Artigos
A noção de dever como categoria sociológica para a compreensão de ações no mundo contemporâneo
The notion of duty as a sociological category for understanding actions in the contemporary world
A noção de dever como categoria sociológica para a compreensão de ações no mundo contemporâneo
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 4, núm. 8, pp. 147-170, 2016
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepção: 13 Junho 2016
Aprovação: 09 Dezembro 2016
Resumo: O artigo se inscreve na temática da sociologia da ética. O objetivo é delimitar a noção de dever como categoria sociológica, recurso heurístico para a análise da capacidade de julgamento ético de agentes sociais. Investiga-se como se molda essa capacidade nas sociedades capitalistas contemporâneas, cultural e socialmente racionalizadas O caminho para tanto é a discussão sobre a personalidade social na sociologia weberiana, que se define por uma consistência na relação entre valores e ação. Conclui-se que a noção de dever é importante para entender essa relação, expondo a maneira como os agentes sociais estabelecem compromissos valorativos nas diversas esferas da vida social e as consequências que isso tem para o curso efetivo de sua ação no mundo.
Palavras-chave: Sociologia da ética, Racionalização, Personalidade social.
Abstract: This is a paper in the sociology of ethics. Our aim is to demarcate the notion of duty as a sociological category, as a heuristic tool to analyze the capacity of ethical judgment of social agents. We investigate how this capacity is developed in contemporary, rationalized, capitalist societies. This is done via a discussion of the Weberian concept of social personality, defined in terms of the consistency between action and values. We conclude that the notion of duty is central to the understanding of this relation because it reveals both the ways in which agents establish value commitments in the different social spheres, and the consequences these commitments have for the effective course of their actions in the world.
Keywords: Sociology of ethics, Rationalization, Social personality.
Introdução
Este artigo faz uma discussão sobre a noção de dever como categoria sociológica. Através dela, argumenta-se, é possível distinguir ações convencionais de ações livres no registro do que Ladrière (2001) denomina uma sociologia da ética.
Segundo Lalande (1953), ética tem como objetivo o julgamento de apreciação que faça a distinção entre o bem e o mal. Já a moral tem quatro sentidos possíveis: a) refere-se ao conjunto de regras de conduta admitidas numa época ou por um grupo social (sentido de uma moral); b) conjunto de regras de conduta concebidas como universalmente válidas (sentido de . moral, genérico portanto); c) teoria racional do bem e do mal (próxima ao sentido de ética. No entanto, a teoria neste sentido tem por objetivo consequências normativas, distinta, portanto, da definição de ética enquanto julgamento distintivo sobre o bem e o mal); d) conduta conforme a moral, enfatizando as atitudes dos sujeitos e não as ideias propriamente ditas (as ideias morais, neste sentido, seriam compreendidas conforme o sentido ‘b’).
A moral implica, explícita ou implicitamente, em normas, enquanto a ética implica a capacidade de julgar. Segundo Lalande (1953), os dois termos referem-se à distinção entre bem e mal, entretanto, a moral opera tal distinção no plano das normas socialmente aceitas, enquanto a ética o faz no plano da capacidade de julgar dos agentes e, portanto, repousa na liberdade do agente.
Isso posto, reconhece-se facilmente o papel de uma sociologia da moral, na melhor tradição durkheimiana desta disciplina. Identificar as concepções morais de determinadas sociedades, ou do que se aceita socialmente como o bem e o mal, faz parte dos exercícios mais fundamentais da sociologia. Mas como seguir um projeto de sociologia da ética que analise a distinção entre bem e mal no plano da capacidade de julgar dos agentes? Como sequer se aproximar investigativamente da liberdade de um agente social?
Os conceitos e a discussão propostos apoiam-se em Ladrière (2001), Pour une Sociologie de L’Éthique, onde o autor investiga a possibilidade de se fundar uma sociologia do agir ético nas sociedades capitalistas contemporâneas. Em suas reflexões sobre os imperativos de uma ética universalista no mundo contemporâneo, o autor se interessa pela possibilidade de tais imperativos serem resultado da própria vontade dos agentes, concebendo assim o agir ético como um agir livre. Segundo o autor, a sociologia da ética examina as instâncias da vida social às quais se ligam os valores que fundam a vontade dos agentes, pois esta, muitas vezes, é determinada de maneira puramente arbitrária, i.e. irracional. Através desse exame, abre-se uma perspectiva crítica na tentativa de demonstrar a possibilidade de um agir ético, ou seja, um agir fundado numa vontade racionalmente determinada.
Este artigo, por sua vez, questiona-se sobre os caminhos para que a sociologia acesse a capacidade de julgamento ético dos agentes sociais e como a sociedade contemporânea, capitalista e racionalizada, abre a possibilidade de tal acesso. A noção de dever é, para isso, fundamental. É essa categoria que opera o trânsito entre a observação empírica e a elaboração teórica do julgamento que os agentes sociais fazem do mundo.
Com essa discussão, o artigo pretende contribuir para a fundamentação de uma sociologia da ética. A seguir, resgata-se a proximidade entre a perspectiva epistemológica da reflexão ética kantiana com a sociologia weberiana da ação social como parte dessa fundamentação. Entende-se que os processos de racionalização (social e cultural) das sociedades modernas abrem a perspectiva da investigação sociológica da capacidade de julgar dos agentes. Seguindo a sociologia weberiana, essa investigação se dá através do conceito de personalidade social. Por fim, se apresenta a noção de dever, que também foi mobilizada por outras correntes das ciências sociais, como o recurso heurístico capaz de distinguir diferentes comportamentos pautados em éticas intramundanas na contemporaneidade.
Fundamentos de uma sociologia da ética
O argumento deste artigo depende de uma ‘sociologização’ da ética kantiana, a qual, segundo Ladrière (2001), foi já operada na obra de Max Weber. Sabe-se que Weber (1999), no que diz respeito à sua metodologia e epistemologia, é herdeiro das discussões neokantianas de sua época (FREUND, 2003; TRAGTENBERG, 2006). Segundo Ladrière (2001), o empirismo weberiano busca distanciar-se da filosofia kantiana, mas isto significou uma “sociologização do kantismo” através de uma sociologia compreensiva e histórica. O autor diz que boa parte das pesquisas feitas por Weber não seriam mesmo possíveis se o pensamento kantiano não estivesse culturalmente disponível. A afinidade entre a perspectiva weberiana das ações no mundo e a visão kantiana acerca da moral não é, portanto, fortuita.
Na ética kantiana, a maneira como uma ação aparece a um observador é a mesma tanto para aqueles que farão seu julgamento moral comum como para o filósofo (o que hoje se entende por alguém que exerça atividades intelectuais de maneira sistemática e especializada), que tentará extrair os possíveis princípios racionais que guiam essa ação. Assim como o filósofo só apreende a realidade através da experiência do mundo empírico, que, por definição, se encontra mediada pelas categorias puras da razão, sendo-lhe a realidade inacessível em si mesma, a sociedade só julga as ações tal como estas aparecem no mundo. Não existe, para Kant (1996), posição privilegiada para apreensão do mundo, mas apenas, como ele próprio coloca no prefácio deste seu livro, trabalho especializado – enquanto as noções morais comuns são as mesmas tanto para o filósofo como para qualquer outro indivíduo, o filósofo se interessa pelo desenvolvimento do empreendimento científico e investigará com sistematicidade aquelas noções comuns. No caso específico do pensamento moral, enquanto as pessoas agem e julgam costumeiramente uns aos outros, o filósofo pode se dedicar a extrair os princípios racionais que estão por trás de uma determinada ação e do julgamento moral comum. A investigação desses princípios racionais leva o filósofo a conhecer a possibilidade de uma ação moral racional, i.e. livre.
Kant (1996) debruça-se sobre a questão da aparência da ação e observa que se, por um lado, a ação pode ser objeto de estima, também o será de desconfiança. É sempre possível se questionar sobre a existência de uma motivação não revelada para ações aparentemente fáceis de decifrar. Para o filósofo que investiga os princípios puros da razão, a desconfiança será a disposição mais apropriada e mesmo necessária, dirá o autor. Não como perspectiva de descrença na sociedade, mas por se entender que jamais será possível afirmar categoricamente que motivação determina uma ação real. Como diz Kant (1996, p. 90), é impossível dar exemplos de ação moral, pois é sempre possível que, por trás de motivos aparentemente nobres, haja de fato, como motivação, um “receio obscuro de outros perigos”. O autor argumenta que como o ser humano não se produz a si mesmo, é-lhe impossível conhecer-se como coisa em si, mas somente como fenômeno que acontece no mundo. A consequência disso é que só é possível observar o curso de uma ação no mundo e inferir, a partir dessa observação, quais foram as possíveis motivações que conduziram a sua execução.
Essa é exatamente a posição epistemológica weberiana, da qual derivam suas proposições metodológicas. Reconhecendo esses limites à cognição da realidade social, as ciências do espírito tornam-se rigorosamente empíricas quando abdicam da tentativa de conhecê-la em si, o que, dada a sua impossibilidade, cairia necessariamente no campo da especulação (WEBER, 1999; FREUND, 2003). Max Weber não considera, entretanto, como Kant, que a experiência do mundo social passe pelas mesmas categorias puras da razão que ordenam a experiência do mundo natural (PORTIS, 1978).
A realidade social é um fenômeno cultural, o que significa que ela existe na medida em que corporifica valores. Seja como meios comportamentais para atingir certos valores (i.e. organizações), ou como valores eles mesmos (i.e. grupos de status ou comunitários). Os objetos de investigação de cientistas sociais, nesta perspectiva, são igualmente corporificação de valores. Para isso, propõe-se uma relação com os valores que guie a investigação e estruture a realidade investigada. Dado que a realidade é inacessível em si mesma, não existe neutralidade absoluta para a atividade científica, apenas uma neutralidade axiológica que, explicitando racionalmente o valor sobre o qual se sustenta a investigação, permite seu controle durante a pesquisa e nas suas conclusões (PORTIS, 1978; WEBER, 1999; FREUND, 2003).
Assim, todo trabalho nas ciências sociais representa uma série de eventos construídos conceitualmente. Em si, os pressupostos valorativos não são tema da ciência, pois impossível de confrontá-los empiricamente. Os modelos teóricos, criados a partir dessa relação com os valores que o investigador mantém, apenas auxiliam-no na compreensão das ações no mundo como recurso heurístico. É o modelo teórico racional que guia as investigações da realidade empírica, inapreensível em si mesma, mas apenas como fenômeno que acontece no mundo. Logo, o conhecimento empírico nas ciências sociais será apenas o conhecimento do quanto uma dada realidade social se aproxima de um tipo-ideal (PORTIS, 1978; WEBER, 1999; FREUND, 2003; COHN, 2003; TRAGTENBERG, 2006).
Interessante é que o próprio surgimento dessa perspectiva epistemológica e proposta metodológica está calcado nos processos de racionalização cultural e social da sociedade moderna. Culturalmente, esse processo está ligado à desmagicização (WEBER, 1964; 2004; 1982; LADRIÈRE, 2001), que coloca os indivíduos diante da irracionalidade ética do mundo, ou seja, do fato que este mundo não passa de um mecanismo causal destituído de significado imanente (WEBER, 1982; LADRIÈRE, 2001; LÖWITH, 1980; PIERUCCI, 1998; FREUND, 2003; NOBRE, 2000).
Weber (1964; 2004) analisa esse processo no desenvolvimento das grandes religiões mundiais, no qual observa que indivíduos e grupos constroem suas visões de mundo a partir do seu tensionamento com a realidade material (destituída, em si, de qualquer significado). É o problema da teodiceia, ou seja, a tentativa de explicar a existência do mal a partir das visões éticas assumidas. Desse tensionamento decorre a racionalização cultural, ou seja, a abstração das visões de mundo para que consigam abarcar as irracionalidades do mundo material. Vai-se, assim, abrindo mão daqueles comportamentos que intentam uma intervenção mágica no mundo, pois se percebe que, a despeito de toda crença e de toda ação estereotipada, o mundo segue seu curso indiferente.
Os valores na proa das visões de mundo tornam-se cada vez mais abstratos, para dar conta dessa irracionalidade da realidade empírica. Tornam-se também diferenciados entre si, coerentemente à realidade, para a qual a beleza não guarda correspondência necessária com a justiça ou com a verdade, existindo, cada valor, independentemente e a despeito um do outro.
A perspectiva epistemológica antes mencionada se sustenta nesse processo de racionalização cultural. Levada às últimas consequências, a racionalização cultural faz despontar a ação como o único fenômeno dotado de sentido (WEBER, 1964; 1991). Investigando-a, é possível abstrair os valores que guiam-na como fenômeno no mundo. Este é um trabalho puramente racional, pois é impossível a qualquer um conhecer as motivações ‘verdadeiras’ e íntimas de outrem. Tampouco a posição social de um intelectual profissional (seja qual for o anteparo institucional aí implicado) confere a ele a capacidade de acessar as tais motivações ‘verdadeiras’. Acreditar nisso seria pressupor uma diferença de faculdades racionais entre seres humanos. Tanto na reflexão weberiana como kantiana, o desencantamento, ou, melhor dito, a desmagicização das visões de mundo é levada às últimas consequências, inclusive como recurso para uma autorreflexão acerca dos limites das próprias práticas intelectuais.
Socialmente, o processo da racionalização está ligado ao desenvolvimento das estruturas do mercado e do Estado modernos, burocráticas, dominantes e eficientes (pois especializadas). São estruturas moldadas a partir da ação racional com relação a fins. Mas, como comenta Ladrière (2001), na sociologia weberiana, a racionalização social dos subsistemas econômicos e da administração pública se explica a partir dos processos históricos da racionalização cultural. Essa última explica a mudança social que culminou com as sociedades modernas e como estas passam a valorizar e institucionalizar a racionalidade com relação a fins desde sociedades que compartilhavam de visões de mundo religiosas e tradicionalmente herdadas como autoevidentes. De sociedades tradicionais para as modernas ocorreram mudanças no horizonte cultural para que se operasse tal valorização e institucionalização.
É o caso da universalização do livre-comércio, como atividade instrumental de troca de bens e serviços. Em sociedades antigas / tradicionais ela é permitida na relação com estrangeiros e desconhecidos. A “moral externa” permite o que entre irmãos é vedado (WEBER, 2004, p. 50). Nessas circunstâncias, o racionalismo econômico é obstado por essa ética da fraternidade, que impede entre irmãos o que se permite com estrangeiros. A racionalização das visões de mundo desimpede a universalização do racionalismo econômico e, com ele, do livre-comércio. Weber (2004) destaca, assim, que o fenômeno do capitalismo moderno será um fenômeno de massa, caracterizado pelo trabalho racional organizado, formalmente livre, e não mais pelo comércio, pela aventura, ou pela orientação política[1].
Em sociedades que compartilham de valores tradicionais considerados autoevidentes, a ação racional com relação a fins, uma ação puramente instrumental, é considerada irracional. É quando se esfacelam os valores de uma dada sociedade e que estes perdem seu caráter autoevidente (estando sempre sujeitos a um julgamento hipotético, dado que, sabe-se, não correspondem necessariamente ao mundo tal como ele ‘é’) que se podem moldar sistemas sociais baseados inteiramente na ação instrumental. Ou seja, sistemas que sirvam de meios para a consecução dos objetivos particulares de cada agente. Tais são, originariamente, o mercado e a administração pública modernos.
Atualmente, podem-se incluir aí também algumas plataformas e redes de colaboração e compartilhamento de informações, que se moldam como novos subsistemas de ação racional com relação a fins. Sem necessariamente passar por relações mercadológicas ou da administração pública, tais redes não formam núcleos valorativos e/ou comunitários, mas são instrumentais para que os agentes persigam seus próprios fins. São exemplos as redes de compartilhamento de livros, de músicas, de caronas, de tutoriais os mais diversos, de sofás para a pousada durante uma viagem, etc.
Com tais sistemas estão dadas as condições para a secularização da cultura e para que indivíduos e grupos persigam seus fins particulares, sem que visões de mundo englobantes sejam impostas arbitrariamente a toda a sociedade. Não apenas as visões culturais deixam de ser um todo coerente e estruturado, como agora as instituições dão vazão à pluralidade de visões e fins particulares que compõem a sociedade. O autointeresse será valorizado e incentivado institucionalmente, dentro de limites morais mais abstratos e formalizados, já que independentes de uma visão de mundo particular e da referência a uma comunidade concreta que a partilha.
Expõe-se, então, um dilema. Com visões de mundo racionalizadas, a ação aparece como o único fenômeno capaz de portar algum sentido. Com as estruturas sociais modernas, institucionaliza-se a racionalidade com relação a fins e acomodam-se e se regulam os interesses particulares. O que, afinal, impede que os seres sociais sejam meramente instrumentais em seu agir, abdicando dos imperativos de uma vida em comum?
Kant (1996) tanto quanto Weber (2004) depararam-se com essa questão. Observavam que os indivíduos tendem, na contemporaneidade, a perseguir seus objetivos particulares e que a sociedade possibilita que toda uma existência seja exclusivamente assim conduzida. Com os modernos sistemas de ação racional, as necessidades e os interesses pelo bem-estar (mobilidade, saúde, alimentação, habitação, lazer, etc.) são perseguidos sem que se compartilhem valores ou um sentido comunitário para as ações.
Tanto assim que, para Weber (2004), era provável a adoção generalizada de uma cultura hedonista, compensatória em relação ao racionalismo exacerbado do mundo moderno, ou a mera aceitação de uma vida reclusa na privacidade de um cotidiano previsível e funcional nas sociedades capitalistas contemporâneas.
A noção de dever por diferentes abordagens teóricas
Aqui se descortina a questão da noção de dever das sociedades modernas. Investigando quais compromissos os agentes sociais assumem contemporaneamente, e como, revelam-se diferentes referências à noção de dever como categoria sociológica. Algumas abordagens nas ciências sociais debruçaram-se sobre essa questão.
Em uma dessas abordagens, Hegel (1991) afirma que com a divisão do trabalho, o agente social não pertence mais ao trabalho e à necessidade, pois frui do trabalho dos outros. Inicia-se então o exercício do reconhecimento através do trabalho social, tão importante para se entender as relações da sociedade moderna. Tanto é assim, que Durkheim (1999) dirá ser esse o ponto de partida possível para a sociologia como disciplina científica. A divisão do trabalho impessoaliza as relações ao fazê-las parecerem uma relação entre coisas, do que também decorre uma acentuada individualização, às vezes deletéria à coesão social.
Uma outra abordagem se baseia nas consequências das ações, para a qual do autointeresse deriva o bem comum. Muitos modelos teóricos de sociedades capitalistas contemporâneas têm tal sistema ético como pressuposto (WHITE, 2004). É como diz Adam Smith (1981) em ‘Riqueza das Nações’: quando o padeiro faz pães para vender aos seus clientes, não o faz por altruísmo, mas por um interesse particular, seu interesse em auferir ganhos monetários. Smith (1981) percebe que os agentes se comprometem com o próprio bem-estar e considera suficiente que a harmonia de interesses particulares seja o parâmetro último das relações sociais. Para Smith (1978), entretanto, essa dinâmica não é despida de moralidade. Para o autor, a população em geral considera aceitável que um indivíduo faça tudo o que está ao seu alcance para atingir seus objetivos (sejam riqueza, fama, honrarias, etc.), que utilize de todas suas habilidades e realize o máximo de esforço para tanto. Mas repreenderá um indivíduo que impeça outro de fazer o mesmo, utilizando de estratégias, nesse sentido, imorais, para superar seus concorrentes.
Durkheim (1999) critica a ética utilitarista, a qual resulta de um dever para com o autointeresse e que se baseia nas consequências das ações. Para ele, um interesse que une as pessoas hoje as tornará inimigas no dia seguinte. A sociedade smithiana estaria, portanto, vivendo uma guerra civil latente. Daí a necessidade de existir ‘algo a mais’ que estabeleça o elo entre indivíduos de uma sociedade: a solidariedade social. Importante ressaltar, com Ladrière (2001), que ‘solidariedade social’ não é o sentimento que une os indivíduos num corpo social, mas, ao contrário, o sentimento é a expressão mental de uma energia própria do corpo social, é a maneira pela qual os indivíduos vivem essa energia, que existe objetivamente.
Durkheim (1999) discute com Kant a esse respeito, e, como concebe a sociedade como uma realidade sui generis, que existe para além das consciências individuais, traduz a noção de dever, contida no imperativo categórico kantiano, para o dever de todo indivíduo para com a sociedade, sendo o imperativo moral aquilo que a sociedade impõe a todo indivíduo.
Segundo Ladrière (2001), essa tradução da noção de dever é de inteira responsabilidade de seu autor, nunca tendo sido operada por Kant. A questão é que Durkheim (1999) quer utilizar o mesmo parâmetro moral das sociedades tradicionais para as sociedades modernas. O que muda em seu sistema sociológico é a dinâmica que põe em prática a moralidade. Em um caso esta será mecânica, no outro, orgânica, a depender do grau de divisão do trabalho de cada um. Por essa razão, a noção de dever, segundo esse autor, será sempre a de atenção às expectativas e convenções sociais. A preocupação é com a coesão social, ou seja, o respeito às normas sociais integradas a partir de um conjunto de instituições.
Isso é bastante claro em sociedades tradicionais. E, para esse autor, o parâmetro moral continua o mesmo, tanto em sociedades tradicionais como modernas. Para que os indivíduos não sejam meramente instrumentais no seu agir, o autor vê como necessário que os mesmos aceitem voluntariamente a força coercitiva do fato social. Ele propõe, para tanto, um programa de reformas institucionais que, de alguma maneira, estabeleçam mediações entre o indivíduo e o Estado, observando que, espontaneamente, os indivíduos não mais se reconhecem neste.
Tanto a proposta de uma moral para as sociedades complexas como a proposta liberal utilitária captam dimensões e tendências existentes nas sociedades contemporâneas. Em relação à primeira, mesmo que as perspectivas morais não sejam mais autoevidentes, os grupos de status e comunitários oferecem sentidos para seus membros em sociedades altamente racionalizadas. Já em relação às tendências utilitaristas da sociedade contemporânea, há domínios na sociedade em que o compromisso com o próprio bem-estar é, senão o único, o mais funcional dos compromissos. Esse compromisso com o bem-estar é o mesmo para libertários radicais (pró-mercado) como para os adeptos de intervenções socioestatais. São diferentes apenas os caminhos que se propõem para chegar ao mesmo fim.
Mas, tanto quanto a proposta durkheimiana, a liberal utilitarista repousa em uma adesão à vida social tal como ela é dada. Como diz Löwith (1980), as estruturas sociais racionalizadas da vida moderna são exatamente aquelas que institucionalizaram a ação racional com relação a fins. Perseguir o autointeresse no interior dessas estruturas é adequar-se a elas e não se lhes contrapor um movimento autônomo. Enquanto a proposta durkheimiana repousa na adesão à moralidade e convenções (cultura) impostas (sempre atenta ao papel que as instituições têm no processo de socialização e integração social a partir de tais convenções), a proposta utilitarista mira as estruturas sociais que possam garantir a harmonia de fins particulares que se confrontam.
O compromisso com o próprio bem-estar (o autointeresse), ainda que seja mobilizado como ideal de realização pessoal e, portanto, de expressão da individualidade (em pretensa oposição à sociedade), não é senão expressão de algo que só se concretiza nas e pelas estruturas sociais. A busca pelo bem-estar individual está ligado à tentativa de sanar carências e necessidades, o que depende, por um lado, destas terem sido construídas e elaboradas no processo de socialização e, por outro, de serem satisfeitas com base no que a sociedade oferece para tanto. O ideal de felicidade individual, portanto, é um ideal fugidio, que nunca alcança o seu termo. Trata-se de uma busca que depende de uma complexa engrenagem social que é, ao mesmo tempo, sua origem e seu destino final. Como já alertava Kant (1996) em 1785, essa busca, tão cara à sociedade contemporânea não funda um agir livre, ainda que um indivíduo cujas carências elementares estejam sanadas seja mais propenso a ele.
Então, como identificar, nessas sociedades, a capacidade de um julgamento autônomo, que não implique adesão às estruturas culturais e sociais dadas? O eixo de reflexão kantiano-weberiano, tal como discutido anteriormente, é que descortina a questão. Ao refutar a ideia de que a liberdade estaria na irracionalidade e incalculabilidade da ação humana[2] (apanágio dos loucos), Weber (1999) lembra que o único sentimento empírico de liberdade experimenta-se ao agir com total conhecimento dos fins que se persegue e meios adequados de que se dispõe, sem que nenhum constrangimento externo ou interno imponha um curso de ação determinado. Mas, nas sociedades modernas, a racionalidade da ação se confunde com a racionalidade das estruturas sociais e deixa de indicar, por si só, a possibilidade de um agir livre. E se, como atesta Ladrière (2001), a possibilidade do agir ético encontra-se para além do que está dado e do que é socialmente aceito, tal possibilidade, resta buscá-la na relação interna entre valores e ação.
A proposta é investigar sociologicamente as questões da personalidade.
A liberdade como um aspecto interno à ação
A noção de dever, extraindo do que acima foi exposto, se define pelo compromisso que um agente estabelece com ideais, princípios e/ ou valores no curso de sua ação (sejam estes resultantes do autointeresse, de convenções sociais ou de uma possível autodeterminação). Trata-se de uma categoria que expressa a relação entre uma ação e as máximas que a orientam.
Por isso, discutir a noção de dever faz parte de um esforço sociológico em compreender as possíveis motivações das ações, aquilo que move os agentes sociais e o que, muitas vezes, aparenta elaborar um senso de obrigação pessoal entre eles durante o desenrolar de suas condutas. É nesse registro que a sociologia de matriz weberiana desenvolve o conceito de personalidade social.
Esse último é entendido como uma consistência na relação interna entre um valor (ou um conjunto coerente de valores) e as ações de um indivíduo (PORTIS, 1978; LÖWITH, 1980; BEITZEL, 2014). Para Weber (1991; HABERMAS, 1984; LADRIÈRE, 2001), a formação da personalidade social é o que está por trás de um habitus global sistemático, quando agentes históricos assumem uma conduta racionalizada em relação ao mundo. Maior exemplo da formação de uma personalidade social, analisada por esse autor foi a do crente calvinista, responsável por aquela conduta tão alinhada aos ideais do empresário moderno. Um conjunto de valores e noções ético-religiosas ligadas ao trabalho (envolto na ideia de dever vocacional[3]) que guiaram um comportamento sistemático no mundo (WEBER, 2004; ASCHER, 2010).
Esse conceito de personalidade está também presente na discussão weberiana sobre a vocação para a atividade científica. Como diz Löwith (1980), a ciência é parte do espírito e da falta de espírito do capitalismo contemporâneo, pois imbuída e formadora daquele ponto de vista de que todo o mundo pode ser objeto de um puro interesse cognitivo. Fala-se em interesse técnico (HABERMAS, 2007), razão sistêmica (HABERMAS, 1989), ou razão tecnológica (MARCUSE, 1999), para conceituar essa contemporânea disposição em instrumentalizar o mundo.
Se, por um lado, a ciência opera uma “demolição radical de ilusões” (LÖWITH, 1980), dimensão importante da ação revolucionária da burguesia contra as formas antigas de dominação, por outro, volta-se contra os próprios agentes sociais como forma de cultura dominante das mais abrangentes e inescapáveis da vida moderna. O progresso e o avanço científico e tecnológico não garantiram qualquer tipo de redenção final das sociedades. Pelo contrário, demoliram também esta ilusão (WEBER, 1991; 2004; HABERMAS, 2007; 1984; MARCUSE, 1999; TRAGTENBERG, 2005; NOBRE, 2000; COHN, 2003). Percebe-se, portanto, que o ponto de vista científico é aquele em que culmina todo o processo da racionalização cultural, e em que ele é levado ao seu limite, contra até mesmo qualquer crença em seu fundamento, a razão.
Weber (1982), por isso, repudia a ideia de que o cientista tenha autoridade para estabelecer os fins que se deve querer. Como atividade de conhecer o mundo, a ciência social apenas se depara com os inúmeros e irreconciliáveis valores e objetivos existentes na realidade e os caminhos para atingi-los. Em si, os valores são imperscrutáveis pela ciência e, portanto, a realidade, em última instância, mantém-se incógnita, na sua totalidade, aos seres sociais. Mas, para o autor, a indiferença moral não é a consequência necessária daquilo que sua atividade profissional lhe revela (a falta de sentido do mundo). Fatalismo ou resignação não fazem parte das proposições weberianas acerca da atividade científica. Para Weber (1999), a indiferença moral não tem conexão alguma com a objetividade científica. Do seu ponto de vista, deve prevalecer a honestidade intelectual, sóbria e profissionalmente empenhada, como disposição mais adequada diante desse cenário. É a convicção acerca dos valores profissionais da atividade científica que deve mover seus agentes, evitando as ideias e teorias escatológicas tanto quanto o pessimismo absoluto da indiferença moral. Cumpre conhecer e compreender a realidade social nos limites do possível e do que é acessível com base nas ferramentas de que se dispõe (FREUND, 2003, LÖWITH, 1980).
A construção ideal-típica do agente de ciência pressupõe alguém sem ilusões, “remetido sozinho sobre si mesmo por um mundo tornado objetivamente sem sentido[,] sóbrio e [...] realista” (LÖWITH, 1980, p. 126). Esse tipo-ideal de personalidade, no caso, ligada a uma atividade profissional, leva às últimas consequências a racionalização das próprias visões de mundo, assumindo os valores daí decorrentes. Assim, tanto se submete a falta de sentido do mundo como se suspende o contexto social, sem aderir passivamente a este. Racionalizar as próprias visões de mundo passa, portanto, por encarar as circunstâncias e compreender as ações que decorrem de um compromisso com os valores assumidos. A consistência dessa relação entre valores e ação é o que justifica se remeter a agentes sociais como uma personalidade[4] (PORTIS, 1978; BEITZEL, 2014). Essa consistência molda um habitus global sistemático e representa a possibilidade de uma ação livre das estruturas racionalizadas da vida moderna. Com a desintegração das visões de mundo autoevidentes, as profissões são um dos espaços sociais mais propícios à consolidação de tais comportamentos (HABERMAS, 1984; LADRIÈRE, 2001).
Uma personalidade social se forma a partir de uma relação racionalizada entre valores e ação. Essa racionalização consiste em abstrair os valores aos quais se adere a partir das circunstâncias em que se encontra o agente. A ação que daí resulta não se acomoda às circunstâncias, sejam essas opiniões e expectativas costumeiras ou rotinas funcionais impostas pelas estruturas modernas. Ela é livre no sentido de que seu compromisso se faz exclusivamente com valores e princípios que se acredita serem bons. Quando um agente organiza conscientemente sua vida a partir de um valor, ele se torna menos propenso a buscar aprovação ou ser controlado por expectativas sociais (PORTIS, 1978).
Mas, adverte Portis (1978), o compromisso com um valor, por si só, nada significa. Esse valor deve ser o resultado de um processo de racionalização, ou seja, abstraído a partir das circunstâncias e não assimilado abstratamente.
Como demonstra Weber (1964), religiões orientais que embasaram a conduta de grupos abastados assumiram um caráter de fuga do mundo. A possibilidade de ‘esquecer’ as urgências materiais (garantidas e naturalizadas) impulsionou esses grupos a buscar uma experiência religiosa condizente com tal esquecimento e, portanto, a assumir um compromisso com seus valores religiosos que independesse de qualquer conduta intramundana.
A personalidade social é formada na medida da consistência entre valores e ação. Mas a liberdade daqueles agentes abastados não é senão o esquecimento das condições materiais que a sustentam. Completamente diferente é a noção de liberdade em face àqueles agentes que se assenhoram das circunstâncias, encarando-as e agindo segundo valores a partir disso elaborados.
Responsabilidade e universalização
Com o que foi até aqui discutido, três acepções para a noção de dever em um mundo de estruturas racionalizadas são possíveis. A durkheimiana, que implica um compromisso com visões morais socialmente estabelecidas. A liberal utilitarista, que implica um compromisso instrumental com o bem-estar. E a que deriva das reflexões weberianas, que implica um compromisso com valores racionalizados. São três acepções que servem como recurso heurístico à sociologia da ética.
Vale aqui circunscrever como o conceito de ética, até agora apenas referenciado, se insere em uma perspectiva de investigação sociológica diante do que já foi exposto. Se a noção de dever expressa o compromisso que um agente estabelece com ideais, princípios e valores como máximas de sua conduta, e a sistematização desse compromisso molda uma personalidade social, a ética é o modo como esse agente se insere na vida social a partir dos valores com que se compromete. Investiga-se com que perspectiva ética um determinado agente está implicado ao elaborar e comprometer-se com um determinado valor, pois essa relação entre valores e ação tem, atrás de si, uma concepção de convívio, de bem e mal na relação com o outro. Essa concepção de convívio encontra-se internalizada e, por isso, diz respeito à faculdade de julgar do agente e não de concepções de bem e mal socialmente aceitas (moral).
Toda elaboração de valores leva em consideração, de uma forma ou de outra, os ‘outros’ que compõem a vida social na qual se está inserido. Como asseverado no estudo da personalidade, o compromisso com valores abstratos, por si só, nada significa, podendo, inclusive, basear-se em um esquecimento social das circunstâncias que possibilitam tal compromisso (como no caso das elites abastadas que moldam um comportamento de fuga do mundo através de visões de mundo religiosas). Esse esquecimento é também uma forma de inserção social, uma que se baseia na sua própria negação. É, portanto, necessário atentar-se para o processo de elaboração dos valores.
Isso levanta duas questões imprescindíveis à discussão sobre a ética na sociedade contemporânea e que têm importância na operacionalização da noção de dever como categoria investigativa: a questão da responsabilidade que deriva da racionalização dos valores e a universalização destes.
O compromisso com valores abstratos, por si só, remete ao que Weber (1982) denominou ética da convicção. Segundo Beitzel (2014), os proponentes dessa ética desconsideram por completo os meios e as consequências das ações. Quando de uma ação derivam consequências impremeditadas e até contraditórias ao valor sobre o qual se estava convicto, para esse proponente, o problema será o mundo e não a sua ação. Esse agente, portanto, se exime de suas responsabilidades como ser que participa de uma vida em sociedade. Por isso, diz Nobre (2000), a ética da convicção não resiste às irracionalidades do mundo.
Já a ética da responsabilidade é coerente tanto com o pluralismo de valores assim como com as incertezas e fluidez do mundo contemporâneo. Ela estabelece que a relação racionalizada entre valores e ação, no sentido aqui discutido, não pode prescindir dos liames entre a motivação, os meios e os fins desta ação. Dada a irracionalidade ética do mundo, um agir livre nas sociedades contemporâneas implica assumir as responsabilidades que daí derivam. Não como autorreflexão monológica, mas como ação de quem toma parte na vida em sociedade. Constitui essa responsabilidade o exercício de se avaliar as circunstâncias para extrair os valores que podem guiar um comportamento, sem perder de vista a conexão entre os valores perseguidos, os meios de que se dispõe e os fins almejados (BEITZEL, 2014; LADRIÈRE, 2001). O leitor se recordará que a reflexão weberiana sobre a personalidade do cientista está imersa nessa perspectiva.
Derivando, então, a ética da responsabilidade de uma ativa inserção na vida social, os princípios que a guiam tendem à universalização. A consideração de uma vida em comum como a circunstância sobre a qual se racionalizam os valores de um agente ou grupo social impele à sua universalização, pois impele, como diz Ladrière (2001), na esteira da reflexão kantiana, à consideração de todos os seres sociais como fins em si mesmos. Nessa perspectiva, ao moldar um comportamento orientado por um valor mantém-se inquebrantável o liame entre valores, meios e fins e, consequentemente, tornam-se injustificáveis instrumentalizações, no percurso da ação ou como consequência sua, que ferem os princípios assim racionalizados.
A universalização das visões éticas é, portanto, uma consideração ativa da vida em sociedade e não um formalismo vago. O aspecto formal de uma noção de dever universalizada não retira a concretude do princípio moral de ação. Primeiramente, a universalidade, antes de ser uma injunção, é um critério para que se possa avaliar objetivamente a moralidade dos atos. Depois, é preciso considerar que “o exercício racional que consiste a cada um de estimar a possível universalização de suas próprias máximas é um critério de moralidade antes de qualquer coisa.” (LADRIÈRE, 2001, p. 35).
Considerações finais
Assim se conclui essa contribuição à fundamentação de uma sociologia da ética, conforme os parâmetros estabelecidos em Ladrière (2001). A noção de dever, categoria trabalhada por diversas correntes nas ciências sociais em torno do dilema do agente nas sociedades capitalistas contemporâneas, foi aqui esmiuçada para apontar seu potencial crítico. Esse potencial está na relação com princípios que os próprios agentes possam querer. Para tanto, ao sociólogo é imprescindível conhecer as instâncias da vida social sobre a qual se formam os valores que guiam a ação, pois só assim é capaz de entrever a possibilidade de uma ação livre. Só assim pode chegar ao conhecimento dos imperativos éticos que os agentes da vida social possam eles mesmos querer.
Neste artigo, buscou-se lançar luz aos processos de julgamento ético dos agentes sociais. Ou seja, propõem-se conceitos que investiguem como um agente se insere na vida social a partir do compromisso valorativo que estabelece no curso de suas ações. À sociologia, através do conceito de personalidade social, é possibilitado o acesso a essa realidade, estabelecidos os processos de racionalização cultural e social das sociedades contemporâneas. A reflexão sobre as consequências da irracionalidade ética do mundo e da institucionalização da razão instrumental para a ação social levou diversos autores a se interessarem pelas relações entre dever e liberdade na contemporaneidade. A possibilidade de uma investigação científica desta temática está na relação entre valores e ação.
Para essa investigação, trabalharam-se conceitos que estruturam a realidade de maneira racional e que, então, guiam a observação empírica sistemática. Não é preciso, para tanto, postular uma suposta neutralidade, mas assumir conscientemente os valores ao qual se adere no processo de construção desses conceitos. Este artigo, seguindo Ladrière (2001), mantém uma relação com o pressuposto de que o agir humano pode ser um agir no mundo e não simplesmente determinado por ele. Como disse Kant (1996), se a razão deve ter um fim prático, este deve ser o de determinar a ação[5]. Assim constituída, a ação será um início ‘no’ mundo, sendo neste mundo uma interventora, dotada de uma capacidade criadora. A razão humana, que representa a força dos princípios, permite, enquanto capacidade cognoscente, a apreensão dos princípios gerais/universais dos fenômenos particulares e, enquanto capacidade prática, fundar um princípio no mundo. Trata-se de um princípio relativo, pois é um princípio em um mundo que já se iniciou por força da própria natureza, muito antes da constituição da vontade humana. “Esse segundo começo (o único que nos é acessível) é o da liberdade” (LADRIÈRE, 2001, p. 26).
Referências bibliográficas
ASCHER, Ivan. (2010), Max Weber and the ‘Spirit’ of The Protestant Ethic. Journal of Classical Sociology, 10(2), 99–108.
BEITZEL, Terry. (2014), The process of (nonviolent) revolution and Max Weber’s ethics of responsibility. International Journal on World Peace, 31(2), junho.
COHN, Gabriel. (2003), Introdução. In G. Cohn (org.), Weber. São Paulo: Ática.
DURKHEIM, Émile. (1999), Da Divisão do Trabalho Social (2a ed.). São Paulo: Martins Fontes.
FREUND, Julien. (2003), Sociologia de Max Weber (5ª ed.). Rio de Janeiro: Universitária.
HABERMAS, Jürgen. (2007), Ciencia y Técnica como “ideologia” (5a ed.). Madrid: Tecnos.
HABERMAS, Jürgen. (1984), The Theory of Communicative Action: Vol. 1 – Reason and the Rationalization of Society. Boston: Beacon Press, 1984.
HABERMAS, Jürgen. (1989), The Theory of Communicative Action: Vol. 2 – Lifeworld and System: a critique of functionalist reason. Boston: Beacon Press.
HEGEL, Georg Wilhelm. (1991), O Sistema da Vida Ética. Lisboa: Edições 70.
KANT, Immanuel. (1996), Fundamentación de la Metafísica de los Costumbres (12a ed.). Madrid: Espasa Calpe.
LALANDE, Andre. (1953), Vocabulario Tecnico y Critico de La Filosofia. Madrid: El Ateneu.
LADRIÈRE, Paul. (2001), Pour une sociologie de l’éthique. Paris: PUF.
LÖWITH, Karl. (1980), Racionalização e liberdade: o sentido da ação social. In M. M. Foracchi & J. M. Martins (orgs.), Sociologia e Sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio de Janeiro: LTC Editora.
MARCUSE, Herbert. (1999), Tecnologia, Guerra e Fascismo. São Paulo: UNESP.
NOBRE, Renarde Freire. (2000), Racionalidade e tragédia cultural no pensamento de Max Weber. Tempo Social, 12(2), 85–108, São Paulo, novembro.
PIERUCCI, Antônio. (1998), Secularização em Max Weber: da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 13(37), São Paulo, junho.
PORTIS, Edward Bryan. (1978), Max Weber’s Theory of Personality. Sociological Inquiry, 48(2), abril.
SMITH, Adam. (1981), An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, vol. I. In R. H. Campbell & A. S. Skinner (ed.), Glasgow Edition of the Works and Correspondence of Adam Smith, Vol. 2. Indianapolis: Liberty Fund.
SMITH, Adam. (1978), Teoría de los sentimientos morales. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica.
TRAGTENBERG, Maurício. (2005), Apresentação. In Max Weber. Estudos Políticos: Rússia 1905 e 1917. Rio de Janeiro: Azougue.
TRAGTENBERG, Maurício. (2006), Burocracia e Ideologia (2a ed. rev.). São Paulo: UNESP.
WEBER, Max. (2004), A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras.
WEBER, Max. (1991), Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva, Vol. 1. Brasília: UnB.
WEBER, Max. (1982), Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
WEBER, Max. (1999), Metodologia das Ciências Sociais. São Paulo: Cortez.
WEBER, Max. (1964), The Sociology of Religion. Boston: Beacon Press.
WHITE, Mark D. (2004), Can homo economicus follow Kant’s categorical imperative? Journal of Socio-Economics, (33), 89–106.
Notas