Resumo: Este trabalho analisa os significados dos shopping centers na vida urbana contemporânea a partir de um estudo empírico da cidade do Salvador. Analisando a proliferação desses empreendimentos, as práticas e usos vinculados a eles, os perfis dos usuários e as formas de sociabilidade engendradas nos seus espaços, o artigo discute seus impactos sobre a restrição dos espaços públicos e o processo de privatização urbana. Em Salvador, os shopping centers possuem uma forte valência urbana devido a uma série de motivos, como a segurança, comodidade, praticidade e conforto, além da concentração de vários tipos de serviços que não mais existem nas ruas e áreas abertas da cidade. De um lado, rivalizam diretamente com os espaços públicos, mas, de outro, são palco de múltiplas e complexas relações, o que leva a considerar a sua ambivalência na vida das cidades contemporâneas.
Palavras-chave:Enclaves fortificadosEnclaves fortificados,Shopping CentersShopping Centers,Espaço PúblicoEspaço Público.
Abstract: This work analyzes the meanings of shopping malls in contemporary urban life based on an empirical study of the city of Salvador. Analyzing the proliferation of these enterprises, the practices and uses related to them, the profiles of users and the forms of sociability engendered in their spaces, the article discusses their impacts on there striction of public spaces and the process of urban privatization. In Salvador, shopping malls have a strong urban value due to a variety of reasons, such as safety, convenience, practicality and comfort, as well as the concentration of several types of services that no longer exist in the streets and open areas of the city.On the one hand, they compete directly with public spaces, but on the other, they are the scene of multiple and complex relations, which leads the article to consider their ambivalence in the life of contemporary cities.
Keywords: Fortified enclaves, Shopping Malls, Public Space.
Artigos
Enclaves fortificados ou espaços semipúblicos de diversidade? Os significados dos shopping centers em Salvador
Fortified enclaves or semi-public spaces of diversity? The meanings of shopping malls in Salvador
Recepção: 07 Agosto 2017
Aprovação: 30 Agosto 2017
O presente trabalho analisa os significados dos shopping centers na vida urbana contemporânea a partir de um estudo empírico da cidade do Salvador. Busca-se debater se tais empreendimentos devem ser compreendidos como “enclaves fortificados” (CALDEIRA, 2000) ou como espaços que, ainda que de origem privada, têm apropriações públicas, configurando-se portanto como “semi-públicos”. O objetivo principal é discutir seus impactos sobre a chamada restrição dos espaços públicos e o processo de privatização urbana. Para tanto, o artigo analisa a proliferação desses empreendimentos na referida cidade, as práticas e usos vinculados a eles, os perfis dos usuários e as formas de sociabilidade engendradas nos seus espaços.
Tal discussão se assenta no debate sobre as características da vida pública urbana contemporânea e os processos de privatização que vêm transformando as cidades em escala mundial. As transformações sociais e econômicas do século XX fizeram surgir reflexões críticas sobre os espaços públicos, como as de Hannah Arendt (2008), Jürgen Habermas (2003) e Richard Sennett (1988), mas adquiriram maior centralidade na passagem para o século XXI, com os trabalhos de uma série de autores, entre eles Mike Davis (2009) e Tereza Caldeira (2000).
Como assinalaram um conjunto de teóricos (WEBER, 1979; WIRTH, 1979; SENNETT, 1988, entre outros), as cidades se constituíram tradicionalmente como espaços de liberdade frente às hierarquias e imobilidades do mundo feudal. Na medida em que cresceram e ganharam importância política, cultural e econômica, em determinado momento se constituíram também como espaços onde surgiu uma “esfera pública burguesa” (HABERMAS, 2003) e uma “cultura” (assim como uma “geografia”) pública (SENNETT, 1988).
Nas últimas décadas, porém, tem se observado uma série de transformações, como: a) a proliferação de enclaves fortificados (CALDEIRA, 2000), que ofertam em um espaço fechado, privado, homogêneo e controlado diversas funções urbanas como moradia, trabalho, consumo e lazer; b) a tendência de “fuga dos males da cidade” (ARANTES, 2011) – um processo de abandono cada vez maior dos espaços públicos e; c) uma recusa da convivência interclassista e da constituição de laços de sociabilidade baseados na alteridade, especialmente entre os grupos de média e alta renda. Diversas pesquisas apontam como os processos de privatização urbana vêm se acentuando ao mesmo tempo em que os citadinos, amedrontados com o crescimento da violência e da repercussão midiática incentivada pelo “capital do medo” (BAUMAN, 2009), cada vez mais se autossegregam, em busca de proteção, privilégios e distinção (CALDEIRA, 2000; DUHAU, 2001; SVAMPA, 2001).
Esses elementos se associam ainda a um conjunto de transformações na escala e na forma urbana das cidades contemporâneas (privilégio aos veículos em detrimento dos pedestres, redução da diversidade de usos em muitos espaços, gentrification e enobrecimento urbano, mercantilização, suburbanização e primazia da arquitetura defensiva etc.), assim como à própria incapacidade e omissão do Estado no que se refere a uma política voltada aos espaços públicos, em geral degradados e abandonados, especialmente nos países da periferia do sistema capitalista.
Por isso, para uma série de autores tem havido uma restrição dos espaços públicos e da vida pública nas cidades contemporâneas tal como se constituíram em outros períodos históricos, havendo um declínio do homem público (SENNETT, 1988), um esvaziamento da esfera pública tradicional (CALDEIRA, 2000; DAVIS, 2009), uma “condominização da cidade” (DUHAU, 2001)[1]. Segundo Lucía Dammert (2013), que realizou pesquisas em Santiago do Chile, vem emergindo um modelo de cidade em que as relações se transplantaram para espaços privatizados nos quais as pessoas se convertem em usuários e consumidores (pautados em trajetórias e interesses individuais) em detrimento da condição de cidadãos, com objetivos e propósitos em comum.
Os condomínios fechados, as “minicidades” (espaços fortificados que concentram atividades de moradia, trabalho, lazer e consumo) e os shopping centers seriam algumas das expressões mais concretas desse processo. Na América Latina, por exemplo, os shopping centers existem desde pelo menos a década de 1960 (tendo sido o primeiro implantado no Brasil, em São Paulo[2]) e atualmente já é possível encontrar condomínios fechados em cidades de diversas escalas e tamanhos (BORSDORF, 2002).
Os referidos trabalhos, entre outros, portanto, têm sido bastante críticos ao tipo de esfera ou espaço público que caracteriza as grandes cidades contemporâneas, em especial aquelas onde o processo de urbanização produziu cidades desiguais e segregadas, como na América Latina e no Brasil.
Outros trabalhos, no entanto, têm se posicionado de uma forma diferente, como Rodrigo Salcedo (2002), Carlos Fortuna (2002), Rogério Leite (2009), Patrícia Ramírez-Kuri (2008) e Luciana Andrade e Luiz Baptista (2013), que discordam, problematizam ou se colocam em uma posição intermediária frente a tese da morte e/ou fim dos espaços públicos. (Error 1: La referencia: Rodrigo Salcedo (2002) está ligada a un elemento que ya no existe)
Para Salcedo (2002), em primeiro lugar, é importante questionar a existência real daquele espaço público descrito como um lugar onde os diferentes grupos conviviam em torno de códigos de tolerância e civilidade. Segundo sua perspectiva, não apenas se trata de uma idealização do passado, como o espaço público contemporâneo tende a ser mais diverso, pois é mais aberto a espectros mais amplos de lutas e práticas. Além disso, o autor também salienta que os espaços engendrados pelo capitalismo contemporâneo, como os shopping centers por exemplo, não são por si só menos autênticos do que os chamados “espaços públicos”, porque essa avaliação envolveria uma forte influência ideológica baseada em um ideal normativo. (Error 2: La referencia: Salcedo (2002) está ligada a un elemento que ya no existe)
No que tange a dimensão teórico-metodológica da discussão, segundo Fortuna (2002), a sociologia urbana tem falhado no entendimento da cidade contemporânea, porque suas fundamentações epistemológicas se baseiam nas ideias do tempo como linear e objetivo e do espaço como cartesiano e absoluto. Isso se expressa em compreensões binárias da realidade, tais como “cidade” e “não-cidade”, “público” e “privado”. Nesse aspecto, para o autor, a valorização da metáfora da hibridização é importante, porque enuncia o princípio da mobilidade dos elementos e da porosidade das fronteiras. Assim, autonomizam-se processos e mecanismos de intermediação e zonas de contato. Os espaços públicos urbanos – entendidos por ele como contextos fisicossociais de localização das sociabilidades, cujos arquétipos são a rua e a praça, mas que também podem incluir espaços comerciais, monumentais, grandes equipamentos e espaços de eventos culturais –, portanto, devem ser entendidos como zonas de intermediação cultural, inclusive produzidos em diálogo com a chamada “não-cidade” e os espaços privados e domésticos. Nessa leitura, enfatiza-se fundamentalmente a porosidade das fronteiras.
Para Leite (2009), o termo espaço público vem sendo utilizado pela literatura contemporânea sempre com adjetivos restritivos, assemelhando-se (a partir do termo de Ted Kilian, citado pelo autor) a uma “literatura da perda”. Frente a tais interpretações, ele busca um novo léxico para a categoria “espaço público” que dê conta da sua complexidade nas cidades contemporâneas. Assim, segundo o autor, “aquele espaço público definido pela modernidade como um espaço cívico de encontro dos iguais – este sim – está morto” (LEITE, 2009, p. 197). Porém, a privatização da vida e as tiranias da intimidade descritas por Sennett (1988) como responsáveis pelo declínio do homem público não aniquilaram as sociabilidades que asseguram a formação dos espaços públicos; mas, ao contrário, alteraram as suas configurações. Nesse aspecto, Leite (2009) identifica o surgimento de “espaços públicos intersticiais”, espaços dispersos, zonas de fronteira ou de passagem que expressam marcas corporais, práticas de consumo e a publicização da diferença no curso cotidiano da vida. Seriam as zonas de deslocamento entre as abstenções dos encontros sociais e os lugares identitários fechados, lugares intervalares e por vezes efêmeros onde se reinscrevem as possibilidades do imprevisível. Para o autor, esses “entre-lugares” se tornam “locais de visibilidade, de disputas simbólicas, práticas de consumo e da busca do reconhecimento público da diferença” (LEITE, 2009, p. 199).
Em termos empíricos, a partir de pesquisas na Cidade do México, Patrícia Ramírez-Kuri (2008) identificou tendências contrapostas na construção do público nessa cidade: de um lado, sua diluição, fragmentação e exclusão e, de outro, o ressurgimento de novas formas de relação, comunicação e participação. Para ela, há uma diversidade de espaços públicos que exibem fenômenos discrepantes de sociabilidade e conflito, modernização e massificação, mercantilização e informalidade, inovação, segregação e desigualdade, assim como insegurança, violência e medo. Conforme salienta a autora, o espaço público vivido pelos diferentes grupos não cumpre o seu papel assignado teoricamente como lugar integrador e gerador de práticas democráticas, mas ele permanece como um espaço marcado por disputas e competições, que cruza sociabilidades e formas distintas de comunicação, apresentando como pano de fundo as condições gerais da segregação urbana e da desigualdade social da cidade.
Para Andrade e Baptista (2013), por sua vez, as análises sobre o fim do espaço público além de serem focadas somente nos grupos de alta renda ignoram a complexidade e a diversidade existentes dentro do rótulo “espaços públicos”, reduzindo-os a perspectivas homogêneas. Para esses autores, por exemplo, existem pelo menos três tipos de espaços que podem ter um uso público: a) espaços urbanos programados para uso público, destinados ao usufruto lúdico, como as praças e parques; b) novos espaços de consumo de acesso público, como os shopping centers, parques temáticos e estádios desportivos; e c) espaços informais de origem privada integrados ao circuito metropolitano, como cafés, cinemas, lojas, sedes associativas, casas-museu, que deixam de ser apropriados somente por grupos específicos e se tornam parte do cotidiano das cidades como lugares de visita, de estadia e de encontro (ANDRADE; BAPTISTA, 2013). Nessa leitura, portanto, privilegiam-se mais os usos públicos que podem ser dados aos espaços do que propriamente a sua origem e/ou formatação jurídica.
Os shopping centers estão no meio dessas discussões. Alguns autores os consideram como enclaves fortificados (CALDEIRA, 2000), ambientes controlados, homogêneos, voltados a uma lógica asséptica do consumo e até da alienação, ou seja, como espaços comerciais privatizados ou no máximo “pseudo-públicos”, como sintetiza Salcedo (2002) sobre tais perspectivas. Outros, no entanto, têm uma leitura menos estrutural e pessimista, considerando as microestratégias e contrapoderes dos usuários, ou seja, a porosidade e intersticialidade dos processos contemporâneos (FORTUNA, 2002; LEITE, 2009); compreendendo assim que os shoppings não são tão apartados da lógica da cidade, pois seriam também utilizados para fins não apenas mercadológicos e/ou privados, mas também para encontros, relações afetivas, jogos, ou seja, como mais um importante espaço de sociabilidade pública (FRÚGOLI JR., 1992; LEMOS, 1992; STILLERMAN; SALCEDO, 2010). Cabe aqui pensar, portanto, em que aspectos os shopping centers podem estar nas fronteiras entre um enclave fortificado e um espaço que pode ter apropriações públicas, o que os configuraria como “espaços semi-públicos”. (Error 6: La referencia: Salcedo (2002) está ligada a un elemento que ya no existe)
Este trabalho entende como espaço(s) público(s) urbano(s) em termos ideais-típicos aqueles lugares que incorporam pelo menos três dimensões: são conformados por uma geografia pública (ou seja, são espaços físicos de acessibilidade ampla e irrestrita, que não se fecham a priori à diversidade e às trocas sociais); possuem certa vitalidade (isto é, são efetivamente utilizados, permitem usos variados e expressam uma relativa diversidade social); e, mais importante, são lugares de ação, interação e relações de sociabilidade urbana (espaços onde se desenvolvem rituais e práticas – um ballet interacional [BORDREUIL, 2002]), onde a estética da conversação e do consenso concertado se transfere para o sistema da rua, conformando uma “intersubjetividade prática” (JOSEPH, 1999)[3]. No que tange a esta última dimensão, utiliza-se de modo mais ampliado a compreensão de sociabilidade de Simmel (2002): a forma lúdica da socialização, um tipo puro de relação sem quaisquer propósitos, interesses ou objetivos além da interação em si mesma composta por jogos de sociedade que se baseiam no ato de participar (SIMMEL, 2002; FRÚGOLI JR., 2007).
Considerando esses elementos, este artigo analisa a relevância dos shopping centers na conformação do espaço urbano da Salvador contemporânea e seus usos e significados atuais. Parte de uma tese que investigou os usos dos espaços públicos nesta cidade, em termos metodológicos esta reflexão se beneficiou de um conjunto de métodos-fontes-técnicas (PEREIRA, 1991), como revisão da literatura, coleta de dados secundários, observações diretas em diversos shopping centers e entrevistas com variados moradores da cidade.
A cidade do Salvador foi fundada em 29 de março de 1549 com o claro objetivo de se constituir como uma cidade fortaleza onde se concentraria a administração portuguesa do território brasileiro. A ocupação da cidade colonial manteve suas principais características até o final do século XIX, quando teve início um longo período de modernização do espaço, que foi impulsionado e consolidado em meados do século XX.
Depois de estagnada por várias décadas, a partir dos anos 50 um conjunto de transformações começou a se desenvolver na cidade de Salvador com os investimentos do governo federal e estadual em obras de infraestrutura e, principalmente, com o início da exploração e refino do petróleo pela Petrobrás com a implantação da refinaria Landulpho Alves – RLAM no município de São Francisco do Conde. Nos anos seguintes, com a política federal de desenvolvimento regional, continuou o incremento industrial com a implantação do Centro Industrial de Aratu – CIA (1966), do Polo Petroquímico de Camaçari – COPEC (1972), e a implantação do Complexo do Cobre e a ampliação do Porto de Aratu, já na década de 1980 (GORDILHO-SOUZA, 2008).
Acompanhando esse processo, em 1968 foi aprovada a Lei da Reforma Urbana, que transferiu para as mãos do mercado imobiliário boa parte das terras públicas a partir da supressão da proibição da sua inalienabilidade. Nesse contexto, as transformações no tecido urbano de Salvador se desenvolveram de maneira rápida e profunda. Em geral, o próprio Estado antecipou os vetores de crescimento da cidade. Como resultados desse processo:
No tecido urbano houve mudanças radicais. Nos anos de 1980, consolidou-se um novo centro urbano, impulsionado por grandes empreendimentos públicos e privados realizados na década anterior, destacando-se a construção da Av. Paralela, do Centro Administrativo da Bahia, da nova Estação Rodoviária e do Shopping Iguatemi. Essa nova centralidade não apenas direcionou a expansão da cidade no sentido da orla norte, como afetou a dinâmica do centro tradicional na área antiga da cidade, contribuindo para o seu gradativo esvaziamento. (CARVALHO; GORDILHO-SOUZA; PEREIRA, 2004, p. 284)
Um novo centro urbano se configurou no vale do Rio Camurujipe em torno ao primeiro shopping center de Salvador, o Iguatemi, implantado em 1975[4], e da nova estação rodoviária. Nessa região passou a se concentrar uma intensa atividade de escritórios, lojas e supermercados, associados ao novo ideal de modernidade de uma cidade que se inspirava nos modelos da cidade americana caracterizada pelo sprawl, policentrismo e pelo uso massivo dos transportes individuais. Para Vasconcelos (2002), a metropolização de Salvador engendrou um processo de americanização da cidade.
Segundo Gordilho-Souza (2009), na década de 1970 o Centro Antigo de Salvador atingiu o auge da concentração das atividades econômicas de serviços e comércio, passando desde então a sofrer um processo de esvaziamento e decadência, perdendo população e se degradando fisicamente com a saída das atividades mais dinâmicas e as camadas de média e alta renda.
A instalação de novos centros de serviços, de shopping centers e de supermercados contribuiu significativamente para a alteração dos padrões de circulação das pessoas na cidade. A atratividade de tais empreendimentos não se vinculava aos “imperativos” da segurança, mas, segundo os relatos coletados, à comodidade do estacionamento, ao signo da modernidade e ao lazer. Segundo Gottschall (2003), é provável que o componente festivo da cultura brasileira tenha contribuído para que no Brasil, ao contrário do que ocorreu em outros países, os shopping centers tenham sempre valorizado mais as áreas destinadas a essas práticas, especialmente como uma estratégia para ampliar o tempo de permanência do visitante.
Isso aconteceu com o Shopping Iguatemi que, desde a sua fundação, se apresentou como uma alternativa de lazer, diversão e sociabilidade, elementos estimulados por suas peças publicitárias, conforme se observa numa peça veiculada no Jornal A Tarde, de 05 de Dezembro de 1975. De fato, ele se tornou ponto de encontro para alguns grupos, especialmente os jovens, como é ilustrado pelo relato que se segue:
No Iguatemi Bahia você passeia, olha vitrinas, encontra amigos – e compra – livre do calor e da poeira. Aqui você pode desenvolver o prazer de comprar, aliado à área de lazer que dispõe de cinemas, restaurantes, jardins e cascata, um verdadeiro complexo de comércio, serviços e cultura [...]. No shopping center se encontra o moderno conceito de compras associado a lazer. Um novo estilo de vida. (Jornal A Tarde de 05/12/1975 apudGOTTSCHALL, 2003, p. 85).
[Ia com] a minha turma do colégio, né. A gente marcava na sexta-feira, combinava todo mundo, pra ir no shopping no sábado e no domingo, mas pelo colégio ali. [...] Tinha vários grupos, me lembro que tinha um pessoal que vestia roupa preta, esqueci o nome daqueles meninos, mas a gente tinha esse pessoal, naquela época. Tinha grupo que a gente fazia amizade, reunia uma mesa com a outra [...] Era comum [juntar as mesas], naquela época era comum, porque ficava paquerando um ao outro, aí chamava pra mesa de cá, aí depois reunia todo mundo e juntava pra ajudar a pagar a conta. (M., cuidadora de idosos, 59 anos, moradora de Brotas na época, bairro de perfil médio).
Nos anos 1980, como consequência das transformações econômicas, sociais, demográficas e do tecido urbano (que teve no shopping Iguatemi um indutor importante), se configurou um padrão de segregação socioespacial muito bem delineado em Salvador, pautado em três vetores de expansão urbana a partir do centro tradicional, a Orla Atlântica Norte, o “Miolo” e o Subúrbio Ferroviário, conforme se pode observar na Figura 1, que se segue.
Considerada a “área nobre” de Salvador, a Orla Norte é a região mais dinâmica da cidade, valorizada econômica e simbolicamente e reduto das camadas médias e altas, com exceção de alguns interstícios populacionais de camadas de baixa renda. O chamado “Miolo” teve sua ocupação induzida pelo Estado, entre o final da década de 1970 e início de 1980, através de projetos de habitações populares financiados pelo SFH (Sistema Financeiro de Habitação), e depois se adensou pela concentração de ocupações coletivas e loteamentos informais. O subúrbio ferroviário, por sua vez, foi constituído com o adensamento dos antigos núcleos existentes ao longo da linha férrea que ligava Salvador ao interior do estado. Esse vetor de expansão historicamente vem recebendo boa parte dos fluxos das camadas populares (CARVALHO; GORDILHO-SOUZA; PEREIRA, 2004).
Considerando todas essas alterações na ordem urbana, Salvador chegou ao século XXI mantendo o macro padrão de apropriação do solo forjado ao longo do processo de metropolização industrial. De maneira geral, portanto, segundo a leitura sintética de Carvalho e Pereira (2008), Salvador pode ser caracterizada como uma metrópole que comporta uma cidade “tradicional”, uma cidade “moderna” e uma cidade “precária”[5]. No entanto, desde a década de 1990, vêm emergindo transformações importantes na sua dinâmica socioespacial como:
[...] a sua expansão para as bordas e para o periurbano; o esvaziamento, a deterioração ou a gentrificação de antigas áreas centrais e a edificação de equipamentos de grande impacto na estruturação do espaço urbano, como shopping centers, complexos empresariais e centros de convenções; a difusão de novos padrões habitacionais e inversões imobiliárias destinadas aos grupos de alta e média renda, com a proliferação de condomínios verticais e horizontais fechados, que vem mudando os padrões de segregação e ampliando a autossegregação dos ricos, a fragmentação e as desigualdades urbanas; e, finalmente, a expansão da órbita do mercado e uma afirmação crescente da lógica do capital na produção e reprodução da cidade, com o abandono por parte do Estado de boa parte de suas funções tradicionais de planejamento e gestão urbana e metropolitana e a sua transferência para atores privados, com impactos decisivos sobre a estrutura urbana e a vida de sua população (CARVALHO; PEREIRA, 2014, p. 125).
Como se observa, os shopping centers, entre outros grandes empreendimentos, tiveram um papel importante na conformação da metrópole industrial e têm reafirmado a sua relevância na constituição da cidade contemporânea. Dessa forma, é importante analisar seus significados e impactos sobre os espaços públicos de Salvador.
O novo centro esboçado com a implantação do shopping Iguatemi e da nova estação rodoviária nos anos 70 se consolidou na década de 1990 e continua a se desenvolver em torno do eixo das Avenidas Tancredo Neves e Paralela, com a multiplicação de modernos e luxuosos shoppings, centros de negócios e serviços, centros médicos, edifícios de alta tecnologia e outros equipamentos que, em geral, obedecem à lógica do enclausuramento e da fortificação.
Nesse contexto, os relatos colhidos, oriundos dos mais diversos grupos sociais, confirmam a relevância dos shopping centers na estruturação e na experiência da vida urbana da cidade contemporânea. Em Salvador, conforme se pode observar na Figura 2, que se segue, existem cerca de 60 centros comerciais que se denominam shoppings ou que exibem nomes correlatos, como center e mall, por exemplo. No entanto, nem todos são considerados shopping centers pela ABRASCE – Associação Brasileira de Shopping Centers, que tem uma definição mais específica[6]. De acordo com esse critério, Salvador possui atualmente 14 empreendimentos classificados nesta categoria.
O mais recente deles foi inaugurado no final de 2015. Esse foi o sexto shopping construído em Salvador na última década, o que indica o crescimento desse tipo de negócio e a sua valorização pelos usuários nessa cidade. Atualmente Salvador é a sétima capital com o maior número de shoppings, mas é a quarta em área bruta locável disponível, 424.194 m², ficando somente atrás de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
Os pequenos shoppings e centros comerciais se localizam basicamente na região da Orla Atlântica e do Centro da Cidade, como se pode notar em comparação à Figura 1 que apresentou os vetores de crescimento da cidade. Os empreendimentos maiores obedeceram a duas lógicas locacionais. Inicialmente, depois do Shopping Iguatemi (que recentemente mudou seu nome para Shopping da Bahia[7]), eles se expandiram para bairros mais próximos ao centro tradicional. Depois do referido empreendimento, foram inaugurados os Shoppings Itaigara (1980), Piedade (1985), Brotas Center (1986), Barra (1987), Center Lapa (1996), além dos Shoppings Liberdade e Outlet Center, inaugurados entre as décadas de 90 e 2000 e localizados em bairros mais populares, na direção do vetor do Subúrbio Ferroviário, mas ainda relativamente próximos ao centro. Os novos empreendimentos, por sua vez, aprofundam a ocupação da região do Shopping da Bahia e avançam pela Avenida Paralela, acompanhando a zona de expansão norte da cidade, ultrapassando muitas vezes os limites municipais, como visto no caso do Outlet Premium.
Entre os mais novos, o Shopping Cajazeiras é o primeiro grande shopping a se localizar num bairro periférico e distante da cidade, na região do Miolo. Essa tendência tem sido observada também em outras cidades brasileiras e está vinculada à melhoria de renda e a ascensão da chamada “classe C” do período 2004-2013[8]. Considerando o crescimento da oferta deste tipo de empreendimento, é relevante questionar sobre o seu papel na vida cotidiana da cidade do Salvador e sua relação com a (possível) restrição dos usos de alguns espaços públicos.
Em um texto sobre o antigo Shopping Iguatemi, Gottschall (2003) apresenta algumas considerações a esse respeito. Em sua interpretação, a experiência urbana engendrada por este shopping mesclou elementos da cultura local à difusão dos valores da cultura do consumo, construindo um espaço onde a vivência urbana tem como marca a presença no mesmo espaço de múltiplos atores, se constituindo assim como um dos poucos lugares de convergência de diversidade existente em Salvador, especialmente para os jovens, seu público majoritário. Tendo acesso a pesquisas internas do referido Shopping, identificou uma proporção elevada de usuários que procuram nos shoppings um ambiente de diversão, sendo que deles mais de 80% eram jovens (GOTTSCHALL, 2003).
Os entrevistados deste trabalho, por sua vez, procuram os shoppings para várias atividades, especialmente para a realização de compras e para obtenção de serviços, alguns deles de lazer, principalmente cinemas, restaurantes e parques eletrônicos. Muitos deles salientaram a praticidade do shopping, por ser um centro comercial que agrega vários tipos de lojas, diversidade de opções e que se localiza em pontos centrais das principais vias da cidade. A acessibilidade apareceu como um elemento relevante na preferência pelo uso dos shoppings, e de alguns deles frente a outros. Para muitos, tais empreendimentos oferecem a “comodidade” e o “conforto” que não encontram no comércio de rua. Por outro lado, os shoppings passaram a concentrar diversos serviços que anteriormente existiam (e não mais existem) no centro ou em ruas comerciais da cidade, como os cinemas[9]. Os relatos que se seguem ilustram essas questões:
[As pessoas frequentam mais os shoppings porque] Primeiro comodidade, aqui [no bairro] você tá debaixo do sol quente, “gente como o quê”, você tem que ir pra pista... Tem uns três anos uma moça saiu do mercado, os carros ali na frente do mercado tomando todo o passeio, um carro deu ré, tomou ré e ela foi atropelada... a vizinha aqui... Então no shopping não acontece isso. Talvez você pague até por esse serviço, mas você tá ali no ar condicionado, um espaço melhor pra você transitar, pra você procurar o que você quer... e aqui no bairro, uma correria, uma agonia, não tem espaço onde você transitar, tem que ir pelo meio da rua, sol quente na cabeça. E ainda tem outra coisa, no shopping você tem comodidade, espaço... e segurança, né? (P., 23 anos, vendedor, morador de Tancredo Neves, bairro de perfil popular)
Shopping é mais seguro. Tem ar condicionado... [...] tem mais opções de coisas. No shopping a gente encontra tudo ou quase tudo [...] a gente encontra pessoas, encontra comida, encontra bebida, encontra talvez as coisas que a gente tá procurando... (J., 22 anos, fotógrafo/ atendente de telemarketing, morador do Pelourinho, bairro tradicional atualmente de perfil popular).
Para além dessas facilidades, que se associam até mesmo com a oferta de internet gratuita, um elemento se tornou central na valorização dos shoppings como espaço de compras e lazer: a segurança. Eles são controlados por guardas, câmeras e modernos sistemas de segurança, assim como os chamados enclaves fortificados (CALDEIRA, 2000). Esse elemento é tão relevante que no site da ABRASCE, na sessão de publicações, além de temas como gestão e merchandising, a segurança ocupa uma posição central, com a oferta de livros e DVD sobre prevenção a crimes. Em Salvador, a associação de tais empreendimentos com a oferta de segurança foi notada pelo jornalista Gonçalo Júnior que, num editorial sobre o carnaval em 2007, quando Salvador possuía um número ainda menor de shopping centers, desenvolveu uma reflexão sobre o medo na dinâmica da cidade:
Assim que o comércio baixa suas portas na região central, a Salvador de 2007 mais parece que está sob toque de recolher. Importantes vias como a avenida Sete de Setembro e a rua Carlos Gomes são rapidamente esvaziadas, enquanto os gargalos próximos às áreas de concentração de shoppings na região da avenida Paralela ganham um fluxo intenso e transformam o trânsito num caos parecido com os congestionamentos de São Paulo. Todos parecem ter pressa para chegar em casa. Enquanto as obras do metrô são finalmente retomadas, seus moradores passam a impressão de que vivem inquietos, acuados e aflitos. O maior motivo, aparentemente, é a violência do dia-a-dia (sic), que encurrala moradores de todas as idades e classes em suas casas e limita sua diversão aos shoppings – que brotam como caça-níqueis por toda a cidade. No último sábado de maio, por exemplo, enquanto a orla estava semideserta por volta das 21 horas, no Shopping Iguatemi, o maior da cidade, era quase impossível comprar um ingresso para ver algum filme ou conseguir uma mesa vazia em suas dezenas de lanchonetes e restaurantes fast-foods. (GONÇALO JÚNIOR, 2007, p. 1).
A segurança também se tornou importante para os usuários, conforme fica claro em diversos depoimentos:
[...] no shopping você tem aquela ideia de que você está protegido ali, com os seguranças do shopping, então, a gente sempre pensa na nossa segurança... Você sabe que vai poder tirar seu iphone do bolso... E lá você tem essa ideia de que você está seguro ali, naquele espaço ali, que você vai poder encontrar seu amigo ali de boa, em segurança (B., 19 anos, estudante universitária, moradora de Piatã, bairro de perfil médio-alto)
Estou mais lá [no shopping] do que no meu bairro, porque eu não posso circular em vários lugares no bairro que eu moro, pois lá é feito e comandado por gangues. (C., 18 anos, atendente de telemarketing, moradora de Santa Mônica, bairro de perfil popular)
No que tange à concentração de oportunidades de consumo, serviços e lazer, como os cinemas, por exemplo, e aos apelos da comodidade, conforto e, principalmente, segurança por parte dos referidos empreendimentos, pode-se dizer que, de certa forma, cria-se uma competição com os espaços públicos tradicionais, como as ruas, as praças, os parques e os centros urbanos onde se localizam o comércio de rua, diminuindo a frequência a eles e, em parte, a sua importância.
Segundo Frúgoli Jr. (1992), os shopping centers no Brasil se conformaram como um equivalente de uma cidade, uma “cidade em miniatura”, recriando praças, calçadões, bulevares etc., dentro de uma nova escala e concepção. Assim, tais empreendimentos aspiram traduzir num espaço fechado a utopia urbana que o capitalismo não realizou para o conjunto da sociedade, uma “cidade ideal” onde as pessoas estão a salvo da violência, das intempéries climáticas, dos transtornos do trânsito e das desordens da geografia urbana.
Apesar da idealização no que tange à criação dessa “nova cidade”, muitos shopping centers em Salvador reúnem uma grande quantidade e um perfil bastante diversificado de pessoas. Segundo informações de um Portal de Notícias, o Shopping da Bahia recebe aproximadamente 120 mil pessoas por dia[10]. De acordo com os relatos colhidos, boa parte dos usuários, especialmente os adultos, frequentam esses empreendimentos efetivamente para o consumo de bens, serviços e lazer. Os depoimentos demonstram que a maior parte das pessoas não os frequenta com o objetivo principal de se encontrar com os amigos ou de conhecer novas pessoas. A maior parte dos usuários, inclusive, tem por prática um tipo de sociabilidade mais pautada nos seus próprios núcleos, amigos, namorada(o), de modo que as pessoas “ficam mais isoladas, cada uma no seu quadrado” ou “cada um na sua, cada um com o seu grupinho”.
Assim, uma parte considerável dos usuários tem relações de sociabilidade bastante específicas nesses espaços; práticas que poderiam ser associadas ao que Simmel (2005) entendeu como uma reserva típica das grandes cidades modernas[11]. Muitas vezes, como salientou Simmel, a reserva e a indiferença se expandem para a estranheza e aversão, especialmente devido aos choques e encontros corporais (WAIZBORT, 2000) que, por vezes, acontecem em meio à multidão, agora não mais metropolitana, mas dos shopping centers. Em datas comemorativas, como Natal e Dia das Mães, por exemplo, é comum que verdadeiras multidões incorram aos shoppings da cidade em busca de presentes.
Apesar dessa tendência, para grupos de adolescentes e jovens, os shopping centers são não apenas espaços de consumo de lazer, mas também lugares de encontro e sociabilidade. Outros estudos também identificaram essa tendência nos shopping centers de São Paulo (FRÚGOLI JR., 1992) e Belo Horizonte (LEMOS, 1992). Segundo o primeiro autor, especialmente nos fins de semana os shopping centers se transformam em cenários de encontros, paqueras, “derivas”, ócio, tédio, passeios e consumo simbólico. O depoimento que se segue ilustra essas questões:
[No shopping] Não acho que tem interação não [entre a maior parte das pessoas]. O que eu vejo que mais tem interação, e aí independe do shopping, eu acho que é da idade, e não do ambiente, são pré-adolescentes. Porque na minha época também de pré-adolescente também tinha isso de ir pro shopping paquerar, aí os grupinhos se encontravam e tal, mas é da idade e não do ambiente. Isso aí acontece tanto no Iguatemi quanto no Salvador, no Shopping Paralela, qualquer lugar. [Quando era pré-adolescente] Ali no Iguatemi mesmo, naquela área ali do cinema, era tipo um evento de ir pro shopping. Tinha muito de ir no Barra também. Eu vejo os jovens, tipo de 13 anos, 12, e vejo eles interagindo e imagino que seja igual a minha época. (D., 23 anos, estudante universitária, moradora da Pituba, bairro de perfil médio-alto)
Organizados em múltiplos grupos, também em Salvador, os jovens circulam de modo diferente dos consumidores estrito senso; em vez de vitrines, observam principalmente os transeuntes, especialmente em busca de encontros (FRÚGOLI JR., 1992). Assim, constroem sua própria identidade, percebendo as diferenças entre os frequentadores e a diversidade dos variados grupos, conforme ilustra o depoimento de um dos entrevistados que assim descreveu o perfil dos usuários do complexo de cinemas de um dos shoppings da cidade:
Eu vejo particularmente variações; você vê uma galera da favela, até pelas vestes, você reconhece, acaba reconhecendo essa galera. [...] As vestes tipo roupa de marca e tal, entendeu? Marcas tipo Ciclone, Mahalo, apesar de que muitos jovens de classe média alta acabam vestindo essas roupas mas a galera do gueto, ela associou muito essas roupas de marca como se fosse algo que te deixasse no patamar também da classe média, da classe rica... Então isso te dá uma ânsia de, como eu posso dizer, superioridade. [...] Aí você acaba morando no bairro e você reconhece, até pelo modo de falar também, as gírias. [...] Eu percebo essa galera de classe média também, né, uma galera branca, de corrente de ouro, as meninas são umas bonecas, de cabelo liso; então a galera de classe média alta também frequenta o shopping. Uma galera que vai do trabalho você vê bastante ali, até com farda do trabalho [...] (A., 24 anos, representante comercial/universitário, morador de Plataforma, bairro de perfil popular).
Depreendem-se também deste último depoimento as reivindicações da diferença (LEITE, 2009) típicas da cultura urbana e das formas de sociabilidade contemporâneas. Grupos de jovens, “metaleiros”, pessoas “do gueto”, de classe média, entre outros, afirmam suas identidades nesses espaços que, dada a proporção de usuários, tende a ser por vezes mais plural do que os chamados espaços públicos tradicionais, que, em Salvador, segundo Arantes (2016), são marcados por uma apropriação relativamente homogênea.
Assim, as relações de sociabilidade e os padrões de interação desenvolvidos nos shopping centers são complexos. De um lado, eles se convertem em verdadeiros espaços de encontro e sociabilidade para certos grupos de jovens representando “muito mais do que comprar” (STILLERMAN; SALCEDO, 2010). Em alguma medida, os shopping centers permitem a expressão da heterogeneidade urbana e engendram encontros fortuitos, formações de identidade, alteridade e diferença, não sem conflitos e evitações. De outro lado, entre muitos usuários, se assemelha à reserva identificada por Simmel (2005) como característica das grandes cidades e ao modo de comportamento típico dos espaços públicos, conforme destacado por Joseph (2000 apud VALLADARES; LIMA, 2000), Bordreuil (2002) e Sabatini et al (2013), ou seja, um comportamento baseado na experiência “dos vínculos fracos, a do mal-entendido e do retraimento, da inevitável superficialidade das trocas” (JOSEPH, 2000, apud VALLADARES; LIMA, 2000, p. 5). Nesse aspecto, é interessante notar, de fato, a porosidade (FORTUNA, 2002) entre as lógicas da interação e da sociabilidade entre os espaços públicos urbanos e os shopping centers. De certa forma, a cidade invade esses espaços, ainda que haja restrições e resistências.
Apesar de serem espaços de direito privado, ainda que de acesso público, os shopping centers assemelham-se aos espaços públicos tanto no que tange aos padrões de sociabilidade e reserva quanto no que se refere a um conjunto de estratégias de distinção e evitação levadas a cabo pelos seus frequentadores. Buscando evitar encontros considerados desagradáveis, um conjunto de estratégias é colocado em prática pelos usuários (a preferência por certos shoppings e por espaços, pisos, restaurantes etc.) e também pelos administradores (formas de controle social de determinados grupos).
Embora expressem alguma diversidade de usuários, os shopping centers de Salvador possuem diferentes perfis sociais. Alguns deles são mais elitizados, como o Shopping Barra, que se localiza num bairro de alta renda, e outros são mais populares, como o Shopping Liberdade e o Bahia Outlet Center, que se localizam em bairros de renda média e baixa. O Shopping da Bahia, por exemplo, vem sendo reconhecido pelas pessoas como um shopping que tem concentrado grupos de perfil mais popular desde a inauguração do Shopping Salvador (reconhecido por muitos entrevistados como um shopping que passou a atender os estratos de classe mais elevados). O relato abaixo ilustra os imaginários sobre a estratificação dos shoppings:
[Sobre o Shopping Salvador] Acho que em comparação com o Iguatemi, já se criou popularmente essa ideia, não que eu concorde, mas enfim é o que as pessoas costumam falar, o estigma; o estigma é que o Salvador shopping é mais classe média rica e que depois que o Salvador shopping foi construído o Iguatemi ficou, entre aspas, pra galera ralé, pobre etc. Tanto que tem gente que não vai lá porque fica: “ah, vou ser assaltada”; não vai, faz uma ideia muito maior do que é. Óbvio que tá mais perigoso, isso é verdade, mas também não chega a ser esse negócio de você não poder frequentar. [...] já teve alguns casos de assalto mesmo lá dentro. Mas assim também deve ter no Paralela e eu também ouvi em outros, mas se você é frequentador, você realmente vê que em termos de classes sociais o Iguatemi mudou bastante mesmo depois que o Salvador shopping foi aberto. Mudou, mas também... é porque as pessoas criam um estigma e aí é um exagero, fica parecendo que o Iguatemi só tem pobre e o Salvador Shopping só tem rico... não, é misturado. Agora se você for comparar com antes, realmente mudou, mas eu não tenho essa imagem exagerada de “pô, no Iguatemi só vai pobre”. Eu acho que é uma generalização, também não chega a ser isso tudo não. Mas obviamente que mudou. [...] muita gente a que eu falo que vou, falam: “oxe, você é louca?”. Muita gente fica discutindo, “ah, não gosto mais do Iguatemi, sabe? Só dá gentinha...” Essas coisas... (D., 23 anos, estudante universitária, moradora da Pituba, bairro de perfil médio-alto)
Claro está que essas percepções compõem os imaginários sociais construídos e que essas imagens variam também em função da posição que os entrevistados ocupam no espaço social. Para jovens de camadas populares, o Salvador Shopping, por exemplo, parece ser frequentado por grupos superiores, enquanto as pessoas desses grupos imaginam e representam os usuários como diversificados, onde estão presentes grupos médios e populares, por exemplo. O imaginário social sobre as classes e a estratificação dos shoppings orienta o perfil dos usuários e apresenta as formas como a sociabilidade é construída, a partir de processos de reconhecimento de semelhanças e diferenças, a partir de comportamentos considerados adequados e não-adequados, desejados ou evitados. Isto ocorre tanto com grupos médios e altos, que evitam espaços considerados exageradamente populares, quanto com camadas de mais baixa renda que utilizam expressões estigmatizantes para classificar certos frequentadores.
Para além da estratificação entre os shoppings e dos imaginários construídos em torno do perfil de seus usuários, determinadas segmentações ocorrem ainda no interior dos mesmos, em função dos pisos e/ou espaços específicos, como ocorre no Shopping da Bahia, onde o terceiro piso é diferente dos demais em quase todos os aspectos: perfil das lojas, estrutura dos banheiros, climatização, material da construção etc. No Shopping Salvador a lógica prevalece, pois, se há uma praça de alimentação com lanchonetes e restaurantes de todos os tipos, em outra parte há uma ala gourmet, conformada por restaurantes de perfil social bem mais elevado.
Conforme se percebe, as interações nesses ambientes estão eivadas por estratégias de distinção e formas de evitação. Reconhecendo que nos shoppings podem estar presentes pessoas de distintos grupos, estilos e perfis sociais, os usuários colocam em práticas estratégias para evitar aqueles considerados indesejáveis. De certa forma, assim como já haviam salientado Stillerman e Salcedo (2010), essas práticas de construção de grupos, de reconhecimento e evitação, se expressam nesses lugares da mesma forma que nos espaços da cidade aberta, demonstrando que, muitas vezes, eles podem ser mais uma continuação da mesma do que propriamente uma quebra conduzida por um processo de privatização.
Não obstante, um elemento importante existente nos shopping centers é a presença de formas de controles que, não raro, se conformam como estratégias de segregação. Isso se dá pela sua condição de enclave fortificado, espaços privados onde o uso público tem limitações. São geridos por administradores que centralizam o poder sobre os tipos de usos, determinando aqueles que são considerados aceitáveis e aqueles que devem ser reprimidos.
Uma das entrevistadas nota como está presente nesses empreendimentos um conjunto de regras de controle muitas vezes indesejáveis: “Antes costumava ir umas tribos interessantes lá no shopping, mas eles proibiram, deu umas tretas... A galera com uns casacões tal, umas coisas assim, mas eles proibiram de entrar”. Essa realidade ficou patente também em Salvador com o fenômeno dos chamados “rolezinhos”[12]. Em 2014, este autor teve a oportunidade de observar diretamente um desses encontros em Salvador. Um grupo de 30 jovens, entre homens e mulheres, caminhava na véspera do dia das mães pelo terceiro piso do Shopping da Bahia, onde se concentram lojas de grife e um público mais elitizado. Esses jovens, de maioria negra, possuíam um estilo notoriamente diferente dos demais frequentadores: os meninos calçavam sandálias, vestiam bermudas abaixo do joelho, camisas, algumas simulando marcas famosas, bonés de aba reta, grandes correntes nos pescoços, chamadas de “batidão”, e óculos escuros; as meninas usavam minissaias ou calças jeans justas e camisas curtas, deixando à mostra os piercings nos umbigos, além de bonés e óculos.
Este “rolezinho” pareceu ser um ato estético, social e político, talvez uma ação de protesto contra a invisibilidade e preconceito sofrido por jovens da periferia. Tendo conquistado alguma mobilidade social nos últimos anos, estes jovens passaram a reivindicar a utilização de espaços de consumo antes restritos às camadas médias e altas, apresentando ao restante da sociedade seu estilo e suas práticas. Este ato não deixou também de representar um conflito, pois esses jovens se colocavam claramente numa posição de enfrentamento, olhando nos olhos das pessoas, burlando a segurança imposta pelo shopping e mobilizando a “sensação de medo” a seu favor, como uma espécie de provocação àqueles que, de fato, se amedrontam com a presença desses “outros” tão “diferentes”.
A presença desse grupo não passou despercebida pela segurança do shopping, que o monitorou durante todo o tempo, solicitando que se deslocassem quando os jovens insistiam em ficar agrupados, culminando com a chegada da polícia judiciária. Pela sua própria natureza de enclave fortificado voltado para o consumo, a lógica mercantil dos shoppings é estranha à expressão ampliada da diversidade social, principalmente quando se trata do agrupamento de jovens negros, de camadas populares vinculados a uma estética “periférica”, associada geralmente às “classes perigosas”.
Isso se expressa também em outros casos de racismo, discriminação e homofobia praticados por seguranças de shopping centers de Salvador. Alguns desses casos são paradigmáticos. Em 2009, um casal homossexual foi repreendido por seguranças de um shopping por estarem se beijando em público, o que gerou revolta na comunidade LGBTQ que, através do Grupo Gay da Bahia, organizou um “beijaço” coletivo como ato de repúdio ao incidente[13]. Em agosto de 2014, em outro shopping, ao sair de uma loja de departamentos um homem negro passou a ser seguido por um segurança. Irritado, ele tirou a roupa para provar que não havia roubado nada e discursou contra o racismo. As cenas foram filmadas por vários clientes e depois repercutidas nas redes sociais e em telejornais e periódicos[14]. Em 2016, novos casos ocorreram: em um deles, cinco jovens negros vestidos com roupas simples foram repreendidos por seguranças e depois expulsos sob a acusação de que estavam com uma “postura inadequada” na praça de alimentação[15]; no outro, um homem levou um soco de um segurança após ser acusado de tentar furtar uma cliente[16].
Claro está que formas de controle social e discriminação estão presentes de maneira transversal em todos os espaços de uma sociedade que é desigual, autoritária e hierárquica. Não obstante, é importante observar que nos shopping centers esses controles são exercidos por um poder discricionário privado, de modo que, ainda que esses espaços possam ser ressignificados como lugares propícios à sociabilidade, eles mantém sua lógica de enclave, privado e seletivo, que têm um objetivo claro, que é resguardado sempre que os administradores consideram necessário.
Considerando os elementos antes esboçados, cabe se questionar se a proliferação dos shopping centers tem impactado sobre os espaços públicos da cidade, contribuindo para um processo de abandono e evitação dos mesmos, ou se eles se conformam como mais um dos espaços urbanos que podem ter um uso público.
Como visto ao longo da discussão, os shopping centers possuem significados diversos em função das atividades que oferta, da sua localização no tecido da cidade, do perfil de classe e geracional dos usuários, entre outros aspectos. Definitivamente, são espaços que se associam a “muito mais do que comprar” (STILLERMAN; SALCEDO, 2010).
De um lado, pode-se dizer que a oferta de comodidade, conforto e principalmente segurança permite que aqueles grupos que não veem na cidade aberta as condições de circulação centralizem suas experiências urbanas nesses espaços, além de outros espaços privados. Nesse sentido, tais empreendimentos rivalizariam diretamente com os espaços públicos, contribuindo para a sua restrição e até mesmo sua degradação devido à geração de um sentimento de “dessolidarização dos destinos comuns da cidade” (ARANTES, 2011).
Os processos de privatização (entre eles o de ampliação dos shopping centers) têm exercido uma forte influência na conformação da Salvador contemporânea. Isso é realidade não só para as camadas de mais alta renda, que têm um circuito de deslocamento pelo território da cidade bastante restrito, mas também para os grupos populares que também evitam em diversas situações os espaços programados para uso público, ainda que não tenham o mesmo acesso a serviços privados.
Assim, a reconfiguração dos espaços públicos com a ampliação da preferência pelos espaços privados tem contribuído para a construção de um modelo distinto de cidade, onde os espaços públicos são evitados e abandonados e os espaços privados se convertem em lugares privilegiados dos circuitos urbanos.
É importante destacar que os shopping centers são apenas um dos empreendimentos privados que tem concentrado práticas que anteriormente eram desenvolvidas nos espaços públicos, como os condomínios, por exemplo, que cada vez mais ofertam itens de lazer e serviços. A geografia de espaços privados em Salvador se ampliou consideravelmente nos últimos anos.
Não obstante, por outro lado, engendra-se nos shopping centers um conjunto de relações de sociabilidade. Estão presentes formas de interação diversas, como atitudes de reserva frente aos demais (SIMMEL, 2005) ou uma desatenção polida (BORDREUIL, 2002), formação de grupos, nichos e identidades, com os respectivos conflitos e potenciais de conflito, demarcações/ transposições de fronteiras (LEITE, 2009) e formas diversas de evitação, distinção e preconceito. Essas práticas, em verdade, se assemelham profundamente aos padrões de interação encontrados nos espaços públicos marcados por grande diversidade social, que também é uma das características dos principais shopping centers de Salvador.
Como destacado, isso expressa a porosidade que pode existir entre os espaços públicos e os espaços privados, nesse caso os shopping centers (FORTUNA, 2002). Nesse sentido, este trabalho aponta para a ambivalência (ou polivalência) desses empreendimentos. Por vezes, ideal-tipicamente, se expressam como verdadeiros enclaves fortificados, espaços privados, segregados e controlados. Por outras, expressam mais diversidade que os espaços públicos da cidade, se convertendo em espaços de múltiplos encontros, interações e conflitos.
Assim, podem ser entendidos como espaços “semi-públicos de diversidade”, mix do privatismo contemporâneo e dos contra-usos (LEITE, 2002) levados a cabo em oposição a essa lógica. Retomando a definição ideal-típica previamente estabelecida do(s) espaço(s) público(s) urbano(s) como aquele(s) que envolve(m) uma geografia pública, certa vitalidade e a construção de relações de sociabilidade, os shopping centers são espaços privados que não permitem usos públicos plenos porque, embora tenham bastante vitalidade e expressem diversidade, não há a garantia de acesso amplo e irrestrito, vez que existem fortes controles sociais, seletividade e confinamento. Porém, são palco de múltiplas interações e formas de sociabilidade, da reserva à autossegregação grupal, fato que impele ao reconhecimento da ressignificação desses espaços como algo muito mais complexo do que simplesmente templos da mercadoria, ainda que não deixem de sê-lo.
Os shopping centers, portanto, são espaços de fronteira, “semi-públicos”, porosos, complexos e ambivalentes. Não obstante, seguindo Frúgoli Jr. (1992), é fundamental destacar que, apesar de tais características, o shopping centers não poderão se equiparar e suplantar as ruas, praças e demais espaços públicos tradicionais no que eles podem ter de vitalidade, heterogeneidade e especialmente imprevisibilidade.