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Estética da existência e cinismo em Foucault: a vida outra como forma de resistência ética e política

Aesthetics of existence and cynicism in Foucault: The other life as a form of ethical and political resistance

Camila Aguiar Stenico
Universidade de São Paulo, Brasil

Estética da existência e cinismo em Foucault: a vida outra como forma de resistência ética e política

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 5, núm. 10, pp. 114-135, 2017

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 08 Março 2017

Aprovação: 15 Junho 2017

Resumo: Este artigo traz uma análise sobre a forma como a questão da resistência é tratada por Michel Foucault em suas últimas pesquisas, particularmente naquelas apresentadas pelo autor nos cursos do Collège de France a partir dos anos 1980. Com o deslocamento do foco de seus estudos para as noções de verdade (dizer-a-verdade) e de governo (condução das condutas), tomadas sempre em sua relação com a constituição do sujeito – esta uma questão permanente nas investigações foucaultianas, observa-se a formação de uma nova problemática, marcada por questões éticas e políticas. Nesse novo quadro de problemas, tencionamos esclarecer as possíveis relações dos temas da estética da existência e do cinismo, pensados como modo de vida, com a questão mais geral da resistência ao poder.

Palavras-chave: Estética da existência, Cinismo, Resistência.

Abstract: This article presents an analysis of how the issue of resistance is dealt with by Michel Foucault in his latest researches, particularly those presented by the author in the courses of the Collège de France in the early 1980s. By shifting the focus of his studies to the notions of truth (truth-telling) and government (the conduct of conduct), always taken in relation to the constitution of the subject - which is a permanent theme in Foucauldian investigations -, a new problematic emerges, marked by ethical and political issues. In this new framework of problems, we intend to clarify the possible relations between the themes of the aesthetics of existence and cynicism, thought as a way of life, and the more general issue of resistance to power.

Keywords: aesthetics of existence, cynicism, resistance.

Introdução

Com a publicação dos últimos cursos ministrados por Michel Foucault no Collège de France, abriu-se a possibilidade de estudar novas questões propostas pelo autor: para além da noção de saber/poder, acompanhamos, a partir de 1978, o deslocamento teórico realizado por ele na direção das noções de verdade e de governo, sem perder de vista o problema geral da constituição do sujeito − este, sim, o grande tema das investigações foucaultianas[1]. Diante disso, o que se propõe aqui é compreender, em alguma medida, de que forma a noção de resistência se insere e se atualiza nesse novo contexto.[2] Pois, se há um deslocamento na maneira de pensar o poder, deve haver um deslocamento correspondente na maneira de pensar a resistência, visto que ambos formam um par conceitual no pensamento foucaultiano. As relações de poder só podem existir quando existe também a possibilidade de resistência: “onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder” (FOUCAULT, 1988, p. 105). O poder não é da ordem da violência, porque é, por definição, uma relação entre sujeitos livres[3]. É preciso entender, então, como a noção de resistência se encaixa no novo quadro de problematizações elaborado por Foucault, sobretudo nos cursos que ministrou a partir dos anos 1980.

O projeto inacabado de uma História da sexualidade representou a emergência de uma nova temática na trajetória do autor − a da autoconstituição dos sujeitos por meio das “artes da existência” ou técnicas de si, entendidas como práticas refletidas e voluntárias pelas quais os homens se fixam regras de conduta a fim de transformarem-se a si mesmos e constituírem sua vida como uma obra de arte (FOUCAULT, 1984). Trata-se de eleger regras facultativas éticas e estéticas para constituir novos modos de existência − exercício de si sobre si, autoelaboração. O silêncio que se seguiu ao terceiro volume da História da sexualidade, deixando inacabada a sequência de estudos inicialmente proposta, é revelador do redirecionamento operado pelo autor em sua pesquisa. Daí a importância da leitura dos cursos ministrados à época: eles ajudam a elucidar o novo caminho percorrido, as novas questões exploradas por Foucault.

O curso dado no Collège de France em 1982 − A hermenêutica do sujeito − situa-se no cerne da mutação de problemática em seus estudos. A partir desse momento, o foco das investigações foucaultianas esteve na articulação entre verdade e governo (de si e dos outros), mais precisamente no quadro da constituição de uma relação de si para consigo (processo de subjetivação). Cruzamento, portanto, de duas grandes temáticas na obra do autor: história da subjetividade e análise das formas de governamentalidade, ambas perpassadas pela questão da verdade. Em uma das aulas do curso de 1982, o autor esclarece:

[...] se considerarmos a questão do poder, do poder político, situando-a na questão mais geral da governamentalidade — [...] entendida pois como um campo estratégico de relações de poder no que elas têm de móvel, transformável, reversível –, então, a reflexão [...] não pode deixar de passar, teórica e praticamente, pelo âmbito de um sujeito que seria definido pela relação de si para consigo. [...] devemos considerar que relações poder/governamentalidade/governo de si e dos outros/ relação de si para consigo compõem uma cadeia, uma trama e que é em torno dessas noções que se pode, a meu ver, articular a questão da política e a questão da ética (FOUCAULT, 2010b, p. 225).

Dentro desse contexto geral de análise, marcado pela articulação entre governamentalidade e subjetividade, Foucault recuou até a antiguidade greco-romana para estudar o cuidado de si e verificar as vinculações possíveis entre sujeito, governo e verdade, bem como sua reelaboração pelo cristianismo. O objetivo deste trabalho é compreender quais são as possibilidades de resistência[4] nesse campo da relação consigo e com os outros, permeado que está pelos mecanismos de poder e jogos de verdade descritos por Foucault. No cerne dessa articulação entre governamentalidade e subjetividade, está a questão da conduta — condução das condutas e conduta de si, respectivamente. Trata-se, portanto, de pensar a constituição de modos de vida − via autoelaboração, prática de si sobre si − como uma forma de resistência ética e política; ética no que diz respeito à construção de uma relação de si para consigo, e política na medida em que permite transformar o mundo: vida outra e mundo outro.

Estética da existência: um exercício de liberdade

Em seus estudos sobre a Antiguidade greco-romana e o cristianismo primitivo, Foucault procurou demonstrar uma série de transformações que deram origem a processos de subjetivação[5] muito diferentes entre si. Desde o curso dado no Collège de France em 1980 — Do governo dos vivos, a relação estabelecida pelo autor entre o pensamento greco-latino e o cristianismo adquiriu a forma de uma oposição entre um modo de subjetivação antigo, que implicava a construção de si/modelagem da existência/cuidado de si como exercício de liberdade, e um modo de subjetivação cristão, que conduzia à renúncia de si pela aplicação de um conhecimento e de uma obrigação permanente de obedecer (GROS, 2011). Assim, da Antiguidade ao cristianismo, passou-se de uma moral que era essencialmente a busca por uma ética pessoal para uma moral baseada na obediência a um sistema de regras. No entanto, segundo Foucault, essa moral cristã, entendida como obediência a um código de regras, está em vias de desaparecer — ou já desapareceu — nas sociedades ocidentais contemporâneas. A essa ausência, o autor sugeriu, deve corresponder a busca por uma estética da existência, entendida como a elaboração de si mesmo por meio de técnicas de si austeras, que não são impostas por mecanismos jurídicos ou legais; são, ao contrário, práticas voluntárias, fruto de uma escolha individual em nome do desejo de alcançar uma vida bela (FOUCAULT, 2014b). A estética da existência é a constituição da vida como obra de arte, o trabalho de si sobre si mesmo, tal qual o de um artesão.

De acordo com Foucault, nenhum pensador grego jamais formulou a questão do sujeito ou encontrou sua definição. Isso não significa, entretanto, que os gregos não tenham procurado definir as condições nas quais se dava a experiência do indivíduo que buscava se constituir como senhor de si mesmo. Depois, com o desenvolvimento do cristianismo, deu-se o processo de confisco da moral pela teoria do sujeito. Entretanto, para o autor, uma experiência moral essencialmente centrada no sujeito não é mais satisfatória nos dias atuais. Por isso, um certo número de questões coloca-se hoje em termos semelhantes aos que se colocavam na Antiguidade, por exemplo, a busca por estilos de vida tão diferentes quanto possível uns dos outros. Em entrevista com Dreyfus e Rabinow, realizada em 1983, Foucault afirmou que, na ética grega, a principal preocupação das pessoas era sua conduta moral, sua ética, sua relação consigo mesmo e com os outros; as questões religiosas (o que acontece depois da morte, o que são os deuses, etc.) não eram importantes e não se relacionavam diretamente com a ética. Além disso, a ética não estava vinculada a nenhum sistema social institucional ou aspecto legal. Por fim, o objetivo maior, entre os antigos gregos e romanos, era constituir um tipo de ética que fosse uma estética da existência. Diante disso, Foucault se questiona:

...] Eu me pergunto se nosso problema hoje em dia não é, de certo modo, semelhante, já que a maior parte das pessoas não acredita mais que a ética esteja fundada na religião, nem deseja um sistema legal para intervir em nossa vida moral, pessoal e privada. Os recentes movimentos de liberação sofrem com o fato de não poderem encontrar nenhum princípio que sirva de base à elaboração de uma nova ética. Necessitam de uma ética, porém não conseguem encontrar outra senão aquela fundada no chamado conhecimento científico do que é o eu, do que é o desejo, do que é o inconsciente etc. (FOUCAULT, 2010c, p. 299).

No entanto, é preciso ressaltar: a busca por uma ética que seria aceitável para todo o mundo, isto é, de uma ética universal, baseada, por exemplo, em um princípio de racionalidade, parece catastrófica ao autor. Não se trata de fundamentar a busca contemporânea na experiência da Antiguidade clássica, até porque a própria moral cristã estava incrustada na moral antiga (FOUCAULT, 2014b), ou seja, muitos dos elementos da cultura de si foram integrados, deslocados ou reutilizados pelo cristianismo a serviço do poder pastoral. O poder pastoral teve suas origens no Oriente pré-cristão e foi introduzido no Ocidente pelo cristianismo, adquirindo a partir daí uma forma institucional. Trata-se de uma “arte de governar os homens”, uma arte de conduzir, dirigir, guiar, controlar os homens coletiva e individualmente. Vale lembrar que é nessa característica de governo dos homens adquirida pelo poder pastoral, desenvolvido pela Igreja cristã, que Foucault percebeu o nexo com a formação da governamentalidade política que marcou o início do Estado moderno (FOUCAULT, 2008).

O cuidado de si transformou-se no cuidado dos outros, trabalho exercido pelo pastor — cuidado das almas canalizado na salvação dos indivíduos (FOUCAULT, 2014). Portanto, não se trata de recuperar a experiência greco-romana em seu conteúdo, mas de pensar a questão da estética da existência enquanto possibilidade de constituição de uma ética não relacionada ao saber científico, ao sistema jurídico ou às questões religiosas, sociais, políticas e econômicas, mas como uma maneira de criar novos modos de vida e experiências de si tão diversos quanto possível. Diz Foucault:

Dentre as invenções culturais da humanidade, há um tesouro de dispositivos, técnicas, ideias, procedimentos etc., que não pode ser exatamente reativado, mas que, pelo menos, constitui, ou ajuda a constituir, um certo ponto de vista que pode ser bastante útil como uma ferramenta para a análise do que ocorre hoje em dia — e para mudá-lo (FOUCAULT, 2010c, p. 305).

Para ele, o que é interessante na ética grega é a ideia de fazer da própria vida o material para uma peça de arte estética e, também, a ideia de que a ética pode ser uma estrutura de existência forte, sem vinculação necessária com um sistema autoritário, jurídico ou com uma estrutura disciplinar (FOUCAULT, 2010c). A elaboração de si por meio de técnicas de si austeras não eram impostas por nenhuma lei civil ou obrigação religiosa; tratava-se de uma escolha feita pelo próprio indivíduo. Segundo o autor, essa é uma ideia que se perdeu a partir do cristianismo:

Naquilo que se poderia chamar de culto contemporâneo de si, a aposta é descobrir seu verdadeiro eu, separando-o do que poderia torná-lo obscuro, ou aliená-lo, decifrando sua verdade por meio de um saber psicológico ou de um trabalho psicanalítico. Assim, não somente eu não identifico a cultura antiga de si no que se poderia chamar de culto contemporâneo de si, mas penso que eles são diametralmente opostos (FOUCAULT, 2014, p. 230).

É possível tentar reler toda uma vertente do pensamento do século XIX e tentar reconstituir uma ética e uma estética do eu: Stirner, Schopenhauer, Nietzsche, Baudelaire, o dandismo, a anarquia etc. No entanto, o que se observa nesses casos é a falta de significação e pensamento conferidos a expressões, muito familiares e recorrentes nos discursos atuais, como: “retornar a si”, “liberar-se”, “ser si mesmo”, “ser autêntico” etc. São, diz Foucault, referências vazias, ausentes de significado preciso e conteúdo (FOUCAULT, 2010b). Ao que parece, houve uma inversão da cultura clássica de si quando o cristianismo substituiu a ideia de um si que deveria ser criado como obra de arte pela ideia de um si ao qual era preciso renunciar, pois ater-se a si mesmo era se opor ao desejo de Deus (FOUCAULT, 2010c). O problema de uma estética da existência foi encoberto pelo problema da pureza — o ascetismo cristão tem por objetivo a pureza da alma. O sujeito cristão precisava ser constantemente examinado para que nele se pudessem identificar a concupiscência e os desejos da carne, entre outros “males”. Não se trata mais de um sujeito que se constrói, mas de um sujeito que se decifra e renuncia a si mesmo:

[...] entre o paganismo e o cristianismo, a oposição não ocorre entre tolerância e austeridade, mas entre uma forma de austeridade ligada a uma estética da existência e outras formas de austeridade ligadas à necessidade de renunciar ao si e decifrar sua verdade (FOUCAULT, 2010c, p. 321).

Para além do contraponto entre a ética grega e a pastoral cristã, a noção de estética da existência também é elaborada por Foucault em relação a uma outra questão: a da “atitude de modernidade”, termo cunhado pelo autor no texto “O que são as Luzes?”, de 1984. A análise desse tema foi feita a partir do texto kantiano sobre a Aufklärung,[6] definida, em linhas gerais, como a saída do homem de seu estado de menoridade, ou seja, como “o momento em que a humanidade fará uso de sua própria razão, sem se submeter a nenhuma autoridade” (FOUCAULT, 2013, p. 357). A definição da atitude de modernidade está ligada especificamente à reflexão elaborada por Kant sobre a atualidade como “diferença na história e como motivo para uma tarefa filosófica particular” (FOUCAULT, 2013, p. 357). Diz o autor:

Referindo-me ao texto de Kant, pergunto-me se não podemos encarar a modernidade mais como uma atitude do que como um período da história. Por atitude, quero dizer um modo de relação que concerne à atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa, um pouco, sem dúvida, como aquilo que os gregos chamavam de êthos (FOUCAULT, 2013, p. 358).

A caracterização da atitude de modernidade é feita a partir de Baudelaire, “já que se reconhece nele uma das consciências mais agudas da modernidade do século XIX” (FOUCAULT, 2013, p. 358). Essa atitude é caracterizada pela “heroificação” irônica do presente, um jogo de liberdade com o real para sua transfiguração e a elaboração ascética de si. Foucault listou, a partir de Baudelaire, quatro características principais da atitude de modernidade (FOUCAULT, 2013):

  1. 1. Ser moderno não é aceitar o movimento perpétuo e descontínuo do tempo, é assumir uma atitude voluntária e difícil diante desse movimento: a de recuperar alguma coisa de eterno no instante presente. A modernidade não é a sensibilidade diante de um presente fugidio, é a vontade de “heroificar” o presente.
  2. 2. Essa “heroificação” do presente é irônica, pois não se trata de sacralizar o momento fugidio para tentar perpetuá-lo ou recolhê-lo como uma curiosidade interessante; trata-se de transfigurar o presente. Essa transfiguração não é a anulação do real, mas um jogo entre a verdade do real e o exercício da liberdade. A atitude de modernidade é um exercício em que a extrema atenção para com o real é confrontada com a prática de uma liberdade que respeita e, ao mesmo tempo, viola esse real.
  3. 3. Para além de uma forma de relação com o presente, a atitude de modernidade é também uma forma de relação consigo, necessariamente ligada a uma forma de ascetismo. Ser moderno é não se aceitar tal como se é no fluxo dos momentos que passam, mas tomar a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa (é isso o que caracterizava o dandismo na época de Baudelaire). Trata-se de fazer da própria existência uma obra de arte, por meio do ascetismo. Diz Foucault,

    O homem moderno, para Baudelaire, não é aquele que parte para descobrir a si mesmo, seus segredos e sua verdade escondida; ele é aquele que busca inventar-se a si mesmo. Essa modernidade não liberta o homem em seu ser próprio, ela lhe impõe a tarefa de elaborar a si mesmo (FOUCAULT, 2013, p. 361).

  4. 4. A atitude de modernidade, segundo Baudelaire, não se pode produzir na própria sociedade ou em seu corpo político, mas apenas na arte.

Vê-se aí, na descrição da atitude de modernidade, a ideia geral de elaboração ascética de si, fundamentada em uma escolha voluntária em que o indivíduo constitui a própria vida como obra de arte, a partir de critérios estéticos, caracterizando uma invenção de si mesmo. Além disso, encontra-se a ideia de transfiguração do presente, pensada como jogo entre a verdade do real e o exercício da liberdade: aqui se abre um espaço para pensar a questão do cinismo, desenvolvida por Foucault principalmente em seu último curso dado no Collège de France, em 1984: A coragem da verdade.

O Cinismo e a Busca pela Vida Outra

O tema principal do curso de 1984 — A coragem da verdade, é a parresía (parrésia, fala franca), noção esta que, no contexto da Antiguidade greco-romana, era fundamentalmente política, já que se referia, em primeiro lugar, a uma prática, um direito e uma obrigação de veridicção[7] do cidadão em relação à sua cidade, isto é, direito do cidadão de dizer sua palavra sobre os assuntos da cidade (FOUCAULT, 2011b). A análise dessa noção afastava um pouco Foucault de seu projeto imediato – a história antiga das práticas do dizer-a-verdade sobre si mesmo. Por outro lado, esse inconveniente era compensado pelo fato de que, empreendendo a análise da parrésia no campo das práticas políticas, o autor se aproximava de um tema apresentado constantemente em suas análises: o papel das relações de poder no jogo entre o sujeito e a verdade.

Além disso, a partir de determinado momento, a noção de parrésia, arraigada originalmente na prática política e na problematização da democracia, é derivada para a esfera da ética pessoal e da constituição do sujeito moral: passa-se da cidade à alma do indivíduo como correlativo essencial da parrésia. O objetivo parresiástico do dizer-a-verdade deixa de ser a salvação da cidade para se tornar o éthos do indivíduo. Surge aí um conjunto de operações que permitem que a veridicção induza efeitos de transformação na alma do indivíduo (FOUCAULT, 2011b, p. 58). Com isso, Foucault encontra a possibilidade de colocar a questão do sujeito e da verdade do ponto de vista da prática do governo de si e dos outros. Diz o autor:

Parece-me que examinando a noção de parresía podemos ver se ligarem entre si a análise dos modos de veridicção, o estudo das técnicas de governamentalidade e a identificação das formas de prática de si. A articulação entre os modos de veridicção, as técnicas de governamentalidade e as práticas de si é, no fundo, o que sempre procurei fazer. [...] Trata-se [...] da análise das relações complexas entre três elementos distintos, que não se reduzem uns aos outros, [...] mas cujas relações são constitutivas umas das outras. Esses três elementos são: os saberes, estudados na especificidade da sua veridicção; as relações de poder, estudadas não como uma emanação de um poder substancial e invasivo, mas nos procedimentos pelos quais a conduta dos homens é governada; e enfim os modos de constituição do sujeito através das práticas de si (FOUCAULT, 2011b, pp. 9-10).

Operou-se, portanto, um tríplice deslocamento teórico — do conhecimento para a veridicção, da dominação para a governamentalidade, do indivíduo para as práticas de si, a partir do qual Foucault procurou estudar as relações entre verdade, poder e sujeito sem reduzi-las umas às outras.

Partindo da análise de dois diálogos platônicos — o Laquese o Alcibíades, Foucault procurou delinear a história da estética da existência pela emergência e fundação da parrésia socrática,[8] a partir da qual a existência (bíos) passou a ser constituída no pensamento grego como um objeto de elaboração e de percepção estética: trata-se, novamente, da ideia de vida como obra de arte (FOUCAULT, 2011b).

Situando seus estudos no momento socrático do fim do século V a.C., Foucault procurou captar como o dizer-a-verdade, na modalidade ética que aparece com Sócrates, interferiu no princípio da existência como obra a ser modelada em toda a sua perfeição possível, e como o cuidado de si, que havia sido por muito tempo, antes de Sócrates, comandado pelo princípio de uma existência brilhante e memorável, foi retomado e reelaborado pelo dizer-a-verdade, com o qual se haveria de confrontar corajosamente, ou seja, como se combinaram o objetivo de uma beleza da existência e a tarefa de dar conta de si mesmo no jogo da verdade. Tratava-se de captar, portanto, a arte da existência e o discurso verdadeiro, a relação entre a existência bela e a verdadeira vida, a vida na verdade, a vida para a verdade (FOUCAULT, 2011b). Vale lembrar que todo esse aspecto da história da subjetividade que constituiu a vida como objeto de uma elaboração estética foi encoberto e dominado pela história da metafísica e pelo estudo privilegiado das formas estéticas que foram concebidas para dar forma às coisas, às substâncias, às cores, ao espaço, à luz, ao som, às palavras. Mas, diz Foucault,

[...] é preciso [lembrar], para o homem, sua maneira de ser e de se conduzir, o aspecto que sua existência faz aparecer aos olhos dos outros e aos seus próprios, também o vestígio que essa existência pode deixar e deixará na lembrança dos outros depois da sua morte, [...] foram um objeto de preocupação estética (FOUCAULT, 2011b, p. 141).

A partir da análise do Laques, coloca-se uma questão importante, que é a da ética da verdade, isto é, das condições morais que permitem ao sujeito ter acesso à verdade e dizer a verdade. A ética da verdade pode ser encontrada sob a forma catártica ou sob a forma de coragem da verdade: na primeira, está em jogo a questão da purificação e do sacrifício, isto é, o sujeito se constitui em ruptura com o mundo impuro (o mundo da falta, do interesse, do prazer). A coragem da verdade diz respeito ao caminho de combate, de luta, pelo qual também se acede à verdade (FOUCAULT, 2011b, p. 110). Foucault destacou a importância de perceber essa diferença e promover a análise não mais da purificação pela verdade, mas da vontade de verdade em suas diferentes formas, que podem ser a da curiosidade, do combate, da coragem, da resolução, da resistência.

No quadro geral da estética da existência, da busca de uma existência bela na forma da verdade e do dizer a verdade, Foucault situou uma discussão sobre o cinismo — uma filosofia na qual o modo de vida e o dizer-a-verdade estão direta e imediatamente ligados (FOUCAULT, 2011b). Em linhas gerais, o cinismo caracteriza-se por não se contentar apenas com uma correspondência ou harmonia entre um tipo de discurso e um modo de vida conforme aos princípios enunciados por esse discurso. O vínculo entre modo de vida e verdade é muito mais preciso: o cinismo faz da própria vida, da própria existência, uma aleturgia,[9] “um modo de tornar visível, nos gestos, nos corpos, na maneira de se vestir, na maneira de se conduzir e de viver, a própria verdade” (FOUCAULT, 2011b, p. 150).

O período de maior desenvolvimento do cinismo deu-se entre os séculos I a.C. e III d.C. Durante esses quatro séculos, duas coisas, sobretudo, caracterizaram a atitude cínica: denúncias numerosas e muito violentas e oposição em relação às leis divinas e humanas, bem como a toda forma de tradicionalidade ou de organização social (FOUCAULT, 2011b). Nesse sentido, embora o autor não o diga, é possível pensar a atitude cínica como uma forma de contraconduta. O cinismo não se baseava tanto numa doutrina, mas numa prática e na transmissão de esquemas de vida por meio de exemplos, anedotas, relatos etc. A isso Foucault chamou «tradicionalidade de existência», em oposição à «tradicionalidade doutrinal” que consistia, na Antiguidade, em atualizar um núcleo de pensamento esquecido para fazer dele o princípio de autoridade de um pensamento que se dá numa relação complexa de identidade e alteridade com o pensamento inicial:

[...] a tradicionalidade de existência não se dá como objetivo atualizar um núcleo de pensamento primitivo, mas rememorar elementos e episódios de vidas [...] que se trata agora de imitar, aos quais se tem de dar existência, não porque teriam sido esquecidos como na tradicionalidade doutrinal, mas porque não estaríamos mais, agora, hoje, à altura desses exemplos, porque um declínio, um debilitamento, uma decadência levaram a perder a possibilidade de fazer a mesma coisa (FOUCAULT, 2011b, p. 185).

Foi justamente por meio da tradicionalidade de existência que surgiu a figura do herói filosófico, diferente da figura do sábio da tradição arcaica e também da figura do asceta cristão. O herói filosófico representou, à época, um determinado modo de vida extremamente importante, pois modelava as existências e operava como uma matriz prática para a atitude filosófica. O cinismo foi a essência desse heroísmo filosófico e nisso está, segundo Foucault, sua importância histórica. A figura do herói filosófico desapareceu no início do século XIX, quando a filosofia deixou de ser um modo de vida e se tornou um ofício — o ofício do ensino, do professor. Mas, ressalva o autor, é possível encontrar o heroísmo filosófico em nossa época de uma maneira deslocada e transformada, não mais no âmbito da prática filosófica, mas no campo político, na figura do revolucionário (FOUCAULT, 2011b).

Vimos que no cinismo o dizer-a-verdade adquiriu uma forma bastante específica, que é a da vida como testemunho da verdade. A partir daí, Foucault desenvolveu o tema da verdadeira vida .alethès bíos). Em Platão, a verdadeira vida deveria ser não dissimulada, não misturada, reta, estável, incorruptível e feliz. Os cínicos, por sua vez, jogaram com a noção clássica de verdadeira vida: a partir dos mesmos princípios, o cinismo extrapolou, levou ao limite e operou uma reversão dos temas que caracterizavam a noção platônica. Havia quatro princípios básicos vinculados às práticas do cinismo que se assemelhavam bastante à tradição socrática e às temáticas de outras filosofias. São eles: (i) a filosofia é uma preparação para a vida; (ii) essa preparação implica ocupar-se de si mesmo; (iii) para ocupar-se de si é preciso estudar apenas o que é realmente útil na e para a existência; (iv) é preciso tornar a vida conforme aos preceitos que são formulados como verdadeiros. No entanto, havia um elemento fundamental e particular ao cinismo: o princípio segundo o qual é preciso “mudar o valor da moeda” (parakharáxon tò nómisma). Sobre esse princípio, Foucault diz:

Encontramos, é claro, algumas interpretações desse princípio, essencialmente em torno do tema de que nómisma é a moeda, mas também é nómos: a lei, o costume. O princípio de alterar o nómisma também é mudar o costume, romper com ele, quebrar as regras, os hábitos, as convenções e as leis. É bem verossímil que, qualquer que tenha sido o sentido originário dessa fórmula, tenha sido assim que ela foi recebida e compreendida. É isso, portanto, em certo sentido, que é necessário reter (FOUCAULT, 2011b, p. 213).

O autor sugere ainda que é possível esclarecer o sentido desse princípio a partir da noção de “vida de cão” ou “vida canina”, que se refere à caracterização atribuída aos cínicos por eles mesmos. Quatro elementos fundamentais caracterizam a vida de cão dos cínicos: impudor, indiferença, diacrítica/distinção, guarda/proteção. A partir dessas características, é possível perceber como a vida cínica foi, ao mesmo tempo, o eco e a reversão da verdadeira vida dos filósofos clássicos:

Esse bíos alethès [...] era uma vida sem dissimulação, que não ocultava nada, uma vida capaz de não ter vergonha de nada. Pois bem, essa vida, no limite, é a vida desavergonhada do cão cínico. A vida indiferente [...], que se contenta com o que tem, com o que encontra, [...] essa vida não é nada mais que a continuação, o prolongamento, a passagem ao limite, a reversão escandalosa da vida sem mistura, da vida independente [...]. A vida diacrítica, essa vida latidora que faz distinguir entre o bem e o mal, entre os amigos e os inimigos [...] é a continuação, mas também a reversão escandalosa, violenta, polêmica, da vida reta, da vida que obedece à lei [...]. Enfim, a vida de cão de guarda, vida de combate e de serviço que caracteriza o cinismo também é a continuação e a reversão dessa vida tranquila, senhora de si, dessa vida soberana que caracterizava a existência verdadeira (FOUCAULT, 2011b, p. 214).

Dentre todos os aspectos da reversão da verdadeira vida operada pelos cínicos, considerando os fins deste trabalho, merece destaque a reversão da soberania em resistência combativa, caracterizando o que Foucault chamou, mesmo reconhecendo o anacronismo do termo, de “vida militante”. Trata-se de uma vida de combate, de luta contra si e por si, contra os outros e pelos outros. Essa questão é, para o autor, um núcleo importante na história da ética, já que muitas das noções e imagens utilizadas pelos cínicos foram reencontradas, posteriormente, na temática da vida militante. Por exemplo: a ideia do cão de guarda que ataca os inimigos; a noção do combatente-soldado ou combatente-atleta, que luta contra os males do mundo; a ideia do lutador que está sempre entregue ao combate e suporta sua própria miséria para o bem de todos. Note-se que a militância dos cínicos é diferente da militância filosófica, que era encontrada com frequência na filosofia antiga e era exercida por um pequeno número de privilegiados, essencialmente em circuito fechado, com o objetivo de somar aderentes a uma determinada seita. A militância cínica, por outro lado, era aberta e dirigia-se a todos, recorrendo a meios violentos e drásticos, tendo por objetivo não tanto ensinar as pessoas, mas sacudi-las bruscamente a fim de transformar também o mundo:

É uma militância em meio aberto no sentido que pretende atacar não somente este ou aquele vício, defeito ou opinião que este ou aquele indivíduo poderia ter, mas igualmente as convenções, as leis, as instituições que, por sua vez, repousam nos vícios, defeitos, fraquezas, opiniões que o gênero humano compartilha em geral. É, portanto, uma militância que pretende mudar o mundo, muito mais que uma militância que buscaria simplesmente fornecer a seus adeptos os meios de alcançar uma vida feliz (FOUCAULT, 2011b, p. 251).

Então, Foucault concluiu que a questão da alteração do valor da moeda proposta pelos cínicos estava relacionada à substituição das formas e hábitos modeladores da existência pela efígie dos princípios tradicionalmente admitidos pela filosofia. Pelo fato de que, para os cínicos, esses princípios devessem ser aplicados à própria vida, da mesma forma como a efígie da moeda modela o metal na qual é impressa, a vida daqueles que não o faziam aparecia como uma moeda falsa, sem valor. Ou seja, com a retomada dos princípios mais gerais da filosofia corrente e pelo fato de serem aplicados à própria vida, à própria existência, como forma de dizer-a-verdade, o cinismo teria posto em circulação a verdadeira moeda, com o verdadeiro valor. A vida cínica, que manifestava em si mesma os princípios da verdadeira vida, seria diferente da vida que levavam os homens em geral e os filósofos em particular, que mantinham os princípios no elemento do lógos. Havia aí, portanto, a ideia de que a verdadeira vida é a vida outra. Esse é um ponto particularmente importante na história do cinismo, da filosofia e da ética ocidental. Trata-se da proposição de uma questão incisiva em relação à vida filosófica: «a vida, para ser verdadeiramente a vida de verdade, não deve ser uma vida outra, uma vida radical e paradoxalmente outra? Radicalmente outra, porque em ruptura total e em todos os pontos com as formas tradicionais de existência” (FOUCAULT, 2011b, p. 215). Segundo Frédéric Gros, o cínico transformou a verdadeira vida em uma vida outra, escandalosa, inquietante e marginalizada:

A verdadeira vida não é mais representada como essa existência consumada, que levaria à perfeição qualidades ou virtudes que os destinos ordinários só ressaltam com fraco brilho. Ela se torna, com os cínicos, uma vida escandalosa, inquietante, uma vida “outra”, imediatamente rejeitada, marginalizada (GROS, 2011, p. 313).

Em suma, o cinismo caracterizou-se por promover um modo de vida sempre em ruptura com os outros. O cínico era reconhecido por sua franqueza (parrésia — linguagem áspera, ataques verbais violentos), mas também por seu aspecto exterior (sujo, vestes velhas, mochila simples, cajado, sandálias ou pés descalços etc.), e esse modo de vida rústico e despojado era a expressão manifesta de uma provação da existência pela verdade.

A filosofia grega colocou, desde Sócrates e pelo platonismo, a questão do outro mundo, mas também colocou a questão da vida outra, a partir do modelo socrático a que se referia o cinismo. A comparação entre o Alcibíadese o Laques demonstrou como, partindo do cuidado de si socrático, esboçaram-se duas grandes linhas de desenvolvimento da filosofia ocidental. Por um lado, no Alcibíades, o cuidado de si conduziu à questão do que é, em sua verdade e em seu próprio ser, o “si mesmo” de que é necessário cuidar. O desenvolvimento do diálogo mostra que a alma é que precisava ser cuidada e contemplada: “E no espelho da alma se contemplando a si mesma, o que se descobria? O mundo puro da verdade, esse mundo outro que é o da verdade e aquele a que se deve aspirar” (FOUCAULT, 2011b, p. 216). Assinala-se aí, nesse movimento em direção ao outro mundo, a origem da metafísica ocidental. Por outro lado, a questão do cuidado de si, da forma como é tratada no Laques, levou a uma questão diferente: a de saber como deve ser a vida daquele que pretende cuidar de si. Desenvolveu-se a partir daí a interrogação sobre o que deve ser, em relação a todas as outras formas de vida, a vida daquele que cuida de si.

Há que se reconhecer, entretanto, que houve interferências mútuas entre essas duas linhas divergentes de desenvolvimento da prática filosófica ocidental. Além disso, o cristianismo e todas as correntes gnósticas procuraram pensar de maneira sistemática e coerente a relação entre o outro mundo e a vida outra: a vida de ascese, de ruptura foi pensada como condição de acesso ao outro mundo — fórmula esta que, como se sabe, foi radicalmente questionada pela ética protestante. Segundo Foucault, a grande importância filosófica do cristianismo está no fato de ter estabelecido uma relação entre o tema da vida outra como verdadeira vida e o tema do acesso ao outro mundo como acesso à verdade: trata-se da combinação entre um ascetismo de origem cínica e uma metafísica de origem platônica. No entanto, há, no cristianismo, algo completamente novo, que é o princípio da obediência (obediência a Deus e aos homens que o representam). Esboçou-se, a partir do ascetismo cristão e do princípio de obediência, um novo tipo de relação consigo, um novo tipo de relações de poder e um novo regime de verdade (FOUCAULT, 2011b).

De acordo com a análise de Frédéric Gros sobre o curso de 1984, a busca realizada pelos cínicos por uma vida outra, que é a verdadeira vida, constituiu ao mesmo tempo a crítica do mundo existente e o chamado não a um outro mundo, mas a um mundo outro, cujo advento supõe a transformação do mundo presente. Portanto, elaboração de si e crítica do presente são compreendidas como tarefas eminentemente políticas:

Por essa irrupção dissonante da “verdadeira vida” no meio do concerto das mentiras e das falsas aparências, das injustiças aceitas e das iniquidades dissimuladas, o cínico faz surgir o horizonte de um “mundo outro”, cujo advento suporia a transformação do mundo presente.

Essa crítica, supondo um trabalho contínuo sobre si e uma intimação insistente dos outros, deve ser interpretada como uma tarefa política (GROS, 2011, p. 314).

O cuidado de si, da forma como era apresentado em sua versão estoica e epicurista, fazia aparecer um jogo de liberdade em que a construção interna primava sobre a transformação política do mundo. Já, em sua versão socrática e cínica, o cuidado de si era importante e válido apenas na medida em que se dirigia provocativamente aos outros, revelando a cada um suas próprias contradições. O cuidado de si se torna um cuidado do mundo. A prática da verdade que caracterizava o cinismo não tinha por objetivo simplesmente mostrar o que é o mundo em sua verdade, mas mostrar que o mundo só poderia alcançar sua verdade e se transfigurar a partir de uma alteração completa na relação que os homens tinham consigo. “E é nesse retorno de si a si, é nesse cuidado de si que se encontra o princípio da passagem para esse mundo outro prometido pelo cinismo” (FOUCAULT, 2011b, p. 278).

A doutrina cínica, da forma como existiu na Antiguidade greco-romana, desapareceu ou perdeu-se, mas isso não significa que o cinismo não se tenha transmitido ao longo da história como uma atitude, uma maneira de ser, uma prática. Desse ponto de vista, pareceu possível a Foucault fazer uma história do cinismo através dos séculos — da Antiguidade até a atualidade. Vimos anteriormente que o problema central do cinismo era a relação entre formas de existência e manifestação da verdade. Sob essa perspectiva, há pelo menos três elementos que puderam transmitir, ao longo da história da Europa, o esquema cínico:

  1. 1. Ascetismo cristão: o primeiro suporte da transferência e da penetração do modo de ser cínico na Europa cristã foi constituído pela própria cultura cristã, pelas práticas e pelas instituições do ascetismo. A opção de vida como escândalo da verdade e o despojamento da vida como maneira de constituir, no próprio corpo, o teatro visível da verdade parecem ter sido, ao longo de toda a história do cristianismo, uma prática bastante viva e intensa em todos os esforços de reforma que se opuseram à Igreja e às suas instituições. Existiu, portanto, um cinismo cristão, “anti-institucional”, “antieclesiástico”, cujas formas e vestígios eram percebidos dentro da própria Reforma protestante ou mesmo da Contrarreforma católica (FOUCAULT, 2011b).
  2. 2. Práticas políticas/movimentos revolucionários do século XIX: o cinismo, enquanto um modo de vida que se constituía na manifestação violenta e escandalosa da verdade, fez parte da prática revolucionária no mundo europeu moderno. O modo de vida revolucionário adquiriu na Europa dos séculos XIX e XX três grandes formas: a vida revolucionária na sociedade secreta (forma importante no início do século XIX); o militantismo, na forma de organizações visíveis, como sindicatos ou partidos políticos com função revolucionária (essencial no último terço do século XIX); o militantismo como testemunho pela vida, na forma de um estilo de existência (aspecto dominante nos movimentos de meados do século XIX). Essa terceira forma é, para Foucault, a mais importante:

    Esse estilo de existência próprio do militantismo revolucionário, que assegura esse testemunho pela vida, está em ruptura, deve estar em ruptura com as convenções, os hábitos, os valores da sociedade. E ele deve manifestar diretamente, por sua forma visível, por sua prática constante e sua existência imediata, a possibilidade concreta e o valor evidente de uma outra vida, uma outra vida que é a verdadeira vida (FOUCAULT, 2011b, p. 161).

    Esse aspecto do testemunho pela vida podia ser encontrado de forma dominante no século XIX, nos movimentos que vão do niilismo ao anarquismo e ao terrorismo. Mas isso não quer dizer que esse aspecto tenha desaparecido totalmente — o problema da vida como escândalo da verdade ressurge incessantemente, por exemplo, no que se pode chamar de “esquerdismo” (FOUCAULT, 2011b).

  3. 3. Arte: a história da arte enquanto veículo do modo de vida cínico na cultura europeia seria longa e complexa (a sátira e a comédia, na Antiguidade, abordaram temas cínicos; na Europa medieval e cristã, seria necessário considerar aspectos da literatura como uma espécie de arte cínica). Mas, segundo Foucault, foi, sobretudo, na arte moderna que a questão do cinismo se tornou particularmente importante. A arte moderna constituiu-se como veículo do modo de ser cínico de duas maneiras. Primeiro, com o aparecimento — no final do século XVIII e ao longo do século XIX — da “vida de artista”. Trata-se da ideia de que a vida do artista deveria, em sua própria forma, constituir um testemunho do que é a arte em sua verdade. Esse tema da vida de artista repousa em dois princípios: primeiro, a arte seria capaz de dar à existência um caráter de ruptura e uma forma que é a da verdadeira vida; segundo, se a vida tem a forma de verdadeira vida, ela é a garantia de que toda obra, que se enraíza nela e a partir dela, pertence ao domínio da arte. A segunda maneira como a arte moderna foi veículo do cinismo foi a partir da disseminação da ideia de que a própria arte (literatura, pintura ou música) deveria estabelecer com o real uma relação que não fosse da ordem da ornamentação, mas da ordem do desnudamento, do desmascaramento, da escavação e da redução violenta ao elementar da existência:

    A arte (Baudelaire, Flaubert, Manet) se constitui como lugar de irrupção do debaixo, do embaixo, do que, na cultura, não tem direito, ou pelo menos não tem possibilidade de expressão. E, nessa medida, há um antiplatonismo da arte moderna. [...] Antiplatonismo: a arte como lugar de irrupção do elementar, desnudamento da experiência (FOUCAULT, 2011b, p. 165).

A arte moderna, desde o século XIX, estabeleceu com a cultura, com as normas sociais, com os valores e cânones estéticos, uma relação de redução, recusa e agressão. Cada regra estabelecida, deduzida, induzida, inferida a partir de um ato precedente se encontra rejeitada e recusada pelo ato seguinte. Daí a afirmação foucaultiana de que há, em toda forma de arte, uma espécie permanente de cinismo em relação a toda arte adquirida:

Ao consenso da cultura, se opõe a coragem da arte em sua verdade bárbara. A arte moderna é o cinismo na cultura, é o cinismo da cultura voltada contra ela mesma. E se não simplesmente na arte, é na arte principalmente que se concentram, no mundo moderno, em nosso mundo, as formas mais intensas de um dizer-a-verdade que tem a coragem de assumir o risco de ferir (FOUCAULT, 2011b, p. 165).

Considerações finais

Para concluir, pode-se dizer, então, que a imbricação da vida e da verdade, a manifestação do verdadeiro no corpo visível da existência é a caracterização essencial do cinismo, cuja posteridade pode ser buscada, segundo Foucault, na religião (ordens mendicantes do cristianismo), na política (o revolucionário do século XIX) ou ainda na arte moderna e contemporânea. O que nos interessa aqui é perceber, a partir do cinismo, pensado não como doutrina, mas enquanto prática ou atitude, como é possível conceber um modo de vida ético, baseado na relação de si consigo mesmo, e estético, baseado na escolha de determinados critérios de estilo, que se manifestam visivelmente na própria existência, no bíos, na maneira de conduzir-se; e, além disso, como essa elaboração ética e estética de si por si mesmo pode ter um caráter político, que se manifesta justamente na possibilidade de transfiguração de si e do mundo.

É possível ver no modo de subjetivação, isto é, na construção de uma relação de si para consigo, um campo de possibilidades para a contraconduta ou para a resistência ao poder, entendido como governamentalidade (condução de condutas). Nesse sentido, a resistência diante do governo pela verdade pode ser pensada nos termos da oposição entre a busca incessante pela verdade interior, o conhecimento indefinido de si, a purificação pela verdade e a coragem da verdade, entendida como a manifestação combativa e provocativa da verdade na espessura da própria vida, na maneira de ser e de conduzir-se. Se não só o corpo, mas também a subjetividade de cada um, são, como Foucault ensinou, suportes para e objetos de infinitos mecanismos de poder, também o são para tantas outras formas de resistência. Será preciso levar ao limite os próprios elementos da governamentalidade moderna, os mecanismos de governo da vida, de condução das condutas, para então revertê-los e, a partir do trabalho de si sobre si, forjar contracondutas e criar novos modos de vida que se constituam enquanto formas de resistência ética e política capazes de transformar o presente. Em suma: uma vida outra por um mundo outro.

Referências

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HONNETH, Axel. (1991), The Critique of Power — Reflective Stages in a Critical Social Theory (1985). Translated by Kenneth Baynes. London: First MIT Press ed.

Notas

[1] Basta lembrar “O sujeito e o poder”, texto em que Foucault afirmou que o objetivo de seu trabalho sempre foi o de criar uma história dos diferentes modos pelos quais, na cultura ocidental, os homens tornaram-se sujeitos: “Assim, não é o poder, mas o sujeito, que constitui o tema geral de minha pesquisa” (FOUCAULT, 2010a, p. 274).
[2] O interesse particular pela questão da resistência se deu a partir da análise feita por Axel Honneth, em The critique of power, sobre a “teoria do poder” desenvolvida por Foucault ao longo da década de 1970. Honneth interpretou essa trajetória como a construção paulatina de uma teoria crítica da sociedade fundada na noção de poder, cujas características permitem que seja pensada como uma extensão das tendências desenvolvidas pela Escola de Frankfurt. No entanto, para que Foucault pudesse ser pensado como um “representante contemporâneo das tendências frankfurtianas”, seria preciso encontrar em seus estudos elementos que permitissem pensar também a superação prática dos efeitos de dominação descritos por ele. Segundo Honneth, Foucault não ofereceu uma abordagem analítica “coerente” da ideia de resistência (HONNETH, 1991). Porém, o próprio Honneth negligencia a questão: embora Foucault não tenha se dedicado exclusivamente ao estudo desse tema, é possível encontrar indicações suficientes, embora dispersas em seus textos, cursos e entrevistas, que permitem compreender o papel fundamental da noção de resistência nos estudos sobre o poder.
[3] Para Foucault, as relações de poder não podem estar no âmbito da violência, porque esta não dá possibilidade de ação e reação; toda relação de poder, ao contrário, articula-se sobre um conjunto de ações e reações possíveis.
[4] Quando se fala em governamentalidade, é possível pensar a resistência em termos de contraconduta, visto que, para Foucault, o exercício do poder é da ordem do governo e consiste em “’conduzir condutas’ e em ordenar a probabilidade” (FOUCAULT, 2010a, p. 288).
[5] A subjetivação deve ser entendida como o “processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, mais precisamente de uma subjetividade, que evidentemente não passa de uma das possibilidades dadas de organização de uma consciência de si” (FOUCAULT, 2014b, p. 256).
[6] Trata-se de Was ist Aufklärung?, de 1784.
[7] A palavra “veridicção”, inexistente nos registros oficiais da língua portuguesa no Brasil, é a tradução corrente do termo francês “véridiction”, neologismo criado por Foucault para dar conta da noção de “dizer a verdade”. Cf. BECKER, EWALD & HARCOURT, 2012, p. 5 (n 09).
[8] A parrésia socrática é ética; nela o modo de vida aparece como o correlativo essencial da prática do dizer-a-verdade: “Dizer a verdade na ordem do cuidado dos homens é questionar o modo de vida deles, é procurar pôr à prova esse modo de vida e definir o que pode ser validado e reconhecido como bom e o que deve, ao contrário, ser rejeitado e condenado nesse modo de vida. É nisso que vocês veem se organizar essa cadeia fundamental que é a do cuidado, da parresía (da fala franca) e da divisão ética entre o bem e o mal na ordem do bíos (da existência)” (FOUCAULT, 2011b, p. 130).
[9] De acordo com Foucault (2011), aleturgia é a manifestação da verdade como um conjunto de procedimentos possíveis, verbais ou não, pelos quais se atualiza aquilo que é colocado como verdadeiro por oposição ao falso.
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