Resumo: As imagens da desigualdade e da política social expressas pelos governos de Getúlio Vargas (1930-45/51-54) e nos 30 anos seguintes à redemocratização de 1985 são discutidas aqui. Seus discursos atribuem três significados à desigualdade: injustiça, perceptível desde os anos 1930 e que indica a efetivação de direitos contra a questão social; atraso, captado já nos anos 1950 e a favor de políticas econômicas e educacionais para superar grandes desigualdades; e dívida, presente nos anos 1980 e que propõe a redistribuição de recursos, por reformas ou programas de transferência de renda. Uma imagem da política social se liga a cada uma da desigualdade: efetivação de direitos, modernização e redistribuição. O conceito de enquadramento é usado como na perspectiva da sociologia cultural para explorar 12 discursos de posse presidencial e 39 Mensagens anuais ao Congresso Nacional.
Palavras-chave:DesigualdadeDesigualdade,Análise de enquadramentosAnálise de enquadramentos,Governos no BrasilGovernos no Brasil.
Abstract: The images of inequality and social policy expressed by the governments of Getúlio Vargas (1930-45/51-54) and in the 30 years following the re-democratization of 1985 are discussed here. Their discourses attribute three meanings to inequality: injustice, perceptible since the 1930s and which indicates enforcing rights against social issue; delay, already captured in the 1950s and which privileges economic and educational policies to overcome great inequalities; and debt, noted in the 1980s and which suggests redistribution of resources, whether by distributive reforms or direct income transfer programs. The concept of frames is used as in the perspective of cultural sociology, to explore 12 speeches of presidential inauguration and 39 Messages to National Congress.
Keywords: Inequality, Frame analysis, Governments in Brazil.
Artigos
Desigualdade e política social no discurso dos governos Vargas e entre 1985 e 2016
Inequality and social policy in the discourse of the Vargas administrations and between 1985 and 2016
Recepção: 30 Maio 2017
Aprovação: 30 Julho 2017
A presença da desigualdade na agenda e retórica dos governos é relevante, seja por sua persistência no mundo, seja porque as políticas contra ela são moldadas a partir das imagens ou significados que lhe são atribuídos. Enquadramentos da desigualdade e da política social merecem ser analisados também porque a cultura consta no discurso político sobre a pobreza e há muito poucas análises da dimensão cultural da desigualdade no Brasil, onde tal agenda de pesquisas é dominada pelo foco na distribuição de renda e perfil da estratificação social.
Neste país tão lembrado por grandes desigualdades, o tema propriamente é estudado nas ciências sociais e na economia desde o terceiro quartil do século XX. Na época, análises sociológicas de classe proliferaram, mas estudos mais sistemáticos partiram de economistas atentos à alta da desigualdade de renda nos anos 1960 e o efeito da escolaridade sobre ela. Na sociologia e ciência política, três abordagens interpelam o tema da desigualdade: análises de processos de estratificação (HASENBALG; SILVA, 2003, p. ex.); políticas sociais (LOPES, 1995, p. ex.); e percepções (vide REIS, 2000; SCALON, 2004). Ao analisar imagens oficiais da desigualdade, dialogo com tal literatura sobre percepções da elite e população em geral sobre a desigualdade.[1]Neste texto, identifico e comparo as imagens da desigualdade veiculadas por governos desde a redemocratização, em 1985, até Dilma Rousseff, e nas presidências de Getúlio Vargas (1930-45/51-54). Concentro-me nos governos mais recentes e tomo os anos Vargas como contraponto pela centralidade da questão social na retórica e na agenda varguistas, notada por estudiosos e presidentes nas últimas décadas (comparar a governos militares, por exemplo, seria impreciso por variáveis como a falta de cálculo eleitoral dos discursos e natureza autoritária do regime). Foram analisados 12 discursos de posse – uma primeira apresentação formal do governante e seus planos, com transmissão e repercussão imediata nos meios de comunicação – e 39 Mensagens ao Congresso Nacional, relatórios de repercussão popular nula com balanços e planos do Executivo publicados a cada início de ano legislativo. Dezenas de outros discursos foram usadas para refinar análises ou suprir dados dos períodos sem Mensagens (Governo Provisório e Estado Novo). Não se ignora que discursos políticos podem mascarar premissas de quem os enuncia, mas isso não afeta seu valor simbólico e relação com políticas adotadas.[2]
Ao analisar os enquadramentos nesses textos, procurei evitar o risco de arbitrariedade na análise, mais alto entre estudos individuais como este. Apenas o rigor metodológico inibiria riscos da subjetividade citados por autores como Tankard (2001). Recorri ao software Atlas.ti para auxiliar a buscar diferenças que são abordadas como desigualdades – como raça e região –, políticas antidesigualdade etc. Criei um dicionário de códigos a partir de uma leitura prévia de discursos pós-1985 e, entre outras decisões, avaliei ações atribuídas ao combate à desigualdade e cheguei a um conjunto inicial de nove famílias de códigos (no decorrer da pesquisa, mais 21 famílias foram estruturadas em caráter complementar e devem ser úteis em futuros estudos).[3] As quatro primeiras famílias, aperfeiçoadas depois, se referiam a diagnósticos e prognósticos:
Formas de desigualdades: declarações sobre formas de desigualdade percebidas no país, como raça, nível educacional, geração e região.
Causas da desigualdade: explicitação dos agentes responsáveis pelas desigualdades;
Efeitos da desigualdade: menções de externalidades da desigualdade, classificadas por males sociais, econômicos e políticos (não se mencionaram efeitos positivos); e
Estratégias públicas: indicação de ações do Estado para lidar com as desigualdades.
Numa leitura inicial, os governos articularam quatro questões-chaves à desigualdade: contenção da inflação; geração de empregos; efetivação de direitos; e transferência de renda (não tardei a ver uma recorrente vinculação entre as duas primeiras). Em seguida, distingui os diagnósticos sobre a desigualdade (formas e causas) dos prognósticos (efeitos e estratégias), correlacionando-os. Por fim, centrei o foco nas avaliações dos governos sobre a política social – seus objetivos, públicos, resultados e dificuldades –, o que me permitiu estruturar quatro famílias de códigos para tais variáveis. Verifiquei, assim, a correspondência entre imagens da desigualdade e da política social, que estão no cerne da definição dos enquadramentos aqui.
Apesar da heterogeneidade dos conteúdos, três pares de imagens foram recorrentes. Não foram explicitados nesses termos por cada governo, mas captados a partir dos discursos:
Injustiça: perceptível no discurso oficial desde os anos 1930, remonta à condenação moral da desigualdade e à visão da efetivação de direitos como respostas para a questão social;
Atraso: mais reiterada nas décadas recentes e vista já nos anos 1950, vem da crença de que um país moderno deve superar grandes desigualdades via política econômica e educação; e
Dívida: presente nos anos 1980 e de uso crescente na última década e meia, responde às desigualdades com a redistribuição de recursos, por reformas ou transferências de renda.
Os enquadramentos são aprofundados adiante, frisando a heterogeneidade desses tipos ideais concebidos. Por ora, registre-se um instantâneo da desigualdade de renda desde 1985, notando seu decréscimo no início deste século, ao contrário do fim do século XX. A tabela I destaca como os altos níveis de desigualdade de renda diminuíram até meados desta década, o que, naturalmente, tem correlação com a política social e os discursos no escopo deste estudo.
Na próxima seção, interpelo duas questões inevitáveis em análises de enquadramentos: a natureza do conceito (o que é um enquadramento) e sua operacionalização (onde está). As seções seguintes tratam das três imagens da desigualdade expressas pelos governos Vargas e de Sarney até Dilma. A cada imagem da desigualdade, corresponde uma da política social: justiça, modernização e redistribuição. Em seguida, frisa-se como a identificação de imagens governamentais da desigualdade partiu de quatro traços: diagnósticos da desigualdade; seus prognósticos; papel da política social; e os chamados “dispositivos de enquadramento”. Na conclusão, resumo o argumento citando contribuições da pesquisa e novas frentes de estudo.
Estudar como cada governo enquadra a desigualdade esclarece significados atribuídos a ela e permite examinar as ações afins a essas interpretações. Afinal, a criação de significado articula diagnósticos aos prognósticos e realça o que vale atentar ou não. Alguns autores definem enquadramentos como organizadores de pensamento, como Ferree et. al. (2002, p. 14) – “chamam nossa atenção para certos eventos e suas causas e consequências subjacentes e direcionam nossa atenção para longe das outras” – e como ideias ou princípios que organizam experiências e orientam ações (GAMSON; MODIGLIANI, 1989; BENFORD; SNOW, 2000).
As abordagens dos enquadramentos compartilham a ideia de que eles operam como molduras orientando visões e interpretações do mundo, pois codificam expectativas quanto às relações sociais e efeitos dos atos. “Ao entendermos os frames que indivíduos ou grupos diferentes empregam em interações sociais e processos de decisão, podemos começar a entender a variação de suas interpretações e compreensões” (SMALL et. al., 2011, p. 101). Eis uma forma de relacionar cultura e comportamento: os enquadramentos não causam o comportamento, pois indicam uma relação de restrição-possibilidade, e não causa-efeito.
Há bons exemplos da capacidade de acompanhar a construção de quadros em estudos como o de Noonan (1995), que abordou como as chilenas se uniram contra o autoritarismo do Estado. Segundo ela, o feminismo não emergiu nos anos 1950/60, quando enquadramentos-chave focavam em questões da classe trabalhadora, mas teve terreno fértil quando a repressão da ditadura e a emergência de um enquadramento “volta à democracia” abriram espaço para vários quadros típicos de movimentos, como o feminista. Comparando os enquadramentos da pobreza entre os congressistas americanos em três décadas, Guetzkow (2010) verificou que a noção de mérito não explica a definição e mudanças nas políticas antipobreza, o que depende mais de como são enquadradas as causas da pobreza e as habilidades e desejos dos pobres.
São cinco aspectos do enquadramento ressaltados por Johnston (2002) para estudar os movimentos sociais: (i) tem conteúdo: inclui itens organizados na memória e acessados a partir das novas experiências; (ii) é uma estrutura cognitiva, com conteúdo pensado como hierarquicamente organizado; (iii) é um elemento individual tanto quanto compartilhado coletivamente; (iv) é uma estrutura cognitiva fixa e um processo cognitivo emergente; e (v) baseia-se em texto, logo sua análise exige diálogo evidente e contínuo com o texto. Tais aspectos reforçam a utilidade do conceito para pesquisas como esta sobre o processo de criação de significados.
Tal como os quadros da ação coletiva para estudiosos dos movimentos sociais, vejo os da desigualdade como mais do que agregados de atitudes e percepções individuais, mas fruto de negociações de significações compartilhadas. Segundo Campbell (2002), enquadramentos, entendidos como ideias normativas e às vezes cognitivas em destaque nos debates de políticas, são usados para tornar essas políticas politicamente mais aceitáveis. Um exemplo seu foi o uso da noção de globalização econômica como um enquadramento para justificar a transição para políticas conservadoras e neoliberais. Merecem atenção as objeções de Campbell às análises de enquadramentos de políticas sociais: falham em demonstrar conexões causais, por ignorarem contra-argumentos e outros enquadramentos possíveis; costumam não avaliar processos de criação, teste, alteração e adequação de enquadramentos; e não indicam o quanto formuladores de políticas usam-nos para ocultar razões reais a quem se quer persuadir.
A comparação de discursos dos governos Vargas e de Sarney até Dilma evidencia a imagem comum da desigualdade como injustiça a ser reparada via efetivação de direitos. A maior diferença na retórica dos dois grandes períodos foi a substituição da noção de igualdade de Vargas centrada no trabalhador urbano, notada por estudiosos, por uma noção mais ampla, da igualdade de direitos não mais ligada a uma fração da população. Nos anos 1930/40, o governo aludiu à desigualdade de classe e de categoria, enquanto gestões mais recentes reputaram como injustas as desigualdades de renda, regionais e, a partir de Cardoso, raciais.
Diferenças entre os discursos varguistas e os demais podem remeter ora aos autores, ora a mudanças na conjuntura. Debates nos anos Vargas trataram da industrialização nascente – com a questão social ligada ao “surto crescente das nossas atividades industriais” (MPL 1936, p. 142) –, do sindicato como um interesse coletivo (MPL 1935, p. ex.),[4] dos conflitos entre trabalhador brasileiro e estrangeiro etc. A legislação trabalhista, em expansão desde a carteira de trabalho, seria a resposta à questão social e foi saudada como estratégia contra a luta de classes, como na Mensagem ao Poder Legislativo anterior ao golpe que gerou o Estado Novo.
Não poderíamos levar a cabo semelhante tarefa [organização profissional] sem a intervenção deliberada e decisiva do poder público, mais do que ninguém interessado em evitar entrechoques e lutas estéreis, para melhor assegurar o equilíbrio da vida social e as condições indispensáveis ao progresso e bem-estar coletivo. Outro não foi o objetivo do governo, instituído pela revolução de 1930, ao promover a legislação trabalhista vigente, executando-a, em seguida, com atento cuidado e alta preocupação patriótica. (MPL 1937, p. 175 – colchetes nossos)
Os combates à miséria e à injustiça foram expostos como um único desafio quase 50 anos depois, na Mensagem ao Congresso de 1986, quando se anunciou buscar igualdade e justiça social a longo prazo e a desconcentração da pobreza, sobretudo da pobreza rural no Nordeste.
É paradoxal a situação brasileira: de um lado, construiu-se uma economia em muitos aspectos próxima da maturidade industrial; de outro, mantém-se uma estrutura social injusta, que submete parcela ponderável da população a condições de vida lastimáveis, só comparáveis às das nações mais pobres do mundo. (...) Não será possível eliminar a miséria e a injustiça enquanto não for resolvido o problema do Nordeste, onde se concentram quase a metade da pobreza do País e dois terços da pobreza rural. (MCN 1986, p. 47 e 49)
As desigualdades regionais são as mais citadas nas últimas três décadas, tomadas mais frequentemente como injustiças do que como atrasos de regiões ou dívidas em nível interregional. Esses diagnósticos deixaram de se ater à pobreza concentrada no Nordeste para captar variáveis como a influência da geografia, em especial nas desigualdades em saúde. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), usado para aferir a qualidade de vida, tem sido aproveitado nos últimos 20 anos para a definição das regiões beneficiárias de políticas sociais.
Números têm sido mais associados nas últimas décadas às desigualdades vistas como injustiças. As desigualdades de renda passaram a ser ilustradas com dados como o Coeficiente de Gini, citado no discurso oficial nos últimos 20 anos. Na Mensagem de 1998, uma curva dos índices de Gini no curto intervalo entre 1993 e 1996 foi acompanhada pela avaliação de que 1995 (primeiro ano do governo Cardoso) foi o “marco na retomada da desconcentração”.[5]
As desigualdades raciais, que tardaram a entrar na pauta governamental, nunca foram comentadas com base em números, relativos ou absolutos. Tal fato expõe uma fraqueza do diagnóstico oficial da questão, referida de modo indireto em outras abordagens. Nem mesmo o governo estimou o alcance dessa injustiça, o que naturalmente torna ainda mais difícil sua superação, pois é improvável um problema mal diagnosticado vir a ser bem tratado.
Há variações nítidas na imagem da política social vinculada a esse enquadramento. Os discursos de todos os governos correlacionaram a efetivação de direitos com a política social, mas seus papéis destacados mudaram muito: amparar trabalhadores (1930-37), reajustamento e cooperação geral (1937-45), igualdade de oportunidades (1951-54), acesso de todos ao benefício do progresso e à cidadania plena (Sarney), enfrentar fome, carência e miséria e garantir democracia (Collor), enfrentar pobreza, ser compensatória e garantir cidadania e qualidade de vida (Itamar), prover qualidade de vida e enfrentar miséria (Cardoso), garantir direitos, ampliar mercado e reduzir pobreza (Lula) e eliminar a extrema pobreza (Dilma).
Os governos desde 1985 compartilharam a imagem da injustiça em referências a desigualdades de renda e regionais, mas tal enquadramento tem traços peculiares em cada um. Sarney deu mais ênfase à concentração da pobreza no Nordeste. Desde a posse, Collor atacou o paternalismo do governo e das elites frente às carências sociais – seu agravamento foi atribuído com frequência à inflação. Para Itamar, a injustiça social, por segregar a maioria dos brasileiros, implicou o risco da desagregação nacional. Cardoso vinculou o êxito do país no século XXI ao combate a “nossos desequilíbrios internos – das desigualdades extremas entre regiões e grupos sociais” (DP 1995). Além de desigualdades interregionais, Lula acentuou as intrarregionais, menos em evidência até então (MCN 2003, p. ex.). Dilma explicitou o desafio de reduzir as desigualdades com a promoção da igualdade de direitos e a ampliação das oportunidades para todos (MCN 2011) – e não só aos trabalhadores urbanos, como no discurso do primeiro governo analisado nesta tese (tal noção oficial de igualitarismo se ampliou ainda com Vargas, na última de suas gestões, como ressalto no próximo capítulo).
Concluo esta seção e as seguintes com os enunciados mais veiculados pelos governos a cada imagem da desigualdade. São reunidas ideias introduzidas ou retomadas em cada gestão e apontadas como subenquadramentos, ou seja, subníveis de determinada descrição geral (“direitos contra a desigualdade” no caso do enquadramento focalizado nesta seção). Essas tabelas sumarizam resultados da pesquisa sem esgotar as possibilidades de variações das interpretações – governos expressaram outros subenquadramentos de modo secundário.
Se a imagem da desigualdade como injustiça se articula com a da política social como efetivação de direitos e com uma crítica moral da desigualdade, a do atraso remete à visão das políticas econômica e educacional como respostas à desigualdade e da política social como via para a modernização, devido à crença de que um país moderno deveria superar grandes desigualdades. No fim do século XX, a imagem da desigualdade como atraso foi a mais comum entre os governos brasileiros (outras imagens coexistiram na maioria dos governos).
O mais peculiar do enquadramento do atraso/modernização é a noção da desigualdade como problema econômico a ser sanado com políticas como o controle da inflação, o fomento à produção e qualificação para o mercado de trabalho. As desigualdades de renda, regional e de oportunidade foram remetidas a uma modernização não atingida por todos; a imagem foi referida ainda a desigualdades na educação e na saúde (por terem sido referências pontuais, prevalecem aqui considerações sobre desigualdades de renda). Por seu efeito concentrador de renda, a inflação foi muito responsabilizada pela desigualdade – ideia mais rara na imagem da injustiça –; daí a correlação comum entre o combate à pobreza e a estabilidade da economia.
O impacto do crescimento econômico na miséria e na desigualdade foi acentuado, sobretudo, por Vargas, Sarney e Lula, enquanto Collor e Cardoso ressaltaram a adoção de políticas econômicas com sacrifício e Itamar criticou a espera pelo crescimento da riqueza para somente então distribuí-la. Dilma defendeu o que definiu como um “novo modelo de desenvolvimento”. Ainda se atribuiu a desigualdade ao sistema educacional, principalmente nos governos de Vargas, Sarney – que viu a dívida externa como agravante –, Cardoso e Lula.
O discurso de que maximizar o crescimento econômico minimizaria a concentração de renda é oficial pelo menos desde o último governo Vargas. Tal convergência se coadunava com os dois grandes objetivos do presidente entre 1951 e 1954: maior autonomia da economia nacional e redução da exclusão social. O desenvolvimento propiciado pelo modelo econômico não se deu, porém, sem consolidar a concentração de renda, miséria e desigualdades sociais.[6]
O contraste entre a pujança da economia e a vulnerabilidade da questão social foi corrente no discurso público na passagem dos anos 1980/1990. Tal contraste, que faz pensar no que se pode considerar como modernização ou atraso, foi vocalizado por presidentes como Fernando Collor, ao tomar posse, e Itamar Franco, na primeira Mensagem ao Congresso Nacional, onde refutou a noção de a divisão da riqueza dever ser precedida pelo crescimento:
Minha geração não admite mais conviver com um Brasil gigante econômico mas pigmeu social: a décima economia do globo com indicadores sociais registrando tanta penúria, tanta doença e tanta desigualdade. Não concebemos a modernidade sem sua componente de justiça, nem o progresso sem que todos possam beneficiar-se de seus frutos. (F. Collor, DP 15/03/90)
É hora de retomar a trilha do desenvolvimento em suas três dimensões indissociáveis – econômica, social e política. O País não pode aguardar que a estabilização se complete para retomar o crescimento econômico e para que seus frutos sejam distribuídos por toda a sociedade e, principalmente, para segmentos menos favorecidos. (MCN 1993, p. 8)
Uma reforma fiscal, patrimonial e administrativa do Estado foi proposta por Collor para fomentar o investimento, nacional e estrangeiro, e redefinir o papel estatal; caberia ao Estado prover o acesso das pessoas de baixa renda a bens vitais como moradia, alimentação e saúde em “contexto de iguais oportunidades”. Collor se aproximava do Vargas dos anos 1950, na defesa da igualdade de oportunidade, e Sarney, pela retórica a favor de uma modernização desestatizante; mas se distinguia pela oposição ao dirigismo estatal do desenvolvimento. Já o governo Itamar Franco, ao se opor à estratégia de deixar o “bolo” crescer antes de dividir, celebrizada no regime militar, expôs com contundência uma objeção não reiterada depois dele. Já seu apelo pela retomada do desenvolvimento parecia ecoar o último governo Vargas.
Três recorrências contínuas entre governantes que usaram a imagem do atraso foram as ideias da igualdade de oportunidades e do desenvolvimento econômico como objetivos do governo, bem como a ideia da política econômica como política social. Para ilustrar a primeira ideia, bastam citações dos governos mais antigo e mais recente: “[a todos] devem ser assegurados a igualdade das oportunidades, acesso das facilidades educacionais” (G.V., DP 31/1/51) e “espero (...) fazermos o Brasil alcançar patamares mais altos de justiça, solidariedade e igualdade de oportunidades” (D.R., MCN 2016, p. s/n). A igualdade de oportunidades, esse corolário da democracia liberal, se manteve na agenda pública desde a posse de Vargas até a apresentação da Mensagem de 2016. E a correlação entre as políticas econômica e social foi expressa por todo governo, tendo cabido ao de Itamar uma afirmativa-síntese: “As políticas econômica e social devem ser complementares e agir de modo sinérgico, a fim de que os objetivos de crescimento e de justiça social sejam alcançados pari-passu” (MCN 1993, p. 27).
Sem tal constância, mas destacados por quase todo governo, estiveram os enunciados “atual sistema educacional como obstáculo à igualdade” e “combate à inflação como política social”, como em “o controle da inflação também tem claros benefícios sociais” (MCN 2006, p. 13). Eis alguns exemplos sintomáticos de subenquadramentos permanentes (ou quase) entre representações que vinculam a política social à modernização contra o atraso da desigualdade.
No período mais recente, uma das mudanças mais notáveis no discurso oficial da desigualdade como atraso foi a incorporação do subenquadramento “aliança entre crescimento econômico e equidade”, que difere de noções anteriores pela tônica na ideia de aliança, e não de causa-efeito: “Aliar crescimento econômico com redução no grau de desigualdade é a combinação desejada para o combate à pobreza e à miséria” (MCN 2003, p. 41). Na gestão de Dilma Rousseff, um “novo modelo de desenvolvimento” foi associado ao combate a atrasos sociais: “as políticas de distribuição de renda foram componentes fundamentais na implantação do novo modelo de desenvolvimento” (MCN 2011, p. 19). A variação percebida entre esses enunciados é representativa da citada heterogeneidade da imagem do atraso/modernização. Um panorama sobre os principais subenquadramentos da desigualdade e da política social relacionados a essas imagens é sintetizado na tabela 3.
Enquanto a imagem da injustiça/efetivação de diretos é a mais tradicional em governos no Brasil e a do atraso/modernização a mais reiterada a partir de 1985, o enquadramento da dívida/redistribuição é o mais recente e crescente no discurso dos governos. Há pelo menos três décadas, essa imagem faz parte da retórica oficial. Os discursos igualitaristas dos governos Sarney, Cardoso, Lula e Dilma se mostraram favoráveis a duas formas de ações redistributivas: reformas agrária, tributária e previdenciária (pautas mais destacadas pelos dois primeiros) e programas de transferência condicionada de renda (com maior destaque nos dois governos mais recentes). A pauta reformista traz menções à reforma administrativa no governo Sarney e, em todo o período, ficou clara a ausência da taxação sobre grandes fortunas. Nesse início do século XXI, aquelas três reformas persistentes na agenda nacional passaram a ser mais defendidas como demandas econômicas do que sociais.
Em discursos oficiais no Brasil que enquadraram a desigualdade e a política social como dívida e redistribuição, só um enunciado teve destaque nas quatro gestões focalizadas: a ideia da redistribuição como dever do Estado. Nos governos Sarney, Cardoso, Lula e Dilma, tal subenquadramento transpareceu em referências muito díspares à desigualdade. Constou na Mensagem de 2002 uma proposição da ideia das mais incisivas: “Tirar dos ricos e remediados – via impostos – e dar aos pobres – via políticas sociais – é, em termos simplificados, o que fazem os estados que tiveram mais êxito em corrigir os desequilíbrios e injustiças do capitalismo” (MCN 2002, p. 45). Naquele fim do governo Cardoso, o Brasil era “um exemplo acabado de Estado do mal-estar social” por beneficiar ricos e remediados em detrimento dos pobres. A reforma da Previdência fora reputada antes como uma política contra tal problema.
A quitação da “dívida social” foi atrelada por Sarney e Cardoso, conforme já pontuei, a uma tríade de reformas: tributária, previdenciária e agrária. Para Sarney, “o resgate da imensa dívida social (...) não pode prescindir da sustentação do crescimento em condições estáveis, da desconcentração da renda e da realização de profundas reformas na estrutura agrária e tributária, no sistema de previdência social e na administração pública” (MCN 1987, p. 40). Cardoso, por exemplo, viu a reforma tributária como equalizadora, pois o efeito da tributação seria então regressivo e concentrador. Desde o início do governo, essa reforma foi atrelada à necessidade de investimentos públicos na área social – a exemplo da retórica do governo Sarney –, tal como aos princípios de simplicidade, eficácia, equidade e justiça social.
O sistema tributário, portanto, deve operar como instrumento que atenue efeitos da concentração da renda e da riqueza no País, e como redutor de tais disparidades. A concentração dos impostos em uma base de incidência restrita, tanto no que se refere àqueles cobrados diretamente das pessoas físicas como aqueles cobrados das empresas, merecerá cuidadosa revisão. (...)
A busca de maiores receitas fiscais por meio da elevação de alíquotas de impostos e contribuições agravou ainda mais essas distorções, porque ampliou a carga tributária daqueles que já pagavam impostos ao invés de estender a cobrança de impostos àqueles que escapam à tributação. (MCN 1995, p. 86-87)
Em que pese a equidade ter sido citada como princípio da reforma tributária no início desse governo, ela não seguiu assim na respectiva pauta, a julgar pelo documento “Agenda de governo: biênio 2001-2002” (BRASIL, 2001). Outras ressignificações ficaram evidentes na última década e meia. Certas alusões talvez sejam mais contextuais – por razões conjunturais, ideológicas etc. – e outras podem ter se fixado no léxico de quaisquer governos, como a visão do combate ao êxodo rural e da igualdade de oportunidades como objetivos do Estado.
Em comum nos governos Cardoso e Lula, consta a transferência de renda como um avanço da focalização (“Os doze programas de transferência direta de renda que integram a Rede de Proteção Social do Governo Federal são um enorme passo adiante na focalização do gasto social em beneficio dos mais vulneráveis entre os pobres”, MCN 2002, p. XIII) e do atual sistema tributário como limite à igualdade (“a regulamentação das Reformas da Previdência e Tributária [...] busca também melhorar a distribuição de renda”, MCN 2005, p. XX). Na Mensagem de 2008, a dívida foi lembrada como “ainda enorme”, embora programas sociais tivessem elevado os ganhos do crescimento aos mais pobres – via transferência de renda, assistência social, ações de segurança alimentar e criação de oportunidades de inclusão.
Apesar da ainda enorme a dívida social, o que deve impulsionar esforços do Estado e da sociedade brasileira para construir uma sociedade mais justa e solidária. É importante reconhecer, algo frequentemente expresso por diversas nações e por organismos internacionais, que os programas sociais brasileiros têm alterado as condições de vida da população e que os mais pobres têm elevado pouco a pouco sua participação na apropriação dos benefícios do crescimento econômico. (MCN 2008, p. 100)
Sob as presidências de Lula e Dilma, a ênfase recai não mais na agenda reformista, mas nas políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família, lançado em 2003 (no ano anterior, o precursor Bolsa Escola Federal era mais referido como uma política educacional e a previdência rural era vista como o maior programa de transferência de renda no país). Entre as continuidades nos discursos, três se referiram à imagem da dívida: necessidade do Cadastro Único para redistribuir renda; a relação do sucesso de políticas de transferência de renda com sua focalização; e o programa social como meio de inclusão de pobres na economia.
O governo Lula frisou a visão intersetorial do Bolsa Família – em clara oposição à fragmentação dos programas de transferência de renda de Cardoso –, enquanto o de Dilma se distinguiu por atrelar aquele programa com a redistribuição de riqueza, para além da renda (MCN 2013 e 2014, p. ex.). Menções à erradicação da extrema pobreza podem ser lidas como prioridade ou conquista do governo: “o fim da miséria é somente um começo” (MCN 2014; MCN 2015). E, em continuação a esse lema, ela projetava uma imagem de um novo Brasil muito mais justo e muito mais forte. Tal como antes aludiu à meta de um “país de classe média”, recorrente no primeiro mandato, mas não no abreviado pelo impeachment de 2016.
Só assim poderemos garantir, aos que melhoraram de vida, que eles podem alcançar mais; e provar, aos que ainda lutam para sair da miséria, que eles podem, com a ajuda do governo e de toda a sociedade, mudar de vida e de patamar.
Que podemos ser, de fato, uma das nações mais desenvolvidas e menos desiguais do mundo – um país de classe média sólida e empreendedora. (D.R., Dp 1/1/2011)
De 1985 a 2016, o enquadramento da dívida/redistribuição incluiu enunciados menos ou mais recorrentes em que havia uma correspondência entre as questões social e distributiva. Só a retórica dos governos seguintes esclarecerá se o crescente uso da imagem seria tendência oficial ou uma ocorrência vinculada a fatores outros, como as características dos presidentes. Não afasto as chances de as imagens da injustiça e atraso reaverem o predomínio de outrora.
Os enquadramentos já foram vistos como organizadores de pensamento, como ideias e princípios que organizam vivências e orientam ações etc. No afã de superar a ambiguidade e a imprecisão dos usos teórico e metodológico do conceito, este estudo atestou a multiplicidade e coexistência de quadros em disputa. Não há dúvidas de que os agentes atribuem significados a temas como desigualdade e política social usando seus recursos materiais e simbólicos. A variação das significações dos governos evidencia a relação de restrição-possibilidade entre cultura e comportamento notada por sociólogos culturais, que rejeitam a relação causa-efeito.
A alusão às formas de desigualdade como injustiça, atraso, dívida ou algo mais, se não condiciona as políticas sociais para lidar com ela, ao menos influencia sua criação e execução. Cheguei à proposta da presente tipologia depois de verificar os atributos dos enquadramentos bem revisados por Johnston (2002): cada um tem um conteúdo; é uma estrutura cognitiva; é individual . social; tem natureza fixa e dinâmica; e é baseado em textos. Também focalizei variáveis dos enquadramentos como influência e ressonância (BENFORD; SNOW, 2000).
Esta pesquisa corroborou a adequação da análise de enquadramentos aos objetivos de identificar e comparar imagens da desigualdade e da política social veiculadas pelos governos Vargas e aqueles entre 1985 e 2016 e de analisar suas mudanças e continuidades. A identificação das imagens oficiais partiu de quatro traços: diagnósticos (formas e causas da desigualdade); seus prognósticos (efeitos da desigualdade e estratégias contra ela); papel da política social (seus objetivos); e o que autores como Gamson e Modigliani (1989) chamaram de “dispositivos de enquadramento”, como metáforas ou slogans – elementos a explorar adiante.
- Diagnósticos: foram enquadradas como injustas desigualdades de cinco tipos: de classe, até 1945, e categoria profissional (governos Vargas) e, desde 1985, aquelas por região, renda e – a partir de Cardoso – raça. As desigualdades diagnosticadas por Vargas foram atribuídas à desorganização do trabalho (e menos ao individualismo, industrialização e superpopulação). Outras causas da desigualdade referidas foram a ação das elites (Itamar), a desfocalização do gasto social (Cardoso), a história (Cardoso e Lula) e a falta de proteção social (Dilma).[7]
- Prognósticos: indicaram-se males sociais (todos os governos), políticos, declaradamente à democracia (sobretudo Itamar e Cardoso), e econômicos (principalmente Cardoso e Dilma). Sob Vargas, especialmente, os males sociais incluíram o êxodo rural e a marginalização. Os governos Sarney e Itamar frisaram a insegurança; e o de Lula, a discriminação. A efetivação de direitos é o prognóstico típico dessa imagem, presente na defesa de mais leis trabalhistas (Vargas), novos benefícios (Sarney), segurança alimentar (Itamar), benefícios trabalhistas, focalização e ações afirmativas (Cardoso) e valorização do salário mínimo, distribuição de alimentos, benefícios aos mais pobres e legislação por igualdade racial (Lula e Dilma).
- Papel da política social: justiça. Efetivar direitos teve, nos anos Vargas, a intenção de organizar relações de trabalho e, desde 1985, obter mais democracia ou cidadania (todos os governos), mitigar males como fome e miséria; e, a partir de Lula, fortalecer mercado interno.
- Dispositivos de enquadramento: menção comum à “justiça social”, condenação moral da desigualdade e referências a direitos como meios para combatê-la. Na alusão aos interesses das minorias na raiz de desigualdades regionais e de renda, houve menções a termos como egoísmo (Sarney), ganância (Collor), ostentação (Itamar) e privilégio (Cardoso). Com seu apelo a “Trabalhadores do Brasil”, Vargas reforçou a noção do igualitarismo pelo trabalho.
- Diagnósticos: com início no 3º governo Vargas (1951-54), atribuem-se as desigualdades de renda, de oportunidade e por região a uma modernização não atingida por todos. Dado seu efeito concentrador de renda, a inflação é muito responsabilizada pela desigualdade (ideia menos realçada na imagem da injustiça). Daí provém a correlação constante entre as políticas econômica e social. Também se atribuiu a desigualdade ao sistema educacional, principalmente nos governos de Vargas, Sarney – que viu a dívida externa como agravante –, Cardoso e Lula.
- Prognósticos: foi reiterada a necessidade de o governo intervir na economia, em combate à inflação e para a geração de empregos, e na educação, para maior qualificação da população. O impacto do crescimento econômico na miséria e desigualdade foi acentuado, sobretudo, por Vargas, Sarney e Lula, enquanto Collor e Cardoso ressaltaram a adoção de políticas econômicas com sacrifício e Itamar criticou a espera pelo crescimento da riqueza para só então distribuí-la.
Dilma defendeu o que definiu como novo modelo de desenvolvimento.
- Papel da política social: modernização, a se alcançar por meio de políticas econômicas e educacionais. O desenvolvimento econômico e a democracia eram considerados requisitos para o fim de desigualdades enquadradas como atrasos. O combate à pobreza e a estabilidade da economia foram correntemente articulados nos discursos dos mais diferentes governos.
- Dispositivos de enquadramento: a alusão a “subdesenvolvido” e, com menor frequência, “atraso” ou “atraso social”, e o contraste entre desigualdade e modernização e vinculações reiteradas entre as políticas econômica e social. A redução do Estado foi frisada como meta dos governos Sarney e Collor em discursos sobre a questão social (essa ideia foi expressa por outros em contextos distintos). A referência à meta de um “país de classe média” foi introduzida por Lula e usada por Dilma (1º mandato). “Brasil sem miséria”, nome de um programa do governo Dilma, sugeria a passagem de um país com miséria para outro sem.
- Diagnósticos: ausente nos anos Vargas, tal imagem foi relacionada quase sempre com a desigualdade de renda (foi raro o olhar à desigualdade de gênero como uma dívida a quitar com as mulheres; outras desigualdades foram enquadradas usando as imagens anteriores). Além das causas expostas antes, acrescenta-se aqui a negligência de governos anteriores e regressividade do sistema tributário (neste caso, pelos governos de Cardoso e de Lula, que também indicaram a transferência de renda como avanço da focalização na política social).
- Prognósticos: discursos igualitaristas dos governos Sarney, Cardoso, Lula e Dilma se mostraram favoráveis a duas formas de ações redistributivas: reformas agrária, tributária e previdenciária (pautas mais destacadas pelos dois primeiros) e programas de transferência condicionada de renda (com maior destaque entre aqueles dois governos mais recentes). Embora tenha sido uma questão pautada por Cardoso, a focalização do gasto social só foi mais relacionada ao sucesso dos programas sociais nos dois governos seguintes.
- Papel da política social: redistribuição, mais frisada por seu efeito corretivo de reduzir as desigualdades do presente (em oposição à redistribuição preventiva, que busca a equidade via serviços sociais e instrumentos não fiscais). A meta é transferir recursos, como terras e auxílios financeiros, para certos grupos terem condições de vida equiparadas às dos outros.
- Dispositivos de enquadramento: ideia de “dívida social” a se resgatar pela redistribuição de recursos; e visão de que ricos devem algo aos pobres. O governo autointitulado “Nova República” (governo Sarney) começara considerando a “dívida social” a “nossa dívida maior”. “O fim da miséria é somente um começo” foi uma ideia expressa no governo Dilma com ambiguidade suficiente para sugerir tanto uma priorização quanto um resultado atingido.
É um achado relevante apontar que os governos mais recentes e os mais duradouros no Brasil enquadraram a desigualdade e a política social em termos de injustiça/efetivação de direitos, atraso/modernização e dívida/ redistribuição. A análise feita traz novos subsídios para reflexões sobre a desigualdade, questão persistente na agenda global, e sobre o papel de Estados e cidadãos diante dela.
Frisada pela sociologia cultural, a concepção da cultura como variável independente lastreou este estudo, onde atentei para a interrelação entre os atos de enquadrar e governar, embora a ênfase recaísse sobre a variação dos significados e não das políticas (estudos sobre a relação entre as imagens dos governos e suas políticas são bem-vindos). Uma comparação mais clara de planos dos governos (discursos de posse, p. ex.) com seus balanços (Mensagens ao Congresso Nacional, p. ex.) também pode tomar a pesquisa exposta como ponto de partida.
Certas opções desta análise de enquadramentos – a articulação de diagnósticos e prognósticos, a ênfase nos subenquadramentos e a atenção aos dispositivos de enquadramento sem ilações deslocadas e supervalorizações de minúcias textuais – propiciaram um uso teórico e metodológico eficaz do conceito. Por sua dimensão dinâmica, o conceito de enquadramento se mostrou mais útil a este estudo do que repertórios e fronteiras simbólicas, conceitos também usados por estudiosos das relações entre a cultura e a política.
Outra contribuição à agenda de pesquisa sobre a desigualdade foi fazer uso de uma perspectiva analítica – a abordagem dos enquadramentos – e uma opção metodológica – para extrair interpretações de discursos oficiais de forma indutiva e sistemática – pouco exploradas entre nós. As atuais análises da dimensão simbólica da desigualdade têm se concentrado em percepções do povo e das elites sobre tal tema e a pobreza. Que este texto sirva também como um convite a futuras análises de ressignificações como as da desigualdade e da política social.
Discursos de posse (12):
1930, 1937, 1951, 1985, 1990, 1992 (05/10/1992), 1995, 1999, 2003, 2007, 2011 e 2015.
Mensagens anuais (39):
1935 a 1937, 1951 a 1954 e 32 documentos de 1985 a 2016 (duas edições em 1994).