Resumo: Este artigo apresenta uma discussão sobre o “estado da arte” do tema do Grupo de Trabalho “Reconhecimento, justiça e desigualdade”, que teve sua primeira edição realizada no 18º Congresso Brasileiro de Sociologia, em Brasília, no ano de 2017. Na primeira parte, tentamos imaginar novas aproximações e confrontos entre os três principais expoentes desta discussão: Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser. Na segunda parte, apresentamos brevemente alguns avanços deste debate no cenário latino-americano. Na terceira parte, reconstruímos algumas repercussões e apropriações no ambiente acadêmico brasileiro, com ênfase na obra de três autores: Jessé Souza, Josué Pereira da Silva e Céli Pinto. Na conclusão, procuramos sugerir caminhos para possíveis desdobramentos teóricos e empíricos a partir de uma articulação criativa e inovadora entre os três conceitos.
Palavras-chave:ReconhecimentoReconhecimento,JustiçaJustiça,DesigualdadeDesigualdade,Palavras-chave: Memória Coletiva; Memória Social; Estudos sobre MemóriaPalavras-chave: Memória Coletiva; Memória Social; Estudos sobre Memória.
Abstract: This article presents a discussion about the “state of the art” of the theme of the Working Group “Recognition, Justice and Inequality”, which had its first edition held at the 18th Brazilian Congress of Sociology in Brasilia in 2017. In the first part, we tried to imagine new approaches and confrontations between the three main exponents of this discussion: Charles Taylor, Axel Honneth and Nancy Fraser. In the second part, we briefly present some advances of this debate in the Latin American scenario. In the third part, we reconstruct some repercussions and appropriations in the Brazilian academic environment, with emphasis on the work of three authors: Jessé Souza, Josué Pereira da Silva and Céli Pinto. In conclusion, we try to suggest ways for possible theoretical and empirical developments from a creative and innovative articulation between the three concepts.
Keywords: Recognition, Justice, Inequality.
Artigos
Reconhecimento, justiça e desigualdade: uma agenda de pesquisa
Recognition, justice and inequality: A research diary
Recepção: 04 Setembro 2017
Aprovação: 20 Outubro 2017
Reconhecimento, justiça e desigualdade são três conceitos bastante conhecidos no cenário acadêmico brasileiro, o que reflete sua presença e importância na teoria sociológica contemporânea. As possibilidades de renovação teórica e, consequentemente, de realização de pesquisas empíricas criadas por uma articulação crítica entre eles, entretanto, é algo que ainda carece de desenvolvimento. A proposta do GT intitulado “Reconhecimento, justiça e desigualdade”, cuja primeira edição se realiza no 18º Congresso Brasileiro de Sociologia, em Brasília, no ano de 2017, é resultado de nossa preocupação em criar um fórum de discussão que possibilite esta articulação.[1]
Uma articulação inovadora, nesta direção, precisa imaginar possibilidades teóricas, a partir de realidades empíricas, nas quais os três conceitos não sejam apenas uma mera soma de palavras. Juntos, eles devem criar novos caminhos para a teoria social e para a compreensão da multiplicidade de desigualdades e injustiças produzidas e vividas nas sociedades atuais. Para tanto, precisamos compreender como cada um deles surge em nosso contexto acadêmico, atentando para suas possibilidades e limites, tanto teóricos quanto metodológicos, o que nos permitirá a busca de uma aproximação crítica entre os mesmos.
Reconhecimento. O conceito de reconhecimento se torna conhecido entre nós principalmente através das obras de Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser. Em um contexto global que se conforma a partir dos anos de 1970, presenciamos algumas alterações fundamentais tanto na economia quanto na moralidade e nos aspectos simbólicos do capitalismo, o que permite o surgimento de movimentos sociais diversos e, consequentemente, a evidência de questões pós-materialistas e identitárias. Neste cenário, a teoria do reconhecimento procura compreender tanto questões materiais quanto imateriais, variando aqui a ênfase dada pelos autores em cada um destes aspectos da realidade.
No geral, podemos dizer que a teoria do reconhecimento hoje se apresenta como um instrumento analítico indispensável para se pensar a desigualdade e as diversas formas de injustiça derivadas da negação do reconhecimento em suas distintas configurações: na “indignidade” das relações e situações de trabalho, na legitimação e naturalização da desigualdade entre as classes, nas expressões contemporâneas do racismo e nos conflitos étnicos, nas novas configurações das desigualdades de gênero e nas demandas por reconhecimento de minorias diversas como, por exemplo, pessoas portadoras de necessidades especiais. Os males da negação do reconhecimento podem ser claramente vistos nas consequências jurídicas, institucionais e identitárias que as privações morais proporcionam nestas distintas esferas de ação.
Não gostaríamos de assumir uma noção unilateral de reconhecimento, vinculada especificamente a algum dos autores. Na busca de pintar um breve “estado da arte” do tema em questão, podemos dizer, inspirados diretamente nos três principais autores aos quais nos referimos, que o reconhecimento é uma necessidade humana vital dos modernos, que só pode se concretizar em relações intersubjetivas. Com isso, cada indivíduo, que compartilha da cultura moderna, precisa provar para sua sociedade que é capaz de alguma realização pessoal, que seja reconhecida ao mesmo tempo como produtiva e autêntica. A obra de Charles Taylor é incisiva para a compreensão deste fenômeno. Em seu livro de maior impacto, As fontes do self (TAYLOR, 1997), ele procura reconstruir uma genealogia da identidade moderna, o que permite compreender como os ideais de “interioridade” e “expressivismo” dominam os indivíduos nas sociedades atuais e impõem a estes a necessidade de reconhecimento por alguma realização própria e especial. Também as noções de “liberdade” (que mais tarde estará no centro das preocupações de Axel Honneth), de “individualidade” (que, ao lado da noção de liberdade, lembra muito a obra de Simmel, ainda que este não seja sua referência explícita central) e de “um indivíduo que se percebe mergulhado na natureza” compõem a identidade ocidental moderna, para Taylor.
A centralidade destes princípios na conformação de nossas “fontes morais” permite a Taylor compreender o indivíduo moderno como dotado de “profundezas interiores”, o que nos confere a noção de que somos um self (TAYLOR, 1997, p. 10). Posteriormente, em seu conhecido artigo “A política do reconhecimento” (TAYLOR, 2000), ele se debruça especificamente sobre o tema, se tornando com isso uma referência para os estudos culturais e multiculturais. Uma de suas motivações centrais neste texto é a observação de casos empíricos de lutas por reconhecimento, como os movimentos políticos nacionalistas, a busca de grupos minoritários e “subalternos” por evidência, algumas modalidades de feminismo, bem como a própria política do multiculturalismo. Com isso, Taylor “politiza” a questão do reconhecimento[2], notando sua íntima relação com a formação da identidade, definindo esta como uma compreensão de quem somos e modeladora de nossas características fundamentais como indivíduos. Por isso, a negação do reconhecimento pode causar danos irreversíveis e se sistematizar como opressão, aprisionando pessoas em formas de ser falsas, distorcidas e redutoras (TAYLOR, 2000).
Por fim, em seu posterior livro A ética da autenticidade (TAYLOR, 2011), nosso autor retoma algumas teses anteriores e avança em aspectos fundamentais. Agora, ele deixa mais claro como se estabelece, no Ocidente, um horizonte moral, ou seja, um estágio posterior de “boa vida” onde gostaríamos de chegar, mas que se distorce de seu ideal, na modernidade. Este ideal se baseia principalmente na noção de autenticidade (diferente de Honneth, que atribuirá ao princípio da liberdade esta função), que significa nossa necessidade intrínseca de, dialogicamente na sociedade, receber o reconhecimento alheio pela realização de alguma tarefa única e especial. O fato de não conseguirmos isso na prática (pois essa é a grande questão) nos aprisiona em formas distorcidas deste ideal, causando três mal-estares na modernidade: o individualismo, a primazia da razão-instrumental e as consequências de ambos para a vida política[3].
Reconhecimento e justiça. A preocupação com algum conceito ou alguma teoria da justiça não é central na obra de Charles Taylor, ainda que, indiretamente e especialmente em seu artigo A política do reconhecimento, ele contribua para isso. Em contrapartida, um esboço de uma teoria da justiça social encontra lugar na obra de Honneth desde o seu livro A luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (HONNETH, 2003). Nesta obra, bastante conhecida e discutida, Honneth avança sociologicamente em aspectos decisivos com uma teoria do reconhecimento, permitindo a articulação entre reconhecimento e justiça.[4] O caminho para tanto se encontra na principal contribuição do livro para a teoria crítica contemporânea: sua identificação de três padrões de reconhecimento intersubjetivo (amor, direito e solidariedade), aos quais correspondem, em situações de negação de reconhecimento em cada uma daquelas dimensões da ação social, respectivamente três formas de desrespeito (violação, privação de direitos e degradação).
Esta preocupação com formas de desrespeito, o que para ele equivale a formas de injustiça[5], é um primeiro passo importante para a construção de uma teoria da justiça social. Baseado na teoria da eticidade de Hegel e na psicologia social de Georg Herbert Mead, Honneth consegue “sociologizar” a teoria do reconhecimento, se comparado com Taylor, percebendo os padrões de reconhecimento e suas correspondentes formas de desrespeito sendo reproduzidos diretamente na própria interação social. Na sequência, a publicação de importantes artigos, como Paradoxes of capitalism (2006), com Martin Hartman, e Trabalho e reconhecimento (2008), mostra a preocupação crescente de Honneth com a normatividade do mercado sobre a vida social e, consequentemente, com o sofrimento imposto aos oprimidos. A partir disso, surge a necessidade de uma teoria normativa e “interna” à sociedade, ou seja, que reconstrua e articule “de dentro” da própria sociedade os seus “sentimentos de injustiça”.
Posteriormente, em sua obra magna, seu livro O direito da liberdade (2015), Honneth leva a cabo a tarefa de construção sistemática de uma teoria da justiça. Lançando mão de um método que ele mesmo constrói e denomina como “reconstrução normativa”, Honneth refaz seu esquema anterior das “três esferas de ação”, identificando agora as dimensões do “nós das relações pessoais”, do “nós do agir em economia de mercado” e do “nós da formação da vontade democrática”, como sendo as esferas de interação nas quais a “liberdade social” poderia ou não se realizar. Para alcançar este objetivo final, ele primeiro precisou identificar a liberdade como o princípio central do Ocidente que, no centro de nossas relações éticas, estrutura toda a vida social. Ele identifica assim três ideais de liberdade no pensamento ocidental: a liberdade negativa e sua construção contratual, que emerge principalmente da obra de Hobbes; a liberdade reflexiva e sua concepção de justiça, que se encontra principalmente no pensamento de Rousseau e Kant; e, por fim, a ideia de liberdade social e sua eticidade, que Honneth vai retirar principalmente de Hegel, para quem a ideia de liberdade pressupõe o princípio do “reconhecimento recíproco” (HONNETH, 2015, p. 85). Com isso, ele pode sedimentar seu argumento central: compreender a justiça social nas sociedades modernas é algo que pressupõe o entendimento dos limites da liberdade social, que pode se realizar ou não dentro de cada uma das três esferas de interação. Mesmo que haja alguma realização dentro destas esferas, ela será parcial, ou seja, é preciso ocorrer a realização da liberdade individual dentro das três esferas para o alcance pleno da liberdade social. Assim, indivíduos que não se sentem livres, realizados e reconhecidos nestas três dimensões fundamentais da vida contemporânea não se sentirão aptos, capazes e motivados para interagir eticamente na construção de uma sociedade justa.
Com isso, Honneth constrói uma teoria da justiça que é, ao mesmo tempo, moral e intersubjetiva e que não pode prescindir do fato de que a luta por reconhecimento é o motor dos conflitos sociais e um fator central da coesão social nas sociedades modernas. Não por acaso, ele vai recuperar, principalmente das obras de Hegel e de Durkheim, passando por valiosas contribuições de Polanyi e Parsons, a ideia de uma divisão do trabalho moral que, em princípio, poderia gerar reconhecimento, integração e cooperação social entre parceiros iguais e que se consideram como tais. O fato de que o mercado, atualmente, se reproduz sem limites institucionais e morais gera um estado de anomia nas sociedades contemporâneas; como consequência, verifica-se a não realização da liberdade social que seria possível nesta esfera, pensando com Hegel e Durkheim, caso todos os indivíduos envolvidos nas trocas econômicas do mercado se reconhecessem como de igual valor, em suas atividades laborais, para a reprodução e o bem-estar da sociedade.
Em suma, se pensarmos na esfera do trabalho como central para a reprodução da vida social e se a compreendermos precedida por uma interação ética que atribui valor diferencial às ocupações, produzindo assim uma “hierarquia moral do trabalho”, poderemos então entender como estamos produzindo normativamente e eticamente padrões de injustiça social através da negação objetiva do reconhecimento do valor intrínseco de inúmeras ocupações. Esta é uma das principais contribuições de Axel Honneth para a teoria crítica contemporânea, ou seja: a construção de uma teoria da justiça social “interna” à sociedade, articulando seus “sentimentos de injustiça” e transformando-os em uma linguagem aceita pela ética discursiva do espaço público. O argumento ampara-se necessariamente em uma teoria do reconhecimento que explica a produção ética do valor diferencial das ocupações no mercado de trabalho das sociedades modernas.
Reconhecimento, justiça e desigualdade. Como já podemos imaginar, a teoria da “justiça como reconhecimento” de Honneth pavimenta o caminho para uma compreensão ética e não economicista da desigualdade. O ponto em questão é: como nós, enquanto sociedade composta por indivíduos reflexivos, “produzimos” a desigualdade, exatamente ao mesmo tempo em que buscamos a liberdade (Honneth) e a autenticidade (Taylor)? Em grande medida, a resposta antecipada por Honneth seria que, ao produzirmos padrões de desrespeito e de injustiça, o que é sinônimo de negação de reconhecimento do valor de atributos específicos intrínsecos a cada pessoa, estamos construindo a desigualdade. Curiosamente, nem Honneth nem Taylor se empenham explicitamente em prol de uma “teoria crítica da desigualdade”, ainda que indiretamente abram atalhos para tanto e que ambos recorram, em vários momentos de sua construção teórica, ao pensamento de Rousseau, referência indispensável para qualquer teoria sobre a desigualdade moderna.
Em contrapartida, encontramos na obra de Nancy Fraser uma tentativa explícita de articulação teórica entre os conceitos de reconhecimento, justiça e desigualdade. Em sua polêmica discussão com Honneth sobre a relação entre redistribuição e reconhecimento, ela expressa sua preocupação com uma noção socialmente viável de justiça. Sua crítica a Honneth consiste basicamente no fato de que este teria reduzido todo o problema ao primado do reconhecimento sobre a redistribuição, de modo que precisássemos imaginar um estágio moral posterior das sociedades atuais, no qual alcançaríamos um patamar maior de reconhecimento do valor intrínseco das características de um número maior de pessoas. A autora parece estar preocupada com um enfrentamento mais imediato da questão e, por isso, procura “refazer o dilema redistribuição-reconhecimento” nas sociedades atuais.
Para tanto, Fraser busca não ignorar simplesmente o “problema das identidades”, mas recolocá-lo, de modo a desenvolver uma teoria crítica do reconhecimento que identifique e defenda apenas versões da política cultural da diferença que possam, por sua vez, ser coerentemente combinadas com uma “política social da igualdade” (FRASER, 2001, p. 246). As perguntas decisivas nesta direção seriam: em que circunstâncias uma política de reconhecimento pode apoiar uma política de redistribuição? Quando é provável que a enfraqueça? Qual das variedades de política da identidade mais se adéqua a lutas por igualdade social? (FRASER, 2001, p. 247).
O enfrentamento destas questões exige duas concepções de injustiça, que conduzem a duas formas de desigualdade, descritíveis analiticamente, mas que na prática funcionam juntas. A primeira é a injustiça “socioeconômica”, enraizada na estrutura político-econômica da sociedade, para Fraser. Exemplos desta forma de injustiça incluem a “exploração”, a “marginalização econômica” e a “privação” (FRASER, 2001, p. 249). Vários teóricos igualitários como Marx, John Rawls, Amartya Sen e Ronald Dworkin oferecem contribuições decisivas nesta direção. A segunda compreensão de injustiça, para nossa autora, é “cultural ou simbólica”, para a qual a injustiça estaria arraigada a padrões sociais de “representação, interpretação e comunicação”. Exemplos incluem a “dominação cultural”, o “não-reconhecimento” e o “desrespeito” (FRASER, 2001, p. 250). As obras de Taylor e Honneth são as principais referências para esta noção de injustiça e suas consequentes formas de desigualdade. Com isso, Fraser afirma que, longe de ocuparem esferas separadas, a injustiça econômica e a injustiça cultural estão normalmente imbricadas em uma relação dialética de reforço mútuo.
Para enfrentar concretamente o citado dilema, Fraser nos remete a situações reais de pessoas que são duplamente afetadas pelas duas formas de injustiça assim definidas. Para tanto, ela recorre ao conceito de “coletividades bivalentes” (FRASER, 2001, p. 254), de modo a pensar especialmente em formas de desigualdade e injustiça derivadas de situações de gênero e racismo. Sua construção é extremamente interessante para nossos presentes objetivos, ainda que seja bastante problemática. Seu esquema inicial, muito bem organizado, parece de imediato dar conta da relação empírica entre reconhecimento e redistribuição, o que teria sido explicitamente menosprezado por Honneth e passa longe da obra de Taylor. Senão, vejamos. Lembrando que o objetivo deste texto é, sobretudo, pensar em uma agenda de pesquisa, prestemos agora atenção na forma especial com a qual a autora enfrenta os problemas de gênero, raça e classe (guardemos este último, por enquanto), temas estes centrais e ainda de fundamental importância para pensar o Brasil.
Gênero, para Fraser, tem dimensões político-econômicas porque é um princípio estruturador da economia política, condicionando a divisão fundamental entre “trabalho produtivo” assalariado e “trabalho reprodutivo” e doméstico não assalariado, designando a mulher inicialmente para o segundo. Por outro lado, o gênero também é uma diferenciação cultural-valorativa, o que o relaciona diretamente à problemática do reconhecimento. Nestes termos, as diferenças materiais e simbólicas de gênero condicionam uma “coletividade bivalente” emblemática. Superar esta condição requer tanto redistribuição quanto reconhecimento. Entretanto, o problema não é tão simples. Os dois tipos de “remédios” que a autora identifica para cada um destes problemas se contradizem e não são facilmente perseguidos simultaneamente. Segundo ela mesma, “onde a lógica da redistribuição é eliminar as diferenças de gênero, a lógica do reconhecimento é valorizar a especificidade do gênero” (FRASER, 2001, p. 262).
Em trabalhos posteriores, pensando a partir dos avanços do movimento feminista internacional, Fraser (2007; 2008) desenvolveu um esquema tridimensional para pensar a injustiça de gênero. Neste, além da injustiça distributiva e da injustiça derivada da desigualdade social de status, ela acrescenta a dimensão da injustiça política, que a permite tematizar o problema da representação. As injustiças que se forjaram com a sua negação são de ordem: a) econômica; b) cultural; c) política. Segundo a autora, uma ontologia social tridimensional por si só não seria suficiente, assim, necessitava-se de um princípio normativo geral, que, segundo a autora, poderia ser o de “paridade de participação”. Conforme esse princípio, portanto, a justiça requer estruturas que possam permitir a todos os sujeitos participarem como pares na vida social.
Seguindo a discussão no âmbito da contraposição entre reconhecimento e redistribuição, base do nosso argumento, pode-se dizer que o mesmo ocorre com a questão da “raça” que, segundo a autora, também constitui atualmente uma “coletividade bivalente” emblemática. Por um lado, a raça atua como um princípio estruturante da economia política, influenciando na divisão capitalista do trabalho. Ela divide os assalariados entre ocupações mal pagas, sujas, domésticas, operadas por pessoas “de cor” e ocupações técnicas, administrativas, white colar, de maior status e bem remuneradas, dominadas por “brancos” (FRASER, 2001, p. 262). Por outro lado, a “raça” também possui aspectos cultural-valorativos, o que a associa também ao universo do reconhecimento. Um aspecto central do racismo, nesta direção, é o eurocentrismo, ou seja, a construção arbitrária de normas que privilegiam traços associados ao fato de ser “branco”.
Mais uma vez, o combate à ambivalência do problema é complexo, pois o enfrentamento na dimensão socioeconômica exige a tematização da condição de universalidade dos trabalhadores negros, que devem ser portadores de direitos universais, como qualquer etnia, enquanto que o enfrentamento do problema da negação do reconhecimento em sentido sociocultural exige o reconhecimento da diferença, ou seja, a valorização da especificidade de ser “negro”. Assim, a combinação entre os dois “remédios”, ou seja, redistribuição e reconhecimento, é necessária, porém, muitas vezes contraditória na prática.
Curiosamente, a forma como Fraser percebe as classes sociais difere de sua interpretação sobre o gênero e a raça como coletividades bivalentes. Para ela, a classe não é uma “coletividade menosprezada” em sentido sociocultural, mas apenas um agrupamento socioeconômico. Este é um aspecto fundamental desta discussão, se quisermos enfrentar o problema da desigualdade em sua totalidade. Aqui, apesar de todo o seu empenho crítico, Fraser parece reproduzir um dos principais paradigmas conservadores dominantes de nosso tempo, ou seja, aquele que declara o fim da centralidade das classes sociais e, consequentemente, do trabalho como categorias analíticas para se compreender a reprodução social e a construção da desigualdade.
Gostaríamos de levantar aqui a hipótese de que as classes sociais podem ser pensadas também como “coletividades bivalentes”, ou seja, como agrupamentos sociais socioeconômicos e socioculturais. Podemos, inclusive, considerar que este é um aspecto decisivo para uma compreensão crítica sobre a desigualdade atual e isso tanto nas sociedades ditas centrais quanto nas periféricas ou semiperiféricas. Podemos levantar esta possibilidade, como exercício teórico e imaginativo, a partir da própria obra de Fraser. Para ela, o principal aspecto sociocultural do gênero é o “androcentrismo”, enquanto que no caso da “raça”, trata-se de “eurocentrismo”.
No caso da classe, talvez um certo “racionalismo” que, em nosso imaginário ocidental, atribuímos às classes dominantes, seja o aspecto principal de nosso “classismo” sociocultural. Este “racionalismo de classe” parece ser o que, no centro de nossa hierarquia moral, atribui o valor de “nobres” às classes dominantes e de “vulgares” às classes populares (BOURDIEU, 2007), ao que corresponderá a realização do trabalho “intelectual”, digno e bem remunerado pelas primeiras, e do trabalho “braçal”, indigno e mal remunerado pelas últimas. A percepção desta dimensão sociocultural da classe, assim, parece fundamental para uma reconstrução normativa acerca do valor diferencial das ocupações, como sugere Honneth. Com isso, o enfrentamento do tripé gênero-raça-classe, enquanto coletividades bivalentes, pode ser um bom ponto de partida para uma agenda de pesquisa sobre reconhecimento, justiça e desigualdade.
No geral, o diagnóstico de Fraser é claro: no panorama atual, vivemos muito mais uma situação de “afirmação” do que de “transformação” da realidade, tanto no que diz respeito à redistribuição quanto no que tange ao reconhecimento. No primeiro caso, a situação afirmativa é típica do Estado de bem-estar liberal: realocações superficiais de bens existentes apoiam diferenciação entre grupos e podem gerar não-reconhecimento. No segundo, o multiculturalismo dominante se resume a realocações superficiais de respeito às identidades de grupos e, assim, apoia a diferenciação entre eles. Em contrapartida, a autora tenta imaginar um cenário de “transformação”. Por um lado, um socialismo de fato exigiria uma reestruturação profunda das relações de produção, eliminando diferenciações entre grupos e podendo ajudar a curar algumas formas de não-reconhecimento. Por outro lado, a transformação exigiria uma “desconstrução”, o que significaria uma reestruturação profunda das relações de reconhecimento, desestabilizando diferenciações entre grupos (FRASER, 2001, p. 273).
Com isso, se retornarmos aos diagnósticos de Taylor e Honneth, veremos que Fraser está mais próxima deles do que pode parecer à primeira vista, pelo menos no que diz respeito à sua imaginação quanto ao futuro[6]. Sua “transformação” no plano da redistribuição, ou seja, um socialismo que altere de fato as relações de produção, não pode abrir mão de uma “reconstrução normativa” do valor das ocupações, como poderíamos dizer a partir de Honneth. Sem a tematização de que cada ocupação e, consequentemente, cada pessoa possui um valor em si, intrínseco, para a reprodução da sociedade, o que significaria romper com as noções vigentes de trabalho produtivo e improdutivo, uma reestruturação produtiva socialista ficaria dependendo unicamente de voluntarismo político, algo pouco provável no mundo atual. Em complemento, uma reconstrução normativa sobre a hierarquia moral do trabalho exige a revisão e a ruptura radical com o horizonte moral do Ocidente que, para Taylor, impõe a busca por autenticidade e reconhecimento, ou seja, exigiria romper com esta busca incessante e irrealizável. Esta “revisão moral” de nossos acordos, que no fim das contas são o que define como a vida econômica se monta e que Taylor (1997) conceitua como uma “articulação” de nossos horizontes morais inarticulados, apresenta grandes afinidades com a ideia de “desconstrução” no plano do reconhecimento, defendida por Fraser.
Essa discussão entre reconhecimento, justiça e desigualdade constitui ainda uma agenda aberta de pesquisa e de proposições e tem repercutido de maneira fecunda, seja no panorama latinoamericano, seja mais especificamente no Brasil, contextos nos quais as questões acerca da desigualdade e das injustiças sociais se impõem de maneira especialmente importante, se comparados aos contextos de origem das teorias do reconhecimento. Isso é o que procuraremos mostrar agora nas partes seguintes.
Na América Latina, esta discussão é mobilizada em uma gama ampla de temas relacionados à interpretação da realidade social e política, tais como:
a) justiça, democracia e o acesso de grupos subordinados ou subalternos à esfera pública e ao espaço público; b) justiça e análise das políticas sociais no que se refere ao combate das patologias sociais; c) desigualdades sociais, globalização e pobreza. Neste artigo, destacamos alguns autores e algumas autoras que se tornaram referência na área nos últimos anos, entre eles Delfín Ignacio Grueso e Franklin Ernesto Ibáñez.
Os estudos realizados por Delfín Ignacio Grueso, na Colômbia, mobilizam de forma interdisciplinar as teorias do reconhecimento e da justiça, através do tema da globalização e da justiça para as identidades culturais, enfatizando a discussão da dimensão política da justiça. Na obra Tres modos de involucrar el reconocimiento, Grueso (2008) debate as perspectivas teóricas de Taylor, Honneth e Young, propondo pensar de que maneira o conceito de justiça mudou a partir da introdução da ideia de reconhecimento no seu campo conceitual. Retomando a obra de Young, o autor ressalta que as teorias deveriam se apropriar da justiça como termo político central, sem esquecer assim que o conceito de justiça coincidiria com o conceito do político. Para o autor, o debate não aconteceu ainda adequadamente, pois a teoria política moderna teria restringido o alcance da justiça às questões apenas de redistribuição (GRUESO, 2008). Assim, levanta a possibilidade de ampliar a articulação da justiça entre os autores, avaliando:
[...] cómo la reflexión moral sobre la justicia logra conservar, pese a su tránsito por la diferencia (Young) o por las condiciones de realización de la subjetividad (Honneth), el carácter estrictamente político y reconstitutivo de la justicia política: el de ocuparse de la vida común y de la igualitaria inserción de todos y todas en esa vida común. (GRUESO, 2008, p. 23)
Em outro de seus textos, Teoría crítica, justicia y metafilosofía: la validación de la filosofía política en Nancy Fraser y Axel Honneth, do ano de 2012, Grueso continua suas reflexões nesse mesmo sentido, demonstrando como o reconhecimento está implicado nos conflitos e demandas políticas. Grueso (2012) contrasta as teorias de Young, Fraser e Honneth, a fim de refletir o potencial crítico dos teóricos, já que se localizariam no campo da teoria crítica, diferentemente de outros teóricos da justiça, tais como Rawls, segundo o autor. Ao traçar o debate entre Honneth e Fraser, foco principal do artigo, Grueso disserta que esta estabelece sua filosofia dentro da política, sem ignorar o caráter desestabilizante do político. A autora buscaria assegurar a voz para todos os sujeitos na vida compartilhada, como a participação nos processos de atualização dos direitos e nos processos de remoção de injustiças (GRUESO, 2012). Já a teoria social de Honneth descansaria sobre uma teoria de raiz científica, o que, segundo o autor, seria considerado para Fraser uma postura alheia à natureza política da filosofia política.
Franklin Ernesto Ibáñez, no Peru, investiga a articulação entre desigualdade, globalização e justiça. Duas obras do autor sobressaem-se em relação ao tema: Pensar la justicia social hoy: Nancy Fraser y la reconstrucción del concepto de justicia en la era global (2004) e Globalización, justicia y pobreza: una aproximación filosófica en debate con John Rawls (2016). Nesta segunda, Ibáñez (2016) reflete sobre a pobreza como um dos problemas morais e políticos mais agudos que afrontam a humanidade atualmente. O autor defende, assim, que a justiça distributiva global é um dever inescusável e contra-argumenta Rawls quanto à participação dos Estados no plano internacional da justiça. Ao analisar a obra de Fraser, em resenha à obra Escalas de Justiça (2010), o autor define a teoria tridimensional de justiça de Fraser como uma confrontação à forma como entendíamos justiça até há pouco tempo.
Encontramos ainda outros debates destacados, os quais fogem ao alcance deste artigo: no Chile, os debates das desigualdades e do feminismo estão atrelados, como podemos ver na discussão realizada por Claudia Moura (2013). No Uruguai, o grupo “Ética, justiça e economia” (Universidad de la República), principalmente a partir da autora Ana Carolina Fascioli Alvarez (2011), problematiza temas como as patologias sociais, humilhação e tensões entre pobreza e liberdade. No México, entre outros países, através da autora Miriam Mesquita Sampaio de Madureira (2010), de nacionalidade brasileira, investigam-se o reconhecimento e a filosofia ocidental.
De maneira geral, é possível discutir a pertinência, a abrangência ou a adaptabilidade da teoria do reconhecimento às realidades distintas das do Hemisfério Norte, a partir de três pontos principais: 1) a associação a parâmetros cívicos europeus e americanos, sobre os quais são construídas as normatividades analisadas pelos três autores; 2) as dificuldades de operacionalização teórico-metodológica do seu sistema conceitual em estudos empíricos (exceção feita à obra de Fraser); e 3) a concepção individualista da autonomia/liberdade/autenticidade e as suas implicações sobre o entendimento do papel da ação coletiva na luta pelo reconhecimento. A simples importação de parâmetros das sociedades desenvolvidas do Hemisfério Norte para pensar questões de reconhecimento, que já supõem um acordo normativo de base, é problemática para se pensar a sociedade brasileira, dadas as dimensões da nossa desigualdade. Igualmente, o parâmetro da sociedade salarial como o desejável já demonstra limites até mesmo para as sociedades que a conheceram, quanto mais para o caso brasileiro em que a sociedade salarial sempre serviu de modelo, mas jamais se concretizou empiricamente.
Lançando mão da teoria do reconhecimento, autores brasileiros logram ultrapassar essas críticas e reverter tais dificuldades. Optamos como exemplos três deles: Jessé Souza, Josué Pereira da Silva e Céli Pinto. O primeiro tematiza a especificidade da naturalização da desigualdade de classes entre nós mais pela ideia de self do que de reconhecimento; o segundo avança na relação entre trabalho, cidadania e reconhecimento, introduzindo nessa discussão a questão da renda básica; e a terceira analisa as manifestações de rua de 2013 à luz das teorias do reconhecimento, conforme será explicitado a seguir.
Jessé Souza (2003; 2004; 2006) toma para sua análise a noção de self de Taylor (1997) no sentido de assumir que os indivíduos são dotados de “profundezas interiores” capazes de realizar distinções qualitativas que estão articuladas e enraizadas numa identidade que remete à compreensão de si e serve de orientação para a inserção no mundo. Tal orientação, assim, encontra-se intimamente atrelada aos valores morais a que a sua comunidade adere. Reconhecimento e identidade aparecem como associados no self, na medida em que o autor busca a configuração valorativa no racionalismo ocidental que estabelece uma hierarquia valorativa nas formas de reconhecimento. Segundo o argumento do autor, se faz necessária:
(...) a discussão acerca dos princípios que regulam a nossa atribuição de respeito e deferência, isto é, a atribuição de reconhecimento social como base da noção moderna de cidadania jurídica e política. A localização e a explicitação desses princípios podem ajudar a identificar os mecanismos que operam de maneira opaca e implícita na distinção social entre classes e grupos distintos. (SOUZA, 2004, p.63).
A tese de Jessé Souza centra-se na naturalização da desigualdade social e da vida cotidiana. Se é o trabalho “útil, produtivo e disciplinado” que mede o valor relativo de cada indivíduo nas sociedades modernas capitalistas, faz-se necessário um princípio único capaz de avaliar a posição social de cada um. Esse princípio único e consensual, chamado de “ideologia do desempenho” (SOUZA, 2006), funciona como uma forma de legitimação da desigualdade naturalizada e não transparente, de maneira que sua injustiça não seja claramente percebida. As instituições por excelência dessa ideologia seriam o mercado e o Estado. A naturalização da vida e da desigualdade brasileira repousaria, assim, não na aludida histórica pessoalidade aqui reinante, mas sim na eficácia de valores e instituições modernas importados “de fora para dentro” e que servem à impessoalidade dos valores modernos.
Ao contrário das explicações a respeito da desigualdade brasileira que repousam sobre o “economicismo”, ou seja, creditam a desigualdade à diferença de renda e seus corolários, o autor sustenta que a reprodução da desigualdade é atravessada por fundamentos não econômicos, tais como ausência de autoestima, de reconhecimento social e de aprendizado familiar de papéis sociais fundamentais. Esse processo de aprendizado cultural e político a respeito da falta de reconhecimento provoca um processo de naturalização da inferioridade que a faz parecer justificável e, em certa medida, merecida.
Josué Pereira da Silva (2009; 2016), por sua vez, mobiliza a discussão do par reconhecimento-redistribuição proposto por Nancy Fraser, a teoria do reconhecimento de Honneth e os aportes de Boaventura dos Santos – que fogem ao escopo desse artigo e não serão aqui evocados - para pensar o programa de transferência de renda Bolsa Família. A questão das condicionalidades do programa coloca em xeque seu caráter de política emancipatória. Numa clara articulação entre teoria e objeto empírico, o autor analisa o Bolsa Família em suas limitações e ambivalências ao contrapô-lo a uma política de renda mínima em que todos teriam direito pela sua condição igualitária de serem cidadãos.
Seguindo Fraser, se a noção de reconhecimento serve de base para políticas de identidade baseadas na ideia de reconhecimento das diferenças, urge uma agenda de igualdade que seria contemplada pelo reconhecimento, mas também pela distribuição e paridade de participação. Essa tríade seria verdadeiramente emancipatória. A demanda por igualdade, mesmo com a importância do reconhecimento das diferenças, remeteria à instituição de uma renda básica incondicional de caráter universalista, proposição essa compartilhada por Silva.
O autor segue o argumento de Fraser de que as lutas por reconhecimento da virada do século - estas lutas nas décadas de 70 e 80 pareciam estar carregadas de promessas emancipatórias na luta por identidades até então negadas – se distanciaram do ideal de emancipação de duas maneiras: 1) pela “ambivalência do conceito de reconhecimento como identidade, [que] abre a possibilidade da luta pela afirmação não só de identidades defensáveis num contexto democrático, mas também de identidades reificadas, essencializadas, com traços fundamentalistas”[7] (SILVA, 2009, p. 201, colchetes nossos); 2) pelo abandono das demandas de igualdade que se afastam dos princípios universalistas do Estado de bem-estar e adentram nas políticas sociais do tipo workfare: uma sociedade baseada na legitimidade do trabalho em que as políticas sociais são meios operacionais para devolver o quanto antes os beneficiários à condição de contribuintes. Fraser propõe a renda básica incondicional e universalista por seu viés mais claramente “emancipatório e transformativo”.
Já Axel Honneth constrói sua teoria da emancipação com base no paradigma do reconhecimento, mesmo os conflitos distributivos estariam regidos por um modelo de reconhecimento institucionalizado. Os três princípios que regem a justiça social – amor, igualdade de direito e mérito – servem de base para pensar a igualdade legal (incondicional), mas também a desigualdade pelo mérito (condicional). Pensada à luz dessa proposição, segundo Silva (2009), Honneth contempla uma possibilidade de renda mínima universal pelo lado da igualdade legal e pelo pertencimento a uma comunidade, por outro abre a porta às condicionalidades propiciadas pelas diferenças de mérito que se tornam restritivas e ferem a autonomia dos beneficiários (SILVA, 2016). Tais restrições, independentemente de quão bem façam concretamente aos beneficiários – como frequentar a escola – e isso por estarmos tratando aqui de uma discussão de princípios, tornam a política do Bolsa Família um
Meio de controle dos beneficiários de uma renda, vista como transferida por quem tem poder e dinheiro àqueles que não têm nenhum dos dois, como se fosse uma doação ou favor dos primeiros aos segundos, os benefícios distribuídos adquirem um sentido diverso de um direito de cidadania; tornam-se, então, estigmatizantes e contribuem para baixar a estima das pessoas ao invés de elevá-la. (SILVA, 2009, p. 204).
A condicionalidade unilateral é imposta pelos mais fortes aos mais fracos e é vista como um dom ou doação dos primeiros. Os benefícios deixam de ser um direito de cidadania e se tornam estigmatizantes, contribuindo para baixar a autoestima quando seu propósito seria o de elevá-la. Silva conclui que os programas sociais, especialmente os de transferência de renda, devem tratar os benefícios como direitos de cidadania; sendo esses as únicas condições em questão, a emancipação “deve, portanto, significar o fim das condicionalidades e não o seu reforço” (SILVA, 2009, p.214).
Céli Pinto (2016) busca as teorias do reconhecimento de Fraser e Honneth – e também de Judith Butler, que não é objeto do nosso artigo - como instrumental para a análise das manifestações de rua ocorridas no Brasil em junho de 2013. Seria aqui mais um exemplo de aplicação das teorias do reconhecimento – a autora faz questão de usar o plural dada a diversidade de abordagens entre os três autores – a um objeto/caso empírico. Embora a conclusão encaminhe a pertinência maior da abordagem de Butler para análise em questão, a argumentação quanto à aplicabilidade dos argumentos de Fraser e Honneth servem perfeitamente ao nosso propósito de refletir sobre as possibilidades e limites da teoria do reconhecimento para a análise da realidade brasileira.
Pinto descreve os grupos envolvidos, grosso modo, como sendo de dois tipos: um minoritário identificado como militantes dos movimentos historicamente já envolvidos em manifestações; e outro majoritário e inédito, constituído por um conjunto de manifestantes individualizados e sem histórico militante em manifestações.
No que se refere à teoria de Fraser, a autora argumenta sua limitação dada a sua impossibilidade de explicar essa massa de pessoas que foram às ruas negar a política e marcar sua diferença em relação aos políticos institucionalizados. A natureza individualizada e atomizada desses manifestantes era constitutiva do grupo. Não se tratava nem de luta por redistribuição nem por participação paritária. Não há lugar na teoria de Fraser para os “não políticos” e, mesmo que pontualmente haja luta por redistribuição (passe livre), não se tratava tampouco de uma luta por participação política pelas vias reconhecidas.
Pinto argumenta que Honneth avança em relação ao dualismo material-simbólico presente em Fraser. E ainda mais, resgata o papel do indivíduo autônomo e historicizado: “pensá-lo [o indivíduo] como ente desprovido de classe, gênero, sexo, etnia, história seria um erro primário, mas apagá-lo, imergindo-o em uma categoria de natureza coletiva, seria um erro da mesma sorte” (PINTO, 2016, p. 1078). No caso das manifestações de rua de 2013, a já explicitada natureza individualizada e atomizada dos seus participantes parece ser objeto propício para uma análise a partir da categoria de autorreconhecimento, pelo simples fato de sujeitos autônomos integrarem uma multidão nas ruas e não poderem ser categorizados segundo modelos conhecidos dos movimentos sociais. Nesse sentido, a autora afirma acerca da teoria do reconhecimento de Honneth que
Essa teoria não declarada do sujeito, através do autorreconhecimento em três esferas distintas, abre perspectivas para se examinar a fragmentação do sujeito, da qual são bons exemplos os manifestantes nas ruas das cidades brasileiras em 2013. É bastante razoável afirmar que, se algo havia naquelas manifestações, era a luta por reconhecimento, não obstante muito peculiar, pois buscava um reconhecimento como indivíduos não políticos, não identitários e, portanto, reivindicando uma espécie de pureza, se autoidentificando como não tocados pelo poder ou pela corrupção. (PINTO, 2016, p.1079)
No entanto, essa tendência de enaltecer o potencial analítico da teoria de Honneth para análise desse fenômeno empírico se esvai quando a autora, a partir da crítica de Bader (2007 apud PINTO, 2016), introduz a questão das lutas por reconhecimento que não se dirigem à justiça ou à “vida boa”, mas se destinam a preservar privilégios ameaçados. O sujeito atomizado dessas manifestações não tem uma proposta de uma sociedade melhor, mas luta pelo reconhecimento de sua existência fora da política. Trata-se da luta pelo reconhecimento da negação do “outro” político sem articulação a qualquer forma de coletivo organizado ou institucionalizado. Poderíamos aqui acrescentar que esta análise do sujeito atomizado se aproxima da compreensão de Taylor (2011) sobre a distorção cultural contemporânea da ética da autenticidade, sendo o individualismo exacerbado e narcísico, guiado por concepções relativistas do mundo, uma das principais formas de mal-estar contemporâneas que se refletem na vida política.
Em suma, Fraser não contempla os que não se inserem num campo propriamente político, Honneth tematiza o sujeito, mas não contempla a problematização de como pensar as lutas por reconhecimento que não são propriamente justas por não serem libertárias, mas por persistirem em privilégios. E assim conclui a autora:
Quais as consequências dessas manifestações pensando a partir da perspectiva de lutas por reconhecimento? As possibilidades estão abertas, três parecem mais prováveis: a continuidade da dispersão e a confluência de demandas legítimas e ilegítimas por reconhecimento; a possibilidade de lutas por reconhecimento a partir de coalizões abertas mais ou menos estruturadas conforme o momento na perspectiva trabalhada por Butler; a continuidade e mesmo o reforço de grupos organizados, já reconhecidos como tal, como diria Honneth, que tiveram grande visibilidade durante os eventos. Nada, entretanto, indica que o Junho de 2013 tinha potencial para provocar mudanças a partir da mobilização de sujeitos que buscavam uma nova forma de pacto social ou político ou econômico. Para isso, a luta por reconhecimento teria de ser outra. (PINTO, 2016, p.1088).
Nesses três exemplos de autores brasileiros, é possível vislumbrar o esforço bem-sucedido de estabelecer a difícil articulação entre uma teoria de alto poder de abstração e a análise de realidades/objetos/fenômenos empíricos. Igualmente é de se salientar as possibilidades variadas de filiação a uma ou outra abordagem - ou partes delas – das teorias do reconhecimento, conforme sua pertinência na articulação analítica com o objeto em questão, de maneira a suplantar o argumento da superioridade de uma abordagem teórica sobre outra. Todas elas são capazes de importantes contribuições à compreensão das diferentes facetas da realidade, colocando em xeque uma concepção universalizante da teoria.
Assim, a teoria do reconhecimento tem um importante papel normativo para se pensar a justiça social em qualquer sociedade na medida em que aponta para a sociedade que desejamos ter. Coloca em relevo temas que ganham importância nas sociedades contemporâneas, tais como reconhecimento, justiça, igualdade, identidade e diferença.
Para uma agenda de pesquisa sobre reconhecimento, justiça e desigualdade, argumentamos pela articulação entre teoria e realidade empírica, o que implica em evitar a teoria como erudição ou puro exercício metateórico. Para tanto, é preciso criar dimensões intermediárias que permitam simultaneamente a operacionalização da teoria e a reflexão teórica da empiria, o que no “uso” da teoria do reconhecimento tem se mostrado rico, mas também problemático. Um caminho para tanto pode ser a realização de pesquisas com marcos empíricos articulados à atualidade de temas como a democracia e a multiplicidade de formas de desigualdade e injustiça, tal qual demonstrado nos exemplos escolhidos e aqui explicitados. Além disso, faz-se mister refletir sobre o fato de que o que temos predominante entre nós, hoje ainda, é mais a produção de brasileiros sobre o tema do reconhecimento do que uma produção de brasileiros sobre o Brasil e a especificidade de suas questões, a partir da articulação entre reconhecimento, justiça e desigualdade.
Já os desafios de articulação entre teoria e realidade empírica, em um cenário ampliado para a relação América Latina e mundo, nos remetem às reflexões contemporâneas de Fraser (2007; 2008) sobre a justiça transnacional. Ao considerarmos a justiça, o reconhecimento e a desigualdade em um cenário global, forja-se a urgência de produzirmos estudos que se perguntem quais seriam as condições econômicas, culturais e políticas que permitiriam aos tão diversos grupos de nossa região acessar a esfera pública para pautarem as suas demandas por justiça. Além disso, ponderando a injusta divisão internacional do trabalho entre países ditos centrais e periféricos, fazem-se necessárias pesquisas que averiguem como os povos e grupos latino-americanos poderiam disputar, em arenas internacionais, o reconhecimento, a redistribuição e a representação.
Diante deste panorama, podemos dizer que as possibilidades de pesquisa teórica e empírica, nesta direção, são fecundas e promissoras, tanto no Brasil quanto na América Latina, marcados historicamente por uma multiplicidade de desigualdades e injustiças. O capitalismo contemporâneo, globalizado, se reproduz através de uma reestruturação produtiva induzida e permanente, que impõe novos padrões de reconhecimento e critérios seletivos cada vez mais excludentes. Nesta direção, os autores que aqui mobilizamos e discutimos, apenas parcialmente na intenção de levantar uma agenda de pesquisa, nos fornecem de imediato algumas ferramentas analíticas plenamente mobilizáveis para se pensar a nossa realidade de forma dinâmica, sem que precisemos nos filiar a alguma corrente ou assumir algum posicionamento unilateral. A teoria sociológica amparada solidamente na pesquisa empírica de qualidade precisa ser multidimensional, assim como o é a realidade.
A diversidade de objetos empíricos contidos nas propostas de comunicação que recebemos para a primeira edição do GT, em 2017, atesta bem esta afirmação. Dentre elas, podemos destacar pesquisas sobre: o trabalho doméstico, a questão da dignidade do trabalhador terceirizado, a descartabilidade do profissional do telemarketing, as contradições e dificuldades do Bolsa Família, a questão das comunidades quilombolas, a relação entre reconhecimento e educação, o problema da acessibilidade e do reconhecimento de portadores de necessidades especiais, bem como o problema crucial do direito à justiça social transitando em vários destes objetos. Diante de tamanha diversidade, só nos resta dizer que a articulação criativa entre os conceitos de reconhecimento, justiça e desigualdade pode ser um interessante caminho para novos desdobramentos teóricos e empíricos no Brasil e na América Latina.