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Nota crítica sobre (in)condicionalidade*
Critical note on (un)conditionality
Nota crítica sobre (in)condicionalidade*
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 5, núm. 10, pp. 5-29, 2017
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepção: 25 Julho 2017
Aprovação: 20 Agosto 2017
Resumo: Este artigo trata da relação entre condicionalidade e incondicionalidade de transferência direta de renda no contexto do debate mais amplo sobre justiça e reconhecimento. E começo contrapondo as ideias que dão base a duas propostas de transferência de renda – bolsa família e renda básica. Defendo a tese de que a ideia de incondicionalidade por trás da proposta de renda básica e sua relação com justiça é mais complexa do que se mostra à primeira vista. E para fundamentar minha defesa da renda básica incondicional, discutirei a relação entre condicionalidade e incondicionalidade à luz de três modelos teóricos: a teoria da justiça social de David Miller, a teoria do reconhecimento de Axel Honneth e a teoria da dádiva de Alain Caillé.
Palavras-chave: Incondicionalidade, Reconhecimento, Justiça.
Abstract: This article deals with the relationship between conditionality and unconditionality of direct income transfer in the context of the broader debate on justice and recognition. I start by confronting the basic ideas behind two proposals of income transfer – bolsa família and unconditional basic income. My thesis that the idea of unconditionality behind the proposal of a universal basic income and its relation to justice is more complex than it seems at first glance. To give support to my defense of unconditional basic income, I will deal with the relationship between conditionality and unconditionality in light of three theoretical models of justice: David Miller’s theory of social justice, Axel Honneth’s theory of recognition, and Alain Caillé’s theory based on the paradigm of gift.
Keywords: Unconditionality, recognition, justice.
Este artigo trata da relação entre condicionalidade e incondicionalidade no contexto da discussão mais ampla sobre justiça e reconhecimento. Nele, eu defendo a tese de que a renda básica incondicional é uma política mais adequada à promoção da cidadania do que a bolsa família. Além disso, procuro mostrar também que a ideia de incondicionalidade da renda básica, conforme a entendo, é mais complexa do que pode parecer à primeira vista.
Começo com o problema da condicionalidade, conforme aparece no Programa Bolsa Família, contrapondo-o à ideia de incondicionalidade contida na proposta de renda básica; recorro, para tanto, às falas de alguns atores políticos e também às elaborações de alguns pesquisadores (item I). Em seguida (item II), para fundamentar minha defesa da incondicionalidade da renda básica, procuro analisar o problema da relação entre condicionalidade e incondicionalidade à luz de três modelos teóricos: a teoria da justiça social de David Miller, a teoria do reconhecimento de Axel Honneth e a teoria da dádiva de Alain Caillé. Por fim, com base na discussão anterior, concluo fazendo algumas considerações sobre a relação entre condicionalidade, incondicionalidade e justiça social, para melhor explicitar a tese aqui defendida (item III).
1 Condicionalidade e incondicionalidade nas políticas sociais: bolsa família versus renda básica
Nesta seção, não pretendo fazer uma discussão exaustiva seja sobre bolsa família, seja sobre renda básica. Meu intuito é apresentar, apenas em linhas gerais, as duas proposições, de maneira que isto me permita fazer um contraponto entre os princípios que guiam as duas. Embora esteja ciente dos argumentos de David Miller sobre a necessidade de se manter nos estudos sobre justiça social o vínculo entre teoria normativa e pesquisa empírica (MILLER, 1999, p. 42-60), deixo claro, desde já, que por falta de espaço minha abordagem aqui será mais conceitual do que empírica, mas sem perder de vista esta última dimensão do problema.
O Programa Bolsa Família foi criado por medida provisória, em outubro de 2003, quando foi oficialmente lançado na pequena cidade de Guariba, no Piauí, e institucionalizado pela Lei 10.836, de 9 de janeiro de 2004. De acordo com esta lei, o programa é “destinado às ações de transferência de renda com condicionalidades” e resulta da unificação de diversos outros programas[1]. Seu artigo terceiro, que trata das condicionalidades, diz que “a concessão dos benefícios dependerá do cumprimento, no que couber, de condicionalidades relativas ao exame pré-natal, ao acompanhamento nutricional, ao acompanhamento de saúde, à frequência escolar de 85% (oitenta e cinco por cento) em estabelecimento de ensino regular, sem prejuízo de outras previstas em regulamento”.
Embora a lei que cria a bolsa família não apresente muitos argumentos para fundamentar as requeridas condicionalidades, eles podem ser encontrados no debate pregresso sobre transferência direta de renda no Brasil[2].
O texto abaixo, de Cristovam Buarque, embora fale sobre a lógica da Bolsa Escola, programa implantado por ele quando governador do Distrito Federal e que antecedeu a bolsa família, é um bom exemplo de fundamentação da condicionalidade:
Ela (a Bolsa Escola) parte de uma ideia óbvia: se as crianças serão adultos pobres porque não estudam no presente, e se não estudam porque são pobres, a solução é quebrar o círculo vicioso da pobreza pagando às famílias pobres para que seus filhos estudem, no lugar de trabalharem. Paga-se um salário mensal a cada família, em troca de que todos seus filhos estejam na escola e nenhum deles falte às aulas no mês. Com estas bolsas de estudos para as crianças pobres, é possível levá-las e mantê-las na escola. De certa maneira, utilizam-se a pobreza e a necessidade da renda para combater a pobreza, tendo as famílias como fiscais da frequência de seus filhos às aulas. Com isso, resolve-se ao mesmo tempo a pobreza futura, quando estas crianças forem adultos educados, e reduz-se a pobreza atual por meio de uma renda mínima para sua família. Tudo isso a baixo custo (BUARQUE, 2003, p. 59).
Em sua formulação, Cristovam Buarque utiliza a condicionalidade como um meio para incentivar a frequência escolar das crianças beneficiárias. Com isto, ele acredita que a condicionalidade terá a virtude de quebrar o ciclo de reprodução da pobreza, porque supõe que as crianças com alguma formação escolar terão mais possibilidade de ascensão social, isto é, sair da pobreza crônica, da qual seus pais não conseguiram escapar por falta de escolaridade.
A despeito da louvável importância que sua proposta atribui à educação – aliás, tema central na agenda intelectual e política de Cristovam Buarque –, ela deixa, entretanto, a impressão de que a transferência de renda tem um caráter apenas emergencial, uma vez que ela é concebida como um meio de melhor preparar os beneficiários para serem mais competitivos no mercado, seja como assalariados seja como empreendedores.
Mas Buarque não é o único a argumentar nessa direção. Alguns anos mais tarde, Patrus Ananias emprega argumentos similares aos de Cristovam Buarque. Como ministro do governo Lula, Ananias tinha a gestão do Programa Bolsa Família sob sua responsabilidade e escreve diversos artigos a seu respeito. Ananias considerava a bolsa família “como política emancipadora”, mas vinculava essa dimensão emancipadora do programa a suas condicionalidades. Conforme suas palavras, “as condicionalidades reforçam o caráter emancipador do programa”, porque contribuem, no plano educacional, para que crianças e adolescentes retornem à escola e, no da saúde, para que as famílias mantenham as consultas e controles em dia (ANANIAS, 2007). Mas, embora considere emancipadora tal política, também para Ananias a verdadeira emancipação só virá pela inserção no mercado de trabalho[3].
As duas fundamentações mencionadas situam-se, por assim dizer, no campo progressista da esquerda. Mas há também argumentos em defesa da condicionalidade mais vinculados com perspectivas políticas conservadoras. É o caso, por exemplo, dos dois políticos que cito a seguir.
Começo com o texto proferido pelo então senador Andrade Vieira, por ocasião dos debates sobre o projeto de renda mínima de Eduardo Suplicy, apresentado ao Senado Federal em 1991:
Acho que todos concordamos que aqueles que trabalham, aqueles que têm uma profissão, aqueles que desenvolvem uma atividade seja no Rio Grande do Sul, seja no Rio Grande do Norte, no Acre ou no Espírito Santo, merecem um salário digno; merecem uma renda, fruto do seu trabalho, que lhes permita não só alimentar as suas famílias, mas vesti-las, educá-las, abrigá-las numa moradia decente, com água encanada, com luz, com aqueles confortos mínimos que o mundo moderno oferece aos seus cidadãos. Mas estender uma renda mínima àqueles que não trabalham, que não produzem, que, por razões de ordem educacional, não têm condições de desenvolver uma atividade que lhes permita um ganho adequado, acho que é uma temeridade, pelas consequências adversas que pode acarretar esse projeto (VIEIRA apud SUPLICY, 1992, p. 85).
Neste caso, a preocupação em não distribuir renda sem condicionalidades não se apoia nas ideias supostamente progressistas de que o combate à pobreza e a promoção de políticas emancipatórias devem necessariamente passar pela inserção no mercado, como nos casos de Buarque e Ananias. Diferentemente de Buarque e Ananias, que parecem levar em conta a importância do contexto socioeconômico como causa da pobreza de setores da população, o combate à pobreza e a política social emancipatória não fazem parte do vocabulário de Vieira. Afeito ao laisser faire liberal, ele parece mais propenso a responsabilizar as vítimas pela própria pobreza e a eximir a sociedade de responsabilidade pelo destino de seus membros.
Esse tipo de argumento de cunho conservador a respeito das políticas sociais é partilhado por Beni Veras, que também era senador, quando, durante os debates do mesmo projeto de renda mínima, pronunciou as palavras citadas abaixo:
As pessoas não são necessariamente boas ou más, mas a tendência delas não é o trabalho e o dinamismo. Há pessoas de várias naturezas, as que se motivam para o trabalho e as que, recebendo um seguro desse tipo, seriam estimuladas a cruzar os braços e a perder a iniciativa. Teríamos, portanto, muito breve, a possibilidade de uma sociedade anestesiada em sua iniciativa, pessoas que receberiam seguro-desemprego, perderiam completamente o estímulo a lutar pela vida. Essa questão deve nos preocupar, porque é uma verdade que pode comprovar nos países que adotaram sistemas semelhantes e tiveram uma diminuição da iniciativa das pessoas ao trabalho (VERAS apud SUPLICY, 1992, p. 106)[4].
Veras não fornece nenhuma evidência de que em países que adotaram tais políticas de transferência de renda houve um decréscimo da propensão ao trabalho. Meu objetivo aqui, no entanto, não é debater com ele, mas apenas revelar o preconceito por trás desse tipo de argumento.
Por outro lado, embora os textos citados acima não esgotem os argumentos em defesa da condicionalidade, eles são exemplos que ilustram bem os tipos de argumentos utilizados por importantes atores políticos para justificá-la, incluindo nos dois últimos casos, preconceitos antigos em relação ao comportamento possível dos potenciais beneficiários das políticas de transferência de renda. Além disso, embora eles pareçam ter diferentes objetivos, em todos eles – políticos de esquerda e políticos de direita – os argumentos navegam dentro de uma ampla concepção de sociedade na qual a solução para os problemas da pobreza passa necessariamente, em maior ou menor grau, pela inclusão dos beneficiários no mercado de trabalho, isto é, dando prioridade à lógica do mercado em contraposição à lógica do social[5].
Ao contrário dos programas de transferência condicional de renda, a renda básica de cidadania significa justamente a inversão desta lógica. E está aí, a meu ver, sua principal virtude. É este o sentido de distribuir renda de forma incondicional. Entretanto, como deixarei mais claro adiante, a ideia de incondicionalidade não pode aqui ser compreendida de forma bruta, sem matizações.
Diferentemente da bolsa família, portanto, a renda básica de cidadania tem na incondicionalidade uma de suas principais características. A esse propósito, a lei brasileira, sancionada em 8 janeiro de em 2004, que instituiu a renda básica de cidadania não faz qualquer menção a condicionalidades, pelo menos no mesmo sentido encontrado na bolsa família; ou seja, a única condição é ser brasileiro ou residente no país há pelo menos cinco anos, conforme explicita o texto da lei:
É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário (Art. 1o, Lei 10835, de 08/01/2004)[6].
Essa característica de incondicionalidade pode também ser observada na definição de renda básica citada abaixo, de autoria de Philippe Van Parijs, um dos seus principais teóricos e também um de seus principais proponentes no plano internacional: “Uma renda básica é uma renda paga por uma comunidade política a todos os seus membros individualmente, independente de sua situação financeira ou exigência de trabalho” (VAN PARIJS, 2002, p. 195 – destaques nossos). Ou seja, ainda que não mencione explicitamente a palavra incondicionalidade, ela está aí contemplada na afirmação de que deve ser “independente de sua situação financeira ou exigência de trabalho”.
Assim, embora haja muitas diferenças entre bolsa família e renda básica, a que mais chama a atenção é a que contrapõe condicionalidade a incondicionalidade (SILVA, 2014, p. 147-163). Dessa forma, a opção por condicionalidade ou por incondicionalidade é o que mais opõe as duas concepções de política pública – bolsa família e renda básica – porque a primeira realça desde o início a condicionalidade a contrapartidas como uma de suas características principais, enquanto a segunda pauta-se pelo princípio da incondicionalidade. É também o principio da incondicionalidade, num sentido amplo, que possibilita a inversão da prioridade lógica, deslocando-a do mercado para a sociedade, já que a única condicionalidade exigida pela renda básica é ser membro da sociedade (WRIGHT, 2006; CAILLÉ, 2014).
Para finalizar esta seção, apresento algumas palavras a respeito da bibliografia sobre as mencionadas condicionalidades do Programa Bolsa Família. Não pretendo, aqui, fazer uma análise dessa bibliografia, já bastante ampla e da qual já tratei em outro momento (SILVA, 2014). Concentro-me apenas em alguns textos que se dedicaram a uma análise mais abrangente da questão. Entre os diversos textos dedicados ao tema, destaco dois que, além de bem elaborados e equilibrados nas análises, chamam a atenção também por se voltarem à discussão das condicionalidades vinculadas à educação, embora também façam menção às condicionalidades ligadas à saúde (PIRES, 2013; CARNELOSSI; BERNARDES, 2014). Além disso, ambos os textos também procuram realçar as divergências no que diz respeito à pertinência ou não das condicionalidades nas estratégias de combate à pobreza.
Defendendo uma posição mais simpática à incondicionalidade, Bruna Carnelossi e Maria Eliza Bernardes, após uma análise da relação entre educação e transferência de renda com o objetivo de combate à pobreza, na qual elas questionam a tese da eficácia da condicionalidade, sustentam que
a participação da educação é importante, porém, não é suficiente para impactar na realidade brasileira marcada por uma estrutura extremamente desigual, responsável por estatísticas que envergonham a nação quanto ao número inaceitável de brasileiros pobres (CARNELOSSI; BERNARDES, 2014, p. 308).
A omissão do Estado no que diz respeito a políticas educacionais de qualidade, a precariedade das ações educativas, a infraestrutura ruim das escolas e as especificidades das condições sociais dos beneficiários da bolsa família, elas argumentam, “resultam numa situação catastrófica”. Por isso, elas concluem que, em tais condições,
é fundamental reestruturar a proposta do PBF (Programa Bolsa Família), a fim de que este considere a especificidade da contribuição pedagógica da educação; ao contrário, sua intencionalidade, que justifica a vinculação entre a exigência de um mínimo de frequência escolar ao recebimento do benefício, será dissolvida, e em nada contribuirá para a alteração das condições de vida da população beneficiária do programa (CARNELOSSI; BERNARDES, 2014, p. 309).
Assim como Carlelossi e Bernardes, André Pires também lida com o problema das condicionalidades da transferência de renda vinculadas à educação, focando nas estratégias de enfrentamento da pobreza. Mas, diferentemente das duas citadas autoras, Pires tem uma visão mais simpática em relação às condicionalidades da transferência de renda vinculada à educação, embora defenda uma versão matizada de condicionalidade (PIRES, 2013).
Matizada porque, diferentemente, das posições que focam na relação imediata da condicionalidade, ele direciona sua análise para um ponto além dessa compreensão restrita de condicionalidade. Apoiando-se na teoria da dádiva de Marcel Mauss e em pesquisa empírica própria, ele fundamenta sua posição num entendimento mais amplo de condicionalidade, que reforçaria os vínculos de reciprocidade entre os beneficiários da política pública e o Estado[7]. Por isso, ele desloca seu foco de análise para a dimensão simbólica dessas condicionalidades, afirmando que “as discussões sobre as condicionalidades em educação devem ser pensadas numa perspectiva ampliada, não se restringindo somente aos efeitos práticos” (PIRES, 2013, p. 524). Para ele, numa visão ampliada, “as condicionalidades do PBF [Programa Bolsa Família] podem ser vistas como instauradoras de uma relação de troca e reciprocidade entre beneficiários desta Política Pública e o Estado” (PIRES, 2013, p. 525).
Para isso, ele se apoia numa noção mais ampla de reciprocidade, denominada de conexão, em contraposição a uma concepção restrita de reciprocidade, que chama de correspondência:
De forma diversa da chamada reciprocidade de ‘correspondência ou de equilíbrio’, em que o dom deve ser retribuído para restabelecer uma situação inicial de equidade, na chamada ‘reciprocidade de conexão’ o que está em jogo não é um senso de justiça, mas sentimentos de pertencimento e de reconhecimento social (PIRES, 2013, p. 527)[8].
Assim, ele conclui, com base também na análise de entrevistas com pessoas beneficiárias da bolsa família, que as condicionalidades, compreendidas no sentido amplo acima referido, podem contribuir para “o fortalecimento dos sentimentos de pertencimento e reconhecimento sociais por parte das beneficiárias dados pela efetividade no cumprimento das condicionalidades previstas no programa” (PIRES, 2013, p. 527).
Da mesma forma que André Pires, Alain Caillé também se apoia na teoria da dádiva ou do dom de Marcel Mauss. Mas diferentemente de Pires, Caillé usa-a para fundamentar sua opção por uma renda de cidadania incondicional, como veremos mais adiante, ao final do item II. Passo agora a discutir o tema da (in) condicionalidade no contexto das teorias de justiça.
2. Reconhecimento, justiça e (in) condicionalidade
Uma boa maneira de abordar o tema da (in) condicionalidade em relação às teorias da justiça é pensar na relação entre transferência de renda e cidadania. Não podemos esquecer, a propósito, que a lei da renda básica, sancionada em janeiro de 2004, trata a renda básica como renda de cidadania; e essa é também a forma como Eduardo Matarazzo Suplicy, autor tanto do projeto do programa de renda mínima de 1991 quanto do projeto que resultou na lei da renda básica de 2004, define a renda básica (SUPLICY, 2002; 2006).
Autor de trabalho clássico sobre cidadania, Thomas H. Marshall concebe esta última com base na ideia de que “há uma espécie de igualdade humana básica associada com o conceito de participação integral na comunidade” (MARSHALL, 1981, p. 124)[9]. Em sua formulação, essa igualdade básica apoia-se numa tipologia de direitos – civis, políticos e sociais, que conjuntamente dão substância a seu conceito de cidadania como pertencimento a uma determinada comunidade política (MARSHALL, 1967). Não vou prolongar a conversa a respeito da bem conhecida teoria da cidadania de Marshall, à qual já me dediquei em outros escritos para os quais remeto o leitor ou a leitora (SILVA, 2008; 2012; 2014; 2015). O que me interessa aqui é sugerir que o conceito de cidadania permite estabelecer uma ponte entre o tema deste artigo e as teorias da justiça, das quais falarei a seguir.
Começo pela teoria da justiça social de David Miller, cuja primeira formulação está num livro de 1976, intitulado Social Justice. Nesse livro, já estão presentes os três princípios que formam seu modelo de justiça social, composta por direitos, merecimento e necessidade[10]. Ali, Miller afirma que os direitos “não dependem do comportamento da pessoa ou outras qualidades individuais”. Em linha com a formulação marshalliana de cidadania, isto quer dizer que dispensa condicionalidades, a não ser aquela compreendida como pertencimento a uma determinada comunidade política. O merecimento, afirma Miller, “pode ser interpretado de diferentes maneiras, embora sempre dependa das ações e das qualidades pessoais da pessoa a quem se refere o merecimento”[11]. No caso deste princípio, a contribuição da pessoa tem relevância; mas mesmo assim é possível pensar-se também numa concepção de contribuição que seja mais ampla do que a mera relação de troca no mercado. A necessidade, por outro lado, vincula-se ao princípio que diz: “a cada um segundo suas necessidades” (MILLER, 1976, p. 26-27), o qual também dispensa tais condicionalidades.
Partindo da tipologia acima, escreve Miller,
Temos, então, três interpretações conflitantes de justiça que podem ser resumidas nos três princípios: a cada um segundo seus direitos; a cada um segundo seu merecimento; a cada um segundo suas necessidades. Precisamos notar, todavia, que o conflito entre esses princípios não é simétrico, e aqui a mais simples divisão entre justiça conservadora e justiça ideal não pode ser esquecida. ‘Direitos’ e ‘merecimento’; e ‘direitos’ e ‘necessidades’ estão contingentemente em conflito, uma vez que devemos lutar por uma ordem social na qual cada homem tenha um direito àquilo (e apenas àquilo) que ele merece, ou àquilo (e apenas àquilo) que ele necessita. Se tais sociedades perfeitamente justas podem ser criadas, o contraste entre justiça conservadora e justiça ideal desapareceria, porque a real distribuição de direitos corresponderia à distribuição ideal (MILLER, 1976, p. 27-28).
Ao definir os três princípios de justiça social e se referir a seus aspectos conflitantes, Miller associa-os a concepções de sociedade, que ele remete, respectivamente, às teorias da justiça de David Hume (igualdade), de Herbert Spencer (merecimento) e de Peter Kropotkin (necessidade). Considerando, portanto, que “esses princípios podem ser defendidos com apelo a diferentes visões de sociedade”, Miller afirma que a concepção de justiça de Hume, que tem em vista o que ele denomina “sociedade competitiva”, é marcada por um utilitarismo moderado; a de Spencer, definida como “sociedade industrial”, é fundada no utilitarismo individualista; e, por fim, a de Kropotkin, que ele define como “sociedade comunista”, baseia-se no princípio: “a cada um segundo suas necessidades” (MILLER, 1976, p. 343).
Miller conclui este primeiro estudo sobre justiça social afirmando que tal conceito emergiu dos arranjos específicos da sociedade de mercado e “o que é distintivo no pensamento social das sociedades de mercado é sua abordagem dos direitos existentes através de padrões ideais de justiça social, e são esses padrões que mais carecem de explicação sociológica” (MILLER, 1976, p. 337).
Em um segundo livro, Principles of social justice, de 1999, Miller retoma sua teoria da justiça social e reafirma os mesmos princípios elaborados no primeiro livro. Com alguma inovação na terminologia, porém, ele assim anuncia seu modelo de justiça social formado por três princípios: comunidade solidária, associação instrumental e cidadania. Para Miller, esses princípios de justiça social, que emergem diretamente dos vários modos de relação e explicam as formas de relações institucionais, são assim definidos: “a comunidade solidária existe quando pessoas partilham uma identidade comum como membros de um grupo relativamente estável com um etos comum” (MILLER, 1999, p. 26); o principal exemplo que ele dá para ilustrar este caso é a família. O segundo modo de relação, ou princípio, é a associação instrumental, na qual as pessoas se relacionam de maneira utilitária para atingir objetivos e propósitos que podem ser realizados em colaboração com outros; para ele, as relações econômicas de mercado são as que melhor exemplificam este caso. O terceiro modo de associação, que ele considera relevante para sua teoria da justiça, é a cidadania, que em suas palavras é assim definida: “qualquer um que é membro pleno de uma sociedade é entendido como sendo titular de um conjunto de direitos e obrigações que juntos definem o status de cidadão” (MILLER, 1999, p. 30).
Ademais, Miller acrescenta:
Embora a igualdade seja o princípio primário de justiça que governa as relações entre cidadãos, algumas vezes a cidadania pode fomentar demandas de justiça com base em necessidade ou merecimento. É justo que aos cidadãos que carecem dos recursos necessários para desempenhar seus papéis como membros plenos da comunidade sejam providos esses recursos. Assim, cuidados médicos, moradia e renda para algumas pessoas podem ser vistos como necessidades da perspectiva da cidadania (MILLER, 1999, p. 31).
Miller conclui, então, que igualdade é o princípio dominante da cidadania. necessidade é o princípio da comunidade solidária; merecimento é o princípio da associação instrumental (MILLER, 1999)[12].
Ora, como situar o problema da condicionalidade, discutida na primeira parte deste artigo, num modelo de justiça social como este? Parece claro que a exigência de condicionalidade no sentido utilizado pela bolsa família não se aplica a dois dos princípios deste modelo de justiça social de Miller: os princípios da necessidade e da igualdade. Nos dois casos, as eventuais contrapartidas exigidas, quando há, não são condicionalidades; e, portanto, não geram qualquer tipo de punição ou privação de direitos[13]. Apenas um deles, o do merecimento, parece encaixar-se naquele tipo de condicionalidade.
Com base em tal teoria, a principal crítica que pode ser dirigida às condicionalidades da bolsa família refere-se à sua incompatibilidade com uma política de cidadania. Esta última deve se dirigir ao conjunto da população de determinada comunidade política e assentar-se na ideia de pertencimento. Portanto, não pode se confundir com uma política social restritiva que, ao exigir condicionalidades, coloca em dúvida a própria capacidade de autonomia dos beneficiários[14].
Axel Honneth desenvolve sua teoria do reconhecimento a partir da reapropriação crítica de elementos da filosofia hegeliana, matizada pela incorporação da psicologia social de George Herbert Mead (HONNETH, 2003a). Elaborada no interior da tradição de frankfurtiana de teoria social, a teoria de Honneth partilha também da guinada intersubjetiva promovida por Habermas em sua Teoria do Agir comunicativo, de 1981 (HABERMAS, 2012), mas difere deste último no que diz respeito ao papel central que a filosofia da linguagem ocupa na teoria de Habermas, que Honneth considera excessivamente abstrata. Propondo um retorno à concepção de Horkheimer, para quem a teoria crítica deve ancorar-se na experiência dos grupos oprimidos, Honneth procura dar um fundamento mais fenomenológico a sua teoria do reconhecimento (1994; 2001a).
Ao mesmo tempo, ele também apresenta sua teoria do reconhecimento como uma teoria de justiça, chegando mesmo a aproximá-la da teoria de Miller. Sem perder de vista as diferentes filiações filosóficas nas quais se ancoram as duas teorias, ele considera que sua tipologia tripartite do reconhecimento, formada por amor, direitos e solidariedade, tem semelhança com a tipologia da justiça social de Miller, mostrada acima (HONNETH, 2003b; 2012). Neste sentido, como ocorre na teoria de Miller, as três formas de reconhecimento de Honneth (amor, direitos e solidariedade) também remetem, respectivamente, às mesmas esferas de justiça social, referidas na teoria de Miller pelas categorias: necessidade, igualdade e merecimento. Assim, ele vê semelhanças entre os dois modelos, conforme suas próprias palavras: “Ele (Miller) distingue entre os princípios da necessidade, da igualdade e do merecimento da mesma forma que eu falei da diferenciação dos três princípios de reconhecimento do amor, da igualdade legal e da estima social” (HONNETH, 2003b, p. 182)[15].
Embora reconheça a proximidade entre seu modelo e o de Miller no que diz respeito a uma concepção tripartite de justiça, assim como no que se refere à pertinência da conexão entre teoria normativa e pesquisa empírica (HONNETH, 2003b; 2012), Honneth procura também realçar as diferenças entre ambas as abordagens. Assim, Honneth chama a atenção para o fato de Miller desenvolver sua teoria a partir de um pluralismo dos três princípios de justiça social, mas deixa claro que sua (de Honneth) “divisão tripartite não emerge de um mero acordo com os resultados empíricos de pesquisa sobre justiça, nem de distinções ontológicas entre os padrões de relações sociais, mas sim das condições históricas de formação de identidade das pessoas” (HONNETH, 2003b, p. 181).
Em sua primeira formulação da teoria do reconhecimento, Honneth vincula solidariedade com a esfera da contribuição individual (HONNETH, 2003a), enquanto em sua teorização mais tardia sobre justiça, o termo solidariedade é crescentemente substituído pela palavra merecimento (HONNETH, 2001b; 2003b; 2015a). A menos que ele conceba solidariedade em um sentido muito estrito, isto pode ser interpretado como uma mudança em sua concepção da denominada terceira esfera do reconhecimento, uma mudança que sugere uma crescente dominância das relações de mercado em seu modelo de justiça como reconhecimento, a despeito de sua compreensão de que o mercado é uma instituição socialmente incrustada[16]. E essa mudança torna-o também mais próximo de Miller. Mas pode-se adicionar ainda outra diferença entre as formulações de Honneth e de Miller, uma vez que esse último vincula solidariedade ao que, no modelo de Honneth, seria a primeira esfera das relações primárias: a família.
Agora cabe a questão: como sua teoria da justiça baseada no reconhecimento lida, nas três esferas do reconhecimento, com o problema das condicionalidades já colocado à teoria de Miller? Evidentemente, a obtenção de autoestima na esfera das relações primárias não deve depender de nenhum tipo de condicionalidade, mas sim de condições emotivas e afeto que permitam desde os primeiros anos de vida o desenvolvimento de uma personalidade intacta. Dessa forma, seja na relação entre adultos (amor ou amizade), seja na relação de adultos com crianças (amor materno), o cuidado não remete a um tipo de reciprocidade que esteja associada a qualquer condicionalidade ou contrapartida. Ocorre o mesmo na segunda esfera, a da igualdade de direitos, que Honneth também remete à noção de cidadania, que, por sua vez, também independe de contribuição individual, já que se funda na igualdade básica de todos os membros.
Como mostra o texto a seguir, a teoria de Honneth também deixa uma margem para políticas distributivas incondicionais:
De um lado, até certo ponto, uma fronteira politicamente negociada, é possível clamar pela aplicação de direitos sociais que garantam a todo membro da sociedade um mínimo de bens essenciais independentemente do desempenho. Esta abordagem segue o princípio da igualdade legal na medida em que, por mobilizar argumentativamente o princípio da igualdade, pode lhe aduzir fundamentos normativos que permitem tornar o bem-estar econômico um imperativo de reconhecimento legal. De outro lado, porém, na atual realidade social do capitalismo, há também a possibilidade de apelar para o desempenho de cada um como algo ‘diferente’, uma vez que as pessoas não recebem consideração suficiente ou estima social com base na estrutura de valor hegemônica prevalecente. Na verdade, um quadro suficientemente diferenciado desse tipo de luta por reconhecimento só é possível quando levamos em conta o fato de que mesmo a demarcação social das profissões (...) é resultado de uma avaliação cultural de capacidades específicas para o desempenho (HONNETH, 2004, p. 152-153).
Portanto, só na terceira esfera, da solidariedade ou do merecimento, onde as contribuições pessoais possibilitam distinguir entre as pessoas, é que a estima pessoal atribuída está condicionada ao merecimento. Ou seja, como na teoria de Miller, também na Honneth é apenas na esfera do merecimento que dá para se estabelecer aproximações diretas com o tipo de condicionalidade encontrada na proposta brasileira da bolsa família. Mas, a despeito dessa diferenciação em esferas, a teoria do reconhecimento intersubjetivo como um todo remete ao vínculo social, no mesmo sentido da fórmula durkheimiana das “condições não contratuais do contrato” (HONNETH, 2009; 2015a; DURKHEIM, 1999)[17]. Esse é também o substrato da teoria de Caillé, da qual falarei a seguir.
Fundador e um dos principais animadores do MAUSS, sigla francesa do Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais, Alain Caillé é também um dos grandes responsáveis pelo renascimento contemporâneo do interesse pela teoria da dádiva de Marcel Mauss. Em seu “Ensaio sobre a dádiva”, Mauss descreve o circuito da dádiva como uma tríade formada pelos momentos do dar, do receber e do restituir (MAUSS, 2003, p. 183-314)[18]. Com base nesse modelo da dádiva, Alain Caillé, que tem mostrado um crescente interesse nos debates sobre reconhecimento (CAILLÉ, 2004; 2007), desenvolve seus argumentos sobre o tema da (in) condicionalidade do qual nos ocupamos aqui.
Diferentemente de André Pires, de quem falei na primeira parte deste artigo, Caillé é um defensor da incondicionalidade. Em seu livro Anti-utilitarisme at paradigme du don. Pour quoi? (CAILLÉ, 2014), ele escreve, por exemplo, que “o segundo combate mais importante do MAUSS foi aquele em favor de uma renda mínima incondicional – que nomeamos renda de cidadania – que nos parecia dever constituir o remate lógico dos direitos do homem” (CAILLÉ, 2014, p. 85).
Por outro lado, a argumentação de Caillé em defesa da incondicionalidade tem uma peculiaridade dificilmente encontrada nos principais defensores da renda básica, cujos argumentos estão usualmente limitados a motivações econômicas, como o desemprego estrutural e tecnológico. Além de também levar em conta tais motivações, Caillé dirige o olhar mais diretamente para o problema do vínculo social: “Antes de mais nada, e por hipótese, quase por tautologia, deve-se observar que o vínculo social – chamado também de aliança, estar juntos em vez de viver em separado, confiança – não pode ser gerado a não ser com uma dimensão de aposta incondicional, a não ser com um salto no desconhecido” (CAILLÉ, 2000, p. 103). Por isso, ele se propõe a formular uma concepção diferente e mais complexa de incondicionalidade, que ele define como incondicionalidade-condicional.
Seu ponto de partida é o já mencionado paradigma maussiano da dádiva, e a teoria multidimensional da ação a ele relacionada, donde Caillé distingue quatro polos da dádiva e da ação social, que nomeia como os polos da obrigação, da liberdade, do interesse e do altruísmo. A partir disso, ele vincula cada um desses polos, respectivamente, a uma forma de incondicionalidade, que define como: violência (sempre aninhada no coração da obrigação); espontaneidade (aquilo que se faz por si só, sem obrigação); interesse material (o instrumental que sempre existe e persiste por trás da demonstração de generosidade) [19]; e, por fim, a dimensão da incondicionalidade condicional[20].
É esta incondicionalidade condicional que, segundo Caillé, preside a aliança, a qual ele define, seguindo Mauss, como dom agonístico (CAILLÉ, 2004)[21]. Para ele, no entanto,
Nenhum desses quatro modos de incondicionalidade poderia existir concretamente de maneira isolada. Nenhum deles tampouco poderia se achar totalmente ausente. Em toda relação social, incondicionalidade e incondicionado, condicionalidade (mais ou menos) incondicional e incondicionalidade (mais ou menos) condicional coexistem sempre segundo combinações e em proporções infinitamente variadas (CAILLÉ, 2000, p. 114)[22].
Justamente por apresentar sua formulação como mediada pela complexidade do vínculo social, sua concepção de incondicionalidade (incondicionalidade condicional) distingue-se do entendimento predominante nos debates sobre renda básica, porque nesses últimos raramente a incondicionalidade apela ao vínculo social[23]. Esse vínculo deve ser entendido em termos de reciprocidade. Esta última, por sua vez, deve ser compreendida não em termos de equivalência, como nos contratos comerciais (GALSTON, 2001), mas em termos do circuito da dádiva. Ou, como afirma Helmuth Berking, “a reciprocidade deve fundamentar um protesto contra a equivalência” (BERKING, 1999, p. 20)[24]. Por outro lado, ao conceber o dom agonístico como uma forma de reconhecimento, a formulação de Caillé aproxima-se da teoria do reconhecimento de Honneth , a despeito da diferença entre ambos no que se refere ao problema da (in) condicionalidade (CAILLÉ, 2000; 2004; 2007).
3. Considerações finais: condicionalidade, incondicionalidade e justiça
Inicio a última parte deste artigo com o tema da igualdade, com o qual lidei ao longo deste artigo por meio do conceito de cidadania. Nas páginas anteriores, o tema da igualdade emergiu através do conceito de cidadania, que nas teorias de David Miller e de Axel Honneth remete-se, sobretudo, à esfera dos direitos, dedicada ao problema da igualdade. Para eles, no entanto, o conceito de igualdade não é suficiente para fundamentar uma teoria da justiça social, seja na versão pluralista desenvolvida por Miller, seja na versão monista da justiça como reconhecimento, elaborada por Honneth. Nenhum desses dois autores se satisfaz com teorias que limitam o conceito de justiça à ideia de igualdade (MILLER, 1999; HONNETH, 2012)[25]. Em ambas as teorias, a esfera que mais se sobressai não é a da igualdade de direitos e sim aquela relacionada com o merecimento, cuja substância é dada pelas contribuições individuais que distinguem uma pessoa de outra e não o que as torna iguais. Assim, enquanto uma esfera legitima a igualdade, a outra dá legitimidade a algumas formas de desigualdade.
É bem verdade que nos dois casos, teoria da justiça social de Miller e justiça baseada no reconhecimento de Honneth, não é apenas uma esfera do modelo que conta, mas o modelo como um todo (MILLER, 1999; HONNETH, 2009). Ainda assim, quando o conteúdo de uma esfera entra em conflito com o de outra, fica a impressão de que para os dois autores a resolução do conflito é remetida à esfera do merecimento. Pode-se alegar, evidentemente, que isto se deve ao fato de ambos estarem lidando com o contexto da economia capitalista, na qual o mercado parece ter sempre a última palavra. Mas também não se deve desconsiderar que tais teorias precisam vislumbrar um horizonte emancipatório que ponha em questão esta prioridade das relações econômicas, revertendo-a em favor do social[26]. Por isso, a proposição avançada por Alain Caillé, compreendida no interior de um circuito da dádiva – dar, receber, restituir – que objetiva renovar o vínculo social, parece-me mais preocupada com a inversão dessa lógica (CAILLÉ, 1992; 2000; 2011; 2014).
Pode-se alegar também que a teoria de Caillé, que inclui uma dimensão de gratidão em sua concepção de reconhecimento e recusa a ideia de justiça como equivalência, tem um componente utópico mais visível do que na outras duas teorias[27]. Por isso, a despeito de ser pouco clara, a noção de incondicionalidade condicional de Caillé parece mais propensa a priorizar a lógica do social em contraposição à do econômico[28]. E é a partir disso que decorre sua tomada de posição em defesa de uma renda incondicional de cidadania; mas, vale ressaltar, trata-se de uma incondicionalidade cuja incrustação no tecido social apela para um tipo de condicionalidade de fundo, que tem a ver com a própria reprodução do vínculo social, assim como a teoria de Honneth se fundamenta no reconhecimento intersubjetivo.
Mas, enquanto nas duas teorias, de Miller e de Honneth, a incondicionalidade é abordada de forma restrita, limitando-se às esferas da necessidade e das relações de igualdade jurídica, na de Caillé, a incondicionalidade, concebida de forma ampla, remete-se a todas as dimensões do vínculo social[29]. Assim pensada, a ideia de incondicionalidade legitima a cidadania, enquanto a de condicionalidade restringe, limita, a noção de cidadania. Isto fica ainda mais evidente em contextos sociais adversos, como os que vivenciamos atualmente. Dessa forma, embora a valorização das condicionalidades pelos beneficiários de políticas públicas possa traduzir um aprendizado de cidadania, ela também pode ser interpretada como expressão de sentimento de gratidão de pessoas com carências tão profundas que as tornam (pré) dispostas a supervalorizar o pouco que nunca tiveram.
Para finalizar, defendo a tese de que não existe incondicionalidade pura e simples porque ela sempre se apoia em uma forma de condicionalidade profunda que é, de fato, o objetivo último daquilo que à primeira vista parece incondicionalidade. Mas não é uma condicionalidade como a dos contratos, baseada numa relação de equivalência imediata. Ela se aproxima mais, como já disse antes, daquilo que Durkheim chama de “condições não contratuais do contrato”; ou seja, daquilo que, ao mesmo tempo, dá legitimidade normativa ao contrato, mas também inibe os chamados contratos “leoninos”, fundados na disparidade de força entre os contratantes (DURKHEIM, 1999)[30].
Esse tipo de condicionalidade, que Alain Caillé chama de incondicionalidade condicional (e Axel Honneth chama de reconhecimento intersubjetivo), visa igualar as pessoas. Esse é o sentido do vínculo social no qual se apoiam teorias como a do reconhecimento e da dádiva, mesmo que se possam interpretá-las de forma diferente. A condicionalidade unilateral, ao contrário, assemelha-se mais ao contrato leonino, porque é estabelecida por apenas uma das partes, a mais forte. Na verdade, a condicionalidade unilateral é que é, de fato, incondicional, mas se trata de uma incondicionalidade perversa porque imposta de cima ao lado mais fraco; ou seja, ao beneficiário de políticas públicas como a bolsa família, cujas exigências de contrapartida não podem ser contestadas sem acarretar a perda do benefício.
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