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Cultura, crítica e democratização: o estado da arte dos Estudos Culturais

Culture, criticism and democratization: The state of the art of Cultural Studies

Adelia Miglievich-Ribeiro
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Eliane Veras Soares
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Paulo Gajanigo
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Glauber Rabelo Matias
Centro Universitário Redentor, Brasil

Cultura, crítica e democratização: o estado da arte dos Estudos Culturais

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 5, núm. 11, pp. 142-164, 2017

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 02 Setembro 2017

Aprovação: 17 Outubro 2017

Resumo: Renato Ortiz (2004) alerta para o fato de que os Estudos Culturais no Brasil e fora dele têm características muito diferentes. Avalia que, na academia brasileira, sua penetração ainda hoje se faz pelas bordas. Contrariando parcialmente este diagnóstico, o GT Cultura, Crítica e Democratização (SBS), tenta reposicionar, no campo de conhecimento, os Estudos Culturais que, de uma presença mais sutil e dispersa em variados grupos, conquista um espaço onde a sua perspectiva epistemológico-política é central para a sua identificação. Ao relacionar cultura e poder, os Estudos Culturais atraem investigações em torno das identidades, identificações e lutas por reconhecimento, da hegemonia e da contra-hegemonia, da crítica ao capitalismo, das vozes subalternas, das histórias silenciadas e das resistências, dos mass media na democratização da sociedade, do fenômeno da polifonia e da interculturalidade, das tensões entre modernidade e tradição, da tradução, do hibridismo e do devir que promovem as modernidades entrelaçadas.

Palavras-chave: Estudos Culturais, Crítica, Democratização.

Abstract: Renato Ortiz (2004) argues that Cultural Studies in Brazil and elsewhere have very different characteristics. In his view, Cultural Studies is still an incipient theme not much explored within Brazil’s academic circles. Somewhat against this interpretation, the SBS Working Group Culture, Criticism and Democratization attempts to reposition Cultural Studies, in the field of knowledge: from a more subtle presence in several dispersed groups to a space where its epistemological and political approach is central to identify it. In relating culture and power, Cultural Studies encompasses researches on identities, identification and struggle for recognition, hegemony and counter-hegemony, critique of capitalism, subaltern voices, silenced stories and resistance, mass media in democratization of societies, the phenomenon of polyphony and interculturality, the tensions between modernity and tradition, translation, hybridity and promotion of interwoven modernities.

Keywords: Cultural Studies, Criticism, Democratization.

Apresentando a questão

Devemos imaginar Karl Marx, Antonio Gramsci, Raymond Williams, Richard Hoggart, Edward Thompson, Lévi-Strauss, Louis Althusser, Jacques Lacan, Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Stuart Hall reunidos em um único campo de estudo. Hoje, também, Tony Bennet, Homi Bhabha, James Clifford, Donna Haraway, bell hooks (a autora assina propositalmente em minúsculas), Angela McRobbie, Meaghan, Morris Janice Radway, Andrew Ross, Peter Stallybrass, Carolyn Steedman, Cornel West, MartinBarbero e Néstor Canclini. Um elenco que nos faz duvidar de qualquer ponto de convergência, exceto o fato de que nos ajudaram, cada um de modo singular, a se democratizar a noção de cultura para torná-la lócus da luta pela significação do mundo e de nós no mundo. Aliás, se o campo da cultura é local de disputa por hegemonia segundo tais estudiosos, não menos é o campo dos Estudos Culturais.

Jamais os Estudos Culturais configuraram uma “disciplina”. Seria grave equívoco tomá-lo como uma vertente da sociologia ou de quaisquer das ciências sociais. Contudo, eles vieram substituir, desta vez numa perspectiva política engajada e progressista, o que antes esteve compreendido sob a rubrica das humanidades. É mais correto entendê-los, porém, como o entrelaçamento entre diferentes áreas (ou arenas) disciplinares como a Literatura Inglesa, a Sociologia, e a História, num primeiro momento, deslocando questões e método a fim de dar novas respostas à esquerda para os desafios teórico-práticos desde a segunda metade do século 20.

Entre demandas acadêmicas e políticas, os Estudos Culturais expressaram o sopro, na Inglaterra, dos novos ares do pós-guerra e sua irrefreável força democratizante, visível na formação de uma esfera pública com forte presença de professores universitários na mídia, publicações e associações, nas artes dramáticas e na contracultura metropolitana. Perry Anderson (2004) definiu esta inédita intelligentsia pelo abandono do consenso político estabelecido a constituir uma “Nova Esquerda”, mudando o debate intelectual britânico que vencia seu próprio provincianismo e paroquialismo.

Sabia-se que a New Left nascia dos escombros da crise do Partido Comunista, logo após as denúncias dos crimes stalinistas por Nikita Kruchev, também em meio aos conflitos militares em torno do Canal de Suez e das revoltas na Hungria como desfecho no Massacre de Praga. Embora surgidos no “momento de desintegração de um certo tipo de marxismo” (HALL, 2009, p. 190), aqueles intelectuais mantinham-se firmemente influenciados pela crítica marxista acerca da classe social e da realização histórica do capital em sua extensão global. Em que pese recusar categorias como “determinismo”, “reducionismo”, “lei imutável da história”, “metanarrativa”, os Estudos Culturais trabalhavam “sobre o marxismo, contra o marxismo, com ele e para tentar desenvolvê-lo” (HALL, 2009, p. 191).

Suas obras fundantes são as da tríade, Hoggart, Williams e Thompson, respectivamente, The Uses of Literacy, em 1957 – cuja tradução para o português como Usos da Cultura deixa a desejar; Cultura e Sociedade, no ano seguinte, e A formação da classe operária inglesa 1780-1930, publicada em 1963. Privilegiando as categorias de “vivência”, “experiência”, “estrutura de sentimentos” (ou de sentidos), no caso mais peculiar de Raymond Williams, os três investigadores percebiam a cultura imiscuída em qualquer prática social e atividade humana. Assim, os conflitos entre classes realizavam-se, também, nas disputas entre valores, visões de mundo, ideologias, que não se referiam a um mero reflexo das condições materiais de existência nem se apresentavam como “falsa consciência”, mas conformavam um sistema de crenças e categorias ou imagens do pensamento que interagiam nas experiências cotidianas por meio de constantes “negociações” entre seus agentes.

Desse modo, alimentava-se a aposta na capacidade criativa dos homens e das mulheres atuarem sobre a cultura, na especial ênfase ao conceito de “experiência” que marca os pioneiros da New Left Review. Nessa perspectiva, destacava-se a relação “cultura-classe” e não “modo de produção-cultura” com vistas à problematização do determinismo econômico, optando-se por pensar uma “teoria da história” - não “leis da história” -, segundo a qual as pessoas não vivem padrões de desenvolvimento pré-determinados. Não se negava que as relações de produção “determinam”[1] as experiências, contudo, somente estas promovem a consciência de classe. Convergindo na aposta nas ideias de intencionalidade, criatividade e autoria, não por acaso, para os denominados marxistas humanistas não há forças extra-humanas a agir na história.

Raymond Williams remonta à fenomenologia de Schutz (1962), isto é, às noções de processos interativos e de consciência intersubjetiva por meio do que se formam (e se transformam) as estruturas sociais e culturais. O crítico galês atenta para um sentido peculiar de vida, uma comunhão de experiências, firme como uma estrutura, mas que se realiza nos mais sutis movimentos de nossa vida cotidiana, a que chama de “estrutura de sentimentos”. O foco na práxis levava a primeira geração dos Estudos Culturais a se concentrar em explicar:

[...] de onde e como as pessoas experimentam suas condições de vida, como as definem e a elas respondem, o que, para Thompson, vai definir a razão de cada modo de produção ser também uma cultura, e cada luta entre as classes ser sempre uma luta entre modalidades culturais; e isto, para Williams, constitui aquilo que, em última instância, a análise cultural deve oferecer (HALL, 2009, p. 134).

Nas palavras de Filmer (2009), as estruturas emergentes da prática social poderiam ser concebidas como uma sequência causal ou uma prioridade constitutiva na consumação da transformação histórica como uma totalidade. Não se poderia, porém, definir isto a priori.

Na retrospectiva realizada por Stuart Hall em “Estudos Culturais. Dois paradigmas” (2009), uma inflexão nodal no curso dos Estudos Culturais dá-se com a aparição dos estruturalismos. Se, para o “culturalismo” de Hoggart, Williams e Thompson – como chamam seus críticos - o terreno do vivido ou a experiência é o solo real em que interagem a condição e a consciência, nada havendo “por trás” a se buscar; para o estruturalismo, a “experiência” não poderia ser o fundamento de nada, visto que algo seria experimentado exclusivamente dentro e através de categorias e quadros de referência que não emanariam das experiências ou nelas; antes, a experiência realizava-se como um “efeito” daquelas categorias.

Fortemente inspirados no marxismo althusseriano, também, apropriando-se por intermédio de Lévi-Strauss do paradigma linguístico de Saussure, os estruturalistas propunham uma análise semiótica e linguística da sociedade, da economia e da cultura, uma vez que todas eram traduzidas como sistemas de significação. Passava-se a pensar os sujeitos como “estruturados” tal como a linguagem. A cultura seria, então, o sistema simbólico e as interrrelações entre seus elementos eram mais importantes do que os elementos considerados isoladamente (PETERS, 2000, p. 36). A estrutura constituía-se de relações sociais sem sujeito, processos passíveis de serem universalizados. Tal era o “calcanhar de Aquiles” do estruturalismo que obrigou, de certo modo, um novo redirecionamento dos Estudos Culturais, desta vez, rumo ao pós-estruturalismo, mantendo-se, pois, a crítica ao marxismo humanista da primeira geração.

É plausível afirmar que o “pós-estruturalismo” partilha com o “estruturalismo” a ênfase no inconsciente, nas estruturas ou forças sócio-históricas latentes que constrangem e governam as experiências. Entre o estruturalismo e o pós-estruturalismo, no entanto, tem-se uma radical revisão da noção fundamental de “estrutura” que passa a ser descentrada, despojada de uma origem, tratando-se, agora, de um processo de significação incerto, indeterminado, instável, em aberto.

Assim, o antifundacionismo epistemológico do pós-estruturalismo e a impossibilidade da síntese servem para o fortalecimento do perspectivismo. Abre-se mão da ontologia pela genealogia. As formas de conhecimento dão-se, sobretudo, a partir de microrrelatos e micronarrativas. Cabe aqui o registro ainda de sua aproximação ao multiculturalismo e opção pelas minorias, sejam elas sexuais, de gênero, de “raça”, étnicas, jamais essencializadas, porém capazes de um perpétuo deslizamento do significante e do significado.

Sequer é correto dizer que o pós-estruturalismo equivale ao ápice dos Estudos Culturais. Stuart Hall é crítico à passividade política que a excessiva ênfase nas contingências e na relatividade induz. Embora sem chances de retorno ao estruturalismo que aspirava a identificar e a descrever as leis da estrutura universal, comuns a todas as culturas e à mente humana, Hall ocupa-se do conceito de “articulação”, a fim de renovar a possibilidade de se pensar a cultura como uma unidade complexa: a “unidade na diferença”.

Por isso, o ingresso da questão pós-colonial nos Estudos Culturais parece ter sido seu evento mais fértil nos últimos anos. Estudar os efeitos indeléveis da colonização nas culturas dos colonizados (e vice-versa), como fez Stuart Hall, ampliou sua agenda de pesquisas. A crítica pós-colonial inspira-se na différance, no sentido derridiano, exemplarmente verificável na longa história das transculturações, tantas violentas, entre os povos. O pós-colonial fala do “ontem” e do “hoje”, “daqui” e “de lá” e impõe novas posições discursivas.

É verdade que o “pós-colonial” sinaliza a proliferação de histórias e temporalidades, a intrusão da diferença e da especificidade nas grandes narrativas generalizadoras do pós-Iluminismo eurocêntrico, a multiplicidade de conexões culturais laterais e descentradas, os movimentos e migrações que compõem hoje o mundo, frequentemente se contornando os antigos centros metropolitanos. (HALL, 2009, p. 105).

Em que pese o pós-colonial vir a se tornar, como tantos afirmam, uma espécie de “culturalismo”, de maneira que, em sua atenção às questões de identidade e subjetividade, ‘não pode explicar o mundo fora do sujeito’ (HALL, 2009, p. 115), a crítica pós-colonial como tal não negligencia os efeitos sobredeterminantes do momento colonial que se acoplam à força estruturante do capitalismo. Hall contesta Dirlik (apud HALL, 2009, p. 115), o qual julga os estudos pós-coloniais incapazes de lidar com categorias macroestruturais como “capitalismo”, “nação” e “Terceiro Mundo”.

É verdadeiro que a crítica pós-colonial interrompe mais radicalmente a grande narrativa historiográfica (historiografia liberal, sociologia histórica weberiana, tradições dominantes do marxismo ocidental) e dá ao Iluminismo uma posição descentrada. No entanto, nada os faz aliados do “alegre desconstrucionismo” ou de “uma impotente utopia da diferença” (HALL, 2009, p. 105). Questões como “globalização capitalista”, “Estado e Nação”, “Terceiro Mundo” estão presentes em sua agenda uma vez que os críticos pós-coloniais estão cientes de que o local e o global se reorganizam mutuamente e têm sua preocupação voltada para os sujeitos subalternizados e para a superação de seus silenciamentos e invisibilidade.

O mais importante a se chamar a atenção aqui é que as diversas perspectivas e os distintos objetos dos Estudos Culturais traduzem um compromisso, uma política da teoria, uma intelectualidade engajada que atua sobre a cultura[2]. Vale a pena, então, voltarmos ao começo.

1. Raymond Williams e o “materialismo cultural”

Raymond Williams, “o melhor entre nós”, nas palavras de Edward Thompson (CEVASCO, 2007), destaca-se mediante a proposição do chamado “materialismo cultural” que deslegitimava a cisão entre base econômica e superestrutura jurídico-político-ideológica, ao mesmo tempo em que expandia a noção de “cultura” de um reino relativamente autônomo de valores intangíveis ao movimento de articulação de experiências significativas no mundo social. Tratava-se, agora, de entendê-la como uma trama de práticas, pensamentos e sentimentos entrecruzados, constitutiva das relações sociais em seu dinamismo.

Hoggart, Williams e Thompson – este último com a original ênfase na “história dos de baixo”, reivindicando a história oral e a memória popular como fontes legítimas de saber – primavam pela análise histórica e não prescindiam de observar a vida cotidiana dos trabalhadores britânicos, antes de projetar a construção da ordem econômica socialista. A atenção à vida real de homens e mulheres reais permite-lhes atentar para temas desprezados pelos marxistas ortodoxos, a exemplo do peso das tradições culturais em processos revolucionários.

Ao contrário da crítica estruturalista que acusou Raymond Williams de abdicar da percepção da totalidade social, talvez possamos mais corretamente afirmar que o pioneiro dos Estudos Culturais optou pela concepção de um campo de forças determinantes, mútuas e desiguais, e de formas de vida social mais abrangentes, desenvolvendo, assim, os conceitos de “cultura”, “ideologia”, “linguagem” e “simbólico”. Opôs-se à fórmula clássica de “base econômica” e “superestrutura”, mas não à percepção da totalidade marxista.

De minha parte, sempre me opus à fórmula da base e superestrutura – não devido às suas deficiências metodológicas, mas por conta de seu caráter rígido, abstrato e estático. Além disso, após a minha pesquisa sobre o século XIX, passei a vê-la como algo essencialmente burguês; uma posição central do pensamento utilitarista. [...] tanto na teoria quanto na prática, cheguei à conclusão que eu teria de desistir, ou pelo menos deixar de lado, o que eu conhecia como tradição marxista para tentar desenvolver um tipo diferente de teoria da totalidade social; para visualizar o estudo da cultura como o estudo das relações entre elementos em todo um modo de vida, para encontrar formas de estudar a estrutura em obras e períodos particulares que poderiam manter-se em contato e clarificar obras de arte e formas específicas, mas também as formas e relações de uma vida social mais geral; e para substituir a fórmula da base e da superestrutura com a ideia mais ativa de um campo de forças mutuamente determinante (WILLIAMS, 2011, p. 28).

Não há incompatibilidade entre vida material e vida cultural, ambas constituídas mutuamente. A arte é material e é simbólica uma vez que se desenvolve sobre algo que é concreto e tangível, seguindo formas e convenções que são históricas e sociais. A sociedade é constituída e constituinte da cultura. Em The Long Revolution, publicado pela primeira vez em 1961, Raymond Williams remetia-se à ideia de uma “longa revolução” da qual participaram a revolução democrática, a revolução industrial e a revolução cultural (WILLIAMS, 2003), de maneira que, em sua visão, seria impossível diferenciar substantivamente a revolução econômica da política, e ambas, das ressignificações do mundo.

O crítico galês apoiou-se em Lukács (2000) na construção de seu conceito de “experiência” em antagonismo à pura abstração e próximo à “práxis da vida cotidiana”. Lukács também o influenciou no entendimento de que a determinação pelo econômico de todas as formas da atividade humana traduzia um processo de reificação da vida, típico da sociedade capitalista, o que não bastava para que as interações humanas perdessem sua potência insurgente. A cultura é ordinária, para Williams, lócus da luta e da disputa por hegemonia.

De Lucien Goldmann (1973), Raymond Williams tomou emprestado um conceito de estrutura a contemplar as estruturas mentais, nascidas nas relações sociais como “respostas” a situações objetivas e particulares ao longo do processo histórico, capazes de atuar na consciência do grupo e organizá-lo. Assim, Williams adotou a concepção de uma experiência social reflexiva, competente na produção da crítica. Não se trata de reflexo, mas, conforme dissemos, de resposta coletiva e criativa a um novo momento histórico.

Seu específico materialismo histórico e dialético reabilitava a crítica cultural como recurso potente para a mudança: “intervenção produtiva” e “movimento de resistência”, uma vez que, embora extensiva, a hegemonia não é jamais absoluta. Às metamorfoses de que é capaz para se manter, se renovar, se expandir, também podem ser observadas suas fissuras e brechas direcionadas para novas possibilidades de vida em sociedade:

[...] suas próprias estruturas internas são muito complexas e devem ser renovadas, recriadas e defendidas de forma contínua; pelo mesmo motivo podem ser constantemente desafiadas e, em certos aspectos, modificadas. (WILLIAMS, 2011, p. 52).

Nota-se, sem dúvidas, a astúcia na maneira como a hegemonia “incorpora” as experiências e significados praticados e vividos como “cultura residual”, passíveis de convívio na cultura dominante se não a contradizem. De modo similar, as heranças do passado são trazidas para o interior da cultura dominante através do que Raymond Williams chama de “tradição seletiva” ou “passado significativo”, que se estendem até o presente sem contradizer o status quo.

Explicita ainda como o processo de hegemonia realiza cooptações sutis de culturas alternativas à cultura dominante, tentando assimilar o mais rápido possível o que poderia ser perigosamente emergente ou opositor:

Há uma distinção teórica simples entre o alternativo e o opositor, isto é, entre alguém que meramente encontra um jeito diferente de viver e quer ser deixado só e alguém que encontra uma maneira de viver e quer mudar a sociedade. Mas à medida que a área necessária de dominação efetiva se estende esse mesmo significado ou prática pode ser visto pela cultura dominante não apenas como desprezando-a ou desrespeitando-a, mas como um modo de contestá-la (WILLIAMS, 2011, p. 58).

Uma vez mais, Williams reconhece a experiência como “a melhor e a mais sábia palavra” (WILLIAMS, 2007) que combina com a ideia de “consciência da prática”. A prática não é antípoda à experiência, contudo, permite que estas sejam percebidas in status nascens.

O que me parece especialmente importante nessas estruturas de sentimentos em transformação é que elas costumam preceder as transformações mais reconhecíveis do pensamento e da crença formais que compõem a história habitual de consciência e que, embora correspondam muito de perto a uma verdadeira história social de homens vivendo em relações sociais reais e em transformação, precedem, mais uma vez, as alterações mais reconhecíveis nas instituições formais e nas relações sociais que constituem a história mais acessível e, de fato, mais habitual (WILLIAMS, 2011, p. 35).

Ao contrário das formações sociais já manifestas, dominantes ou residuais, a “estrutura de sentimentos” corresponde a formas emergentes, visíveis como alterações da ordem ou mesmo “perturbações” (WILLIAMS, 1979). Segundo Ridenti, “uma estrutura de sentimentos daria conta de significados e valores tais como são sentidos e vividos ativamente” (RIDENTI, 2006, p. 230). Não têm que ter uma forma sócio-política ou burocrática, porém são indefinidas e difusas.

[A estrutura de sentimento] é a articulação do emergente, do que se escapa à força acachapante da hegemonia que certamente trabalha sobre o emergente nos processos de incorporação, através dos quais transforma muitas de suas articulações para manter a centralidade de sua dominação. (CEVASCO, 2001, p. 158 – colchetes nossos).

Sua noção de “estrutura de sentimentos” leva-o a enxergar as manifestações emergentes, até mesmo pré-emergentes, de resistência e oposição à hegemonia, que existem somente como fluxos, ainda que germinais. Sua existência, contudo, é social, material e histórica. A “estrutura de sentimentos” é um tipo de articulação que expressa uma fase incipiente de mudanças na organização social, havendo nela potência desestabilizadora.

O tempo em que Williams viveu era pouco propício a um marxismo capaz de acolher seus insights mais caros, que são, contudo, hoje rediscutidos (MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2016). Seu embate com o marxismo althusseriano nos Estudos Culturais gerava, então, mais críticas do que aplausos.

2. Do estruturalismo ao pós-estruturalismo segundo Stuart Hall

Stuart Hall (2009) aproximou-se, primeiramente, do marxismo estrutural de Louis Althusser que relegava a experiência ou o “terreno do vivido” – noções claras para a primeira geração dos Estudos Culturais – a uma “relação imaginária”, a camuflar a “marcha das estruturas” onde homens e mulheres eram nada além do que seus “portadores”. Para Hall, o “culturalismo” de Williams deixava a desejar nas formulações conceituais e impedia a percepção da sociedade como uma unidade complexa construída pelas relações de diferenciação (unidade na diferença), que existiam para além das interações entre as pessoas.

A “guinada estruturalista” nos Estudos Culturais não teria se dado, em acordo com o que já sinalizamos, sem Lévi-Strauss (1989), que traz a semiologia a fim de observar que as realidades são, sobretudo, inconscientes. Pode-se falar, pois, em algo como uma linguagem subjacente que move a vida social como um todo e posiciona os indivíduos e os grupos como agentes em contextos determinados.

O estruturalismo não retira do mundo a história: ele procura ligar à história não somente os conteúdos (isto foi feito mil vezes), mas também as formas, não somente o material, mas também o inteligível, não somente o ideológico, mas também o estético. E precisamente porque todo o pensamento sobre o inteligível histórico é também participação nesse inteligível, o homem estrutural se importa pouco, sem dúvida, com o fato de durar: ele sabe que o estruturalismo é ele mesmo uma certa forma de mundo, que mudará com o mundo; e assim como ele, experimenta a sua validade (mas não a sua verdade) na sua capacidade de falar as velhas linguagens do mundo de uma nova maneira, ele sabe também que bastará que surja da história uma nova linguagem, que, por sua vez, o fale, para que sua tarefa seja terminada (BARTHES, 1964, pp. 219-220).

Já pudemos antecipar que tanto estruturalistas como pós-estruturalistas entendem a linguagem como um sistema simbólico. Os primeiros procuram investigar como determinados significados culturais são produzidos nas interrelações que se estabelecem em uma estrutura, e como produzem as metanarrativas ou os “modelos universais”. Por sua vez, sem desmerecer a importância da estrutura, os pós-estruturalistas atentam para a dissolução dos lugares antes ocupados pelo “sujeito universal” e põem em cena as diferenças, exclusões e margens, rejeitando qualquer projeto totalizador bem como a ideia de uma razão fundacional.

O pós-estruturalismo é exemplificado pelo trabalho de Michel Foucault, Jean-François Lyotard, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Julia Kristeva, Roland Barthes, Hélène Cixous, Jean Baudrillard e tantos. Cada um tem uma especial contribuição para a nova senda teórica. Foucault (1996) critica o poder, a ordem dos discursos e advoga em prol dos vários “outros” (da loucura, da sexualidade). Lyotard (2004) anuncia o “fim dos grandes relatos”. Derrida (1991) propugna os conceitos de logocentrismo e de desconstrução[3], ao lado do de descentramento. Deleuze (1988) enfatiza a diferença em suas proposições anarquistas. Kristeva (1969) apresenta o conceito de “intertextualidade”, enquanto Cixous (1995) defende a alteridade na compreensão de uma “escritura feminina”.

Rejeitando a concepção de estrutura universal e leis universais, o pós-estruturalismo explicita, ainda, um renovado interesse por uma história cultural crítica, ao se concentrar nas descontinuidades das estruturas; também, na serialização e na repetição; e naquilo que Foucault, seguindo as pegadas de Nietzsche, chamou de “genealogia”. As narrativas genealógicas substituem a ontologia ou, podemos também dizer, as questões de ontologia tornam-se historicizadas.

A “virada linguística” dos Estudos Culturais altera, como não poderia deixar de ser, os esquemas de interpretação das questões identitárias. Desde os anos 1970, os feminismos haviam irrompido a cena, insuflando as discussões acerca da dominação, exclusão, marginalidade e alteridade, e introduzindo, dentre outros, o entendimento de que “o pessoal é político”, expandindo a noção de poder e acolhendo, particularmente, a contribuição da psicanálise lacaniana. Seus enormes benefícios não escondem, ao contrário, os conflitos que, a partir deles, o Centro de Birmingham começou a viver[4].

Hall (2009) dedicou-se ao exame dos interstícios entre classe, “raça”, gênero, cultura, etnia, meios de expressão e comunicação, alertando para os vários agenciamentos político ideológicos. Em perspectiva pós-colonial, passaram a ser pautadas as questões de “raça”, de política “racial” e de resistência ao racismo, ao se explicitar a construção histórica de um imaginário “racial” que se confundia com a história do imperialismo,

Em relação às estratégias metodológicas, a ênfase calcava-se na etnografia e na observação participante, embora estas sejam mais diversificadas – (auto)biografias, depoimentos, histórias de vida, oralidades e as “escritas de si”, que garantem seu lugar na renovação das teorias da linguagem. Walter Benjamin (1985) é revisitado para a leitura textual “a contrapelo”, numa aproximação à “desconstrução” de Derrida (1991). Ganham novo fôlego as investigações sobre o cinema, a virtualidade e a cultura de massa, focalizando-se a recepção dos meios de comunicação social, a fim de pensar a “codificação-decodificação”. Postula-se a hibridez e a insurgência, ao invés da passividade do público diante de obras “encerradas”.

Vale dizer que, em contexto latino-americano, os Estudos Culturais produziram um fértil campo de investigação, que inclui, dentre outros, as contribuições de Stuart Hall, Néstor Canclini, Silviano Santiago, George Yúdice, Heloísa Buarque de Holanda, Muniz Sodré, Juan Flores, Renato Ortiz. Assinala-se ainda que uma certa apropriação da questão cultural se deu na América Latina com marcas autóctones uma vez que aqui ganhou especial relevância o debate da “cultura nacional”, do “nacional-popular”, do “imperialismo” e do “colonialismo cultural” que garantiu a inflexão política às análises latino-americanas (ORTIZ, 2004).

As contribuições de Jesús Martín-Barbero (2006) podem ser lembradas por doar um relevante quadro teórico para pensar a recepção e as mediações. Conforme Martín-Barbero, a comunicação se desenvolve a partir de cadeias de relacionamento, nas quais as ações dos produtores, produtos e receptores geram deslocamentos de significados ou sentidos sociais. As mediações possibilitam a integração da cultura aos processos comunicativos da vida cotidiana, numa permanente reatualização. Por isso, para o autor, cultura é comunicação. Não há formações culturais que não sejam arranjos comunicacionais e, por isso, não há formações culturais em que seus agentes/receptores não possam, a princípio, resistir através de apropriações inusitadas de significados imprevistos. Com isto, Martín-Barbero reavalia o suposto mimetismo das classes populares e enxerga as lutas entre os diferentes blocos sociais nos processos de recodificação e reconfiguração dos produtos culturais.

Stuart Hall cumpriu a missão de fazer o pós-estruturalismo caber em seu engajamento teórico em prol do deslocamento de poderes e dos esforços descolonizadores do conhecimento. Para ele, a descoberta da discursividade, da linguagem e da metáfora linguística, na construção de uma heterogeneidade de significados, combatia o reducionismo marxista e fazia muito mais que este. Assim, foi capaz de compreender, também, as novas formas de globalização, explicitando os inéditos trânsitos econômicos e políticos em que o “global” e o “local” apareceram como a dupla face de um mesmo movimento que fazia proliferar as identidades e as tornava, simultaneamente, cada vez mais vulneráveis.

3. Estudos Culturais nos EUA e a “virada afetiva”

Nos últimos trinta anos, os Estudos Culturais ampliaram geográfica e tematicamente sua influência. Durante o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, os Estudos Culturais deixaram de se referir a um grupo de pesquisadores vinculado ao (ou em relações com) o Centre for Contemporary Cultural Studies de Birmingham e passaram a significar uma difusa e ampla área de pesquisa.

Neste processo de alargamento de sentidos, os Estados Unidos foram se tornando o segundo epicentro da discussão. Cevasco (2003, p. 156) cita a conferência “Cultural Studies Now and in the Future”, realizada em abril de 1990 na Universidade de Illinois, como o ponto alto da chegada dos Estudos Culturais naquele país. Já na década de 1980, os Estudos Culturais proliferavam nos departamentos de letras estadunidenses. Cary Nelson (1991) aponta que parte desses estudos tomava a área como terra virgem, ignorando a trajetória britânica dos Estudos Culturais. A conferência acima referida, que Nelson ajudou a organizar, serviu como tentativa de conectar as pesquisas em desenvolvimento à tradição britânica. O evento contou com a conferência de Stuart Hall - como ele mesmo apontou, se sentia um “tableau vivant” dos Estudos Culturais naquele momento (1992, p. 277) -, que deixou registrada a sua crítica para constituição deste campo de estudos como área restrita ao seu caráter acadêmico, como lembra Cevasco,

Hall alerta para os riscos da perda de uma postura política por meio da troca de política por teoria: mais do que ação social, a discussão dos estudos culturais se tinge de uma fluência teórica que mascara, em sua sofisticação e em seu radicalismo verbais, a falta de envolvimento com movimentos sociais (CEVASCO, 2003, p.156).

A reconexão, portanto, com os estudos realizados em Birmingham significou a reconexão entre cultura e política também no seu aspecto prático.

Para Cary Nelson (1991), os Estudos Culturais teriam virado um selo para um reposicionamento acadêmico nas instituições norte-americanas. Raramente, essa conversão a esse campo significava uma aproximação de fato de sua perspectiva já acumulada. Nelson compara a conferência na Universidade de Illinois com a realizada no mesmo ano em Oklahoma pela Modern Language Association. Nesta, os Estudos Culturais apareceram como um campo amorfo e sem a politização que marcou os estudos realizados na Grã-Bretanha.

De fato, nos Estados Unidos, os Estudos Culturais aproximaram-se das teorias sobre cultura e significaram um contraponto às teorias da comunicação e ao pragmatismo, ainda que, num primeiro momento, tenham ficado distantes das questões políticas mais imediatas. No entanto, hoje parece claro que uma agenda política foi colocada sob influência desses estudos. Em geral, os Estudos Culturais ocuparam um lugar relevante da teoria crítica da cultura em diversos centros de pesquisa e abrigaram temas bem variados como etnicidade, racismo, gênero, cultura pop, classes etc. A linha, ainda que pouco visível, de unidade se desenhou pela insistência em olhar a cultura para além da separação erudita/popular e a perspectiva não-institucional dos processos sociais, destacando seu caráter cotidiano.

De certa forma, a partir dos anos 1990, os Estudos Culturais se misturaram aos chamados Estudos Pós-coloniais, muitas vezes aparecendo como sinônimos ou aglutinados. O mesmo tem ocorrido com os Estudos Feministas, o que revela o caráter fluído e aberto do campo. O processo de crítica do centramento do sujeito moderno, tomado como um enunciado político do dominante nas relações capitalistas, tem encontrado na tradição dos Estudos Culturais uma fonte fértil e um local de enunciado acadêmico. Para Melissa Gregg:

Os estudos culturais são parte de uma reação mais ampla aos privilégios de gênero e classe que estão envolvidos na produção, avaliação e disseminação do conhecimento. Seu comprometimento com prática acadêmica autorreflexiva mostra uma percepção das condições históricas que emprestaram a certos tipos de voz a reivindicação mais autêntica à verdade. Os estudos culturais tentam democratizar as regras restritas que caracterizaram tipicamente a universidade – regras que, frequentemente, buscam domar o incômodo ou perigoso potencial inerente ao sujeito falante. (2010, p. 4. – Tradução nossa).

Recentemente, os Estudos Culturais sofreram forte influência da chamada “virada afetiva”. Expoentes relevantes dessa área, como Lawrence Grossberg (2002) e Brian Massumi (1997), trataram de incorporar as contribuições dos estudos sobre afeto (influenciados por Deleuze) e estabelecer pontos de contato com a tradição nos Estudos Culturais. Curiosamente, a nova onda recolocou em primeiro plano as contribuições da primeira geração, como Richard Hoggart e Raymond Williams, com o foco nos elementos mais etéreos e menos estruturados dos processos sociais, e ofereceu um contraponto à influência estruturalista (de Althusser) da segunda geração.

Para Patricia Clough (2008), a “virada afetiva” representou uma ruptura com o pós-estruturalismo. Ainda que compartilhe com este a crítica à centralidade do sujeito, se afasta ao focar nos aspectos corpóreos e materiais em geral. Fortemente influenciados pelas leituras contemporâneas da teoria de Espinosa, os estudiosos do afeto têm se dedicado a compreender os processos sociais no seu aspecto extralinguístico e não conscientes (SEIGWORT, 2003; GREGG, 2010).

A absorção da discussão sobre afetos nos Estudos Culturais não foi difícil e abriu uma nova agenda de pesquisa que, a partir dos temas já presentes como raça, gênero e classe, se ampliaram por meio dos estudos do corpo. A afinidade é visível na emergente discussão sobre “mood” (FLATLEY, 2008; HIGHMORE, 2013; FELSKI, FRAIMAN, 2012; GUMBRECHT, 2015). O termo, de difícil tradução para o português, significa algo entre clima e humores, e tem se tornado relevante na última década. Sua emergência, no entanto, tem servido para a retomada do termo “estrutura de sentimentos”, cunhado por Raymond Williams e que andava relativamente esquecido.

Algumas considerações finais: uma agenda para os estudos culturais

Se, originalmente, os Estudos Culturais podem ser considerados uma invenção britânica, na sua forma contemporânea, sua repercussão é internacional e, eles não se confinam mais à Inglaterra e à Europa, nem aos Estados Unidos. Alastraram-se para a Austrália, Canadá, Nova Zelândia, bem como para a América Latina, Ásia e África, sendo digno de nota que o eixo anglo-saxão já não exerce uma incontestável liderança nesta perspectiva.

Sabemos que a cultura é uma região de sérias disputas e conflitos acerca das classificações do mundo. O processo de estilhaçamento do indivíduo em múltiplas posições e/ou identidades é objeto de estudo, ao mesmo tempo em que reflexo do processo vivido atualmente pelo campo dos Estudos Culturais: descentrado geograficamente e múltiplo teoricamente.

Renato Ortiz (2004) alerta para o fato de que os Estudos Culturais no Brasil e fora dele têm características muito diferentes. Avalia que, na academia brasileira, sua penetração ainda hoje “se faz pelas bordas, ou seja, para utilizar uma expressão de Pierre Bourdieu, na periferia do campo hierarquizado das ciências sociais, particularmente nas escolas de comunicação” (ORTIZ, 2004, p. 121), deixando intacto o estatuto das disciplinas consagradas. Ainda assim, a leitura de seus autores contribui para o alargamento e interseccionalidade das fronteiras disciplinares, evocando salutares “deslocamentos” na sociologia que postulamos como imprescindíveis para rearticular saberes e ampliar - este é o fito da ciência - nossa inteligibilidade acerca do mundo.

Com a emergência de uma indústria cultural, sobretudo no Brasil, os Estudos Culturais pareceram, segundo Renato Ortiz, estar se afastando da discussão da cultura como um lugar de contestação, mas de produção e reprodução da sociedade (ORTIZ, 2004, p. 126). Esta tendência, porém, não é mais crível uma vez que não se crê mais possível se abandonar a percepção da cultura a fim de se pensar as insurgências e a ação política. Cabe observar, contudo, segundo o sociólogo, um deslocamento, no debate público na América Latina, da discussão de uma “identidade nacional” para a de “identidades particulares” (étnicas, de gênero, regionais), algo que expressa efetivamente um movimento global de pessoas, coletividades e consciências.

A vocação dos Estudos Culturais, apesar de sua ampliação e difusão, parece ter se mantido na busca em dar voz aos subalternos e, assim, jogar luz nas resistências cotidianas. Ana Escosteguy, ao tratar do contexto dos 1980 quando os Estudos Culturais Latino-americanos surgem, descreve o seguinte cenário:

Associações comunitárias, clubes de mães e de jovens, comunidades eclesiais de base, movimentos em defesa da moradia, do meio ambiente, dos direitos humanos, o movimento feminista, o negro e outros de existência bem localizada fizeram com que o campo das reivindicações se ampliasse. Passaram a entrar em cena interesses que extrapolavam o mundo estrito do trabalho, despertando outras dimensões da cultura. O surgimento desses novos atores sociais colocou em xeque a cultura política tradicional. O reconhecimento dessas experiências coletivas, que incluíam práticas do viver cotidiano e interesses situados num campo mais vasto do que o da produção, renovaram o âmbito do político. (ESCOSTEGUY, 2010, p. 52).

Três décadas depois, testemunhamos um novo contexto em que as chamadas minorias têm desenvolvido, numa tensa relação com o Estado, formas de atuação institucionalizadas. Neste sentido, os Estudos Culturais parecem estar numa encruzilhada. Sua perspectiva pouco institucional entra em choque com a institucionalização das resistências. Se seu argumento central é o do caráter processual da cultura e da impossibilidade de estancá-lo por meios administrativos, que instrumental os Estudos Culturais podem oferecer no habitual diálogo que travam com os movimentos sociais?

As deficiências da institucionalização (e da democracia), entretanto, voltam a saltar aos olhos. Os Estudos Culturais notabilizaram-se por buscar não ser uma crítica cultural feita “de fora”, mas “de dentro” e, neste sentido, uma agenda capaz de unificar a amplitude temática atual dos Estudos Culturais pode estar em trazer a perspectiva não-institucional dos processos sociais para compreender as formas contemporâneas de resistência em sua dinâmica intensa entre o institucional e o não-institucional.

O multiculturalismo que, no Brasil dos anos 1990, pareceu uma moda estrangeira e passageira, contudo, fortalece e movimenta as lutas políticas e sociais. O debate sobre as minorias amplia-se quer nas demandas por políticas públicas específicas quer na diversificação do mercado consumidor. Nos movimentos sociais, o vocabulário se transformou, incorporando termos como “identidade” e “lugar de fala”. Tal processo tem desnudado as estruturas de poder e violências simbólicas de nossa sociedade bem como tem tornado mais diferenciada e complexa a apreensão da sociedade civil. Aqui, os Estudos Culturais possuem um papel inconteste.

A noção de que negociamos cotidianamente, em redes assimétricas de “saber-poder”, nossas identidades, (re)inventando-nos incessantemente, sem que esse processo cesse ou se defina, é uma assertiva dos Estudos Culturais, bastante útil à sociologia. A ininterrupta construção identitária dos sujeitos vincula-se a uma “negociação” com nossos percursos, itinerários/ itinerâncias e rotas, contingentes, imprevisíveis. A identidade é um conceito “sob rasura”, marcado pela provisoriedade e é, também, um ato político.

Hoje, podemos escolher entre as várias vertentes dos Estudos Culturais. Alguns quererão recuperar sua ênfase humanista, fenomenológica, interacionista e suas análises poderão ser frutíferas a partir da “estrutura de sentimentos” postulada no “materialismo cultural” de Raymond Williams, que pode levar aos estudos dos afetos e das emoções, sobretudo, dos meios pelos quais estes se instalam na sociedade. Outros refutarão o peso da experiência nos textos pioneiros, mas reivindicarão, provavelmente, não uma reaproximação ao estruturalismo, mas ao pós-estruturalismo, endossando a “virada linguística”.

A questão pós-colonial, trazida para o primeiro plano dos Estudos Culturais, tende a confirmar sua vocação política sintonizada com as minorias e suas lutas. Por isso, em que pese, nos mais diversos departamentos das universidades de todo o mundo, o nítido afastamento dos Estudos Culturais do momento inicial marcadamente marxista, ainda que visando à sua renovação, poderemos concordar com Terry Eagleton (2006) que refuta a acusação de “despolitização” dos Estudos Culturais. Seu argumento merece atenção no instante em que aponta, com algum otimismo, o fato deste ser hoje o movimento intelectual que melhor traduz o velho conhecido e ainda potente projeto vanguardista de se construir “pontes” entre a arte e a sociedade. Isto remonta, uma vez mais, a Stuart Hall que, ciente dos limites de uma teoria em seu impacto social, jamais perdeu em sua prática intelectual, o impulso para a indignação:

Sou um intelectual ativista no sentido de que eu sempre quis que meu trabalho intelectual marcasse uma diferença, registrasse e compartilhasse debates, fizesse contribuições para mudar uma conjuntura, mudasse as disposições dos interesses ou de forças políticas. Sou um ativista nesse sentido. Sou também um crítico de cultura mas isso parece muito distante do campo de batalha. Nunca estive tão envolvido quanto agora, quando penso na atual conjuntura mundial. Estou pessoalmente, emocionalmente, perturbado por isso. Grito na televisão, faço protesto no rádio, diante das câmeras. Não quero que o debate continue como tem sido até agora. Vejo que as desigualdades entre o Primeiro e o Terceiro Mundos, entre Norte e Sul estão sendo suavemente assimiladas e quero gritar. Não sou uma pessoa de partido político, não sou um político, não sou um jornalista, dependo do meu trabalho intelectual para tornar minha crítica ativa politicamente (Entrevista com JB Stuart Hall, por Heloisa Buarque de Holanda e Liv Sovik. 15 de setembro de 2010).

Convém encerrar nosso panorama dos Estudos Culturais, citando um dos autores pós-estruturalistas atualmente de acentuada influência no campo, Ernesto Laclau (2011) que atualiza algumas questões relevantes. Refutando o relativismo, demonstra que a “celebração da diferença” cria diversas “universalidades”, estas a gerar, por sua vez, antigas e novas exclusões, visto que cada “universalidade” se vê com um mundo isolado que não necessita conectar-se com o outro. É por isso que a afirmação da identidade de um grupo pode convergir, sem que traia sua lógica, em práticas de violência e extermínio do Outro. O desafio posto aos Estudos Culturais não está na negação de reconhecimento aos particularismos, a suas histórias e projetos próprios, mas é premente levar a sério as asserções universais no que tange, sobretudo, à ética de convivência na diversidade.

Em suma, os que hoje compõem o campo dos Estudos Culturais mobilizam-se por uma agenda política que será certamente incompleta e provisória. Ainda assim, os fará dispostos a desconstruir e a reconstruir sentidos para a ação intelectual.

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Notas

[1] Williams busca redefinir a noção corrente dentro do marxismo de “determinação”. “Há, de um lado – o da herança teológica –, a noção de uma causa externa que prefigura e prevê tudo, e de fato controla toda atividade futura. Mas há também, da experiência da prática social, uma noção de determinação como algo que estabelece limites e exerce pressões” (WILLIAMS, 2005, p. 212).
[2] É exemplar da afirmação desta militância original, a transferência de Stuart Hall, fundador e diretor do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos de Birminghan para a Open University. No lugar do vínculo a uma estrutura universitária, Hall optou novamente por um momento de criação e de contra-hegemonia. A Open University vinha oferecer uma significativa quantidade de cursos nas áreas de humanas, muitos ofertados sem a necessidade de matrícula da parte do aluno, alguns estrangeiros. Podiam ser realizados à distância, sintonizados a uma proposta de disseminação do saber coerente com os pressupostos dos Estudos Culturais pelos quais Hall e aqueles antes dele haviam lutado.
[3] Segundo Derrida, a “desconstrução” é um exercício que se inicia por uma leitura minuciosa de textos da tradição ocidental (filosóficos e literários) a fim de “desmontar” seus pressupostos idealistas, dualistas, logocêntricos, etnocêntricos. Renunciando às pretensões da metafísica ocidental - remanescência do platonismo -, Derrida inventa, em seu intento desconstrucionista, a noção de différance (com “a”) que, no jogo de palavras, não mais é sinônimo de différence (com “e”), e, ao invés de se prestar a corroborar as identidades fixas e seus dualismos, propõe o gerúndio “diferindo” que recusa a dialética (tese-antítese-síntese) e “empurra” a análise indefinidamente para adiante, num interminável “re-pensamento”, em que signos e significados são perenemente deslocados e deslizantes. (Cf. PERRONEMOISÉS, 2004, pp. 221-223).
[4] Nas palavras de Hall: “A questão do feminismo foi muito difícil de levar por duas razões. Uma é que se eu tivesse me oposto ao feminismo teria sido uma coisa diferente, mas eu estava a favor. Ser alvejado como ‘inimigo’, como a figura patriarcal principal me colocava numa posição contraditória insuportável. É claro que as mulheres tiveram que fazer isso. Elas tinham toda a razão em fazer isso. Tinham que me calar, essa era a agenda política do feminismo. Se eu tivesse [sido] calado pela direita, tudo bem, nós todos teríamos lutado até a morte contra isso. Mas eu não podia lutar contra minhas alunas feministas. Outra forma de pensar essa contradição seria vê-la como uma contradição entre teoria e prática. A gente pode apoiar uma prática, mas é muito diferente de ter uma feminista de verdade na sua frente dizendo: ‘Vamos tirar o Raymond Williams do programa de mestrado e colocar a Julia Kristeva em seu lugar” (HALL, 2009, p. 406 - colchetes nossos).
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