional”. Neste processo, as relações amorosas vão perdendo parte do seu capital de exclusividade e de perenidade. Constituem-se de modo mais contingencial e difuso, fluindo sem grandes obstáculos ou formalismos ao sabor de desejos aparentemente contraditórios de autonomia e de comunhão com o outro. À semelhança do que se consome, as relações tornam-se mais facilmente descartáveis (e, porventura, recicláveis)[6], as pessoas apaixonam-se e desapaixonam-se em série e o amor torna-se um produto com validade, uma hipoteca que tem pela frente um futuro repleto de incertezas (BAUMAN, 2008).
A fragmentação e liquidificação da vida passional é para Giddens (2001, p. 41) um sinal de que o “amor romântico”, sublime, único, exclusivo e perene, está a perder algum terreno para o “amor confluente”, activo e contingente, o que, no seu entender, explicaria a sociedade contemporânea de “separação e divórcio”. Com o “amor confluente”, os laços afectivos deixam de estar intrinsecamente associados à monogamia e à heteronormatividade, a intimidade ganha profundidade democrática e a sexualidade assume uma maior relevância no êxito ou no fracasso das relações, podendo ditar a sua manutenção ou, pelo contrário, a sua ruptura. Menos constrangida pelos imperativos associados à aliança, à reprodução e à família, a sexualidade é gerida de modo flexível e criativo pelos parceiros em função das suas próprias aspirações eróticas. Esta “sexualidade plástica” (GIDDENS, 2001) é uma condição fulcral da “relação pura”: “relação social que é internamente referida, isto é, depende fundamentalmente de satisfação ou recompensas genéricas dessa própria relação” (GIDDENS, 2002, p. 223) e, por isso, essencial na definição do projecto reflexivo do eu.
Embora pareça diluir-se e escapar, sobretudo porque vivemos sob circunstâncias sociais que estimulam a individualização, o amor romântico continua a ser idolatrado e o desejo de fusão eterna com a cara-metade largamente ambicionado (BECK e BECK-GERNSHEIM, 2004). Nesse sentido, torna-se importante destacar que as tendências de instabilidade amorosa não significam, inevitavelmente, anarquia relacional e fuga a uniões estáveis, pois a maioria das pessoas ainda deseja aceder e/ou manter relacionamentos duradouros em que os ideais de comunhão sentimental, estabilidade e fidelidade são dominantes (ROCA, 2007). Talvez estas expectativas ajudem a compreender o elevado número de recasamentos em contextos com altas taxas de divórcio, como acontece, por exemplo, em Portugal (LOBO, 2007) e nos países escandinavos (IACOVOU e SKEW, 2010). A falência institucional do matrimónio é, por isso, um cenário discutível, desde logo “porque o significado do divórcio não é unicamente o da dissolução do vínculo matrimonial. Ele, divórcio, representa (ou pode representar) também a possibilidade de se criar um novo vínculo matrimonial” (ROSA, 2002, p. 668). Trata-se, em muitos casos, de uma simples intermitência num caminho em que a saída do matrimónio desemboca quase sempre no mesmo ou em algo muito parecido àquilo de que se saiu (BECK e BECK-GERNSHEIM, 2004). Será, por isso, demasiado simplista identificar o aumento dos divórcios como sinal inequívoco da crise do casamento.
Centrando-se no caso brasileiro, Jablonski (1998, 2005) admite a existência desta crise, apesar de constatar uma forte presença de formas de idealização do amor romântico e de expectativas de vida conjugal bastante recorrentes entre os jovens. De acordo com Bawin-Legros (2004), estas expectativas de conjugalidade tenderão a predominar nas classes baixas, estando vinculadas a uma construção social da família como instituição-previdência. Com uma perspectiva semelhante para o Brasil, Neri (2005) mostra-nos a predominância de mulheres sós (solteiras, separadas, divorciadas e viúvas) nos segmentos com maiores rendimentos, ganhando em média 62% mais do que as casadas. Seguindo esta linha de argumentação, o maior desejo de fusão matrimonial presente nas classes populares poderá, nalguns casos, funcionar como elemento inibidor da ruptura do casal; ao passo que a maior expressão das dinâmicas individualizadoras em estratos sociais mais altos poderá, inversamente, actuar como factor propiciador da ruptura. Assim sendo, será legítimo colocar algumas reservas e apelar à introdução de nuances na perspectiva de Jablonski (1998, 2005) sobre a existência de uma crise matrimonial no Brasil socialmente transversal, desde as elites às classes populares que vivem nas grandes cidades ou na sua periferia.
A própria ideia de crise do casamento é questionável. Parece ter subjacente uma concepção sacralizada e rígida do matrimónio como gerador de laços perenes e indissolúveis entre um homem e uma mulher, pelo que as evidências empíricas em contrário (v.g. divórcios, casamentos homossexuais) poderão sempre ser encaradas por alguns como sinónimo do seu esgotamento institucional. Mais do que uma crise, o que está a suceder poderá, paradoxalmente, ser encarado como o resultado da génese e sucesso do chamado casamento por amor, ou seja, da modernização das relações matrimoniais no ocidente, iniciada em finais do século XVIII e intensificada já em pleno século XX. Ao longo destes dois últimos séculos temos assistido a uma gradual “privatização” do matrimónio, à domesticação dos afectos e das paixões (a intimidade) e à sua cada vez maior centralidade na relação marital (ABOIM, 2006, 2009; ARIÈS, 1987; COONTZ, 2005; GIDDENS, 2001; TORRES, 2002)[7]. Os condicionamentos sociais exteriores, em particular os interesses de ordem económica, impostos ao homem ou à mulher pelas respectivas famílias como referência fundamental na selecção do cônjuge – situação mais frequente nas famílias de estratos elevados – (GOODY, 1995; LIMA, 1999), vão sendo relegados para segundo plano em detrimento das disposições subjectivas, guiadas por critérios individuais como a afectividade e a atracção (BAWIN-LEGROS, 2004). O matrimónio deixa de ser um simples arranjo inter-familiar, sujeito a determinadas prescrições sociais que se traduziam em princípios económicos e políticos de preferencialidade matrimonial, e passa a resultar, predominantemente, de decisões particulares.
No processo de modernização dos vínculos de afinidade, o casamento arranjado e centrado na comunidade vai perdendo espessura social e dando lugar ao casamento electivo e centrado no duo conjugal (ABOIM, 2009). Simultaneamente vai integrando elementos de intimidade (v.g. os erótico-sexuais característicos do “amor-paixão”) que antes se encontravam circunscritos a vivências passionais, sobretudo masculinas, fora da relação conjugal. Com isto torna-se mais flexível e vulnerável, refém dos mesmos valores e exigências – fidelidade, confiança, paixão, amor, satisfação sexual, realização pessoal, estabilidade afectiva – que elevaram o laço conjugal acima de quase todos os demais compromissos pessoais e familiares (COONTZ, 2007). Dito de outra forma, o complexo de factores que, desde há cerca de dois séculos, confere à estabilidade no matrimónio uma importância central na felicidade individual, que antes não tinha, é o mesmo que explica o papel do divórcio e a sua ocorrência nas sociedades contemporâneas (idem). A consolidação social do casamento por amor, baseado na existência de um sólido espaço de intimidade que proporcione a satisfação das necessidades afectivo-sexuais dos cônjuges, tem na institucionalização do divórcio a outra face da mesma moeda: uma garantia que permite por fim a toda e qualquer relação conjugal que não cumpra minimamente os requisitos que dela se esperam e, desse modo, assegurar disponibilidade para iniciar uma outra. Assim, o aumento das taxas de divórcio deverá ser sempre compreendido tendo em conta as elevadas expectativas que socialmente têm vindo a ser inscritas na instituição matrimonial e não tanto como o resultado de uma eventual degradação moral dos designados valores de família. Em última análise, as rupturas conjugais e o advento do “amor confluente” são um produto da idealização do “amor romântico” – do seu consumo massificado como utopia no capitalismo tardio (ILLOUZ, 1997) – e não propriamente do seu declínio, que Giddens (2001) parece querer sugerir. Como conclui Turner (2004, p. 302),
Tal ênfase no amor romântico deposita grandes responsabilidades emocionais nos laços matrimoniais, na medida em que neles se anseia pela realização de elevadas expectativas de intimidade e gratificação sexual. As regras de sinceridade, confiança e satisfação emocional acarretam, paradoxalmente, consequências no alastramento da infelicidade conjugal e de altas taxas de divórcio, porquanto é difícil satisfazer expectativas de intimidade romântica num período em que a maioria das mulheres integra a força de trabalho e no qual as condições para o divórcio são muitas [...].
As manifestações paradoxais, tensões, rupturas e maior fluidez na organização social da intimidade, geralmente associadas aos processos de reflexividade biográfica, estão a produzir mudanças bastante significativas no modelo convencional da família nuclear[8], fundado na heteronormatividade e na co-residência. Como destacam Budgeon e Roseneil (2004, p. 131), “a expectativa normativa de que, quando duas pessoas embarcam numa relação, elas irão inevitavelmente seguir a sequência de casamento, coabitação, intercurso sexual e geração de filhos, perdeu o poder de sancionar um arranjo particular de laços de intimidade e do espaço doméstico em detrimento de outros”. Na perspectiva de Singly (1996, 2004), a partir da década de 1960 as dinâmicas de individualização acentuaram-se no interior da família, tornando-a mais instável e flexível: uma formação marcada por uma maior electividade, em equilíbrio precário, sem a segurança de muitas das antigas normas e rituais e na qual os indivíduos manifestam as suas próprias experiências e expectativas, nem sempre conciliáveis (BECK-GERNSHEIM, 1998).
O aumento das rupturas matrimoniais, as mudanças nas relações de género e na sexualidade, a instabilidade dos vínculos laborais, a evolução tecnológica das comunicações e a maior facilidade em termos de mobilidade pessoal têm-se traduzido em formações flexíveis e diversas do espaço íntimo e da família (DIAS, 2006; KAUFMANN, 1993; LEVIN, 2004; VAITSMAN, 1994): casais sem filhos, matrimónios homossexuais, famílias homo-afectivas, monoparentalidade[9], famílias recompostas, celibato, coabitação não marital (união de facto), relacionamentos à distância, conjugalidade dissociada da co-residência (living apart together [LAT]), entre outras. Mesmo o amor à distância e os relacionamentos enquadráveis na categoria LAT, de que nos falam Levin (2004) e Holmes (2006, 2010), têm vindo a tornar-se relativamente recorrentes. A proliferação de uma considerável diversidade de novos estilos de conjugalidade e de novas formas de organização familiar não significa que a família nuclear tradicional esteja em crise e a extinguir-se. Significa, simplesmente, que ela está a perder o monopólio que manteve durante tanto tempo e a conviver com outros modelos e dinâmicas familiares (WALL, 2005), que, no entender de Beck-Gernsheim (1998), indiciam o advento daquilo que designa por “post-familial family”.
Nos relacionamentos amorosos contemporâneos começa a sobressair uma tendência de relativa libertação face a normas e imposições de estabilidade instituídas pelo casamento e por um modelo de família nuclear baseado em profundas assimetrias de género. Isto acontece com particular visibilidade nos países ocidentais, mas também em países como o Brasil, quer nas suas camadas médias urbanas – geralmente mais associadas aos chamados processos de destradicionalização (GOLDENBERG, 2000b; PRIORE, 2004; VAITSMAN, 1994, 2001; VELHO, 1983) –, quer, em certa medida, nas suas classes populares, permeadas por tensões e mudanças no âmbito da família e das relações de género (ITABORAÍ, 2015). O resultado é a emergência de configurações de intimidade “flexíveis e plurais” (VAITSMAN, 1994), menos institucionalizadas e permanentemente sujeitas a ambiguidades, incertezas e volatilidades induzidas pela interacção de dinâmicas centrípetas e centrífugas.
Como foi possível constatar ao longo do texto, a intimidade pós-moderna é um espaço social de tensões, estruturalmente marcado pela convivência de disposições antagónicas de dissensão e de fusão. Por um lado, encontra-se envolto em condições sociais propícias à individualização, à reflexividade e à electividade, o que contribui para reforçar as idiossincrasias e as aspirações pessoais nas relações íntimas, tornando-as mais turbulentas e frágeis (BAUMAN, 2008; BECK e BECK-GERNSHEIM, 2004). Por outro lado, é um espaço simbolicamente colonizado pela grande narrativa romântica, uma matriz cultural muito valorizada e desejada, alvo de constantes celebrações e consumos, que impulsiona no sentido da fusão passional. Considerando esta mecânica de diferentes disposições sociais, é necessário encararmos com alguma prudência e relativizarmos a perspectiva sobre a intimidade como contexto destradicionalizado. Se é certo que está livre de muitas das pesadas regulações normativas do passado, de que o esmorecimento da hegemonia do casamento é um excelente exemplo, importa, contudo, não esquecer que o “antigo” amor romântico continua a ser, talvez hoje mais do que nunca, a grande referência na construção dos sentidos que guiam a definição dos trajectos de intimidade (GROSS, 2005). Aliás, a própria instabilidade das relações íntimas nos dias que correm é, paradoxalmente, uma forte evidência da incessante demanda da história de amor.