Artigos
Recepção: 30 Agosto 2017
Aprovação: 15 Outubro 2017
DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.226
Resumo: Este artigo tem como objetivo geral apresentar o estado da arte dos estudos sobre memória coletiva no Brasil e sua inserção junto ao campo das Ciências Sociais, em especial à Sociologia, nos últimos anos. A proposta está diretamente vinculada ao Grupo de Trabalho “Memória Social e Poder: os desafios contemporâneos” inserido na programação do 18° Congresso Brasileiro de Sociologia 2017. Além da realização de (i) um balanço da produção da área acadêmica vinculada à temática do Grupo de Trabalho supracitado, este artigo incluirá uma discussão sobre: (ii) avanços teóricos e metodológicos. (iii): debilidades teóricas e metodológicas: (iv) contribuição da área para a sociologia brasileira enquanto disciplina; (v) inserção da área no contexto da sociologia internacional; e finalmente, (vi) formulação de uma agenda de pesquisa para fortalecimento da área de investigação dos estudos da memória coletiva em suas inúmeras interfaces
Palavras-chave: Memória Coletiva, Memória Social, Estudos sobre Memória.
Abstract: This article aims to present the current state in the area of collective memory studies in Brazil, and its insertion into the field of Social Sciences, in particular Sociology, in recent years. The proposal derives from the session “Social Memory and Power: contemporary challenges” from the 18th Brazilian Congress of Sociology 2017 (SBS). This paper reviews the academic production presented in the aforementioned session of SBS congress. Further, it discusses the theoretical and methodological advances and weaknesses of collective memory studies. In addition, it highlights its contributions towards Brazilian sociology as a discipline and its insertion within the international sociological research community. Finally, it outlines a research agenda in order to strengthen the field of collective memory studies, and in its many interfaces.
Keywords: Collective Memory, Social Memory, Memory Studies.
Introdução
(...). As causas históricas aparecem para a consciência e começa então uma leitura crítica dos documentos.
Mas a leitura crítica tem que ser determinada por um projeto. O passado reconstruído não é refúgio, mas uma fonte, um manancial de razões para lutar.
A memória deixa de ter um a caráter de restauração e passa a ser memória geradora do futuro. (Ecléa Bosi, 2013) In memoriam
Os estudos sobre memória coletiva e memória social e suas recentes categorizações – memória cotidiana ou comunicacional e memória cultural – atrelados às discussões sobre esquecimento e ressentimento vêm, nos últimos trinta anos, recebendo tanto atenção dos pesquisadores voltados às temáticas do patrimônio artístico e cultural e o fenômeno da musealização como, também, dos pesquisadores que têm suas pesquisas dirigidas às lutas de grupos socialmente marginalizados ou subalternizados em nossa sociedade, como são os casos das minorias raciais, étnicas, de identidade de gênero, familiares e sobreviventes do regime militar, entre outros. Recentemente, as pesquisas sobre a memória em comunidades de favelas e regiões periféricas vêm trazendo uma grande contribuição ao campo da memória coletiva ou social junto às ciências sociais, em especial à sociologia, revelando uma multiplicidade de temas e questões, caras ao pensamento social, principalmente em torno da tensão entre centro e periferia, cidade e favela.
Pari passu dessas novas demandas e, consequentemente, do alargamento do campo de estudos e pesquisas sobre memória coletiva e social no cenário acadêmico brasileiro, este artigo tem como objetivo geral apresentar, de forma sucinta, o estado da arte dos estudos sobre memória coletiva e social no Brasil e sua inserção junto ao campo das Ciências Sociais e principalmente da Sociologia, nos últimos anos.
Para tal empreitada, este artigo divide-se em dois blocos de objetivos. Primeiramente, busca-se fazer um balanço da produção da área acadêmica vinculada à temática da memória coletiva e social e os avanços teóricos e metodológicos decorrente dessa produção, buscando, se possível, apontar debilidades/impasses teóricos e metodológicos e trazendo também em tela as contribuições da Memória Coletiva e Social como disciplina junto à Sociologia.
Tem-se consciência de que um estudo detalhado da produção acadêmica sobre a temática memória coletiva e social, levando em conta os aspectos teóricos e metodológicos exigiria, seguramente, um projeto de investigação mais intenso, pois haveria de se levantar, junto às instituições de pesquisa e instâncias acadêmicas, todo o arsenal de teses, dissertações, artigos, pesquisas, comunicações em congressos, mesa de debate, núcleo de pesquisa e demais documentos produzidos nas últimas três décadas. Na impossibilidade de atender a tal demanda, frente ao espaço concedido a este artigo, optou-se pelas seguintes fontes: artigos e resenhas publicados na RBCS (Revista Brasileira de Ciências Sociais); trabalhos apresentados na ANPOCS (GTs, SPGs, Mesa Redonda); e trabalhos apresentados na SBS (GTs e Mesa Redonda)[1]. Visa-se também mapear, junto aos programas de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado), vinculados à grande área Sociologia, as linhas, grupos e laboratórios de pesquisa existentes cuja temática memória coletiva e social esteja presente, tanto em disciplina quanto em pesquisa acadêmica. Para fins de demonstração quantitativa, será feito um pequeno balanço, dos últimos vinte anos, das dissertações e teses junto ao banco de dados da Capes referentes aos temas Memória Coletiva e social.
O segundo bloco, de forma mais analítica, versará sobre a contribuição que os estudos sobre memória coletiva e social apresentam para a sociologia brasileira enquanto disciplina levando em consideração sua inserção no contexto da sociologia internacional. E, finalmente, a título de conclusão, será apresentada uma agenda de pesquisa propositiva ao fortalecimento da área de investigação dos estudos sobre memória coletiva e social no país.
1. Produção acadêmica dos estudos da Memória Coletiva e Social no Brasil contemporâneo seus avanços teóricos e metodológicos e seus possíveis impasses.
Desde o trabalho seminal de Ecléa Bosi, com a obra “Memória e Sociedade: lembranças de velhos”, publicada inicialmente em 1979 como resultado da tese de livre docência para o Departamento de Psicologia Social e Trabalho no Instituto de Psicologia da USP, percebe-se que o interesse sobre a questão da memória coletiva vem crescendo, deixando de ser uma temática vinculada estritamente à psicologia social. Foi a partir do trabalho realizado por Bosi que os estudos sobre memória passaram a ser de interesse também das Ciências Sociais.
Muitos outros trabalhos e pesquisas foram realizados desde então, entretanto, no que concerne à inserção da temática memória coletiva ou social como campo de investigação nas ciências sociais, temos, em 1993, o artigo intitulado “O pesadelo da amnésia coletiva: um estudo sobre os conceitos de memória, tradição e traços do passado”, de Myrian Sepúlveda dos Santos. Foi o primeiro artigo relativo à temática da memória coletiva e social publicado em um dos principais periódicos nacionais voltados para a área das Ciências Sociais: a Revista Brasileira de Ciências Sociais. A partir desta publicação, ao longo das últimas duas décadas, outros sete artigos (07) e uma (01) resenha foram publicados.
Há de considerar que o estudo da temática memória coletiva e social junto à grande área das Ciências Sociais no Brasil em meados da década de 1990 era incipiente e poucos pesquisadores e programas de Pós-Graduação tinham como tema de interesses de pesquisa a temática da memória. A partir da repercussão dos trabalhos desenvolvidos por Myrian Sepúlveda dos Santos[2], o campo de investigação da memória coletiva e social atingiu outros patamares de interesses e inúmeros artigos provenientes de pesquisas empíricas e ensaios teóricos foram publicados em revistas de excelência no país.
A partir de um levantamento feito na base de dados do Scielo (Scintific Electronic Library Online) relativos aos periódicos brasileiro, de 1998 e 2016, foram encontrados cinquenta e quatro (54) artigos tendo como assunto principal a memória coletiva ou social, uma média aproximada de três artigos por ano, nos últimos vinte anos[3].
Em 2006, ocorreu o primeiro seminário temático no Encontro Nacional da ANPOCS, considerado o principal evento acadêmico da área de Ciências Sociais no Brasil. Este primeiro seminário temático recebeu o nome de “Memória Social e Patrimônio: desafios contemporâneos”. Nessa ocasião, foram apresentados 14 trabalhos que versaram sobre a grande temática da memória social e coletiva juntamente com a discussão de patrimônio.
Desde então, de 2006 até 2016, ocorreram quatro (04) seminários temáticos, quatro grupos de trabalhos (04), e duas (02) mesas redondas, totalizando um conjunto de oitenta e oito (88) trabalhos apresentados como fruto de pesquisas acadêmicas. Grande parte desses trabalhos apresentou a temática da memória coletiva e social juntamente com outros temas, como: patrimônio, museus, políticas públicas, identidade, representação social, minorias e políticas de reparação, entre outros.
Concomitante ao evento anual da ANPOCS, o interesse pelos estudos e pesquisas sobre memória coletiva e social também esteve presente no Congresso Brasileiro de Sociologia. Um ano após o primeiro ST na ANPOCS, o Congresso da SBS contou com o Grupo de trabalho “Cultura, Política, Memória e Subjetividade”, no ano de 2007, onde foram apresentados quarenta e um (41) trabalhos sobre a temática proposta. A partir daquele ano, todos os outros congressos da SBS tiveram um Grupo de Trabalho relativo à memória coletiva ou social em suas programações, com destaque para o GT Memória e Sociedade em 2011, que resultou na publicação do Dossiê “Memória e Sociedade”, na Revista Ciências Sociais Unisinos[4], no mesmo ano, sob a coordenação de Myriam Sepúlveda dos Santos e Carlos A. Gadea, ambos coordenadores do mesmo GT. Até 2015, os GTs sobre memória e sociedade totalizaram cento e trinta e cinco (135) trabalhos no âmbito dos Congressos da SBS.
Em relação aos Grupos de Trabalho apresentados nos congressos da SBS, em um primeiro momento, a temática da memória coletiva e social se apresentava como tema tangente à proposta geral do grupo de trabalho, como pode ser verificado no primeiro GT em 2007; dos quarenta e um trabalhos (41) apresentados e publicados nos anais do congresso, apenas nove (09) tinham a memória coletiva e social como temática principal. Os demais trinta e dois (32) trabalhos versaram sobre temáticas diversas, até porque o próprio GT, em sua proposta abria um espaço de transversalidade entre temas de Cultura, Política e Subjetividade, além da memória.
No GT posterior, Cultura, Política e Memória, em 2009, procede-se um aumento relativo de trabalhos direcionados à temática da memória coletiva e social, pois, dos vinte cinco (25) trabalhos apresentados e publicados nos anais, doze (12) trazem como tema principal dos seus trabalhos a memória. Os outros treze (13) apresentam outras temáticas, mas, de certa forma, atreladas às discussões da memória coletiva e social, como por exemplo, os temas de Patrimônio, Identidade, Imagem, Fotografia, Cinema, Museus, Mídia, Grupos Sociais e Ditadura Militar. Nos próximos três (03) GTs subsequentes (2011, 2013 e 2015), percebe-se uma mudança significativa no direcionamento das propostas dos GTs, pois o termo Memória, diferentemente dos outros GTs, aparece como primeiro termo no título dos GTs. Isso demonstra um viés à construção de um campo de investigação voltado à temática da memória coletiva e social junto às Ciências Sociais, em destaque à Sociologia. Não obstante, elevou-se o número de trabalhos diretamente ligados às pesquisas sobre memória coletiva e social, ainda que, em vários casos, a transversalidade e o diálogo com outros temas tenham se mantido, como é o caso dos estudos de Patrimônio, Identidade, Museus, Grupos Sociais e Manifestações Culturais e Ditadura Militar.
Tendo como base os dois principais eventos científicos nas áreas de Ciências Sociais e Sociologia no país, observados acima, pode-se afirmar, ainda de forma preliminar, que a transversalidade e a interdisciplinaridade são pontos centrais à temática da memória coletiva e social, fazendo deste campo temático um espaço de possibilidades de crescimento de estudo e pesquisas no país. Além disso, autores como Myrian Sepúlvedas dos Santos (2012 e 2013), Carlos A. Gadea (2013) e Andreas Huyssen (2004, 2014) apontam para dois fenômenos relevantes para o aumento das pesquisas sobre memória na contemporaneidade:a redemocratização com a abertura política e a globalização, tanto no Brasil, no caso dos dois primeiros autores, quanto no cenário internacional, relatado por Huyssen. De maneira geral, a partir desses dois fenômenos, as lutas por memórias adquiriram contornos mais complexos frente às demandas por Justiça Social, Reconhecimento, Reparação, Identidades Culturais, Direitos Humanos entre outras. Tal processo influenciou ainda o caráter transversal e interdisciplinar dos estudos e pesquisas sobre memória coletiva e social, despertando também o interesse dos programas de pós-graduação em sociologia e ciências sociais na constituição de linhas de pesquisa, grupos e laboratórios de pesquisas.
Atualmente, a área de sociologia, que abrange também os programas de ciências sociais, possui cinquenta e quatro programas (mestrado, doutorado e mestrado profissional) com oitenta e seis cursos no país[5]. De todos os cursos pesquisados[6], quinze (15) possuem, dentre suas linhas de pesquisa, pelo menos uma (01) linha que tem a temática da memória coletiva e social como subtema de interesse de pesquisa da linha. Além de fomentar a pesquisa em dissertações e teses, esses cursos e programas possuem disciplinas que abordam tanto as teorias vinculadas às discussões sobre memória coletiva e social quanto discussões metodológicas em torno da pesquisa empírica.
Outro dado importante que este levantamento traz é que, além das linhas de pesquisa dos quinze cursos (15) mencionados, quatorze (14) cursos possuem grupo de pesquisa ou laboratório que tem a memória coletiva e social como subtema. Todos esses grupos e laboratórios estão vinculados à linha de pesquisa do programa e registrados no Diretório de Grupo de Pesquisa junto ao CNPq. Tal informação aponta para um interesse ainda maior pelos estudos sobre memória coletiva e social, já que os grupos e laboratórios de pesquisa têm como finalidade o desenvolvimento da pesquisa e o intercâmbio acadêmico em torno delas.
Até aqui foi possível demonstrar que, apesar de novo, o campo de estudos sobre memória coletiva e social apresenta uma importante contribuição para a produção de conhecimento no desenvolvimento da pesquisa em Ciências Sociais, com destaque na Sociologia, no país. Entretanto, como foi possível também demonstrar, mesmo que sinteticamente, este campo de investigação possui uma forte tendência à transversalidade e interdisciplinaridade. O que, por um lado, permite um diálogo teórico e metodológico com inúmeras disciplinas das Ciências Humanas e, por outro, mantém, por falta de autonomia teórica e metodológica própria, um campo de estudo a reboque de outros, fato visto nas linhas de pesquisa apreciadas acima. O estudo da memória coletiva e social apresenta-se, em todos os exemplos, como subtema da linha. Não há, nos programas e cursos visitados, nenhuma linha, grupo ou laboratório de pesquisa exclusivamente voltado ao estudo da memória coletiva e social[7].
No que se refere à produção científica dos programas de pós-graduação, nos últimos vinte (20) anos, observando teses e dissertações cuja temática da memória coletiva ou social fosse foco da pesquisa, foi possível perceber um aumento importante, tanto na estrita área da Sociologia e Ciências Sociais quanto nas demais áreas das Ciências Humanas, corroborando com argumento defendido anteriormente, qual seja: mesmo sendo um campo relativamente novo para Sociologia e para as Ciências Sociais, os estudos sobre memória coletiva e social vêm demonstrando um aumento de interesse cada vez mais significativo.
Para efeito de demonstração sobre o quantum da produção de teses e dissertações sobre memória coletiva e social, realizou-se uma pesquisa junto ao Banco de Teses e Dissertações disponível na Plataforma Sucupira, levando-se em conta o número de teses, dissertações e programas de pós-graduação que apresentam “memória coletiva” entre as palavras-chaves em suas descrições.[8]
As tabelas acima apresentam a produção de teses e dissertações dos programas de pós-graduação que foram avaliados pela área de sociologia nos dois últimos decênios (1997-2006; 2007-2016). Percebe-se um aumento de 44% aproximadamente. Este aumento é reflexo de três processos: i) aumento do interesse pela temática memória coletiva ou social por parte dos programas e cursos; ii) aumento do número de cursos por programas, pois alguns programas passaram a oferecer tanto cursos de mestrado quando de doutorado; e iii) um aumento do contingente ingressando nos programas de pós-graduação nos últimos dez (10) anos.
Uma outra comparação importante é o aumento do interesse da temática memória coletiva e social junto às outras áreas das Ciências Humanas nos últimos vinte (20) anos. Aplicando o mesmo método, porém incluindo outras áreas de avaliação, além da área de sociologia, obteve-se:
Assim como na análise anterior, há um aumento no volume de teses e dissertações nos últimos dez (10) anos e tal aumento pode ser atribuído aos mesmos três (03) processos acima citados. Porém o que chama atenção é que o aumento apurado neste último exercício é menor, em termos relativos, do que apresentado pelo volume de teses e dissertações de exclusividade da área de avaliação em Sociologia: o primeiro apresentou um aumento de 44% aproximadamente, enquanto o segundo um aumento de 21% aproximadamente[9]. Isso demonstra que o interesse pela temática nos estudos sobre memória coletiva e social vem aumentando mais que proporcionalmente nos programas e cursos exclusivos da área de Sociologia. O que nos leva a acreditar, como já exposto alhures, que este campo de investigação, apesar de novo[10], tem um grande potencial de crescimento junto às áreas de Sociologia e Ciências Sociais no país.
Atrelado à constatação acima, percebe-se que, além dos estudos acadêmicos, nas últimas duas décadas, as instituições de memória como museus, bibliotecas, arquivos públicos e privados apresentaram um crescimento e uma renovação significativa, resultando em reflexões críticas quanto à relação entre capital econômico e político frente ao controle destas instituições. Dessa forma, os estudos sociológicos, cuja temática é a memória coletiva e social, vêm trazendo à área da Sociologia uma pluralidade de questões relacionadas às disputas no campo da memória por instituições, grupos sociais, comunidades e Poder Público. Além disso, como também já ressaltado, esta temática oferece uma transversalidade e interdisciplinaridade à área da Sociologia, permitindo e ampliando o diálogo com diferentes campos do conhecimento das ciências humanas e sociais, como: História, Antropologia, Ciência Política, Museologia, Arqueologia, Arquitetura, Psicologia Social, Artes e Estudos Culturais, entre outras.
Diante do exposto até o momento, é plausível afirmar que houve no decorrer desses últimos vinte (20) anos uma significativa ampliação teórica e metodológica nos estudos e pesquisas sobre memória coletiva e social no país, possibilitando, de forma positiva, o crescimento do campo de investigação desta temática juntamente como o fortalecimento da disciplina memória – em suas inúmeras categorias – dentro dos cursos e programas de pós-graduação, grupos e laboratórios de pesquisa no país. Sobre teoria, Santos (2012) adverte que:
(...) Abordagens teóricas são como lentes de aumento, que nos ajudam a ver e compreender melhor certos aspectos da realidade. As lentes podem ser escolhidas de acordo com o interesse do pesquisador e à medida que são usadas deixam marcas no objeto observado. Os grandes cientistas sociais fizeram boa escolha de quais lentes utilizar para traduzirem as imagens focalizadas. Esta sem dúvida é a tarefa que agora nos cabe. (SANTOS, 2012, p. 17)
E esta tarefa vem sendo assumida com afinco e entusiasmo nas últimas duas décadas pelos pesquisadores e acadêmicos, pois, na medida em que o campo de estudo da memória coletiva e social se ampliava, devido às inúmeras demandas concernentes aos processos de redemocratização e abertura política e globalização, novas concepções e abordagens teóricas e metodológicas se fizeram necessárias. Inicialmente, duas questões se pautaram com urgência à discussão do campo da memória: i) a superação do divisor história/memória no âmbito epistemológico; e ii) a superação do binário memória individual e memória coletiva como categorias de análise. Pode-se se afirmar, com base no conjunto de trabalhos publicados na área de Sociologia e Ciências Sociais, no período analisado, que tais questões foram superadas e novas concepções e interpretações foram construídas, aumentando e diversificando o leque de categorias e conceitos-chave à temática da memória, como por exemplo:
Cabe, no entanto, destacar que o campo de estudos da memória coletiva e social necessitou e continua necessitando de inúmeras contribuições teóricas e metodológicas de áreas diversas das Ciências Humanas. Os conceitos de “aura”, “indústria cultural”, “ressignificação”, “fetiche”, “esquecimento” entre outros, oriundos da Filosofia, são constantemente utilizados em trabalhos sobre memória coletiva e social. Assim como também, conceitos como “trauma”, “recalque”, “imaginário”, “fantasia” etc., provenientes das psicanálises freudiana e lacaniana, são repensados e discutidos em inúmeras pesquisas no campo da memória. Correntes teóricas como a Fenomenologia, Funcionalismo, Estruturalismo, Pós-Estruturalismo, Construtivismo, Interacionismo simbólico, Teoria Crítica e, mais recentemente, os Estudos pós-coloniais, Teorias Feministas, Estudos Culturais e Hibridismo, também vêm enriquecendo e diversificando o amplo campo de estudo da memória coletiva e Social, tanto no país quanto nos estudos internacionais.
Nesse ínterim, podem-se destacar as contribuições da Antropologia, Museologia, Psicologia Social, da Arquitetura e Urbanismo, da Ciência Política e também da História, como campos importantes para novas abordagens metodológicas. A título de exemplos, temos o emprego, cada vez mais constante, da etnografia e dos métodos da observação participante, presentes em grande parte dos trabalhos que exigem pesquisas de campo e entrevistas. Os métodos da história oral e histórias de vida também são deveras utilizados nesse tipo de pesquisa. Temos também as técnicas de trabalho com arquivo, biografias, acervos e curadorias que, volta e meia, são empregados pelos pesquisadores sociais nos estudos de memória coletiva e social.
Outro ponto a ser destacado, como consequência dessa contribuição teórica e metodológica aos estudos da temática em discussão, diz respeito ao abarcamento das temáticas esquecimento e ressentimento. Estas duas temáticas vinculadas aos estudos da memória vêm nos últimos vinte (20) anos recebendo uma atenção especial dos pesquisadores que têm suas investigações dirigidas às lutas de grupos socialmente marginalizados ou subalternizados em nossa sociedade. Os casos mais notórios se relacionam com análises sobre as minorias raciais, étnicas, as identidades de gênero, familiares e sobre os sobreviventes do regime militar no Cone Sul, bem como às análises sobre a memória social das favelas e de seus moradores. Assim, a noção de memória tem sido cada vez mais utilizada na formação de coletivos culturais e identidades sociais e, por sua vez, aparece tanto como estratégia de movimentos sociais como valorização de comunidades locais, cidades, estados nacionais e diásporas culturais[12].
Ao fim e ao cabo, pode-se constatar que o campo dos estudos da memória coletiva e social trouxe para a Sociologia brasileira uma ampla gama de questões e desafios, principalmente para a compreensão das lutas por direitos e reconhecimento político de grupos sociais marginalizados ou excluídos na contemporaneidade, demonstrando total sintonia com os estudos internacionais voltados para o fenômeno da Imigração e dos Direitos Humanos Internacional[13].
2. Os estudos sobre memória coletiva e social como disciplina da área de Sociologia e a inserção no contexto da Sociologia internacional.
Nas últimas três (03) décadas, tanto a Sociologia como as Ciências Sociais, enquanto disciplinas e campo de investigação teórico e metodológico no cenário internacional, vêm tendo que enfrentar questões e discussões profundas acercados efeitos e transformações recorrentes dos processos de globalização, expansão da economia de mercado, avanços tecnológicos, redemocratização política, descolonização, crise dos refugiados e fluxo migratório[14]. Consequentemente, a fim de dar conta das inúmeras questões que emergiram dessas transformações, várias perspectivas teóricas se forjaram no campo da Sociologia e da Ciência Social, em destaque para as temáticas do Reconhecimento, do Feminismo, do Pós-Colonialismo, da Reparação, das Novas Mídias e dos Movimentos Sociais Contemporâneos[15].
No âmbito dos estudos da memória coletiva e social não foi diferente frente aos processos anunciados acima que se seguiram nos últimos trinta (30) anos. Evidentemente, neste campo de estudos e pesquisas, também houve um investimento quanto ao entrelaçamento dessas novas perspectivas teóricas expostas[16] e a construção de novas categorias analíticas. Dentre elas podemos destacar: i) releitura dos trabalhos de Maurice Halbawachs sobre “quadros sociais da memória e memória coletiva”, realizados principalmente por Jan Assmann, (2016), no qual, se propõem novas categorias - memória comunicacional e memória cultural; ii) os significados atribuídos às memórias traumáticas revividas por gerações futuras ao trauma vivido por vítimas ou familiares de vítimas do Holocausto na Alemanha, nos trabalhos de Marianne Hirsch (2008), denominado “pós-memória”; e iii) as imbricações pós-coloniais, novas mídias, políticas de reparação, justiça e direitos humanos internacionais junto à temática da memória coletiva e esquecimento, elencados na obra de Andreas Huyssen (2014).
Evidentemente não são só estes os teóricos no plano internacional que vêm utilizando a temática da memória frente às transformações sociais, políticas e culturais. Há, com certeza, inúmeros trabalhos e pesquisas importantes, o que demonstra a potencialidade que o campo em questão suscita[17]. No entanto, o que se busca destacar é como nos estudos internacionais a teoria da memória coletiva e social, mesmo quando se propõem outras categorias e denominações, vem sendo de grande importância para o entendimento dos processos sociais em curso, como, por exemplo, as lutas por direito e reparação em países da América Latina que passaram por regimes ditatoriais, provocando conceitualmente uma ampla discussão sobre memória e esquecimento. Foi, a partir da memória dos sobreviventes, dos testemunhos, das aberturas dos arquivos e dos achados documentais, que vítimas e parentes de vítimas produziram uma gramática política reivindicatória, objetivando, em sua maioria, reparação do trauma sofrido no período ditatorial. Além do campo jurídico, no qual esses grupos vitimados pelos regimes ditatórios buscam reparação e reconhecimento, obras cinematográficas, artes plásticas e performances artísticas vêm tomando como pano de fundo as memórias e testemunhos desse tempo, o que traz um alargamento ainda mais significativo ao campo dos estudos da memória coletiva e social[18].
Os estudos pós-coloniais e as discussões sobre a diáspora reforçam ainda mais, no campo internacional, a importância dos estudos da memória coletiva e social no que tange à construção de identidades coletivas, representações sociais, nacionalidades e grupos subalternos, substanciando politicamente as lutas também por justiça e reconhecimento das ex-colônias. Atrelado a isso, destaca-se a influência também dos estudos da memória sobre o Direito Internacional, especificamente, os Direitos Humanos, pois, como argumenta Huyssen (2014),
(...) a instauração ativa de processos por violações dos direitos humanos nos tribunais também depende da força dos discursos de memória na esfera pública – no jornalismo, nos filmes, nos meios de comunicação, na literatura, nas artes, na educação e até nas pichações urbanas. (Ibidem, p.200).
E, por fim, pode-se destacar a gama de questões que surgiram no âmbito dos direitos à cultura, à língua, à religiosidade, que derivam dos processos de descolonização e do fluxo migratório crescente no mundo atual, trazendo novamente em tela a importância do acionamento da memória para a efetivação de tais direitos. Por conseguinte, os estudos do campo da memória coletiva e social buscam apreender, via pesquisas e novas conceituações, os dilemas, no plano conceitual do Multiculturalismo, Hibridismo e Pós-colonialismo.
À Guisa de conclusão: uma agenda de pesquisa propositiva ao fortalecimento da área de investigação dos estudos sobre memória coletiva e social no país
O que se procurou no decorrer de todo artigo foi demonstrar, em primeiro lugar, quanto os estudos sobre a temática do campo da memória coletiva e social vêm crescendo nas últimas décadas, apontando para um significativo interesse dos cientistas sociais e sociólogos sobre o tema. Juntamente a tal constatação, procuraram-se destacar a transversalidade e a interdisciplinaridade como elementos endógenos ao campo de estudos da memória coletiva e social no país e internacionalmente. Falar de memória coletiva e social é também falar de identidade, tradição, modernidade, cultura, imaginário, política, poder etc. Não nos coube discutir antinomias teóricas e conceituais entre diferentes tipologias da memória frente às Teorias Social ou Sociológica. Mas, antes de tudo, apresentar o estado da arte dos estudos da memória coletiva e social no país.
Não obstante, à guisa de conclusão, será proposto uma agenda de pesquisa intuindo prepositivamente um fortalecimento deste campo junto à área da Sociologia e, por que não, das Ciências Sociais como um todo. Assim, propõe-se:
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Notas