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Processo decisório e conflitos: questões e reflexões a partir dos megaprojetos*
Decision-making and conflicts: questions and reflections from megaprojects
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 5, núm. 9, pp. 113-140, 2017
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos


Recepção: 20 Dezembro 2016

Aprovação: 10 Abril 2017

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.193

Resumo: O objetivo central do artigo é analisar alguns aspectos da tomada de decisão em megaprojetos. Esta temática possui relevância, na medida em que poucos trabalhos têm se dedicado aos processos decisórios que envolvem estas grandes obras. O estudo de como as decisões são tomadas, quais os grupos sociais envolvidos ou excluídos, constituem questões determinantes para que se possa compreender o incremento dos megaprojetos na atualidade. Nesta perspectiva, tornou-se necessário descrever o que são estas obras, ressaltando o caráter crítico presente na reflexão de grande parte dos autores pesquisados, para em seguida abordar de que forma ocorre o processo decisório, a partir dos fenômenos da subestimação dos custos, da superestimação dos benefícios, da subestimação dos impactos, e dos interesses divergentes que se encontram presentes.

Palavras-chave: megaprojetos, conflitos, processo decisório.

Abstract: The main objective of this article is to analyse some aspects of decision-making in megaprojects. This theme has relevance, since few studies have been dedicated to the decision-making processes that involve these major infrastructures. The study of how decisions are taken, which social groups are involved or excluded, constitute determinant factors for understanding mega projects in the present time. With this perspective, it is necessary to describe what these infrastructures are, emphasizing the critical stance present in most of the researched authors, to then discuss how the decision-making process occurs, from the phenomena of underestimation of costs, of overestimation of benefits, the underestimation of impacts, to the divergent interests that are present.

Keywords: Megaprojects, conflicts, decision-making.

Introdução

Este artigo constitui parte da tese de doutorado em Sociologia, concluída em 2016, cuja temática tratou de pesquisar e compreender aspectos da tomada de decisão em megaprojetos (SILVA, 2016). Como parte desta pesquisa, pretendeu-se realizar a reconstrução histórica do Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte (Rio Xingu). O seu objetivo consistiu na análise do processo decisório que conduziu à sua edificação, e das motivações que levaram a esta deliberação. Destacou as principais mudanças políticas, econômicas, sociais e ambientais que ocorreram no Brasil, ao longo das últimas três décadas, e que proporcionaram alterações substanciais no projeto desta barragem.

As reflexões presentes neste artigo representam uma tentativa e um esforço de apresentar algumas questões e debates realizados na tese de doutorado. Nesse sentido, centra-se na discussão que envolve a construção de megaprojetos. Mais concretamente, trata-se do desafio de descrever e tentar esclarecer o que se entende por megaprojetos e como se configura o processo decisório destas grandes obras.

A reflexão não se cingirá aos grandes projetos brasileiros ou latino americanos, pois interessa analisá-los enquanto expressão máxima de um discurso e de uma ideologia que ultrapassa países e continentes.

Nesta perspectiva, não se pretende homogeneizar experiências, nem se apresentarão os megaprojetos enquanto sinônimo de desastres. Optou-se por focar a análise nos processos decisórios, compreendendo como as decisões são tomadas, quem participa no processo, quem é silenciado, quais os grupos beneficiados, e as razões por que estas obras são tão contestadas. Estas perguntas correspondem às questões centrais que pretendem entender as razões e os incentivos que subjazem à construção destas grandes obras.

No Brasil, existe uma ampla literatura sobre a edificação dos grandes projetos, especialmente a partir da década de 80. Esses estudos foram realizados por pesquisadores, na sua maioria sociólogos e antropólogos, e marcaram o início da configuração desse campo de estudo no país. Pode-se citar trabalhos emblemáticos realizados por autores como: Lygia Sigaud, Gustavo Lins Ribeiro, Carlos Vainer, Guiomar Germani, Eduardo Viveiro de Castro, Sonia Barbosa Magalhães, Edna Castro, entre muitos outros[1]. As pesquisas realizadas centraram-se na sua grande maioria nos impactos e transformações sociais acarretadas por grandes projetos, em especial hidrelétricas, construídas em todo território nacional e também na América Latina.

Nos últimos anos pôde se perceber o incremento de trabalhos e pesquisas sobre este tema em diversos países. No Brasil, este ocorreu devido principalmente à implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) a partir do ano de 2007. O Programa pretendia retomar o planejamento e estabeleceu um plano de investimentos dividido em três eixos de infraestrutura: 1) logística; 2) energética; 3) social e urbana (GOVERNO FEDERAL, 2007, p. 7). No ano de 2011, o PAC iniciou uma segunda fase, e neste período, contou com uma carteira de cerca de 37 mil megaprojetos e investimentos expressivos.

Desta forma, justifica-se que o interesse pelo tema decorre do fato desta problemática ter reaparecido com grande intensidade nesta primeira década do século XXI, configurando-se num campo de estudo ao qual sociólogos, economistas, engenheiros, planejadores urbanos, entre muitos outros pesquisadores, se têm dedicado, para compreender as questões técnicas, econômicas, sociais, políticas e ambientais que envolvem estas grandes obras.

Além dos pesquisadores e estudiosos interessados, os megaprojetos também sempre atraíram a atenção e causaram o deslumbramento de grande parte das populações nos mais variados países. A represa de Assuã, o Canal do Panamá, a Barragem de Itaipu, a Sydney Opera House e o Túnel do Canal da Mancha são alguns exemplos de megaprojetos que foram construídos entre o início e o final do século XX, e que são por diversas vezes considerados “maravilhas da modernidade”. No que corresponde ao passado, poder-se-ia citar centenas de obras e edifícios monumentais que representam até hoje símbolos inequívocos de ousadia e poder.

Na concepção de Flyvbjerg, Bruzelius e Rothengatter (2002a; 2003), os megaprojetos não constituem apenas grandes obras de engenharia, mas também fenômenos que podem ser encontrados em qualquer parte do mundo. Para os autores, independentemente do lugar a que nós formos, somos confrontados com este “novo animal político e físico”, e todos os países parecem estar comprometidos com a promoção desse “animal” no cenário da decisão política.

A primeira seção do artigo pretende iniciar uma discussão sobre os megaprojetos, destacando como podemos defini-los. Posteriormente, aborda-se de que forma ocorre o processo decisório destas grandes obras, a partir da reflexão sobre o fenômeno da subestimação dos custos, da superestimação dos benefícios, da subestimação dos impactos e dos interesses divergentes.

A dificuldade em defini-los

Quando se pensa nos megaprojetos contemporâneos, não parece difícil imaginar o que estes representam, e também pensar na multiplicidade de exemplos que se poderiam associar a essas grandes obras. No entanto, ao mesmo tempo que tal conceito parece simples de assimilar, afigura-se complexo defini-lo, principalmente devido à variedade de elementos que se resguardam sob a denominação “megaprojeto”. No que corresponde ao seu significado, Lynch e Gellert (2003) frisam que as definições divergem, e que a maioria delas são inexatas e associadas a projetos específicos.

Na literatura acadêmica o termo megaprojeto é encontrado principalmente em autores de língua inglesa, espanhola ou autores nórdicos. Nos países de língua portuguesa, a utilização é relativamente recente, e poucos autores utilizam o termo. Na produção acadêmica brasileira pode-se encontrar uma multiplicidade de siglas e expressões que definem de forma genérica o que neste artigo é chamado de megaprojeto. Os termos utilizados são: Grandes Projetos, Grandes Projetos de Desenvolvimento, Grande Projeto de Investimento (GPI) (VAINER; ARAÚJO, 1992), Projeto de Grande Escala (PGE) (RIBEIRO, 1987), entre outras nomenclaturas.

No que diz respeito à sua significação enquanto conceito, não existe uma acepção geral. Alguns autores, na ausência de uma definição conceitual, estabeleceram os seus próprios critérios de análise. Lynch e Gellert (2003) definem os megaprojetos como projetos que transformam paisagens, intencional e profundamente, de modo claramente visível, e que requerem a aplicação coordenada de capital e poder estatal. Assim, os megaprojetos podem ser definidos analiticamente a partir de quatro diferentes tipos: 1) Infraestrutura; 2) Extração; 3) Produção; e 4) Consumo. Mencionam que estes projetos ocorrem também em combinação, ou seja, uma atividade pode estar associada a vários megaprojetos diferentes. Citam como exemplo o complexo bauxita-alumínio, na medida em que inclui minas, estradas, ferrovias, indústrias e usinas hidrelétricas (LYNCH; GELLERT, 2003).

Para Vainer e Araújo (1992), o Grande Projeto de Investimento (GPI) consiste numa expressão não muito precisa, que procura caracterizar projetos que mobilizam em grande intensidade elementos como capital, força de trabalho, energia e território. Para os autores, estes referem-se a grandes unidades produtivas,

a maioria das quais para o desenvolvimento de atividades básicas, como arranque ou início de possíveis cadeias produtivas, para a produção de aço, cobre e alumínio, outras para extração de petróleo, gás e carvão, dedicadas a sua exploração em bruto e/ou transformação e refinarias ou centrais termelétricas … grandes represas e obras de infraestrutura associadas ou não aos exemplos anteriores … complexos industriais portuários, e em outra escala, usinas nucleares, geotérmicas, etc (LAURELLI, 1987, p. 133 apud VAINER; ARAÚJO, 1992, p. 29).

Da mesma forma, Altshuler, Luberoff, entre outros autores, inscrevem os megaprojetos numa ampla variedade de projetos em áreas como planejamento urbano, transporte e gestão dos recursos hídricos. Utilizam este termo para evidenciar as obras de grande escala e onerosas, nas quais enfatizam o caráter infra-estrutural (ALTSHULER; LUBEROFF, 2003). Pode-se considerar Flyvbjerg (2005) como um dos autores que mais se tem dedicado ao estudo dos megaprojetos contemporâneos. Para o autor, os megaprojetos são aqueles que recebem grandes investimentos financeiros e atraem um nível de atenção por parte do público ou são alvo de interesse político devido aos substanciais impactos diretos e indiretos sobre a comunidade, meio ambiente e orçamentos.

No que corresponde às suas características principais, Frick (2005) resume-as a partir de “Seis C” - “colossal, costly, captivating, controversial, complex and control”.[2] O caráter colossal traduz-se na sua dimensão e também na visibilidade alcançada. A questão financeira – mais especificamente, os elevados custos frequentemente subestimados – constitui a segunda característica. A terceira relaciona-se com a primeira, visto que o caráter cativante pode ser explicitado por meio da valorização tecnológica, da sua concepção estética e do seu design, estabelecendo uma analogia com a dimensão dessas grandes obras.

A autora considera ainda o caráter controverso destes projetos, marcado pelos interesses divergentes dos diversos grupos sociais envolvidos, pelos impactos socioambientais, pelas promessas muitas vezes não cumpridas por parte dos interessados na sua edificação, pelos deslocamentos compulsórios e por inúmeras transformações sociais, ambientais e culturais que ocorrem antes, durante e depois de sua construção. E por fim, a complexidade e o controle, ambos intrinsecamente associados aos processos decisórios. A complexidade prende-se com os riscos e incertezas inerentes ao planeamento destes projetos, e o controle diz respeito aos decisores (FRICK, 2005).

Nesta perspectiva, uma das principais questões a ser abordada relaciona-se com a atualidade desta discussão. Ao analisar os megaprojetos contemporâneos, pode-se considerar que este é um “novo” fenômeno que reproduz características do passado, ou um “velho” fenômeno atualizado. A partir da revisão bibliográfica realizada, a partir de um conjunto de autores com diferentes nacionalidades e experiências empíricas internacionais, constatou-se que estas grandes obras se configuram enquanto fenômeno mundial, e que não correspondem a uma temática nova. O que parece “novo” é a escala dos conflitos na atualidade e a convicção de que o passado não serviu de experiência para que não se cometessem velhos e novos erros.

Com efeito, alguns dos autores pesquisados defendem que o “fenômeno” denominado megaprojeto não é de todo inédito, e representa a mesma lógica econômica e política dos projetos construídos no passado. Porém, para outros estudiosos, estas grandes obras contemporâneas têm desempenhado um importante papel no jogo político e econômico, e têm sido utilizadas como um ótimo pretexto para realizar bons negócios. Independentemente da discordância de opiniões, o que parece evidente é que se vive numa “nova” era de megaprojetos, marcada por complexidades e incertezas, em que, em muitos casos, a característica mais proeminente consiste na incoerência da sua própria existência.

Um fato considerado importante, já aqui mencionado, corresponde à comprovação de que essas obras não são monumentais apenas no seu tamanho, mas também nos seus impactos financeiros, sociais e ambientais. Aludindo-se ao título do texto de Ribeiro “Cuanto más grande mejor” (1987), ou à expressão utilizada por Naredo “Cuanto más caro mejor” (2009), ao se analisar a literatura sobre os megaprojetos percebe-se que, em muitos casos, “quanto maior e mais caro o projeto” (FLYVBJERG et al. 2003), pior será o seu desempenho, marcado por derrapagens financeiras, transformações irreversíveis no meio ambiente, impactos negativos nas populações locais, e processos decisórios antidemocráticos. A atenção será agora direcionada ao processo decisório destas grandes obras, em especial, de que forma este ocorre e como se configura.

O processo decisório

A temática da tomada de decisão corresponde a um campo de estudos vasto que compreende diversas áreas do saber e possui abordagens diferenciadas. Ao pesquisar sobre o tema, pôde-se perceber que, apesar da literatura apresentar um conjunto de concepções variadas, este conceito nunca foi claramente definido. A sua significação encontra-se, na maioria dos casos, associada aos estudos na área da administração e da teoria das organizações. Nesta, o processo decisório surge associado ao processo de escolha de um indivíduo ou de grupos, especialmente ao aspecto racional da decisão.

A origem do termo advém do latim decisio; o sentido corresponde a uma mudança de estado, pois destina-se a uma determinação ou resolução que se toma em relação a uma determinada coisa. Além das análises que enfatizam a decisão como fruto da racionalidade humana, também se podem encontrar abordagens que citam aspectos políticos e sociais. Na verdade, não existe uma teoria sobre o estudo da tomada de decisão, pois esta corresponde a uma interdisciplinaridade que engloba diversas áreas do conhecimento, tais como a matemática, a sociologia, a psicologia, a economia e a ciência política.

No que corresponde aos aspectos sociológicos, Urfalino (2005) destaca que para se encetar uma reflexão sobre a decisão, urge colocar-se uma questão inicial. O autor se interroga se um conceito como este, que agrupa tantos fenômenos dispares, não poderia ser abarcado numa só teoria. Considera legítimo questionar-se o valor de uma palavra que abrange fenômenos tão diversos como o comportamento eleitoral, a escolha do consumidor, as decisões políticas, as escolhas estratégicas nas empresas ou ainda as decisões diplomáticas. Neste artigo não se tem a pretensão de refletir sobre a complexidade que envolve estes diferentes fenômenos. A análise incidirá sobre as características que constituem um processo decisório específico, a deliberação de se edificar um megaprojeto.

O “fenômeno” da subestimação dos custos

No que se refere aos desequilíbrios financeiros, Brockmann e Girmscheid (2007) evidenciam que a lista dos empreendimentos com custos excessivos possibilita visualizar um “quem é quem” (FLYVBJERG et al., 2003) neste campo. Enunciam alguns projetos e o seu percentual de custo subestimado. Citam o Canal de Suez (1,900%), a Sydney Opera House (1,600%), o Great Belt Túnel (110%), o Túnel do Canal da Mancha (80%) e o Boston Arterey Túnel (196%) (BROCKMAN; GIRMSCHEID, 2007). Para os autores, a razão para que tenha ocorrido um elevado aumento dos custos, em relação ao valor inicial do projeto, pode explicar-se por um planejamento otimista, erros e mentiras políticas.

Destes exemplos, o “fenômeno” de subestimação revelou-se mais emblemático no que concerne à derrapagem financeira dos custos do Canal de Suez. O Canal foi concluído em 1869, os custos de construção reais foram vinte vezes maiores do que a primeira estimativa, e três vezes mais avultados do que as estimativas de custos para o ano anterior ao início da sua construção. Esse megaprojeto é considerado emblemático pela sua grandeza e, como se verá adiante, a razão de os seus custos terem sido subestimados não se deveu ao fato de se tratar de um projeto inaugurado no século XIX. A subestimação dos custos pode ser considerada uma característica inerente aos megaprojetos, independentemente do seu período histórico.

Nesse processo, a desinformação e alguns erros cometidos durante o planejamento e edificação destas obras, em muitos casos, são intencionais e podem ser considerados prática recorrente. Aguilera (2009) evidencia que, com mais frequência do que a desejável, os megaprojetos assentam em “megamentiras” e que, como consequência, jamais resolvem os problemas por eles visados. A mentira, ou os argumentos falsos e injustificados convertem-se em prática habitual. A mentira como um “argumento” frequente contra os megaprojetos é apresentada com toda a clareza, pelo menos na literatura. No que respeita às razões para a ocorrência de tal subestimação de custos, Aguilera (2009) menciona que o motivo principal consiste na persuasão dos cidadãos de que os projetos não são tão dispendiosos como parecem, o que ajuda a legitimar, assim, a tomada de decisão sobre a sua construção. Após a decisão ser aprovada, os responsáveis pelo empreendimento teriam tempo para posteriormente “justificar” os aumentos de custos devido a qualquer tipo de contingência.

Como forma de analisar a eficácia e outras questões relacionadas com os megaprojetos, Flyvbjerg e sua equipe focaram-se nos projetos de infraestruturas de transportes, mas afirmam que a pesquisa comparativa indicou que os problemas, as causas e as soluções identificadas podem ser aplicadas aos projetos de caráter infraestrutural tais como barragens, e aos de caráter cultural e desportivo, tais como megaeventos, entre outros. Os pesquisadores analisaram amostras de 258 projetos no valor de 90 milhões de dólares, representando diferentes tipos de empreendimentos, regiões geográficas e períodos históricos. Este banco de dados é considerado único, e também o maior e mais rico do seu tipo, ao incluir mais de vinte nações em cinco diferentes continentes.

Na pesquisa realizada, o objetivo principal do autor foi tentar responder às seguintes questões de um modo estatisticamente válido: Quão comum e quais são as diferenças entre as estimativas dos custos reais e estimados em projetos de infraestrutura de transporte? As diferenças são significativas? São simplesmente erros aleatórios? Ou existe um padrão para estas diferenças, o que sugere outras explicações? Quais são as implicações para a política e para o processo de tomada de decisão? (FLYVBJERG et al., 2002b). Os autores ressaltam que, após o resultado da pesquisa, conclui-se com grande significância estatística que as estimativas de custo utilizadas para decidir se tais projetos devem ou não ser construídos são enganosas.

A partir destas análises empíricas, os autores têm afirmado que, considerando apenas os custos excessivos, nove em cada dez projetos pesquisados geraram problemas, ou seja, noventa por cento. A mentira é entendida como um engano intencional, e os autores concluem que o erro de subestimar os custos é muito significante, mais comum e maior do que o erro de superestimar os custos. Consideram que a subestimação dos custos no momento da decisão de se construir um megaprojeto de transporte é a regra e não a exceção. Aumentos de custos frequentes e substanciais configuram-se no resultado (FLYVBJERG et al., 2002b).

Nesta perspectiva, não se pode deixar de enfatizar que a implementação destes megaprojetos na atualidade constitui um tema complexo, e este fenômeno não pode ser analisado apenas com base nos aspectos que envolvem a subestimação dos custos. Além desta, a superestimação dos benefícios também assume grande importância no processo decisório. Considera-se que, embora estas sejam as características principais e talvez as mais visíveis dos megaprojetos, não explicam os motivos que levam à sua construção. Existem diversos outros fatores que ajudam a compreender as razões para que estas grandes obras sejam tão controversas e criticadas na atualidade. A irônica “Equação dos Megaprojetos” elaborada por Flyvbjerg apresenta um contributo para essa reflexão.


Figura 1
"Equação do Megaprojeto"
(FLYVBJERG, 2007, p. 10).

O resultado final desta fórmula parece importante, ao considerar que a aprovação de muitos megaprojetos em todo mundo dependeu de decisões econômicas e políticas que não levaram em consideração aspectos tão importantes quanto as transformações no meio ambiente e na vida das populações futuramente afetadas. Ao analisar-se a forma de implementação dos megaprojetos, percebe-se que a equação, independentemente das suas variáveis, reverte sempre para o mesmo resultado, ou seja, a aprovação do projeto. Nesta perspectiva, não são os melhores projetos que são aprovados, mas os que atendem aos interesses dos políticos, empresários e demais interessados na sua construção.

A subestimação dos impactos

Vainer (2011) aponta que, do ponto de vista qualitativo, o megaprojeto é uma intervenção que rompe com as práticas e relações vigentes, regulares e habituais que ocorrem no decurso normal do cotidiano de um determinado espaço social. Menciona algumas idéias fundamentais para que se possa refletir sobre estes empreendimentos. A primeira delas consiste na idéia de ruptura e de que estas grandes obras, na maioria dos casos, resultam de uma ação externa sobre o espaço social e econômico no qual serão implantadas (Ibid.).

A noção apresentada por Scott (2009) chamada de “descaso planejado”, corrobora a ideia apresentada acima. Esta designação exprime a relação desigual entre as populações afetadas e os megaprojetos, e foi designada a partir da experiência empírica vivenciada pelo autor.

Segundo Scott esta,

é a descrição mais sucinta que encontro para descrever a observação da condição de agricultores que se tornaram atingidos e depois reassentados antes, durante e depois da construção da barragem Luiz Gonzaga nos anos oitenta. O rio virou lago, cumprindo simbolicamente a profecia, repetida na boca do povo, do Sertão virar mar. Dezenas de milhares de habitantes da beira do Rio São Francisco tiveram a sua vida profundamente alterada em nome da melhora alheia (SCOTT, 2009, p.9).

A percepção de que estes projetos representam interesses políticos e econômicos externos à realidade na qual são planejados e implementados é muito clara na reflexão da grande maioria dos autores pesquisados. Outro aspecto enfatizado refere-se aos impactos e à metamorfose que estas obras acarretam para o meio ambiente e as populações afetadas. Sobre esta temática a literatura é extensa, repleta de estudos de caso e pesquisas empíricas. Os estudos possuem diferentes perspectivas teóricas, embora, na sua quase totalidade, atribuam uma conotação negativa ao desempenho destas grandes obras, principalmente no que corresponde ao desfasamento entre os benefícios anunciados e os resultados obtidos após a sua conclusão.

Além da subestimação dos custos e da superestimação dos benefícios, como mencionado, também ocorre uma subestimação dos impactos. Estes também podem ser considerados enquanto custos materiais/ou imateriais.[3] Muitos impactos não são considerados durante a fase de desenvolvimento do projeto, e em muitos casos, têm sido severamente mal calculados. Desta forma, ao mesmo tempo em que os impactos socioambientais são subestimados, os efeitos do chamado “desenvolvimento regional” são superestimados e muitas vezes, estes não são sequer gerados. O que se tem presenciado de forma recorrente consiste numa sobrevalorização no que corresponde à importância e aos benefícios do empreendimento para a região/país, e numa atitude de desprendimento e desvalorização das consequências que estas obras possam acarretar para as populações locais e para o meio ambiente.

Esta prática expropriante e opressora poderia causar surpresa a priori, visto que, para que um megaprojeto seja construído, independentemente do país, uma série de estudos são necessários e, em muitos casos, legalmente imprescindíveis. O desequilíbrio entre os fatores super/subvalorizados ocorre, mesmo após a realização destes estudos. Estes consistem em análises de custo-benefício, análises financeiras, estudos/relatórios de impacto ambiental, entre outros necessários para a viabilidade e preparação do megaprojeto. A sua simples realização, contudo, não significa que estes representem análises completas e consistentes.

Flyvbjerg et al. (2003) citam alguns exemplos, como a oposição na Escandinávia à edificação da Ponte Øresund, considerada a maior ponte rodoferroviária da Europa, e a resistência à construção do Great Belt. No início, os promotores dos empreendimentos ignoraram ou minimizaram as questões ambientais, mas acabaram sendo forçados por grupos ambientalistas e por protestos públicos a inscreverem estas questões “on the decision-making agenda”.

Especialmente nos países do Sul, a edificação destas grandes obras consolidou o processo de apropriação dos recursos naturais e produziu uma espécie de epistemicídio (SANTOS; MENESES, 2010), ou seja, a destruição de formas de saber, e a inferiorização de outras, entre outros processos de aniquilação cultural das populações indígenas e demais povos tradicionais. No presente, observa-se que o padrão vigente de edificação de megaprojetos tem proporcionado, de modo recorrente, as mais variadas violações de direitos humanos (CDDPH, 2010)[4].

Na América Latina, poderia citar diversos casos em que os megaprojetos têm sido severamente questionados. A implementação do Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte pode ser considerada um exemplo emblemático das controvérsias que estes megaprojetos geram na atualidade. A história desta barragem, desde o seu princípio, foi assinalada por um conjunto de dúvidas, conflitos, incertezas e disputas. No Brasil não se tem conhecimento de um outro megaprojeto que, em termos temporais, tenha tido uma trajetória tão longa, e uma resolução tão controversa. Além dos aspectos relativos à sua longevidade, o Ahe Belo Monte é considerado o segundo maior aproveitamento hídrico construído no país e o terceiro maior do mundo.

Outras barragens também construídas no país ou em fase inicial de implementação, na Região Amazônica, tais como Jirau (Rio Madeira), Santo Antônio (Rio Madeira), Complexo Teles Pires (Rio Teles Pires), Complexo Tapajós (Rio Tapajós), entre outras, são consideradas projetos estratégicos e importantes do ponto de vista do Setor Elétrico. Estes empreendimentos, contudo, têm sido pautados por inúmeros conflitos, e são alvo de denúncias por parte dos movimentos sociais, povos indígenas e populações afetadas, tanto pelos impactos e transformações inerentes à sua construção, como também pela crítica à falta de participação pública nos processos decisórios.

Estes casos revelam – embora sob diferentes realidades sociais, políticas e econômicas – características comuns, e principalmente uma lógica similar no que se refere à construção destas grandes obras. Nos exemplos mencionados, o conflito encontra-se sempre presente. A interrogação centrou-se precisamente em torno desta constatação: por que os megaprojetos são sempre tão controversos? Qual a razão para ocorrerem tantos protestos e mobilizações contra a sua edificação em todo o mundo? A hipótese corresponde à percepção de que estes projetos são planejados para avançarem “custe o que custar”, e os enganos e a falta de informação que os envolvem fazem parte desta estratégia de existência a qualquer custo.

As relações de poder que envolvem a temática dos megaprojetos parecem ser um dos principais elementos a ter em conta na análise destas grandes obras. Estas não correspondem apenas à dominação da natureza pelo homem, mas também à edificação destes projetos enquanto símbolos de força e soberania. Roitman (2009) descreve os megaprojetos como obras “faraônicas”, independentemente de seu valor histórico-artístico e tecnológico, em forma de palácios, templos, mausoléus, tais como as pirâmides ou o Taj Mahal. Segundo o autor, “nem tumbas, nem provas de amor justificam a sua existência” (Ibid., p. 209). Com efeito, na maioria das vezes os admiradores destes monumentos não se apercebem que a magnitude daqueles é quase sempre proporcional às transformações que eles implicam.

Como observado, os megaprojetos são uma constante na história. Na antiguidade havia uma lógica de ostentação e de poder, mas sob o capitalismo, os interesses econômicos imperam (NAREDO, 2009,p. 211). Segundo o autor, precisa-se de poder para realizá-los, e a sua edificação depende da relação entre poder político e econômico. Pressupõe-se um acordo, um pacto, entre a sociedade política e uma parte da sociedade civil. Desta forma, já não se trata do poder político materializado na imagem de um Faraó, de um imperador ou de um déspota. Para Naredo, “esta circunstância, sob o capitalismo, pode reproduzir-se quando o governo se subsume a uma nova tirania, que usurpa ao soberano a função de alocação de recursos no desenvolvimento e no projeto do país”[5] (Ibid., loc. cit.).

Um dos elementos comumente presentes para justificar a construção dos megaprojetos no capitalismo atual consiste no discurso de que estas grandes obras representam o interesse nacional e se assumem enquanto fundamentais para o crescimento e desenvolvimento. Este discurso assinala uma cultura otimista e autoritária de tomada de decisão, ao reforçar o argumento de que os benefícios gerados por estes empreendimentos representam benefícios para todo o país. Neste processo, as populações potencialmente afetadas são imediatamente excluídas do processo decisório e frequentemente encaradas como entraves ao processo de apropriação territorial.

Estes empreendimentos têm se configurado enquanto possibilidades de acumulação e de transformação da paisagem física, e têm favorecido amplamente os diversos interesses de grupos econômicos nacionais e internacionais em detrimento das populações locais. Assim sendo, esta opção não se afirma por questões de progresso e de modernidade, mas pelas próprias necessidades do capitalismo. Neste processo desigual, os interesses divergentes configuram-se enquanto uma das principais questões.

Os interesses divergentes

No que corresponde aos megaprojetos, as transformações do território e a apropriação deste têm gerado controvérsias e representam uma arena de conflitos, onde diferentes interesses estão presentes e os recursos de poder são extremamente desiguais. O embate constitui o elemento central neste processo, em que, amiúde, as decisões centralizadoras contribuem para que os processos sejam altamente conflituosos. Para Naredo,

a atual mitologia da produção e do crescimento serve sobretudo para ocultar a nova distribuição em curso, em que os megaprojetos em carteira por parte dos grupos empresariais representam uma espécie de “espada de Dâmocles”, muitas vezes extravagante e alheia às condições de vida da população, que paira sobre as nossas sociedades, chamadas finalmente a pagar pelos erros do festim de comissões, mais valias e margens diversas realizadas pelos seus promotores e/ou construtores (NAREDO, 2009, p.14)[6].

No que diz respeito a este conflito de interesses, pode-se ressaltar os grupos políticos, os grupos empresariais e as grandes construtoras. O papel destas empresas é central para se entender o alcance de todo este processo. Ribeiro (1987) mencionou, já na década de 80, que é nelas que se encontra uma grande parte do conhecimento acumulado sobre o desenvolvimento de megaprojetos. As construtoras executam as obras e necessitam de novos projetos para garantirem um retorno cada vez maior de capital (RIBEIRO, 1987, p. 23). Estas empresas continuam a desempenhar uma função central no jogo de interesses que envolvem os megaprojetos contemporâneos, e portanto, a análise de Ribeiro, em muitos aspectos, parece refletir o contexto atual.

Sobre esta simbiose, diversos autores intentaram analisar a relação entre os megaprojetos e as construtoras responsáveis por sua edificação. No caso espanhol, Naredo descreveu casos da construção de rodovias e de usinas nucleares nos anos setenta (NAREDO, 2009, p. 29).[7] No Brasil, as construtoras já assumiam um papel central no passado, mas atualmente, com enormes empreendimentos sob construção, o protagonismo assumido por estas empresas acentua-se consideravelmente.

Nesse processo, uma das principais questões prende-se com os donativos financeiros que estas empresas fazem aos partidos políticos. Tal prática perpetua o jogo dos interesses dominantes, no qual as empresas “doadoras” têm nos contratos com o setor público a principal fonte de suas receitas. A decisão de se construir um empreendimento é regida por lógicas econômicas e políticas, e estas ignoram frequentemente as necessidades dos cidadãos.

Um exemplo paradigmático desta relação entre empreiteiras e partidos políticos ocorreu na construção do Ahe Belo Monte. As principais construtoras responsáveis pelas obras da usina estão sendo acusadas de pagamento de propina e de vultuosas doações para as campanhas eleitorais. Nas eleições de 2014, Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa e Queiroz Galvão, as quatro maiores das 11 empreiteiras participantes do Consórcio Construtor de Belo Monte, doaram juntas, mais de R$ 50 milhões para as campanhas de pelo menos dois candidatos à Presidência da República.

Como destacou no ano de 2015 a jornalista Eliane Brum “a marca da corrupção no Brasil atual, assim como da relação explosiva entre o Estado e as empreiteiras, tem como símbolo a Operação Lava Jato e a Petrobras, para onde todos os olhos estão voltados”.[8] As empreiteiras investigadas na Lava Jato por desvios de recursos na Petrobras são as mesmas que construíram/constroem Belo Monte. Com efeito, a relação entre os interesses econômicos, políticos e a construção de megaprojetos nunca esteve tão presente.

Características principais do processo decisório

Diversas pesquisas recentes têm enfatizado que, independentemente do contexto econômico, social, político e jurídico em que ocorrem os megaprojetos, estes são marcados por processos decisionais complexos, longos e controversos. Na literatura, algumas características podem ser consideradas emblemáticas e recorrentes nos países do Sul, como também nos países do Norte. Os autores apontam: a falta de transparência, a falta de informação/ou desinformação, a complexidade técnica e social, a ausência de uma avaliação ex-ante, relações top down, longa duração dos projetos e falta de participação pública (LEIJTEN; BRUIJIN, 2008; PRIEMUS, 2010; FLYVBJERG et al., 2003). Estas características foram evidenciadas a partir das experiências empíricas dos autores em seus países de origem, mas também através de pesquisas com dimensão internacional.

Para Priemus (2010) a tomada de decisão em megaprojetos é assolada por uma série de problemas. O autor ressalta que algumas dessas “armadilhas” (pitfalls) surgem nos estágios iniciais do processo decisório, como por exemplo: a falta de alternativas, a existência de ambiguidades no escopo do projeto, a descontinuidade política, a não divulgação das informações contestadas, entre muitas outras questões. Afirma ainda que todo tipo de incerteza surge durante os longos períodos entre o planejamento e o início da operação dos projetos.

Quadro 2
Características do processo decisório

A desinformação seria, para os autores, um dos principais problemas que constituem o processo decisório de um megaprojeto. Leijten e Brujin (2008) destacam que a informação prestada se configura como essencial, não importando se tais tomadas de decisão não evidenciam os aspectos técnicos da implementação, os riscos, os impactos econômicos ou ecológicos, pois elas afirmam-se como imprescindíveis ao longo de todo o processo. Os autores europeus, em sua maioria, aludem à desinformação como uma consequência que irá prejudicar a tomada de decisão, ou seja, os decisores, ao serem mal informados, ou por não terem informações fiáveis, acabam por cometer erros durante o processo.

O caso brasileiro apresenta uma realidade diferente. De fato, a informação é um elemento estruturante nesse processo, mas na maioria dos casos é prestada (ou deveria ser) pelos próprios interessados na implementação dos megaprojetos. Estas são imprescindíveis para a realização de um megaprojeto hídrico, mas têm sido continuamente questionadas pelos grupos sociais afetados. As principais críticas referem-se ao atraso na divulgação dos estudos, na dificuldade de compreensão da linguagem técnica, da difusão incompleta das informações e da falta de alternativas apresentadas nos Estudos.

No que se refere ao Ahe Belo Monte, os Estudos (EIA/RIMA)[9] foram aprovados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA), órgão governamental responsável pela fiscalização da obra. Contudo, identificou-se um enorme atraso na divulgação destas informações para as populações futuramente atingidas pela barragem. Pôde-se verificar que existiu um descontentamento por parte destas populações principalmente sobre o deficiente acesso aos Estudos, e sobre a dificuldade que grande parte destes povos tiveram em ler e compreender estas informações. Para Zhouri et al.,

a participação efetiva e democrática da população local também é dificultada por razões bem práticas, no que diz respeito ao acesso a documentos e informações sobre o processo. Isso porque as comunidades se encontram, não raro, distantes geograficamente das instâncias técnica e deliberativa dos órgãos ambientais, os centros decisórios, (...). (ZHOURI et al., 2005, p. 25).

Nesse processo, a ausência de uma “verdade simples” pode levar ao extremo relativismo e a um “vale tudo” (“anything goes”) no processo decisório (LEIJTEN; BRUIJIN, 2008). A informação é incapaz de desempenhar o seu papel disciplinador, assim, a tomada de decisão se transforma em uma “luta livre” entre proponentes e oponentes de um projeto. E em uma “luta livre”, pode ignorar-se premeditadamente a informação, ou pode-se utilizar a informação errada para condicionar o processo decisório (LEIJTEN; BRUIJIN, 2008).

A expressão “luta livre” utilizada pelos autores caracteriza bem este processo, no qual o espaço do debate e da discussão passa a ser o espaço da força, ou seja, de quem tem o poder de decidir. Desta forma, estas “lutas” são engendradas por diferentes grupos sociais, e configuram-se pela existência de relações desiguais de poder. Além de desigual, este processo também pode ser caracterizado como injusto e antidemocrático. O mais interessante é perceber que esta análise não corresponde apenas aos países em que os direitos individuais e coletivos são sistematicamente violados. Os casos analisados no norte da Europa e nos Estados Unidos mostram que, quando se trata de megaprojetos, a falta de transparência e de participação pública constitui-se também numa regra e não em uma exceção.

Na generalidade dos casos, os cidadãos são estrategicamente colocados “de fora” do processo decisório e, no caso de populações mais desfavorecidas e pobres, estas situações são ainda mais dramáticas. Sobre esta questão, pode-se assinalar as obras das autoras indianas, Roy (2001) e Shiva (1993) que analisaram os impactos da construção de barragens no vale do Rio Narmada. As autoras evidenciaram que as populações invisibilizadas e historicamente excluídas foram as que mais sofreram com a construção destas grandes obras.

A incompatibilidade de um processo decisório democrático e transparente com a construção de megaprojetos é recorrente na literatura, a qual aponta que, quando as populações são chamadas a participar e a intervir, as decisões quase sempre já se tornaram irreversíveis. Os empreendedores, o governo e demais interessados assumem o papel de planejar, avaliar, decidir e implementar, ou seja, assumem todos os papéis. Frequentemente apresentam estas decisões como fruto de um trabalho objetivo e técnico e, portanto, acima das opiniões e percepções de populações cujos discursos são vistos como destituídos do saber técnico necessário (expertise).

De modo geral, somente depois de se ter tomado a decisão de realizar as obras é que se informam as populações afetadas e demais grupos sociais, e se lhes fornecem alguns espaços de discussão, tais como reuniões, fóruns e audiências públicas[10]. Nesse momento, tais grupos podem interferir muito pouco neste processo dito “democrático”, e os conflitos tornam-se iminentes. De forma recorrente, as decisões são tomadas anteriormente a qualquer processo participativo, independentemente de serem obras questionadas ou não pela sociedade que vai acolhê-las. Desta forma, antes de mais, decide-se pelo empreendimento e depois, independentemente dos desdobramentos desta decisão, esta torna-se impossível de ser revogada.

Considerações finais

A Temática dos megaprojetos constitui um desafio que ultrapassa o entendimento destes empreendimentos apenas enquanto “obras técnicas - obras de engenharia”, provocando indagações provenientes de diversas áreas do conhecimento. Em grande parte dos países, estas infraestruturas foram edificadas mediante uma “ideologia da redenção”,[11] a partir de discursos que enaltecem o “interesse nacional” e apresentam possibilidades concretas de desenvolvimento regional. Para a sua construção, contudo, necessitam de grandes quantidades de capital e trabalho. A grandeza dos recursos que exigem é muitas vezes proporcional às controvérsias e aos conflitos que suscitam.

Ao longo das últimas décadas, diversos autores em todo o mundo têm intentado compreender o que são estas grandes obras e as razões para o seu fomento na atualidade. Como visto, não existe uma definição consensual do que são megaprojetos. No entanto, entre as diversas concepções existentes, pode-se encontrar um posicionamento crítico que considera que os impactos socioambientais decorrentes destas grandes obras provocam consequências irreversíveis na vida de diferentes grupos sociais e impõem novas modalidades de uso do território.

Os megaprojetos são uma constante na história, e, ainda hoje, representam processos exógenos, de centralização do capital e de centralização do poder de decisão (VAINER, 2011). Diversos autores consideram que, no que corresponde ao processo decisório, este pode decorrer alheio aos interesses das populações futuramente afetadas, marcado por falta de transparência, complexidade técnica e social, ausência de informação, relações top down e principalmente, limitada participação pública.

No caso estudado, destaca-se que o Ahe Belo Monte custará em torno de 30 bilhões de reais e contará com a mão de obra de mais de 18 mil trabalhadores. Na obra serão gastos mais de 2 milhões de metros cúbicos de concreto, 120 mil toneladas de cimento e 22 mil toneladas de aço. A cidade de Altamira (estado do Pará), receptora da barragem, assistiu a um crescimento populacional de cerca de 50% nos últimos anos. Os números expressam a magnitude das transformações que um projeto como esse implica em termos de tempo e espaço.

Relativamente ao valor do empréstimo solicitado ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o seu custo sofreu diversas alterações ao longo de todos esses anos. Segundo Lúcio Pinto, “em dez anos, o orçamento de Belo Monte saltou de 20,4 bilhões para 31,2 bilhões, na última atualziação” (PINTO, 2012, P. 51). O Consórcio de Belo Monte justificou que as razões para o aumento do valor da hidrelétrica entre 2001 e 2011 poderiam ser explicadas pela própria complexidade do projeto de engenharia. Atualmente, este valor tem sido colocado em causa principalmente após as investigações da Operação Lava-jato e das denúncias de propina envolvendo as empreiteiras responsáveis pela obra. Como visto, o “fenômeno” da subestimação dos custos também pode ser observado em Belo Monte.

Da mesma forma, no que se refere a subestimação dos impactos, diversos pesquisadores concluíram que o Ahe Belo Monte causará grandes transformações na região, na vida de seus moradores e no ecossistema da floresta amazônica. Estes estudiosos realizaram uma análise crítica e independente do Estudo do Ahe Belo Monte. Esta iniciativa, designada por “Painel de Especialistas”, emergiu a pedido dos próprios movimentos sociais de Altamira e contou com o apoio de várias organizações.

As análises realizadas pelo Painel de Especialistas foram entregues ao Ibama, com o intuito de alimentar o debate sobre a viabilidade ambiental do projeto. A Eletrobras, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez e Odebrecht, apresentaram um documento com críticas tecidas às análises do Painel, uma espécie de contra-resposta às considerações elaboradas pelos pesquisadores. Desta forma, entre réplicas e tréplicas, uma iniciativa como a do Painel de Especialistas falhou e, depois de um enorme esforço coletivo, as contribuições do Painel não foram aceitas pelo Ibama.

Na grande maioria dos casos, estes Estudos (EIA/RIMA) são elaborados por empresas contratadas pelo próprio empreendedor da obra, ou seja, o principal interessado na sua construção. Nas palavras de Zhouri et al., “os consultores, financeiramente dependentes dos empreendedores, tendem a elaborar estudos que concluam pela viabilidade ambiental dos projetos, evitando, assim, riscos a possíveis futuras contratações (2005, p. 24). Esta pode ser considerada apenas mais uma das muitas situações em que os conflitos de interesse encontram-se presentes nos megaprojetos.

A hierarquização dos processos que configuram o processo decisório, em especial os que se destinam aos megaprojetos, nos leva a repensar sobre práticas que apenas legitimam decisões anteriormente tomadas. No caso do Ahe Belo Monte, a combinação entre desinformação, falta de alternativas, interesses divergentes, falta de transparência, desequilíbrios de poder, populações afetadas excluídas, complexidade técnica, resultou num processo decisório que se arrastou por mais de quinze anos e infelizmente, conduziu a processos top down com pouquíssima ou quase nenhuma participação das populações futuramente afetadas.

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Notas

* Este artigo é baseado na parte teórica da tese de doutorado defendida em 2016 e com o título, “Megaprojetos, conflitos e processo decisório: a análise de uma controvérsia intemporal chamada Belo Monte” (SILVA, 2016).
[2] “Colossais, dispendiosas, cativantes, controversas, complexas e controle”.
[3] Segundo Soares (2009, p. 273) “sob a ótica do mercado, o território e as relações sociais que ali se desenvolvem são entendidos, pelos empreendedores e também pelo Estado, como mercadoria passível de uma valoração monetária”.
[4] O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) após receber denúncias de violações de direitos humanos feita pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), decidiu instituir uma Comissão Especial para acompanhar as denúncias de violações de direitos humanos em processos envolvendo o planejamento, licenciamento, implementação e operação de barragens. Após quatro anos de estudos e análises, o Relatório Especial da Comissão foi aprovado em outubro de 2010.
[5] Tradução livre do autor. No original “Aunque dicha circunstancia, bajo el capitalismo, puede reproducirse cuando el gobierno se subsume en una nueva tiranía, que usurpa al soberano la función de asignación de recursos en el desarrollo y en el disenõ de país” (NAREDO, 2009, p. 211).
[6] Tradução livre do autor. No original “La actual mitología de la producción y el crecimiento sirve sobre todo para ocultar la nueva distribución en curso, en la que los megaprojects en cartera de los grupos empresariales juegan como especie de “espada de Damocles”, muchas veces extravagante y ajena a las condiciones de la vida de la población, que pende sobre nuestras sociedades, llamadas finalmente a pagar los platos rotos del festín de comisiones, plusvalías y márgenes diversos realizados por sus promotores y/o constructores” (NAREDO, 2009, p.14).
[7] No original “ (…) en el año de 1997, el periodista Carlos de Prada publicó un breve artículo titulado ‘la dictatura de las constructoras’, en el que muestra algunos aspectos de la relación entre el discurso y la práctica de los grupos empresariales y políticos en España, que ampliaría en un trabajo posterior, de Prada (2003), al caso del Plan Hidrológico Nacional” (NAREDO, 2009, p.58).
[8] Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/06opinion/1436195768_ 857181.html. Acesso em:15 de dezembro de 2016.
[9] As informações sobre as características técnicas, socioeconômicas e ambientais de uma obra de infraestrutura fundamentam-se nos Estudos e Relatório de impacto ambiental (EIA/RIMA) (ZHOURI et al., 2005).
[10] As audiências públicas representam o único momento de escrutínio social previsto por lei para a construção de projetos com grandes impactos socioambientais (LEROY; ACSELRAD, 2009, p. 206).
[11] Para Ribeiro, “a Ideologia da redenção, cuja matriz principal é a ideologia do progresso, que muitas vezes toma a forma do desenvolvimentismo, isto é, a suposição de que os PGE (Projetos de Grande Escala) são positivos porque desenvolverão uma região, levando bem-estar a todos” (2014, p. 55-56).


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