Editorial
O presente dossiê constitui um dos resultados do 18º Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em Brasília no mês de julho de 2017, que teve como temática principal a indagação: Que sociologias fazemos? Interfaces com contextos local, nacional e global.
O tema escolhido – sem abrir mão de questões candentes da sociedade contemporânea e, especialmente, do contexto nacional – visou incentivar a reflexão a propósito da multiplicidade de configurações temáticas e teóricas que perpassam a produção sociológica contemporânea, realizada tanto no Brasil quanto em outras partes do mundo. Nesta direção, o Congresso procurou explorar a variedade de problemas sociológicos privilegiados por diferentes localidades, regiões e países, assim como apresentar uma pluralidade de orientações teóricas e metodológicas, presentes na condução do trabalho sociológico no interior dos diversos contextos locais e nacionais. De certa forma, a temática do Congresso inspirou-se na esteira de uma sociologia reflexiva, ou seja, de uma sociologia da sociologia, que postula uma constante reflexão sobre as condições históricas, sociais, institucionais e acadêmicas que se encontram presentes na prática sociológica. Nesta direção, o imperativo da reflexividade pressupõe assumir a própria sociologia como um objeto específico, que deve servir-se de seus próprios recursos (teóricos e metodológicos) para compreender sua atividade durante o processo de construção do conhecimento. Na esteira de uma sociologia da sociologia, fazer da reflexividade uma disposição pressupõe controlar a relação do investigador com seu objeto de pesquisa e, ao mesmo tempo, refletir constantemente sobre os condicionantes dos contextos local, regional, nacional e global que se exercem sobre a prática da sociologia.
Apesar de sérias dificuldades financeiras encontradas durante a programação e realização do Congresso, a SBS levou adiante, de forma obstinada, o propósito de concretizar um Congresso com elevado padrão intelectual direcionado para a exploração da temática selecionada. Neste sentido, contou com a presença de acadêmicos internacionais que têm fornecido contribuições relevantes para o campo da sociologia, provenientes de diferentes regiões do mundo, tais como África do Sul, Austrália, França, Alemanha, Inglaterra, Síria, China, Estados Unidos, América do Sul, e que participaram em diversas atividades no Congresso, tanto nas Conferências quanto nos Grupos de Trabalho, nos Fóruns e/ou nas Mesas Redondas. A presença destes participantes internacionais propiciou informações relevantes sobre os contextos históricos, sociais, institucionais e acadêmicos nos quais estão ancoradas suas produções acadêmicas, bem como apontou para presença de uma diversidade de recortes temáticos e teóricos existentes no campo da sociologia contemporânea.
Simultaneamente, a presença no 18º Congresso da SBS de destacados sociólogos seniors nacionais e também a participação de uma nova e promissora geração de sociólogos que atuam profissionalmente em diversas regiões do país, inseridos em 40 Grupos de Trabalho, 45 Mesas redondas, em uma dezena de Minicursos, forneceram informações pertinentes sobre a variedade de temas de pesquisa que vêm sendo explorados atualmente pela sociologia realizada no Brasil e também colocaram em evidência o papel público que ela vem exercendo diante dos desafios sociais, políticos, econômicos e culturais do país. Ao mesmo tempo, a atividade “sociólogos do futuro” que congrega alunos de graduação e de mestrado, propiciou a observação dos temas e recortes teóricos e metodológicos que vêm despertando o interesse intelectual de uma nova geração de sociólogos, em processo de formação intelectual.
Na medida em que, ao longo dos Congressos da SBS, os Grupos de Trabalho adquiriram uma centralidade no processo de apresentação e discussão de pesquisas realizadas e/ou em processo de andamento, o 18º Congresso da SBS considerou oportuno eleger os GTs como .ócus estratégico para realizar uma reflexão sobre a sociologia que vem sendo realizada no Brasil. Neste sentido, a SBS solicitou da Coordenação de todos os GTs a realização de um trabalho reflexivo que contemplasse determinados aspectos da área temática de sua atuação, tais como: (i) realizar um balanço da produção da área acadêmica que afeta ao GT nos últimos anos; (ii) identificar os avanços teóricos e metodológicos da área acadêmica correspondente ao GT. (iii) apontar as debilidades teóricas e metodológicas da área temática explorada pelo GT; (iv) destacar a contribuição da área de investigação do GT para a sociologia que se realiza no Brasil; (v) avaliar a inserção da área temática do GT no contexto da sociologia internacional; e (vi) formular uma agenda de pesquisa para fortalecimento da área de investigação do GT.
A partir destas diretrizes, a SBS demandou a cada Coordenação do GT a elaboração de um paper, em torno de 20 páginas e eventualmente em parceria com outros pesquisadores, sobre o estado da arte da área de pesquisa congruente com os respectivos GTs. Os textos produzidos foram enviados para o Comitê Editorial da Revista Brasileira de Sociologia (RBS) e, em seguida, submetidos à apreciação de pareceres ad hoc. Os trabalhos reunidos neste dossiê fornecem informações relevantes sobre a configuração da sociologia que vem sendo realizada no Brasil, através dos diferentes campos temáticos que integram sua atividade e, ao mesmo tempo, lançam luz a respeito da presença de heterogeneidade de vertentes teóricas e de uma profusão de autores mobilizados para analisar os dados empíricos que alicerçam as pesquisas realizadas em seus respectivos campos de investigação. Os trabalhos apresentados contribuem de diferentes formas e em distintas direções analíticas para oferecer informações pertinentes para fundamentar uma reflexão sociológica sobre a sociologia que se pratica no Brasil nas últimas décadas. Em larga medida, estes trabalhos podem proporcionar uma atitude de autoquestionamento por parte dos pesquisadores que atuam nas diversas áreas que estruturam a sociologia no país, sobre suas eventuais fragilidades e, ao mesmo tempo, suas potencialidades diante do competitivo espaço transnacional da disciplina que vem se formando nas últimas décadas.
Seria oportuno destacar que os trabalhos apresentados nesta edição da RBS constituem um produto da agenda de trabalho da Diretoria da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS-2015-2017), a qual elegeu como uma de suas prioridades acadêmicas incentivar uma reflexão a respeito das transformações que estão ocorrendo na sociologia, tanto no plano internacional quanto a realizada no Brasil. Para a Diretoria da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS-2015-2017), esta postura reflexiva constitui uma condição essencial para preservar a posição pertinente da sociologia na esfera cognitiva da sociedade brasileira e sua inserção no cenário internacional, diante das complexas transformações que estão ocorrendo no interior da própria disciplina. O ritmo veloz e a amplitude de mudanças sociais, políticas e culturais, que estão ocorrendo em diversas sociedades contemporâneas, vêm apresentando desafios para o universo empírico, ou seja, o terreno de análise no qual a sociologia concentrou suas análises, ao longo do tempo.
A este propósito, deve-se assinalar que, durante um extenso período, o terreno predominante de investigação da sociologia tem sido a análise das diversas sociedades nacionais, seja no continente europeu, seja na América do Norte, Ásia, África, seja na América Latina. A própria noção de sociedade, particularmente entre os pensadores do século XIX, estava, de certa forma, relacionada com existência de estado-nação. Não se pode esquecer de que a institucionalização da sociologia, no final do século XIX, ocorreu num momento em que o princípio de nacionalidade se afirmava com toda a força. Enquanto tendência predominante no interior da sociologia, as sociedades nacionais têm sido analisadas como unidades autônomas, fechadas em si mesmas, separadas umas das outras pela delimitação de seus territórios. Tanto assim que se fala de uma sociologia francesa, alemã, norte-americana, brasileira etc. O ponto focal das investigações centradas nas sociedades nacionais visou compreender o interior de cada uma delas, procurando captar sua estrutura social, a articulação de suas instituições, seus padrões de desigualdade e modos de conflito e o processo de mudanças sociais (HEILBRON, 2015; LEVINE, 1985).
Certamente, as diversas sociedades nacionais continuam a existir manifestando-se por meio da defesa de seus territórios, tradições culturais, acadêmicas etc. Nas sociedades nacionais, tendem a perdurar sentimentos nacionalistas, regionalistas, reivindicações de pertencimentos étnicos etc. (TURNER, 2007). No entanto, as profundas transformações que estão ocorrendo, em nível global nas sociedades contemporâneas, tendem a indicar que existência das sociedades nacionais não esgota a complexidade da realidade contemporânea. Gradativamente, nas últimas décadas do século XX, surgiu um conjunto de fenômenos econômicos, políticos, culturais, militares, acadêmicos, entre outros, que operam em uma escala que transcende as fronteiras das diversas sociedades nacionais. Neste contexto, ocorre o incremento de conexões econômicas, políticas, culturais, acadêmicas etc., entre diferentes localidades, países, empresas, finanças, indivíduos, movimentos sociais. Nesse sentido, forma-se uma densa rede de relações sociais, econômicas, políticas, culturais e acadêmicas que operam num nível supranacional. A presença destes fenômenos – ora analisados como expressão da globalização e/ou mundialização – alargou de forma considerável o terreno empírico da análise da sociologia, até então concentrado predominante nas sociedades nacionais, conforme assinalado anteriormente, estendendo-o para um plano transnacional e/ou global (HSU, 2010; TURNER; KHONDKER, 2010; TOURAINE, 2004; ROBERTSON, 2000). Ao mesmo tempo, a presença destes fenômenos transnacionais tende a demandar novos instrumentos de análise da sociologia, visando captar as complexas relações entre as articulações dos níveis locais, regionais, nacionais e globais que se encontram entrelaçados de modos singulares em várias sociedades contemporâneas (DELANTY, 2009; BECK, 2005; 2006).
Uma constelação de fenômenos ocorridos em distintos planos da sociedade contemporânea se entrelaçou de tal modo que contribuirá para a constituição progressiva de um espaço transnacional para a sociologia. Isso levará as relações acadêmicas entre as diversas sociologias nacionais a outro patamar, quando comparadas a épocas anteriores. Nesse sentido, vale destacar o papel desempenhado pela Internacional Sociological Association (ISA), que ampliou o recrutamento de participantes no seu interior. Seguindo o modelo de organização da ONU, de privilegiar as representações nacionais, a ISA, tal como outras associações científicas internacionais, foi constituída a partir de um pequeno número de associações nacionais que estavam concentradas em alguns países europeus e na América do Norte. A partir do final dos anos 1960, a ISA e outras associações permitiram a entrada e a participação de indivíduos em suas atividades, aumentando seu escopo de recrutamento. Com o processo de descolonização que ocorreu nesta época, as nações pós-coloniais e seus pesquisadores também passaram a integrar a ISA. Ao mesmo tempo, ocorreu a entrada de países comunistas do leste europeu no seu interior. Ou seja, a partir dos anos 1970, verificou-se uma ampliação significativa da base geográfica da ISA pouco a pouco, o que traria repercussões nas discussões teóricas e metodológicas em seu interior (HEILBRON, 2014; HEILBRON et al., 2009; PLATT, 1998).
Na dinâmica do processo de formação de um espaço transnacional da sociologia, vale destacar o surgimento de novos centros econômicos e acadêmicos dinâmicos na Ásia e em outras regiões do hemisfério sul e o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação, que impulsionou o incremento do intercâmbio, no interior da sociologia, de uma diversidade de orientações teóricas e metodológicas provenientes de vários países. Também contribuíram para a formação deste novo espaço a forte expansão do ensino superior pelo mundo, o incremento da mobilidade acadêmica internacional, a intensificação de debates sobre a disciplina – que atravessam as fronteiras nacionais em ritmo veloz –, a implementação de políticas de ciência e tecnologia empreendidas por diversos países que ocupam posições dominadas no universo acadêmico, visando a alavancar suas respectivas comunidades de pesquisadores. Algumas análises têm destacado que, no contexto da globalização que perpassa as sociedades contemporâneas, aflorou um ethos cultural que incentiva e valoriza os indivíduos a se movimentarem avidamente em suas vidas privadas e profissionais, incentivando-os a ter novas e desafiadoras experiências em seus distintos campos de atuação (ELLIOT; LEMERT, 2006; RAY, 2007; ELLIOT; URRY, 2010). Ao mesmo tempo, deve-se destacar que os governos de vários países têm criado políticas específicas para intensificar a circulação internacional de seus professores, uma vez que a internacionalização do corpo docente passou a ser considerada um aspecto positivo nas avaliações dos rankings mundiais sobre as universidades. O resultado tem sido o incremento das relações acadêmicas entre sociólogos de diferentes países (CANTWELL, 2010MARINGE; FOSKETT, 2010).
O documento World Social Science Report (2010) traz informações relevantes sobre a constituição do espaço mundial da sociologia. Este trabalho, que contou com a participação de cientistas sociais destacados, como Craig Calhoun, Saskia Sassen, Peter Wagner e Syed Alatas, entre outros, indica que as ciências sociais nos dias atuais, ao contrário de seu início, estão presentes em todas as regiões do mundo nas quais existem sistemas de ensino superior. Neste processo de ampliação mundial, formaram-se associações nacionais de sociologia em uma parte expressiva de países e também organismos regionais, visando estimular as ciências sociais que ocupam posições periféricas neste espaço transnacional, como Arab Council for the Social Sciences (ACSS), Association of Asian Social Science Research Councils (AASSREC), Council for the Development of Social Science Research in Africa (CODESRIA) e Latin America Council of Social Sciences (CLACSO). Simultaneamente, passou a ocorrer um maior afluxo de sociólogos em congressos internacionais, como os da ISA, e também em encontros temáticos, como os da Latin American Studies Association (LASA), atualmente uma das maiores associações científicas transnacionais do mundo, composta por mais de 12 mil sócios e de instituições provenientes de uma multiplicidade de países, dedicadas ao estudo da América Latina. Cada vez mais se observa a formação de redes de investigações integradas por pesquisadores oriundos de diferentes países, que trabalham conjuntamente, por um determinado período, em um mesmo objeto, compartilhando fundamentos teóricos e procedimentos metodológicos que tendem a extravasar suas tradições culturais e acadêmicas nacionais. Nesta direção, compartilham ideias comuns, tendem a se reportar às mesmas obras, consultam revistas científicas similares, de tal forma que as diversas sociologias nacionais vêm ultrapassando as fronteiras e atuando, progressivamente, em outro patamar, numa prática já rotineira no contexto da global sociological community, segundo expressão de Piotr Sztompka (2010).
No entanto, o surgimento deste espaço transnacional de sociologia apresenta uma estrutura de poder assimétrica, em função da distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos entre os diferentes países. A disparidade decorre das diferentes condições de infraestrutura acadêmica disponível em seus países, vale dizer, da qualidade e reputação acadêmica de suas universidades, da capacidade instalada de investigação científica, disponibilidade de financiamento material, recursos humanos para o desenvolvimento de pesquisas e também do reconhecimento social e simbólico dos pesquisadores. Nesse sentido, ocorre uma nítida dominação da produção do conhecimento, de autores, das editoreas e das revistas internacionais localizadas em determinados países do ocidente (GAREAU, 1988)
Tomando como referência duas bases de dados, a Ulrich e a Thomson, o trabalho World Social Science Report mostra que existe densa concentração da publicação de artigos em revistas internacionais na área da sociologia na Europa e América do Norte. Essas duas regiões concentram aproximadamente 90% da produção mundial na área. A base de dados da Ulrich abrange um número maior de revistas internacionais. Do total de 6.640 revistas, eles selecionaram 3.046, cujos artigos passam pela revisão de pares. Nesta base de dados, tem-se a seguinte distribuição em termos de participação mundial na publicação de artigos: Europa, 44%; América do Norte, 37%; Ásia, 9%; América Latina, 5%; Oceania, 4%; África, 2,2%; Commonwealth e Estados Independentes, 0,6%. Quando se utiliza a base de dados da Thomson, que trabalha com um número menor de revistas internacionais, a disparidade nos índices se acentua. Nesta base de dados, a Europa responde por 46,1%; América do Norte, 46,5%; Ásia 3,7%; América Latina, 1,3%; Oceania, 1,9%; África, 0,4%; Commonwealth e Estados Independentes, 0,1%.
Os dados mostram o domínio da língua inglesa na circulação das publicações. A base de dados da Ulrich aponta que 85% dos artigos são publicados em inglês, 6% em francês, 5% em alemão, 4% em espanhol, 1,7% em português e o restante em outras línguas. No entanto, quando se utiliza a base de dados da Thomson, verifica-se um crescimento da língua inglesa, com 94,45%; seguindo o alemão, com 2,14%; o francês, com 1,25%; o espanhol, com 0,40%; o português, com 0,08% etc. As traduções de trabalhos evidenciam também uma forte desigualdade entre as regiões. Predomina a tradução de livros publicados em inglês para as línguas vernáculas dos diferentes países. No entanto, poucos trabalhos relevantes realizados em vários países são traduzidos para a língua inglesa. Isso demonstra que a formação de um espaço transnacional da sociologia tem reproduzido a dominação simbólica e material da América do Norte e da Europa.
No entanto, vários países que ocupam posições dominadas no espaço transnacional das ciências sociais implementaram políticas científicas e tecnológicas –por meio de suas agência de financiamento – de modo que tornaram algumas de suas universidades atores estratégicos no processo de institucionalização das ciências sociais. Nesses países, ocorreu a expansão dos cursos de pós-graduação em várias áreas das ciências sociais e, particularmente, na sociologia. Ao mesmo tempo, criou-se um conjunto de agências regionais que têm desempenhado um papel relevante no processo de desenvolvimento das ciências sociais na América Latina, tais como Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) (VESSURI, 2015; VESSURI; LOPEZ, 2010).
O conjunto destas iniciativas situam as ciências sociais destas regiões num nível distinto de qualidade acadêmica quando comparado com décadas anteriores. Indicam também a constituição de um contingente de pesquisadores qualificados, que não apenas estão cada vez mais inseridos no espaço internacional da sociologia, mas que reividicam uma posição de destaque no seu interior. Em função destas mudanças que estão ocorrendo na configuração da sociologia contemporânea, na qual é possível perceber a coexistência de diversas sociologias nacionais e a emergência de um espaço transnacional da disciplina, tem surgido uma série de trabalhos, realizados tanto nos centros hegemônicos quanto em regiões emergentes, visando analisar a produção sociológica que vem sendo praticada nos seus respectivos países, os quais se situam nos termos de uma sociologia reflexiva, ou seja, de uma sociologia da sociologia. Nesta direção, vale mencionar, entre outros trabalhos, o livro de Gurminder Bhambra, Connected sociologies(2014); a obra coletiva coordenada por Didier Demazière, Les sociologies françaises: héritages et perspectives 1960-2010 (2015; a coletânea editada por Sujata Patel, denominada Doing sociology in India: genealogies, locations and practices(2011); e o volume organizado por Craig Calhoun, Sociology in America: an introduction(2007). Um número expressivo de artigos divulgados em revistas emblemáticas da disciplina, como Current Sociology e International Sociology, situam-se na mesma direção em deslizar a complexa configuração atual da sociologia.
Tudo leva a crer que, ao reverberar na sociologia contemporânea, o processo de globalização, compreendido enquanto fenômeno multidimensional, ou seja, que abarca as dimensões econômicas, políticas e culturais (TURNER; KHONDKER, 2010) está desafiando determinados fundamentos de seu arcabouço explicativo. A gradativa constituição deste espaço transnacional e/ou global, no qual a sociologia passou a atuar, concomitantemente, ao lado das sociologias nacionais, propiciou o aparecimento e a disseminação em vários países de novas abordagens teóricas/explicativas. Vários trabalhos ressaltam que determinados conceitos sociológicos usados de forma recorrente – e até então considerados incontroversos – têm se mostrado problemáticos quando são utilizados em contextos não ocidentais. Portanto, as complexas transformações sociais, políticas, culturais e acadêmicas, que atravessam diversas sociedades contemporâneas, e o impacto destas mudanças no interior da estrutura cognitiva da disciplina têm instigado diversas sociologias nacionais incluir em suas pautas de trabalho a necessidade de uma reflexão crítica sobre sua produção e os alicerces cognitivos que as sustentam. (KNÖBL, 2015; ALATAS, 2006; KEIM, 2016; 2011; CONNELL, 2010; 2007; ARJOMAND, 2000).
O conjunto de trabalhos que integram esta edição da RBS insere-se na dinâmica deste processo de autoanálise, ou seja, da prática de uma sociologia reflexiva. Apesar da existência de trabalhos significativos a respeito da gênese do campo da sociologia no Brasil, a Diretoria da SBS (2015-2017) considerou relevante academicamente a realização de trabalhos voltados para a análise dos rumos intelectuais da disciplina no país, tendo como pano de fundo as mudanças institucionais ocorridas no sistema universitário, desde a década de 1980 até hoje, e cujos efeitos continuam a repercutir sobre a produção sociológica que vem sendo realizada atualmente.
Nesse sentido, cumpre destacar, brevemente, a cadeia de fenômenos interligados que têm condicionado, em larga medida, a organização da atividade da sociologia no país. A partir de meados da década de 1970, a pós-graduação em sociologia intensificou seu processo de institucionalização na esteira do sistema nacional de pós-graduação que expandiu em ritmo veloz, abarcando todas as regiões do país, propiciando a constituição de uma vigorosa comunidade de sociólogos profissionais. Neste processo de expansão dos Programas de Pós-Graduação na área de sociologia, surgiram novos periódicos, de amplitude regional ou nacional, alguns deles voltados para áreas temáticas específicas e/ou subcampos da disciplina. Nos últimos anos, ocorreu a aposentadoria de um número expressivo de professores seniors – que tiveram participação relevante na montagem da pós-graduação de sociologia em diferentes regiões, compensada, em larga medida, pelo recrutamento de uma geração de jovens doutores, a maior parte tendo se qualificado em programas implantados no país.
Na atual configuração da sociologia realizada no Brasil, é possível observar nos últimos anos o deslocamento geográfico dessa coorte de doutores recém-concursados, rumo a diferentes regiões do país, ingressando nos programas de pós-graduação, em busca de oportunidades de trabalho acadêmico, num ritmo de mobilidade até então desconhecido no ambiente universitário nacional. Soma-se a tais fatores o incremento da despronvicianização das novas gerações de sociólogos, através da constante participação em eventos acadêmicos internacionais da disciplina, bem como por meio do envolvimento em redes transnacionais de pesquisa. Tampouco se pode desconsiderar a crescente familiaridade com a língua inglesa por parte desta nova geração de sociólogos, fato que tem contribuído para o diálogo acadêmico consistente com as práticas sociológicas em outras sociedades nacionais. Através do acelerado trânsito internacional das novas gerações e das trocas acadêmicas que estabelecem com investigadores atuantes em outras sociologias, tanto em centros hegemônicos quanto em regiões emergentes no contexto da disciplina, uma parcela expressiva dos sociólogos brasileiros vem imprimindo um horizonte intelectual cosmopolita em suas atividades.
Cada vez mais se observa nos dias correntes uma forte pressão, por parte de agências federais e estaduais de financiamento de ciência e tecnologia, para promover a internacionalização da atividade científica produzida no país, cujo discurso reverbera no cotidiano das universidades e nos Programas de Pós-Graduação em praticamente em todas as áreas de conhecimento e, certamente no âmbito da sociologia.
Para a SBS, o enfrentamento da complexa questão da internacionalização da disciplina, no contexto nacional, implica um duplo e simultâneo trabalho, qual seja: desenvolver uma constante reflexão sobre a constituição do espaço transnacional da sociologia, suas regras de funcionamento e estruturas de poder existente em seu interior e, ao mesmo tempo, desenvolver um olhar crítico sobre a sociologia que vem sendo realizada atualmente no Brasil. Neste sentido, os trabalhos apresentados nesta edição da RBS e outros que vêm sendo realizados, tais como a edição do livro Sociologia brasileira hoje, organizado por Miceli e Martins (2017), se situam numa agenda de trabalho voltada para refletir de forma recorrente sobre os recortes temáticos, as referências teóricas e metodológicas utilizadas, levando em consideração a existência do espaço transnacional da disciplina, diante do qual cumpre indagar suas possibilidades e estratégias possíveis, visando ocupar uma posição de destaque neste espaço transnacional.
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