Resumo: Neste ensaio, procura-se traçar um painel de como a complexidade própria às conexões e aos níveis de integração sociocultural, numa escala de interdependências sócio-humanas tão alargadas, implica qualidades outras às circulações, aos encontros e aos cruzamentos culturais e civilizatórios. Portanto, impacta não somente os contornos, teores e as dinâmicas da esfera cultural, como, igualmente, deflagra ondas reflexivas tendo por objeto os modos de cognição e os procedimentos de inferência analítica socioantropológicos ocupados dos processos de simbolização nas produções e usos de bens culturais.
Palavras-chave:CondicionantesCondicionantes,SociologiaSociologia,Esfera da Cultural ContemporâneaEsfera da Cultural Contemporânea,interdependênciasinterdependências.
Abstract: This essay is intended to trace a panel showing how the complexity inherent to connections and sociocultural levels of integration, within a context of highly spread social-human interdependence, entails new qualities to circulations, to cultural and civilizatory encounters and crossroads. Therefore, it not only impacts the overall shape, content and dynamics of the cultural sphere, but it equally triggers reflective waves aiming at modes of cognition and socio-anthropological analytical inference procedures concerned with symbolization processes in production and use of cultural goods.
Keywords: determinants, sociology, contemporary cultural sphere, interdependencies.
Artigos
Tendências da Sociologia da Esfera Cultural Contemporânea
Trends in Sociology of the Contemporary Cultural Sphere
Recepção: 02 Setembro 2017
Aprovação: 17 Outubro 2017
Durante a última década, a área de sociologia da cultura não apenas se posicionou como um dos subcampos de pesquisas, estudos e reflexões relevantes na sociologia brasileira, como se consolidou no sistema de pós-graduação no país. Sobretudo, tem conhecido um incremento tanto do volume de trabalhos realizados quanto da ampliação das suas linhas de pesquisa. Para isto, dois aspectos devem ser reconhecidos. Primeiro, observa-se, nos mundos sociais contemporâneos, a intersecionalidade da questão cultural com os planos econômicos, políticos, religiosos, científicos, tecnológicos, entre outros. Segundo, por consequência, a dimensão cultural, ou sócio-simbólica, torna-se estratégica para a configuração epistemológica das ciências sociais, deixando seus rastros teóricos, analíticos e empíricos.
Nesse sentido, observa-se a permanência de temáticas já tradicionais referentes tanto à literatura, impressos e cultura material gráfica e editorial quanto aos diversos mundos artístico-culturais. Abraça-se, assim, a sociologia das obras e da formação dos itinerários e círculos intelectuais, como também dos circuitos de produção e recepção desses bens simbólicos. Ao mesmo tempo, salta aos olhos o incremento dos protocolos de pesquisa referentes aos fluxos da cultura do audiovisual e das culturas de consumo, além da atenção conferida às pautas das políticas públicas para o setor cultural, como também às versões adquiridas pelo entrosamento entre cultura, moralidades e economia. Ainda percebe-se a importância obtida pelos processos de reposição de diferenças culturais e ressignificações de memórias e as condições e efeitos das circulações transnacionais da cultura e do conhecimento, aspectos estes que, entre tantos outros, integram o múltiplo panorama histórico-empírico que respalda a sociologia da esfera cultural contemporânea. Logo, a sensibilidade para a ampliação, tanto quantitativa quanto qualitativa, da área de sociologia da cultura contracena com a reflexão acerca dos entrosamentos das pesquisas e estudos nesse subcampo, respectivamente, com as questões do nacional, da mundialização da cultura, das múltiplas modernidades e dos pós-colonialismos.
O objetivo deste texto envolve examinar e interpretar os avanços teóricos, analíticos e empíricos relativos ao conhecimento sociológico sobre produção, circulação e consumo/usos de bens simbólicos, mas à luz dos cruzamentos contemporâneos que, ao mesmo tempo, condicionam o traço complexo do objeto da nossa disciplina e geram desafios à sua apreensão intelectual. Assim, o objetivo deste artigo é analisar e comentar: a) a produção e os debates na área de sociologia da cultura, nas últimas décadas; e b) atentar às novas e emergentes problemáticas e linhas de abordagem.
Nosso ponto de partida está na suspeita de que os conteúdos que ora sensibilizam sociólogos e sociólogas pressionam em favor da necessidade de redefinir a empiricidade daquilo nomeado por esfera cultural nas ciências sociais, em razão da extensão global adquirida pelo padrão moderno de socialidade e de condutas, ou seja, pelo incremento vertiginoso na emergência e acomodação dos hábitos, dos costumes e das instituições da modernidade no conjunto do planeta. Neste sentido, parece-nos que denominações como “cultura global” (FEATHERSTONE, 1990), “modernidade-mundo” (ORTIZ, 1994), “cultura-mundo” (LIPOVETSKY; SERROY, 2011), ou mesmo “modernidade múltipla”/“múltiplas modernidades” (EISENSTADT, 2000; EISENSTADT; PEREIRA; ARAÚJO, 2007), “modernidade líquida” (BAUMAN, 2001) e “outras modernidades” (DUBE; BENERJEE, 2011), entre outras, evocam e, de algum modo, objetivam taquigrafar conceitualmente essa extensividade. E, no mesmo diapasão, explicitam ou ao menos indicam os dilemas socioantropológicos inerentes aos modos de aproximação e tratamento da pauta de atributos dessa condição histórica contemporânea, no instante em que tanto tendências generalizantes quanto reposições de singularidades étnico-históricas emergem mutuamente associadas. São dilemas intelectuais, sim, mas que gravitam em torno do nexo histórico-ontológico entre o “mesmo” e o “diverso” num quadro em que a tensão decorrente dos conflitos entre as interações conflituosas entre geopolítica e geocultura ressalta (HUNTINGTON, 1997; WALLERSTEIN, 2007, pp.193-328) ressalta a esfera da cultura como fórum cuja amplitude planetária afeta as escalas das abordagens das facetas múltiplas dos processos de simbolização.
Compartilhamos da concepção que identifica na esfera cultural uma topologia social (WEBER, 1974, p. 379), isto é, uma forma social diferenciada por nela se repor continuadamente o problema em torno do sentido (isto é, significados, direções, valores etc.). Ela se realiza, contudo, em campos cujas irredutibilidades entre si dizem respeito aos diferentes níveis de autonomia relativa e profissionalização. Sobretudo, tais campos correspondem às distintas historicidades das sublimações de valores, plasmadas nas respectivas racionalidades que subjazem aos critérios de recrutamento e identificação dos elementos inscritos em suas órbitas e também nas crenças que os movem (BOURDIEU, 2001, p.120). Ao contrário da prerrogativa funcional-estruturalista, porém, ao falarmos de esfera da cultura contemporânea, não estamos nos referindo a um arranjo normativo preestabelecido, apto a prescrever os limites das condutas humanas e, no mesmo andamento, designar desvios ao seu modelo e, assim, reiterar a própria territorialidade sistêmica. Respaldados no que Bauman (2012, p. 43) denomina de uma “matriz de permutações possíveis”, entendemos essa esfera como dimensão sócio-humana sempre tendente à totalização, mas permanecendo um esboço sujeito à conclusão em um devir interminável. Desde já, a questão da própria diferenciação se impõe, à maneira de outras esferas da vida social, como um drama ao desenrolar dessa, afinal mantém-se continuamente precária a definição dos seus conteúdos, na medida em que a qualidade mesma da sua natureza de forma e o fator de formação das relações humanas se encontram em estado cambiante.
O trajeto de exposição realizado, neste ensaio, ocupa-se da importância adquirida pelo arranjo de aspectos que podemos sintetizar no seguinte argumento: a complexidade das conexões e dos níveis de integração sociocultural, numa escala de interdependências sócio-humanas tão alargadas, implica qualidades outras às circulações, aos encontros e cruzamentos culturais e civilizatórios. Novidade esta que suscita posições e dinâmicas também outras à permanência e à atualização de unidades hermenêuticas que informam os exercícios compreensivos e explicativos. Em termos históricos, percebe-se, de um lado, a aceleração dos ritmos de circulação pressionando fronteiras geopolíticas, mas também simbólicas. De outro, o alcance das ecologias sociotécnicas de informação e comunicação contracena seja com a mutação seja com a emergência de outros formatos expressivos e gêneros culturais. Inseridos no escopo de mercados do simbólico e da comunicação, ambos os fatores deixam impressões nos regimes de práticas, mas também nos protocolos vigentes de autoria, além das repercussões nas proposições identitárias e nas autoimagens dos agrupamentos humanos. Ainda, o somatório desses elementos, mutuamente engendrados, coloca em xeque a evocação de fechamento normativo intrínseco à concepção de cultura amparada na ideia geopolítica de territórios, a qual se funda no modelo de parentesco da família extensa próprio da nação moderna.
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À luz de uma perspectiva de longa duração, é possível vislumbrar a dinâmica sócio-histórica no seio da qual a expansão da modernidade, entendida como uma cultura histórica, regime de verdade e epistemologia, é protagonizada, em princípio, pelo binômio Estado-nação e mercado (WAGNER, 2002), dando-se no compasso do advento e da evolução dos tantos sistemas culturais nacionais[1]. Em especial, depois da Segunda Guerra Mundial, articulados com presença sempre maior de instâncias internacionais e transnacionais, estes sistemas têm impactado os nichos de grupos humanos e povos, ao fazer da cultura um nome articulando, um a priori cognitivo com a semântica elementar que informa os seus respectivos modos de ser e existir, ou seja, e a escritura que lhes viabiliza a apresentação pública. A consequência não programada dessa constelação de episódios é o que chamaríamos de “dinâmica de universalização histórica do particular”, ou seja, a inserção das noções de simbólico, simbolização e cultura como partes da condição humana. Tal incorporação está no fato de que as três noções tanto se efetivam um meio de comunicação como uma forma conceitual pela qual são sintetizados conhecimentos. É sob uma e outra feição que a cultura, paulatinamente, adquirirá o status de direito inalienável da civilização humana. Não é demais concluir o quanto esse horizonte de instauração da questão do significado no mundo pensável, apto a ser expresso, manejado e tão celebrado nas figuras conceituais da diferença e da diversidade culturais, realiza-se no avanço formidável da consciência étnica e mediante os diversos processos de etnicização já acionados e aqueles ora em curso (BHABHA, 1995). Elemento da esfera cultural, respaldado no imaginário do romantismo alemão, com sua aspiração de ciência apta para o equilíbrio da universalidade com a ênfase metódica na singularidade (DUARTE, 2006, pp. 19-31), o ramo da antropologia social se destaca por consistir, ao mesmo tempo, em um esforço de conhecimento da diversidade simbólica do mundo, em um saber aplicado à formação dessas subjetividades coletivas e, ainda, na gestão dos seus patrimônios. Mas outras disciplinas do conhecimento científico ou não, em especial a crítica cultural e a teoria literária, inclusive a literatura, entrosadas com diferentes escopos institucionais e dispondo de suportes técnicos distintos, igualmente alcançaram importância no estabelecimento do mesmo horizonte, nos rastros da internacionalização dos sistemas universitários. Também sabemos o papel estratégico desempenhado no delineamento desse arranjo pelas mídias e pelos mercados de bens simbólicos, seja em sua versão restrita e/ou ampliada; a título de exemplo desse papel estratégico, podemos pensar como as facetas da cinematografia são particularmente importantes a esse respeito, pois as visões de alteridades postas nas telas foram veementes na consagração de imagens etnocêntricas de um ocidente imperial ou trouxeram a recusa das caricaturas e exotismos reforçando estereótipos étnicos, de gênero, de sexo, entre outros (SHOHAT; STAM, 2006, pp.37-88; MORETTIN, 2015, pp. 48-59). Resulta disso, hoje, a centralidade gozada pela cultura no cotidiano de tão vasto contingente da humanidade, algo que repercute no campo das ciências sociais, como observa Stuart Hall (1997, p. 208), no crédito cada vez maior concedido aos objetos relativos às identidades sociais, mas repercute igualmente na concepção mesma da epistemologia das nossas ciências.
Cabe lembrar, contudo, que não estamos diante de um movimento de mão única. Ao se inflar as consciências identitárias, regimes de práticas adquirem relevo, de alguma maneira, se autonomizam dos seus nichos originários e passam a pressionar as fronteiras estabelecidas da esfera de onde partiram os insumos à elaboração dessas autoimagens. É cabível dizer: as culturas redimensionam a esfera cultural; impõe-se à palavra cultura no singular abranger os plurais, sem os esvaziar de seus teores, ao contrário, deve acentuar a diversidade entre eles. As pressões são no sentido desses ascendentes regimes de práticas expressivas comporem também esse espaço social da significação. Nas artes, nas ciências, nas literaturas, nas mídias, na gastronomia, enfim, por todos os campos culturais, deflagram-se atitudes de periferias, tradicionalistas, pós-coloniais, de mulheres, de diversidades sexuais, indígenas, “loucos” num movimento de multiplicação e fragmentação, pelo menos a princípio, incessante, visando abrir compartimentos expressivos, redefinir regimes de autoria e protocolos de identificação de objetos artístico-culturais (ver, entre outros, MCCAUGHAN; FUNCK, 2003, pp. 89-112; ZENI, 2004, pp. 225-241; TAKEUTI, 2010, pp. 13-26; COSTA; BENTO; GARCIA; INÁCIO; PERES, 2010; SILVA, 2014, pp. 139-162; FREY, 2014; MATO, 2003; GOLDSTEIN, 2012; REINHEIMER, 2013)[2]. Certo gradiente de democratização funcional se precipita, porém se veem em apuros os mecanismos consagrados de diferenciação da esfera cultural diante da complexidade introduzida em seu âmbito,ou melhor, é a percepção mesma do âmbito que entra em crise. Ainda mais porque o tramado sociofuncional ascendente, o qual aspira à posição de sujeito de agenciamentos da cultura, tende a macular separações, especialmente aquela pela qual a renúncia dos condicionantes financeiros recalca o tema da luta pela sobrevivência no plano das “coisas do espírito” (BOURDIEU, 1996, pp.244-245). Com isto, esse mesmo tramado parece contaminar este plano com as características da economia, ou seja, a horizontalidade vital com seus requisitos incontornáveis: carência, escassez e finitude. No movimento inverso, esparramam a singularidade e a evocação do intangível no plano da materialidade prosaica. Enfim, o trânsito suscita de fusões e confusões a fissões.
À luz dessas figurações, repõe-se o problema em torno da diferenciação da esfera cultural, no compasso de como são redefinidos temas candentes com sua malha de complicadores étnico-históricos, morais e sócio-políticos, a exemplo dos nexos disjuntivos: tradicional versus moderno; autêntico versus vulgar; moralidade versus dinheiro; familiar versus estranho; comunidade versus sociedade; autonomia versus heteronímia; erudito versus popular; cosmopolita versus vernacular; popular versus massa etc. No entanto, não cabe falar da diluição desses pares disjuntivos, afinal, eles ressurgem com roupagens novas, e estas últimas correspondem ao fato de que a instalação de circuitos cosmopolitas e ampliados de produção, circulação e consumo de bens simbólicos, faz-se cúmplice de concepções que norteiam os agenciamentos voltados a saberes e fazeres agora apreendidos pelo signo da diversidade simbólica e ecoambiental. Tais agenciamentos, em grande medida, são realizados nas lutas travadas pela conquista dos direitos culturais, por meio das quais se fomentam políticas de diferenças/significados, deixando por rastro revisões de narrativas que facultam a interrupção de memórias flagradas em gestos e discursos racistas, sexistas, homofóbicos (HUYSSEN, 2014, p. 195; TAYLOR, 2013, pp.263-293)[3]. Ao mesmo tempo, o incremento desses circuitos artísticos, audiovisuais, turísticos, musicais, acadêmico-intelectuais, literários, gastronômicos, de moda e festivos e étnico-culturalistas (ver BUENO, 1999; PECH, 2012; FARIAS, 2014b, pp. 265-280; NICOLAU NETTO, 2014; HEILBRON; SAPIRO, 2007, pp. 93-108; MUNIZ Jr.; OLIVEIRA, 2015, pp. 119-133; HERNÁNDEZ, 2005, pp.129-146; BUENO, 2013; MICHETTI, 2015; MIRA, 2009, pp. 563-597; MARINHO, 2013, pp. 237-252), entre outros, impulsiona padronizações de procedimentos, tendo por anverso correlato o incentivo e os efeitos de políticas de estilos tanto no plano das intermediações quanto no das demandas.
No compasso dos mesmos encadeamentos transnacionais, bem além dos lucros financeiros já auferidos ao deter acervos artísticos consagrados, a tônica depositada nas lutas pelo reconhecimento e, então, na extração de atenção avaliada como positiva às suas imagens também motiva os decisores das grandes corporações empresariais ao financiamento de atividades artísticas e culturais (WU, 2006). Vêm à tona os temas da construção social do valor da cultura e da dubiedade ora ostentada por este valor enquanto, simultaneamente, econômico-financeiro e de reconhecimento/prestígio. A emergência de ambos se dá em decorrência do dueto composto pela centralidade obtida pela comunicação e pela expressão em uma esfera pública transnacional vinculada à ecologia dos sistemas sociotécnicos de informação e pela mundialização da cultura mercantil. Logo, para os exercícios socioantropológicos se colocam em relevo os elementos à formulação de problemas teóricos e soluções analíticas acerca da formação do valor econômico, no momento em que a cultura se constitui em insumo agregador de raridade à mercadoria informacional.
Dado esse cenário, a antecedência das prerrogativas do cálculo financeiro como parte integrante dos agenciamentos realizados no cerne de órgãos estatais aponta um realinhamento na compreensão do sentido da questão cultural, por parte da esfera política (MAIA, 2014, pp. 184-193). Afinal, em lugar da prioridade ideológica, o êxito econômico contracena com requisitos de inclusão/afirmação identitária de grupos e populações nos programas pelos quais se determina a presença dos representantes do Estado como executores e gestores de políticas públicas. Ainda a este respeito, importa notar as proporções formidáveis adquiridas pela economia da cultura para formação do produto interno bruto de muitos países e de como os temas inseridos nessa pauta têm adquirido o status de objeto de interesse e de lutas nas relações internacionais. São bem emblemáticos os enfrentamentos em torno dos fluxos audiovisuais em que representações estadunidenses, japonesas e israelenses (a favor do livre com.rcio de bens e serviços) se opuseram ao posicionamento das comitivas francesas e canadenses pela adoção de políticas de exceção a serem aplicadas nas transações envolvendo a cultura, situações de disputas essas que se deslocaram do Acordo Geral das Tarifas e Comércio (GATT) e da Organização Mundial do Comércio (OMC) para o âmbito da UNESCO (ÁLVAREZ, 2009, pp. 254-278).
Logo, todos esses posicionamentos incitam interrogações sobre o ajuste do lucro monetário-financeiro com os dividendos obtidos pelo prestígio. Mas, igualmente, interrogam acerca dos tipos de governabilidade, em escala planetária, em que a atuação de grandes unidades sociopolíticas, como os Estados nacionais, e também daquelas inseridas nas micropolíticas – ONGs, fundações privadas, escritórios de advocacia, gastrônomos, empresas de marketing, de arquitetura e de design, por exemplo – estão atravessadas pela transversalidade da diversidade cultural e, com isso, interagem em processos econômicos sob muitas e distintas justificativas (YUDICE, 2004). Apoio a projetos que unem afirmação identitária e sustentabilidade, resgate e promoção de cidadania, salvaguarda de patrimônios imateriais ou artístico-arquitetônicos, entre outras iniciativas, manifesta o advento da institucionalidade dessa governança com alcance transnacional. Nestas, as fronteiras do público e privado mais que tênues se manifestam porosas, tendentes a se diluir.
O alcance multifacetado dessa governança aciona revisões nos pontos de vista teóricos e analíticos nas ciências sociais acerca dos efeitos de realidade gerados no andamento da expansão cotidiana dos atravessamentos entre cultura, política e economia, seja na potencialização, seja na subordinação de pessoas, grupos, símbolos, modos e meios de vida. Para citar um, entre muitos exemplos possíveis, relembramos que a retomada dos debates em torno das estratificações (classe, etnia, raça, gênero, sexo, geração etc.) vem ocorrendo em meio às controvérsias que cercam a adoção de saídas analíticas e interpretativas tanto no tratamento de tradutibilidades e conversões de memórias quanto nas maneiras de operacionalizar biografias de mercadorias e de grupos e pessoas, na medida em que saberes, fazeres e artefatos são enquadrados no estatuto jurídico de bens e serviços culturais que se desterritorializam e se relocalizam. Os contornos do problema se ampliam (e complicam) por se considerar as repercussões dessas traduções/ conversões no plano afetivo das agências humanas, sejam elas produtoras e/ou consumidoras. Algumas das espacialidades urbanas são empirias cada vez relevantes. São palcos citadinos onde as insurgências de novas territorialidades socioculturais dão plasticidade aos processos nos quais os disparos de reflexividades práticas e/ou discursivas, correlatos à visibilidade das identidades e estimas, contracenam com a estilização das paisagens urbanas atravessadas pelo gerenciamento promovido pelos mecanismos do entretenimento-turístico (MELÉ, 1998, pp.11-26; OLIVEIRA, 2006; VICENTE, 2009; BOLÁN, 2000, pp.115-142; CANCLINI, 2012, pp. 65-98).
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Para um autor à maneira de Geertz (1989, pp. 45-66), a cultura consiste em propriedade da condição antropológica, porque lhe caberia um papel crucial na evolução mesma da espécie humana em sua propensão para simbolizar, fomentando sentidos aos seus destinos e significados aos seus atos. Formulações assim esquecem apenas do grau de síntese de conhecimentos e experiências contidas em noções europeias como as de “cultura”, “tempo”, “espaço”, entre tantas outras com igual teor de abstração. Da perspectiva sociogenética, para a qual as sociedades humanas têm se espalhado continuamente na amplitude física (ELIAS, 1998, pp. 58-59), essas sínteses traduzem a experiência vivida da consciência, mas envolvem encontros culturais e civilizacionais, empréstimos, confrontos, espoliações e aniquilamentos. Por séculos, as formas de vida humanas estiveram tão dispersas quanto múltiplos e diferentes tipos de unidades sociais de sobrevivência existiram. A afirmação mundial da ideia de cultura se deu no compasso da expansão colonial e imperial da Europa, mas igualmente participando a dinâmica histórica em que os Estados centralizados e a autorregulação econômica das trocas se impuseram como uma díade de alcance planetário, em particular após o século XX (WILLIAMS, 2011; FARIAS, 2014a, pp. 54-76). A síntese conceitual promovida pela categoria de cultura concretiza a divisão sociofuncional encerrada na separação dos exercícios intelectuais dos demais (que estão relacionados diretamente com a reprodução da vida biológica); temos o advento da instituição religiosa como o fato seminal desta operação em que se aparta a esfera da produção dos significados do conjunto das experiências (FAUERBACH, 1997; MARX; ENGELS, 1974, p. 56), sobretudo naquelas instituições que promovem éticas enfatizando a sistematização dos atos em favor de um sentido transnatural da existência. A esfera da cultura compõe o caudal da intelectualização e racionalização da vida humana e mesmo da totalidade cósmica, as quais passaram a estar sob o juízo e a guarda do espírito enquanto ente não redutível à brevidade móvel do empírico (WEBER, 2006, pp.41-69; pp. 251-318). Tais processos guardam certa proximidade com a assertiva de Durkheim (1989), ao reiterar a separação entre sagrado e profano e consagrar ao âmbito religioso as funções não rebaixadas à utilidade e mesquinharias cotidianas, o que reforça a concepção de uma fronteira devotada ao sentido.
Muitos autores, entre os quais Roberto Calasso (2004, pp.119-137), defendem o argumento de que o percurso que leva da antecedência da religião sobre o plano da produção de sentido até a autonomia do espaço laico da simbolização está referido ao movimento em que o estético irá paulatinamente se apartando da função de instrumento para outros fins e se tornando um fim em si mesmo. Atendo-se à presença dos deuses da antiguidade clássica na obra de autores como Nietzsche, Benn, Mallarmé e, em especial, Hölderlin, segundo Calasso (2004), a evocação da beleza por ela mesma teve por palco histórico a Europa do século XVIII, em que o postulado de uma “literatura absoluta” motivou a intervenção de artistas e pensadores em favor da liberdade criativa. Para Calasso (2004), a aurora da modernidade se desenha nesta atitude. Sabemos como a teia recíproca composta pela cultura subjetiva do Ocidente, o desenvolvimento da imprensa como tecnologia de reprodução simbólica, a sedimentação da mídia livro e a alfabetização em larga escala posta em marcha, principalmente no final do século XIX e estendida ao XX, da Europa norte-ocidental para diferentes regiões do planeta, foi decisiva para a consolidação desta autonomia relativa do campo cultural, em especial do lado interno à sua fronteira erudita.
Se a dinâmica histórica do advento e da evolução artístico-institucional de especialização da cultura se define, portanto, pelo cruzamento entre economia, autonomização da técnica e estética, nas condições contemporâneas, o mesmo entrelaçamento se manifesta em outro patamar de integração das relações sociais, ou seja, compondo as malhas e circuitos em que a transversalidade da questão cultural vaza fronteiras geopolíticas e de estratificações sociais, ao mesmo tempo em que consegue atravessar e repor fronteiras. Com isso, mantendo sua condição de espaço de simbolização, ocorre o deslocamento da questão cultural, porque ela deixa a aliança com o Estado-Nação, em contrapartida se institui um negócio do ócio e perpassa por aquelas fórmulas de governança que são intrínsecas ao campo de poder global, em que as corporações empresariais transnacionais ocupam destacado papel. Desvela-se, desse modo, à pesquisa e às reflexões sociológicas outras possibilidades históricas e sociossimbólicas à produção de subjetividades, mas igualmente à exteriorização e à objetivação de estimas e sentimentos. Na mesma medida, é preciso sublinhar a intercessão da produção e usos culturais com esquemas de comodificação cujas facetas são igualmente múltiplas, alcançam planos tão distintos do contexto planetário e deixam por desafio ao exame sociológico a busca de alternativas na conceituação dos modos contemporâneo de controle, coordenação e regulação dos cursos de condutas humanas.