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As ciências sociais brasileiras e a formação do “campo da segurança pública”

The social sciences in Brazil and the “public security field” formation

Francisco Thiago Rocha Vasconcelos
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Brasil

As ciências sociais brasileiras e a formação do “campo da segurança pública”

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 5, núm. 9, pp. 35-58, 2017

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 30 Novembro 2016

Aprovação: 25 Março 2017

Resumo: Neste trabalho abordamos a formação do “campo da segurança pública”, entendido como convergência nacional entre espaços acadêmicos e arenas de políticas públicas nos anos 2000. Procuramos demonstrar sua formação através da intersecção das trajetórias intelectuais e políticas de uma fração hegemônica de cientistas sociais comprometidos com a institucionalização das ciências sociais e com as mobilizações que constituíram a “violência urbana” como problema público desde os anos 1970, quando emergem diferentes agendas políticas presentes nas disputas pela reforma do sistema de justiça criminal. Em consequência, constata-se que há uma relação de mútua influência entre as coalizões de reforma dos campos político-burocráticos em direitos humanos e segurança pública e as agendas de pesquisa sobre a “questão criminal” no Brasil.

Palavras-chave: “violência urbana”, “campo da segurança pública”, sociologia da sociologia.

Abstract: In this article, we investigate the formation of the “public security field”, understood as an expression of the national convergence between academic and public policy spaces in the 2000s. The present study aimed at describing the formation of this field through the intersections between intellectual and political trajectories of a hegemonic segment of scholars in Brazil. Such scholars were committed both to the institutionalization of the social sciences, and to mobilizations that helped to constitute urban violence as a public issue since the 1970s, when different public agendas were in dispute. As a consequence, there is a relation based on mutual influence between the coalitions to reform the bureaucratic and political fields grounded on human rights and public security and the research agendas on “criminal issue” in Brazil.

Keywords: urban violence, public security field, sociology of science.

Apresentação

Em pesquisa recente (VASCONCELOS, 2014), abordamos a formação de uma área de estudos sobre crime, violência e punição nas ciências sociais brasileiras (1968-2010). Procuramos demonstrar que as disputas pelo monopólio de posições no campo político não seriam expressão exclusiva de interesses materiais ou ideologias, mas também de forças internas ao campo intelectual (BOURDIEU, 1979). Identificamos a criação de vínculos entre a eleição de temáticas, o reconhecimento científico e a legitimação política de pesquisadores como especialistas, consultores, formuladores e/ou gestores em segurança pública e justiça criminal a partir das mobilizações relacionadas à construção da “violência urbana’’ como problema público (GUSFIELD, 1981; LENOIR, 1996)[1].

Nosso ponto de partida foi a “reemergência da ‘violência urbana’” como preocupação da sociedade e do Estado no Brasil a partir dos anos 1970[2]. Nesse período se iniciam novas imagens e esquemas de expressão pública relacionados à questão central do paradoxo entre democracia e violência: no contexto de transição democrática, os avanços no campo político convivem com a continuidade de práticas sociais e estatais autoritárias e com o alarde em torno do crime violento, opondo defensores dos direitos humanos e do regime militar (ADORNO, 1996; PERALVA, 2000). O estudo desse contexto exigiu reconstituir o processo no qual a criminologia etiológica e positivista, vigente desde o fim do século XIX, perde parte de seu terreno a partir de novas correntes que passam a afirmar a normalidade sociológica do crime e do desvio, a desigualdade de classe na seleção do comportamento criminalizado, a criticar a prisão e suas finalidades, assim como a violência policial e o atraso na reforma da segurança pública[3].

Observa-se então o desenvolvimento de uma área de estudos que atravessou diferentes momentos: 1) surgimento de estudos considerados precursores e a criação dos primeiros fóruns de debate [19701980]; 2) consolidação dos principais grupos e linhas de investigação [1990]; e 3) expansão, como atesta a diversificação regional e o expressivo aumento de produção de teses e dissertações [2000] (LIMA, 2011).

No presente texto não vamos desconsiderar a análise do conteúdo destas diferentes proposições, mas iluminaremos sobretudo as relações entre intelectuais e política. Abordaremos os grupos de pesquisadores como comunidades epistêmicas (HAAS, 1992), ou seja, como redes de profissionais que reivindicam autoridade política a partir de uma competência reconhecida em um domínio particular, caracterizadas por partilhar uma mesma crença a respeito das normas e princípios de ação social, das causas dos problemas observados e das noções de validade do conhecimento no seu domínio de competência. Nosso ângulo será o da relação das áreas de saber com a estruturação de subcampos políticos ou domínios de políticas públicas em direitos humanos, segurança pública, política penitenciária e penal. Através da análise do esforço de inserção das redes de pesquisa em pontos estratégicos do sistema de condução política e governança do sistema de justiça criminal será possível requalificar o entendimento dos impactos das coalizões políticas no seio do campo acadêmico.

Para tanto, partimos dos primeiros governos estaduais eleitos pela via democrática em 1982, experiências que demonstram as clivagens do debate público e acadêmico sobre a “violência urbana” e sua relação com a democracia. Concentramo-nos em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, relacionando pesquisadores de outras regiões na medida em que se relacionam com a expansão de redes de pesquisa e de atuação política que resultaram na constituição do “campo da segurança pública” nos anos 2000 - convergência nacional entre espaços acadêmicos e arenas de políticas públicas (FUKS, 2000), alinhando profissionais da segurança pública e da justiça criminal, pesquisadores e ativistas em redes de políticas públicas (JOSSELIN, 1995) e comunidades epistêmicas (HAAS, 1992).

Cabe afirmar de antemão que o “campo da segurança pública” não se confunde com o campo científico. Ele é o locus do cruzamento entre campo intelectual e científico das ciências sociais e do direito e o campo burocrático-político que envolve operadores da segurança pública e da justiça criminal. Nele, como pressão por um novo regime de verdade (FOUCAULT, 2000), são propostas mudanças na racionalidade governamental a partir da criação de arranjos institucionais e elaboração de novos princípios e rotinas.

Centros de pesquisa e crises de segurança pública em três contextos

No Rio de Janeiro, abordamos inicialmente a criação do Socii - Pesquisadores Associados em Ciências Sociais, nos anos 1970, onde fora organizada uma série de seminários, encontros e livros a respeito de temas como crime, violência e poder. Malgrado as diferenças de objeto, método e alcance, estes atores irão dialogar com a tradição marxista de pensamento, participando da interface entre Direito e Sociedade no Rio de Janeiro, e dialogando criticamente com a produção da ciência política do IUPERJ[4]. O problema diria respeito a como erigir um programa de pesquisas que servisse de apoio à superação da polarização entre o crime como epifenômeno de questões estruturais e o crime como questão de lei e ordem. Esta disputa se traduzia, por sua vez, na interpretação sobre a realidade do fenômeno da violência criminal (afirmação sensacionalista do seu aumento x negação por falta de instrumentos de mensuração) e também nos termos empregados para a solução do problema (investimento em políticas econômicas e sociais x investimento em reforço a estruturação das organizações de segurança pública).

Esta disputa teria se formado em meio aos embates sobre o “problema da favela” que, como representação das classes perigosas, atravessa a história da cidade do Rio de Janeiro, entre políticas de remoção, urbanização e manutenção da ordem pública (VALLADARES, 2005). Nos governos Brizola (1983-1986/1991-1994), novas interlocuções são estabelecidas por parte de intelectuais, quadros políticos e movimentos sociais que formam a base de novas propostas para a questão, marcada pela introdução dos direitos humanos como princípio de política pública relativa à atuação policial, ao sistema penitenciário e aos setores marginalizados da sociedade. A partir deste governo ganha corpo a polarização entre correntes intelectuais, que reverbera na tomada de posição sobre as demandas suscitadas por eventos de violência e crises de segurança pública. Concentramos o foco sobretudo nas tensões entre os grupos vinculados à defesa do projeto governamental brizolista e novos centros de ativismo e pesquisa em segurança pública.

O grupo ligado ao programa para a segurança pública dos governos Brizola favoreceu pela primeira vez uma interlocução entre universidades e ensino em segurança pública através do desenvolvimento e divulgação de estudos sobre a polícia no interior da própria corporação, e de novas disciplinas nas escolas de formação policial. O conjunto destas iniciativas congregava-se em torno de uma reforma mais ampla da educação policial no estado, a partir do Centro Unificado de Educação e Pesquisa (CEUEP), na UERJ. A criação do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), em 1996, e da Revista Discursos Sediciosos, é um marco importante na transição que o grupo faz da experiência de governo para a atuação na vida acadêmica (BATISTA, 2010, p. 40).

Por sua vez, as articulações entre o ISER, criado em 1991, e a ONG Viva Rio, criada em 1993, emergem do engajamento de cientistas sociais na disputa por hegemonia em correntes de opinião suscitadas por eventos de violência que instituíram crises de segurança pública e sua organização na forma de agendas públicas e governamentais durante os anos 1990[5]. Estas articulações originam a plataforma política de segurança pública adotada no governo de Anthony Garotinho (PDT), em 1999, no qual um conjunto de cientistas sociais ocupa cargos de governo. Uma experiência polêmica, mas que projetou alguns dos seus personagens a espaços em nível federal.

Esta frente de atuação favoreceu também o surgimento de novos centros de pesquisa. É o caso do Centro de Estudos em Segurança e Cidadania (CESeC/UCAM) e do Laboratório de Análises da Violência (LAV/UERJ). Outra resultante foi o Instituto de Segurança Pública (ISP), criado para ser o principal instrumento para a reforma policial em seus aspectos educacionais e profissionais. Articulação onde ganhou terreno o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP/ UFF) e seu papel na assessoria em políticas públicas de segurança municipais e na fundação do primeiro curso de graduação em segurança pública no Brasil, através do qual se realiza a institucionalização da criminology como antropologia do direito e ciência social aplicada à gestão (UFF, 2008).

De um lado, argumenta-se que haveria a alternância entre diferentes agendas políticas, a enfatizar seja a operacionalidade no controle do crime, a reação corporativa frente a ensaios de mudança ou à reestruturação democrática das polícias, em uma oscilação entre governos “leves” e “duros”, a suscitar a elaboração de uma “terceira via” (SOARES & SENTO-SÉ, 1999; CARNEIRO, 2010). De outro, relativiza-se a tese de um movimento pendular e afirma-se uma continuidade do tratamento penal às classes populares, em crítica da adesão das esquerdas às práticas punitivas, agora sob a legitimação da universidade e seus centros de pesquisa (KARAM, 1996; BATISTA, 2009). Cristaliza-se, dessa maneira, uma concorrência intelectual e política entre centros de pesquisa ligados à “Criminologia Crítica” e às Ciências Sociais, marcada por diferentes posicionamentos na disputa por hegemonia[6].

Em São Paulo, analisamos a rearticulação entre agendas políticas para a institucionalização da democracia e a estruturação das ciências sociais como campo científico e profissionalizante com base na formação de centros de pesquisa independentes, posteriormente reincorporados ao campo gravitacional da Universidade de São Paulo. Sugerimos as ligações destes centros com o movimento de aposta na organização de movimentos de direitos humanos em aliança com projetos do governo de André Franco Montoro (1983-1987). Contudo, o governo Montoro esbarrou em uma série de percalços, em um momento de polarização contra a política de respeito aos direitos humanos, responsabilizada pela ineficiência da justiça criminal e aumento da criminalidade violenta (MINGARDI, 1992).

Interpretamos estas resistências como base para a recuperação da discussão precedente na forma de um centro de pesquisas sobre a associação entre violência do Estado e a cultura política brasileira: o Núcleo de Estudos da Violência (NEV), criado no interior da USP, em aliança com a Comissão Teotônio Vilela (CTV) de direitos humanos[7]. Analisamos a estruturação de sua agenda de pesquisa e sua atuação no apoio a criação de leis e normas que fiscalizem e controlem a ação dos aparelhos coercitivos do Estado, em especial em períodos de crise, como as ocasionadas pela rebelião da penitenciária do estado em 1987, e principalmente o “Massacre do Carandiru”, em 1992. A repercussão desses casos teria aberto maior espaço para os pesquisadores junto ao Estado na elaboração e promulgação doPrograma Nacional de Direitos Humanos (1996), e dos seus relatórios de avaliação. Apontamos também o seu lugar nas redes que investem na inclusão do tema dos direitos humanos no ensino superior.

Em plano simultâneo, problematizamos o lugar do NEV frente à crise de segurança pública em 1997, com o caso de violência policial na Favela Naval (RIFIOTIS, 1999). Este momento foi marcado pela entrada de novas organizações de ativismo e pesquisa aplicada que procuraram pautar a agenda política na segurança pública - o Instituto São Paulo Contra a Violência, o Fórum Metropolitano de Segurança Pública, o Instituto Sou da Paz, o ILANUD, o Instituto Fernand Braudel e a ONG Conectas Direitos Humanos. Isto repercutirá também na segunda gestão do governo estadual de Mario Covas (1998-2001), onde haverá adoção de novos parâmetros de modernização do setor (MINGARDI, 1992).

Um ponto de inflexão foi a organização do Seminário São Paulo Sem Medo, em 1997, promovido pela Rede Globo/ Fundação Roberto Marinho e coordenado pelo NEV. Esse momento demarca um maior interesse do NEV pelo tema das políticas de segurança pública, através do ideário da “segurança cidadã”. Porém, mesmo nesse novo cenário, a influência direta dos cientistas sociais junto ao governo estadual de São Paulo na segurança pública será mínima quando comparada à influência da Polícia Militar ou dos procuradores do Ministério Público. Uma das principais razões parece estar na polarização histórica entre cientistas sociais ligados aos movimentos de direitos humanos e quadros governamentais, que continua na crítica à política de repressão e encarceramento promovida durante as últimas décadas.

Em Minas Gerais, recuperamos as bases do projeto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), voltado a aproximação com a administração pública, e a modernização do Curso de Sociologia e Política a partir de 1968, para então situar as pontes constituídas entre cientistas sociais e a Polícia Militar do Estado, em especial as ligações com a Fundação João Pinheiro (FJP), e o Centro de Estudos sobre Criminalidade e Segurança Pública (CRISP/UFMG). Desde 1985, a FJP promove cursos de especialização em segurança pública para oficiais superiores da PM, convertendo-se em canal de implementação das propostas de reforma.

O CRISP é criado em 1999, com projetos de diagnóstico da criminalidade no estado em sinergia com a PM e a Fundação João Pinheiro, entre 1997 e 2002. Desde então o CRISP procurou produzir conhecimento com base na criação de indicadores estatísticos e no trabalho próximo ao governo e à formulação de políticas públicas, no sentido de auxiliar na redução dos índices de violência, principalmente homicídio. Ao longo do tempo, o CRISP conquistou um lugar de destaque na interlocução entre universidade e gestores da área de segurança pública na elaboração, avaliação e monitoramento de políticas públicas. Alguns de seus projetos adquiriram status de “boas práticas”, como novos padrões para gestão de informações policiais e de metodologias de integração das agências de segurança pública. O CRISP se constituiu então como importante disseminador de políticas de modernização em “segurança cidadã” para a América Latina (UFMG, 2016).

Em sua aposta na reforma gradual da segurança pública, especialmente da polícia militar, o estudo de aspectos como identidade profissional, condições de carreira e redes de poder internas conduzem a um escalonamento de possibilidades de reforma policial segundo níveis de dificuldade política e de impacto de transformação.

Esta perspectiva apresenta-se, nesse sentido, como uma estratégia de mudança da segurança pública no Brasil a partir da parceria entre polícia e universidade com base no conhecimento aplicado (BEATO FILHO, 2008). De acordo com os cientistas sociais associados ao projeto, esta parceria, associada ao movimento grevista de 1997, teria auxiliado à revisão dos regulamentos disciplinares, princípios doutrinários e premissas operacionais da PMMG, mesmo sem uma grande mudança de suas condições estruturais de organização (SAPORI, 2007; BATITUCCI, 2013).

A formação do “campo da segurança pública”

Da análise dos três contextos é possível destacar que a articulação de pesquisadores em uma área de estudos e ativismo em segurança pública e justiça criminal se realiza a partir das mudanças na sociedade civil, com a criação de organizações não governamentais e da abertura de espaços de participação no campo burocrático (ZALUAR, 1999). Os anos 1990, em particular, seriam um marco no sentido da abertura de “janelas de oportunidade” a partir de crises de segurança pública. A articulação entre mobilizações sociais e propostas políticas foi fundamental para que as políticas de segurança pública se tornassem um dos objetos centrais da área de estudos (KANT DE LIMA et al., 2000). Dessa maneira, na formação de centros, núcleos e laboratórios, repercutem as agendas políticas de cada momento histórico. Agindo como intermediadores entre sociedade civil e sociedade política (LAVALLE & BULOW, 2014), tais centros concorrem para a definição conjugada de padrões de trabalho coletivo/profissional, temas de pesquisa e pautas políticas.

Para compreender com profundidade a montagem desse cenário de convergência entre área de estudos e arenas de políticas de segurança pública, remontamos inicialmente à montagem institucional das ciências sociais após 1968, destacando o incentivo de agências internacionais, em especial a Fundação Ford. Desde os anos 1960 a Ford lança as bases para a constituição de uma rede com pesquisadores afetados pela repressão, apoiando o desenvolvimento das condições que sustentassem a produção de conhecimento crítico voltado à análise dos problemas sociais brasileiros (FORJAZ, 1997). Estes investimentos seguiram uma mesma “filosofia de vertebração profissional e institucional” de apoio a associações e sociedades científicas na América Latina e que resultou na criação da ANPOCS no Brasil. Para as Ciências Sociais, a Ford se converteria no alvo preferido para coalizões (MICELI, 1990, p. 27-29). Isto demonstraria o peso estratégico do financiamento da Ford no incentivo a uma definição de conhecimento voltado à análise e legitimação das bases institucionais do regime liberal-democrático (KEINERT & SILVA, 2010).

Em se tratando de sua atuação no período mais recente, em direitos humanos e segurança pública, podemos indicar dois momentos: o primeiro, entre o fim dos anos 80 e o início dos 90, de ênfase nas organizações de pesquisa e ativismo em direitos humanos, com verbas para o NEV e o ISER; o segundo, a partir de 1997, voltado à aproximação entre cientistas sociais e profissionais da segurança pública e justiça criminal, em que o investimento concentrou-se em quatro organizações: o CRISP, o CESeC, o Sou da Paz e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A agenda da Ford continuou a incentivar a pesquisa e o ativismo nesta área, como expressam as reuniões mais recentes junto a seus beneficiários, em 2008 e em 2012 (RAMOS, 2013). Pudemos então concluir que foi expressivo o crescimento de redes lideradas por beneficiários da Ford no âmbito dos direitos humanos e da segurança pública.

Quanto aos fóruns de pesquisa, concentramo-nos principalmente nas reuniões da ANPOCS. Consideramos as delimitações de fronteiras entre cientistas sociais e juristas no GT Direito e Sociedade (1979-1989)[8] e a posterior divisão entre eixos agregadores nos anos 1990: “violência e gênero”; “violência e lutas sociais”; e “violência criminal, sistema de justiça e segurança pública”. A convergência principal se realiza no terceiro eixo. Porém, até a metade dos anos 90 os estudos políticoinstitucionais sobre segurança pública terão repercussão limitada, reduzida sobretudo aos GTs de Políticas Públicas. Mas, mesmo que ainda subsumida a outras questões, a segurança pública começa a ampliar seu espaço, em grande parte favorecida pela politização da ‘’violência urbana’’ no Rio de Janeiro, com o envio de tropas militares na ‘’Operação Rio’’[9], e com a inserção, no interior da ANPOCS, da agenda políticointelectual relacionada ao Viva Rio e ao ISER, assim como da antropologia da justiça penal e do policiamento produzida pelo NUFEP/UFF.

Se os estudos sobre políticas públicas de segurança e organizações policiais ou mesmo sobre a prisão não tem grande destaque até o momento, a representatividade de estudos sobre aferição de taxas de criminalidade será ainda menor. Isto se expressará nos conflitos entre, de um lado, uma visão ampla dos atos de violência, como reação de sentido protopolítico à uma situação de ‘’violência estrutural’’, ou como ‘’violência simbólica’’ e, de outro, uma visão mais restrita da violência como criminalidade comum (homicídios, latrocínios, roubos e furtos) ou redes estruturadas de crime-negócio. Este contraste será expresso nas discussões sobre a questão da sociabilidade juvenil na forma de gangues e galeras na ANPOCS durante os anos 1990. O tópico mais ressaltado consistiu na crítica a concepções amplas a respeito da violência, sintetizadas no conceito de violência estrutural. Ao propor que os verdadeiros problemas estariam no desemprego, na falta de serviços públicos, na ausência de políticas sociais, entendidos como fatores de violência do Estado, este discurso não ofereceria ‘’meios para pensar aquelas ações caracterizadas pelo excesso ou descontrole no uso da força física (ou de seus instrumentos) nas interações sociais, passíveis de controle democrático›› (ZALUAR, 1999, p. 233-240).

Assim, consolida-se um direcionamento pragmático e reformista em segurança pública, reverberando em tomadas de posição que têm restrições ou precauções quanto a perspectivas mais amplas ou positivadas da violência, em prol de um conceito mais restrito de criminalidade como problema a ser combatido. Nesse processo, se os anos 1990 iniciaram pela discussão da política nacional de direitos humanos e do funcionamento da justiça criminal, há um progressivo diálogo e unificação entre as discussões, expressando uma autonomização do tema da criminalidade e da segurança pública, de tal modo que é possível destacar atualmente o reconhecimento intelectual e político dos temas da área (LIMA, 2011; MONTEIRO, 2014).

Este processo se concretiza através de três dimensões: a) da nacionalização da área de pesquisa através da permeabilidade das associações de pesquisadores (ABA, SBS, ABCP e ANPOCS) às agendas políticointelectuais da reforma da segurança pública; b) da consolidação de redes de pesquisa através do Programa Nacional de Apoio a Núcleos de Excelência (PRONEX): o que favorece o trânsito de pesquisadores de outras áreas temáticas, como a dos conflitos rurais, para o estudo da segurança pública; c) e da conjugação de interesses entre pesquisadores e a agenda da Fundação Ford, que se volta com mais ênfase à segurança pública, tendo como marco o Simpósio Experiências inovadoras e políticas de segurança pública, em parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) e realizado na ANPOCS, em 1998.

Com isto, ocorre a expansão e diversificação de grupos de pesquisa e do volume da produção, com a organização constante de encontros e congressos, a criação de novas revistas[10] e a formação de linhas temáticas e disciplinas inter-relacionadas. Mais recentemente o padrão de institucionalização estatal tem se orientado para a constituição de redes que vinculem consolidação acadêmica com a transferência de conhecimento para a sociedade e políticas públicas, caso dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs)[11].

A dimensão acadêmica, contudo, não pode ser descolada de um processo de legitimação política do protagonismo federal na segurança pública a partir dos anos 2000, resultante de um histórico de mobilização em prol da reconstrução do Estado na área de direitos humanos e de segurança pública, visando suprir as lacunas da Constituinte, que deixara intocadas as funções e os padrões de organização e de atuação da segurança pública. Destacam-se o conjunto de planos e inovações institucionais a partir da criação da Secretaria Especial de Direitos Humanos, em 1997, e da SENASP, em 1998, e dos Planos Nacionais de Segurança Pública promulgados a partir de 2000, cujo objetivo declarado seria articular a eficácia e eficiência da segurança pública com a garantia dos direitos humanos e processos de controle democrático. Com base nestes princípios projetou-se uma estrutura de governança, o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). A montagem de sua Arquitetura Institucional (SENASP, 2006) foi produzida por uma rede de 60 atores, em especial cientistas sociais e advogados, de organizações de interface entre sociedade civil e centros de pesquisa universitários. A realização do 1° Concurso de Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública, em 2004, parceria entre a ANPOCS e a SENASP, deu continuidade a esse processo.

Estas articulações se dirigiram à formulação de um “novo paradigma da segurança pública”, sintetizado para muitos na noção de Segurança Cidadã. A 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (CONSEG), em 2009, foi tida como uma janela de oportunidade para promover e mensurar a adesão a este novo paradigma (LIMA, 2011). Na Conferência teria havido uma concentração nacional do debate, acompanhada do surgimento de novos atores da sociedade civil, principalmente ONGs e institutos acadêmicos, que ampliaram seus recursos a partir de atividades de pesquisa, mobilização social e assessoramento à formulação de políticas públicas (PAVEZ et al., 2011). Estas organizações procuraram desfazer a forte polarização entre os atores tradicionais da área, as Forças Armadas e as altas patentes das polícias e as organizações de militância em direitos humanos (SAPORI, 2007).

Com isto, o diagnóstico da insuficiência do aparelho estatal para dar conta de novos fenômenos criminais e do atraso das reformas em segurança pública frente a outros setores é, então, o argumento de entrada de uma fração hegemônica de cientistas sociais em disputa com grupos dirigentes já estabelecidos na segurança pública. Os cientistas sociais têm se dividido em múltiplas frentes: alianças setoriais junto a policiais na implementação de novos conteúdos no ensino policial e novas maneiras de implementar políticas públicas; adoção de pesquisas como instrumento de agenda-setting; e reforço à formação do cientista social como policy maker ou na criação de novas categorias profissionais (bacharel em segurança pública), capazes de cumprir este papel.

Uma das ênfases centrais foi a reivindicação mais frequente de uma nova geração de cientistas sociais pela expertise na gerência de cargos de execução em governos (LIMA et al., 2009), o que iria de encontro à concepção mais consensual existente na definição dos limites entre o papel do intelectual e do gestor público. Estas tendências já se anunciariam, no mesmo período, entre outros membros da geração anterior[12], mas seria necessário ainda acrescentar pesquisadores de segunda e terceira geração, que iniciam uma relação de maior proximidade com o universo burocrático e político. Tal inflexão é pertinente a pesquisadores presentes em contextos regionais diversos, acompanhando, por exemplo, o desenvolvimento do conceito de “segurança cidadã”, apoiado em incentivos do governo federal e de agências privadas e multilaterais.

Ganhou terreno um ponto de vista específico sobre os fatores que dificultaram a implementação de uma agenda de reformas institucionais e de avanços na gestão operacional do setor de segurança pública após a transição democrática (SAPORI, 2007). A omissão ou incompetência de governos democráticos, a prioridade do combate ao poder das Forças Armadas após a transição política, ou ainda da ausência de um paradigma alternativo que instrumentalizasse os decision makers, teriam favorecido uma “relativa disjunção” entre o conhecimento científico produzido nas faculdades de ciências sociais e a exigência de um know-how para executar os planos governamentais, ajudando a explicar a prevalência de policiais, juízes, advogados, promotores e militares das Forças Armadas no seio das elites decisórias nesse campo de atuação (ibidem, p.110). O cenário dos anos 2000, ao contrário, seria visto como oportunidade de uma reforma das organizações da segurança pública - como meio de superação das instabilidades dos tempos da política, favorecendo a formação de quadros de decision makers .ibidem) -, de modo semelhante à ocorrida na Saúde Pública, onde a passagem entre academia e gestão é rotineira, ou na Economia, quando se tem em vista a criação da expertise necessária à gestão política (RAMOS, 2007).

Diante do percurso analisado, seria o caso de apontarmos a emergência de um projeto de hegemonia “tecnocrática” nas ciências sociais vinculado a agendas de reforma política na segurança pública. Uma opção estratégica em termos da adesão cognitiva e prática de agentes policiais, que se consolidou em torno de coalizões de reforma a partir dos anos 2000 (SOUZA, 2015), em meio a disputas entre corporações, lobbies, redes de políticas públicas e comunidades epistêmicas. Condições que foram constituídas ao longo das últimas três décadas, junto à criação de centros de pesquisa [think tanks] como pontas de lança de um novo espaço de produção intelectual (MEDVETZ, 2009).

Assim, após a transição democrática, as insuficiências das estratégias de reforma orientadas pela ‘’militância tradicional em direitos humanos’’, centradas na denúncia e controle da ação violenta do Estado, e o conjunto de crises de segurança pública, entre as quais as greves policiais em território nacional, teriam fornecido o terreno para o incentivo à atuação conjunta entre pautas de pesquisa e políticas no sentido da construção de compromissos de viabilização da reforma e modernização do setor. Não se trata de afirmar uma completa indiferenciação institucional ou epistemológica entre ciência e política, mas de novas formas de articulação dos resultados acumulados no campo da ciência na competição política. Nesse sentido, a formação de um “campo da segurança pública” dá início à organização de sistemas de intercâmbio entre pesquisa e construção de políticas públicas alternativas ao monopólio do saber jurídico e policial tradicionais.

Mesmo com diferentes ênfases, pode-se dizer que estes pesquisadores compartilham do diagnóstico de que a “ciência da segurança pública no Brasil ainda é bastante incipiente e desproporcional em relação aos desafios existentes” (BEATO FILHO, 2012, p. 251), cuja solução passaria seja pela autonomização da criminologia, seja de uma área de saber inter ou transdisciplinar, para a formação de um novo perfil de pesquisador e também de quadros administrativos. Este esforço se conjugou à construção de uma narrativa de fundação da área de estudos e pesquisas. Tal como se poderia falar no caso da ciência política brasileira desde os anos 1970, trata-se de um movimento duplo de afirmação de autonomia disciplinar aliada à criação de um novo discurso sobre a política, por meio do qual se constitui uma comunidade epistêmica, com “identidade, recursos próprios, hábitos institucionais e linguagens próprias e compartilhadas e formas de expressão e presenças públicas” (LESSA, 2011, p. 29).

Narrativas de fundação, formações disciplinares e novos perfis profissionais

A construção dessa narrativa hegemônica constitui um tournant de ideias e sensibilidades nos anos 1980, ligado ao esvaziamento dos sentidos políticos da violência e à valorização da democracia como princípio de mudança institucional e cultural. Ela se constitui na ideia da passagem entre dois momentos na história brasileira recente, a transição democrática e a consolidação democrática, cada um a exigir um posicionamento diferente. Grosso modo, no primeiro momento, preponderaria um discurso de denúncia: crítica à violência de classe praticada pelo Estado, o entendimento do crime como estratégia de sobrevivência e como forma de protesto “pré-consciente” ou “pré-político” das situações de “violência estrutural”. No segundo, um discurso propositivo: o diagnóstico de aumento da criminalidade urbana violenta redireciona o foco para um viés menos politizado e mais técnico, voltado à reforma das organizações estatais, em termos de transparência, eficácia e eficiência. Não se trata de afirmar uma desconsideração dos fatores estruturais envolvidos na produção social da violência, mas de uma mudança de ênfase favorecida por uma maior interlocução com o Estado.

Mas a interpretação sobre esse processo não é unívoca. Ela traduz diferentes olhares sobre as relações entre o histórico de lutas sociais desde os anos 1970 e a gerência do Estado após a redemocratização: o primeiro sentido, ligado à narrativa hegemônica, enfatiza as ligações entre as lutas políticas e a abertura do campo do poder na segurança pública a ideias e quadros de esquerda (TAVARES DOS SANTOS, 2009; LIMA, 2011); o segundo, critica a participação do saber científico em processos de governamentalização e controle social (KARAM, 1996; BATISTA, 2009; LOPES, 2009). Visto de maneira positiva, emerge um contexto universitário plural que se recompõe voltado à discussão dos problemas públicos, comparável ao contexto da Escola de Chicago no início do século XX (MACHADO DA SILVA, 2011) ou ao contexto da criminologia como suporte de políticas públicas nos anos 1960, também nos Estados Unidos (BEATO FILHO, 2011). Por outro lado, o processo abre também margem a críticas, que giram em torno de acusações de cooptação, “policização da Academia” produzida por uma “sociologia colaboracionista” (BATISTA, 2009) ou por um .gerencialismo de esquerda. (CARVALHO, 2014).

Situamo-nos, então, entre duas narrativas em confronto implícito sobre a produção e recepção de ideias a respeito do crime, da violência e da punição por parte do campo intelectual brasileiro, que até então pouco dialogavam.

De um lado, temos a narrativa de cientistas sociais a partir dos estudos empíricos, de variados matizes teóricos, sobre prisão, polícia e criminalidade organizada, que se consolida na eleição definitiva de fundadores e de uma coerência a respeito das personagens, temas e trabalhos a conformarem um cânone. O livro “As Ciências Sociais e os pioneiros no estudo do crime, da violência e dos direitos humanos no Brasil” (LIMA& RATTON, 2011) expressa de modo exemplar a marca desta narrativa. É concedido um destaque especial a Edmundo Campos Coelho e a Antônio Luiz Paixão, que “introduziram o campo da criminologia no Brasil”. A influência destes autores se faria perceber em novos referenciais de análise, na formação “[...] de uma nova geração de cientistas sociais que hoje constitui a comunidade de especialistas nesse campo” e na tarefa precursora de quebra das barreiras entre universidade e polícia, cujas implicações “[...] talvez constituam o mais importante impacto desse novo campo de estudo” (LEEDS, 2011, p. 08). Assim, no conjunto, o livro expressa o projeto de unificação de uma área de estudos e pesquisas em torno do “campo da segurança pública”, que guarda também um viés geracional ligado às disputas em torno da incorporação do legado dos fundadores e do direcionamento dos novos projetos na área[13].

De outro, temos a narrativa proveniente da Criminologia Crítica (BATISTA, 2011), onde são eleitas personagens e teorias fundadoras de uma discussão envolvendo o pensamento jurídico-crítico latino-americano e europeu, em diálogo com teorias sociológicas do desvio norte-americanas. Nesta perspectiva, o positivismo, transfigurado em funcionalismos e estruturalismos sociológicos, seria uma grande permanência a ser combatida, posto que considerado forma de despolitização de conflitos e lutas, “traduções traidoras” de teorias dos centros hegemônicos. O propósito é questionar a naturalização do conceito de criminalidade, em prol de um ponto de vista que enfatize os jogos de poder inerentes aos processos de criminalização, como forma de deslegitimar a “função ideológica dos aparatos de controle social” (ibidem, p. 74). Com isso, pretende-se uma teoria do poder não associada à “demanda por ordem de nossa formação econômica e social” (ibidem, p. 74), para informar uma nova política criminal, vista como orientação articuladora das políticas de segurança pública, da política judiciária e da política penitenciária (BATISTA, 1990).

Nesse sentido, a questão se recoloca como embate entre teorias legitimadoras ou deslegitimadoras da pena e seus promotores: de um lado, o direito penal mínimo e o abolicionismo penal, promovidos por uma “esquerda jurídico-penal” e ancorada no direito alternativo e no garantismo; de outro, uma política de lei e ordem, baseada no tripé das ideologias da defesa social, da segurança nacional e direito penal do inimigo. Neste bloco, são alinhadas teorias que reagiram às proposições da criminologia crítica nos Estados Unidos e na Inglaterra a partir dos anos 1960 e fundamentaram políticas duras de encarceramento e repressão, responsáveis pelo recrudescimento das leis penais e criminalização do “excedente de mão-de-obra” (ibidem, p.103). Estas correntes teriam se espraiado pelo mundo como “criminologia de direita” ou como “realismo de esquerda”, “convocando criminólogos e as ciências sociais a colaborarem com a governamentalização do estado penal” (ibidem, p.104). Esta é a matriz da crítica à cooptação da sociologia brasileira ao “paradigma da segurança com suas consultorias neutras e técnicas” (BATISTA, 2009, p.10), que não incorporaria “a questão da conflitividade social, nem dos processos de criminalização (BATISTA, 2011, p.76). Em termos políticos ela seria representante de uma “esquerda punitiva” ou “esquerda real” que, apoiada na “lenda fundacional do iluminismo, o estado democrático de direito” .ibidem, p.105), teria incidido no erro de apostar em modelos ideais de segurança pública, sem refletir sobre as políticas criminais que os produzem e, por essa razão, legitimaria o “extermínio cotidiano”.

Para além da exatidão ou inexatidão destes argumentos, importa ressaltar que estas narrativas de fundação traduzem uma disputa pela participação legítima em um mesmo debate e a busca por espaços de influência na formação de atores na universidade e no sistema de justiça criminal. É possível discernir, da parte da Criminologia Crítica, uma busca de legitimidade nas Faculdades de Direito e junto aos espaços de crítica e de formulação de leis penais e políticas criminais[14]. Por parte dos cientistas sociais, uma busca de legitimidade na orientação de políticas que conjuguem direitos humanos e segurança pública. Um embate entre comunidades epistêmicas (HAAS, 1992), sobretudo diante de uma perda de espaço da Criminologia Crítica brasileira, ligada à conjugação da perspectiva marxista e foucaultiana na crítica da extensão do direito penal, frente ao avanço de um “realismo de esquerda” ou de uma “corrente liberal” (PRADAL, 2013) composta por cientistas sociais.

As clivagens entre “criminologias” críticas e aplicadas se demonstram na adoção de diferentes referenciais teóricos e em diferentes concepções sobre o papel a desempenhar na concorrência pelo monopólio do saber sobre segurança pública. No plano acadêmico, estas disputas têm alimentado a formação de uma série de disciplinas científicas, assim como propostas de nomeação da área de saber (Criminologias, Sociologias e Antropologias do crime, da violência, da conflitualidade...). Em nossa interpretação, estas diferentes proposições apontam para uma área de estudos e pesquisas em tensão entre esforços de reconfiguração crítica do modelo de Ciências Criminais integradas ao Direito Penal e um modelo de Criminologia independente, como formação profissional na área de gestão da segurança pública e justiça criminal. Dois modelos não necessariamente contraditórios que encontraram uma solução de compromisso no “campo da segurança pública”, no seio do qual se disputam orientações políticas, abertura de espaços na administração pública e formação de redes de pesquisa e ensino. Nesse sentido, a formação de cânones e narrativas de fundação se estabelecem em momento de maior estabilização destas comunidades epistêmicas e de disputas pela ocupação de posições institucionais tendo em vista a reprodução destes modelos.

Nota-se, entretanto, que apesar dos esforços de articulação de pesquisadores, movimentos sociais e atores estatais há uma forte continuidade de agendas políticas de resistência às mudanças institucionais; sobretudo, quando o intento é atuar nos pontos de contato entre as dinâmicas dos subsetores da segurança pública e da política penitenciária, no sentido de uma modificação sistêmica da política criminal implementada no país. Isto impõe a necessidade de repensar os limites e as divisões de fronteiras entre comunidades epistêmicas frente ao desafio de mudança social.

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Notas

[1] Trata-se de entender como grupos sociais se organizam no espaço público para chamar atenção do que consideram problema, definindo os seus contornos e os atores autorizados para intervir.
[2] Não se afirma o ineditismo da “violência urbana” como preocupação pública, mas o início de um novo contexto de sua expressão.
[3] Há uma série considerável de revisões e trabalhos acadêmicos sobre a evolução das discussões neste setor de estudos (ADORNO, 1993; ZALUAR, 1999; CARVALHO, 1999; KANT DE LIMA et al, 2000; MISSE, 2006; LIMA, 2009; ADORNO & BARREIRA, 2010). A análise deste material exige um trabalho à parte.
[5] Eventos como as chacinas de Acari, da Igreja da Candelária e de Vigário Geral.
[6] Seria preciso situar ainda o Núcleo de Pesquisa das Violências (NUPEVI/UERJ); o Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU/UFRJ). o Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade (CEVIS/IESP) e o Centro Latino-Americano de Estudos de Violência (CLAVES/Fiocruz).
[7] A CTV foi criada em 1983, como resposta a intervenções governamentais e revoltas em prisões (TSUNODA, 2013).
[8] O GT reunia juristas e cientistas sociais que constituiriam redes que até a atualidade mantêm certas distâncias, constituídas na definição de ‘’critérios de grupo’’ de parte a parte.
[9] Operação marcada pela intervenção do Exército na segurança pública do Rio de Janeiro em 1992.
[10] São criadas: a Revista Brasileira de Segurança Pública; a Revista Sistema Penal e Violência; a Revista Segurança, Justiça e Cidadania;e a Dilemas – Revista de Estudos de Conflito e Controle Social.
[11] Criados em 2010 pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Nesta área de estudos, dois INCTs foram aprovados: Violência, Democracia e Segurança Cidadã e Administração Institucional de Conflitos. Um terceiro fora projetado, mas não instituído: Espaços Urbanos e Gestão de Políticas Públicas de Segurança.
[12] Sobre relação entre cientistas sociais e cargos de governo, cf. Vasconcelos (2015).
[13] Para a consolidação dessa narrativa cf. Freitas & Ribeiro (2013, 2014).
[14] A propósito da Criminologia Crítica nas Faculdades de Direito cf. Garcia (2014).
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