Artigos
As origens pós-graduação nacional (1960-1980)
The origins of the national graduate system
As origens pós-graduação nacional (1960-1980)
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 6, núm. 13, pp. 9-26, 2018
Sociedade Brasileira de Sociologia
Recepção: 09 Dezembro 2017
Aprovação: 15 Março 2018
Resumo: O artigo retraça a trajetória da criação institucional da pós-graduação que ocorreu no Brasil a partir de meados de 1960. Destaca a participação da comunidade científica neste processo que, desde a década de 1920, buscava introduzir a pesquisa na universidade brasileira. Assinala que a formalização legal da pós-graduação ocorreu no contexto da Reforma Universitária promulgada pelo governo militar então vigente. Ressalta que a pós-graduação nacional desde o seu início foi objeto de uma planificação do Estado que criou Planos Nacionais de Pós-Graduação para o seu desenvolvimento. O artigo sublinha que a pós-graduação constitui-se num instrumento fundamental de modernização do ensino superior no país, alterando profundamente a sua fisionomia e forma de ser. Através dela, instalou-se uma competência acadêmica por todo o país e, na sua esteira, ocorreu também o processo de institucionalização da pesquisa no interior de determinadas universidades.
Palavras-chave: ensino superior brasileiro, participação da comunidade científica nacional, criação da pós-graduação nacional, reforma universitária de 1968, introdução da pesquisa na universidade, planos nacionais de pós-graduação.
Abstract: The article traces the trajectory of the institutional creation of the post-graduation that occurred in Brazil from the middle of 1960. It emphasizes the participation of the scientific community in this process from the decade of 1920 sought to introduce the research in the Brazilian university. It points out that the legal formalization of the postgraduate course occurred in the context of the University Reform promulgated by the military government. It emphasizes that the national graduate since its inception was the object of a state planning that created National Postgraduate Plans for its development. The article emphasizes that post-graduation has been a fundamental instrument for the modernization of higher education in the country, profoundly altering its physiognomy and way of being. Through it, an academic competence was established throughout the country and, in its wake, the process of institutionalization of research in certain universities took place.
Keywords: higher education in Brazil, participation of the national scientific community, creation of the national postgraduate, university reform of 1968, introduction of research in the university, national postgraduate plans.
Introdução
Uma constelação de fenômenos sociais, econômicos, políticos e acadêmicos contribuiu para a formação da pós-graduação no país. Ainda que a pós-graduação no país tenha iniciado a adquirir uma demarcação legal a partir do final dos anos 1960, diversas iniciativas visando sua criação antecedem a este período. A sua construção derivou de um complexo empreendimento coletivo que contou com a participação do Estado, de organismos representativos da comunidade científica, do corpo docente das instituições de ensino e pesquisa envolvidas com esse nível de ensino. De certa forma, a emergência da pós-graduação é o resultado de uma longa e tortuosa luta desencadeada por esses atores visando a superação de um padrão de organização do ensino superior no país que historicamente se constituíra através de escolas isoladas, voltadas basicamente para a formação de profissionais liberais e dissociadas da atividade de pesquisa.
O ensino superior brasileiro constitui um fenômeno tardio quando comparado com outros sistemas nacionais na América Latina. As instituições de ensino superior no Brasil foram criadas somente no início do século XIX e tinham o propósito de fornecer quadros profissionais para desempenhar diferentes funções ocupacionais na Corte[1]. No final do Império, o país contava com apenas seis escolas superiores. Em 1900, não existiam mais que 24 escolas de ensino superior. Até o início da década de 1930, o sistema era constituído por um conjunto de escolas de cunho profissionalizante, divorciadas da investigação científica, atividade essa que era realizada nos Institutos de pesquisa, que, em geral, possuíam tênues laços com o sistema de ensino superior existente. Até esse momento, o país não contava com nenhuma universidade institucionalizada.
Os Institutos de pesquisa criados, o que ocorreu entre o final do século XIX e início do século XX, encontravam-se isolados das instituições de ensino[2]. Na esteira desse movimento, iniciou-se nos anos 20 uma série de manifestações visando a criação de universidades capazes de promover a pesquisa. A Sociedade Brasileira de Ciência, criada em 1916 e que veio transformar-se na Academia Brasileira de Ciências em 1922, e a Associação Brasileira de Educação, criada em 1924, tiveram um papel fundamental nesse movimento em prol da criação de universidades no país. Em 1932, é lançado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, recomendando também a criação de universidades capazes de integrar as atividades de ensino e a pesquisa[3].
Essas manifestações visando a renovação do ensino superior começaram a dar os seus primeiros resultados em meados da década de trinta, quando são criadas as primeiras universidades institucionalizadas no país. Nesse sentido, em 1934, ocorreu a criação da Universidade de São Paulo e, em 1935, a Universidade do Distrito Federal, esta última de curta vida. Embora estas tentativas tenham tido sucesso parcial, naquele momento, representaram referências fundamentais para experiências posteriores, visando o processo de renovação do ensino superior e, particularmente, para a integração das atividades de ensino e pesquisa[4].
A criação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 1948, expressava o crescimento da atividade científica no país e exerceria, a partir de então, uma importante função na organização dos interesses do campo científico. Nos anos 1950 e 1960, a SBPC discutiu de forma recorrente, seja através de sua revista Ciência e Cultura ou em seus encontros anuais, a necessidade de realização de mudanças no ensino superior, transformando-se num ator estratégico na luta pela reforma universitária. A SBPC constituiu um dos espaços privilegiados de concepção da futura Universidade de Brasília, à qual atribuía-se uma elevada expectativa na renovação do ensino superior[5].
Pouco tempo depois, em 1951, ocorreria a criação de dois organismos que constituiriam um divisor de águas no processo de institucionalização da pesquisa no país: o Conselho Nacional de Pesquisas, CNPq (atualmente Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), e a Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal Nível Superior, a CAPES (atualmente Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). O CNPq, que posteriormente desempenharia um papel fundamental na construção da pós-graduação nacional, foi criado a partir da convergência de interesses de técnicos do governo e militares e do segmento da comunidade científica nacional. Os seus objetivos iniciais eram responder pelas atividades na área de energia nuclear e promover a capacitação científica e tecnológica nacional[6]. A origem da CAPES remonta à formação de uma comissão para promover a Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, presidida pelo então Ministro da Educação e coordenada por Anísio Teixeira por mais de doze anos, até 1963, quando este assumiu a reitoria da UNB.
Segundo levantamentos realizados, ocorreu nessa época uma grande movimentação de envio de estudantes brasileiros para o exterior. Entre 1953 a 1959, o fluxo médio anual de estudantes que se deslocaram para o exterior girava em torno de 1.200 pessoas, cifra essa que deve ser vista com cautela, uma vez que os dados estatísticos para o período não são fidedignos e provavelmente tal número abrangia uma grande variedade de tipos de formação, compreendendo desde estágios profissionais, participação em cursos de especialização e/ou aperfeiçoamento, realização de mestrado ou doutorado. A CAPES, o CNPq bem como determinadas agências internacionais estiveram na condução desse processo intensivo de capacitação docente. No final dos anos 1950, muitos desses estudantes e docentes estavam de volta ao país e nos anos subsequentes passariam a assumir uma liderança intelectual e científica nas universidades, atuando ativamente na implantação dos primeiros cursos de mestrado e de doutorado no país[7].
No mesmo período em que ocorria a criação da CAPES, o governo Truman, por razões de estratégia política e motivado pelo contexto da ‘guerra fria’, lançou um programa de cooperação técnica entre os Estados Unidos e a América Latina, denominado Ponto IV, resultando daí vários convênios com universidades e escolas brasileiras, procurando abranger as áreas de administração pública e orçamentária, economia, agricultura, recursos minerais, energia nuclear, transporte e educação. Esse programa de cooperação promoveu a vinda de técnicos e professores americanos ao Brasil para desenvolver cursos de pós-graduação lato sensu e stricto sensu, tal como ocorreu, por exemplo, na Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (atualmente Universidade Federal de Viçosa)[8]. Além disso, concedeu também bolsas de mestrado e de doutorado a inúmeros estudantes brasileiros. Essa iniciativa vinha se juntar com as patrocinadas pela CAPES, CNPq e outras agências internacionais na formação de uma massa crítica que viria posteriormente participar da implantação da pós-graduação no país.
As conseqüências dessas iniciativas começaram a ser perceptíveis. Nesse sentido, inicia-se, no início da década de sessenta, a criação dos primeiros cursos de pós-graduação, próximos de uma modalidade stricto sensu, destacando-se aí, entre outros, a Universidade Federal de Viçosa, que inicia os seus cursos em 1961, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, na época denominada Universidade do Brasil, o Instituto de Tecnológico da Aeronáutica (ITA), a Escola Superior de
Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ-USP). O Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro, criado em 1959, deu origem, em 1963, ao primeiro curso de pós-graduação em Engenharia Química da UFRJ, o qual veio servir de referência para a constituição da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe) da UFRJ[9]. Deve-se destacar também que a Universidade de Brasília, que iniciou as suas atividades em 1962, incluiu também a existência regular e permanente de cursos de pós-graduação, ao lado da introdução de outras significativas inovações acadêmicas no contexto do ensino superior brasileiro, tais como a extinção da cátedra, criação da carreira docente, instituição da estrutura departamental etc.[10].
Os cursos de pós-graduação receberam uma referência explícita na Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1961 (LDB), quando, em seu artigo 69, dispunha que “nos estabelecimentos de ensino superior podem ser ministrados os seguintes cursos: a) de graduação, abertos à matrícula de candidatos que hajam concluído o ciclo colegial ou equivalente e obtido classificação em concurso de habilitação; b) de pós-graduação, abertos à matrícula de candidatos que hajam concluído a graduação e obtido os respectivos diplomas; c) de especialização, aperfeiçoamento e extensão, ou quaisquer outros, a juízo do respectivo instituto de ensino, abertos a candidatos com preparo e os requisitos que vierem a ser exigidos”. Como pode-se perceber, o artigo 69 da LDB de 1961 elaborava uma formulação bastante genérica com relação à pós-graduação deixando aos órgãos acadêmicos competentes as definições necessárias[11].
Paralelamente a aprovação da LDB de 1961, ocorreu também, no final do governo de Juscelino Kubitschek, a criação de várias universidades federais, expressando uma forte presença do Estado no sistema de ensino superior. Na medida em que a federalização de escolas superiores, de uma maneira geral, resultou do processo de aglutinação de instituições isoladas, essas novas universidades não conseguiram, em seus primórdios, articular de maneira orgânica as atividades de ensino e pesquisa. O país dispunha, em 1964, de 35 universidades, a grande maioria delas pertencentes ao setor público. No entanto, o sistema universitário no seu conjunto permanecia sem tradição de pesquisa.
Os primeiros anos da década de 1960 são marcados por um intenso movimento visando a reforma do ensino superior do qual participaram ativamente docentes, pesquisadores e estudantes, visando a modernização do sistema universitário. Em grande medida, esse movimento traduzia as aspirações de cientistas e de jovens pesquisadores que haviam recebido uma formação e treinamento no exterior e desejavam fazer da universidade um locus de produção e disseminação do conhecimento científico, integrando essa atividade com a formação profissional[12].
Com o golpe militar de 1964, a política educacional desenvolvida durante o período autoritário, principalmente em seus primeiros anos, buscou desmobilizar o movimento pela reforma universitária, desmantelando o movimento estudantil bem como controlando coercitivamente as atividades de docentes[13]. Ao lado de um conjunto de medidas repressivas, os responsáveis pela política educacional buscaram também vincular o sistema educacional ao desenvolvimento econômico que passava a ser comandado por uma lógica de crescente internacionalização econômica, processo esse iniciado em décadas anteriores[14]. Nesse sentido, o regime pós-64 implantou um sistema de fomento, procurando adequá-lo ao financiamento do desenvolvimento da ciência e tecnologia, tal como o BNDES, fornecendo auxílio através do Fundo de Desenvolvimento Técnico-Científico (Funtec, criado em 1964) e, posteriormente, a Finep administrando o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT, criado em 1969). Ao ensino superior seria atribuído um papel estratégico no sistema de C&T e no processo de formação de recursos humanos altamente qualificados. Em grande medida, a instalação inicial da pós-graduação que ocorreria logo em seguida seria feita através desse sistema de financiamento[15].
Em 1965, o Ministro da Educação, Suplicy de Lacerda, solicitou ao Conselho Federal de Educação (CFE) uma definição e regulamentação dos cursos de pós-graduação, expressa no artigo 69 da LDB. Segundo o seu entendimento, a pós-graduação deveria estimular não apenas a formação de pesquisadores, mas também assegurar treinamento eficaz e de alto padrão a técnicos e trabalhadores intelectuais para fazer face ao desenvolvimento nacional em todos os setores. O aviso ministerial assinalava que a pós-graduação deveria servir para garantir a elevação dos níveis de qualidade das instituições de ensino já existentes e para atender à possível expansão quantitativa do ensino de terceiro grau, que efetivamente veio a ocorrer nos anos seguintes. Deve-se assinalar também que o Ministro da Educação manifestava claramente a sua preferência pela pós-graduação realizada em dois ciclos sucessivos, equivalentes aos graus de Master e de Doctor, de acordo com o sistema de pós-graduação americana.
A manifestação da Câmara do Ensino Superior através do Parecer 977/65 será de importância fundamental para a construção conceitual dos cursos de pós-graduação e para a própria configuração desse nível de ensino no país. Foi elaborado enquanto uma resposta de uma demanda do governo para a implantação da pós-graduação com vistas a atender às necessidades do desenvolvimento científico e tecnológico.
Tendo como Relator Newton Sucupira, o referido Parecer veio a definir e caracterizar os cursos de pós-graduação. Em seu entendimento, interpretando o espírito da LDB, o artigo 69 da LDB na alínea b, que separou os cursos de pós-graduação dos de especialização, aperfeiçoamento e extensão, teve o mérito de considerar a pós-graduação como categoria própria e distinta. Esse Parecer distinguiu dois tipos de pós-graduação, os cursos de stricto sensu e os de lato sensu. Na primeira categoria, incluiu o mestrado e o doutorado, cujo objetivo seria de natureza acadêmica, de pesquisa e de cultura, tendo como compromisso o avanço do saber. Esses cursos, na medida em que estariam ligados à essência da universidade, deveriam se constituir atividades regulares e permanentes e conferir diplomas de mestre e de doutor, sendo que esse último corresponderia ao nível mais elevado na hierarquia dos cursos superiores. Deve-se assinalar que o Parecer 977/65 foi elaborado com razoável grau de flexibilidade, de modo que os cursos de pós-graduação pudessem passar por variações, em função das particularidades de cada área do conhecimento e da margem de iniciativa das instituições de ensino[16].
A implantação dos cursos de mestrado e de doutorado que viria a ocorrer em seguida seria, em larga medida, moldada pela conceituação de pós-graduação expressa pelo Parecer 977/65 e pelas normas de organização e credenciamento estabelecidas pelo Parecer 77/96 do CFE. Nos primeiros cinco anos de vigência do Parecer 77/69, foram analisados 202 pleitos de credenciamento de cursos, sendo que, destes, 101 foram colocados sob diligência pelo CFE e que a maioria deles era proveniente de instituições com pós-graduação previamente existente e que não se enquadrava nas novas normas estabelecidas pelo CFE[17].
Em 1968, outro documento oficial voltaria a referir-se à pós-graduação. Trata-se do Relatório do Grupo de Trabalho da Reforma Universitária que retoma e reafirma várias passagens do Parecer 977/65, cujo Relator integrou também esse grupo de trabalho[18]. O documento elaborado assinalava que, apesar de certos progressos, a estrutura da universidade brasileira, constituída a partir de um conglomerado de faculdades isoladas e profissionalizantes, era anacrônica e inadequada para atender às necessidades e aos desafios apresentados pelo progresso da ciência e pelas transformações que estavam ocorrendo na conjuntura socioeconômica do país. Salientava com relação aos cursos de pós-graduação que, na universidade moderna, esse nível de estudo constitui a instância em que se desenvolve a pesquisa científica e ocorre a formação dos quadros do magistério. Nesse sentido, sua implantação constituía uma condição básica para transformar a universidade brasileira em um centro criador de ciências, de cultura e de novas técnicas[19].
O Grupo de Trabalho (GT) assinalava também que, na medida em que a pós-graduação deveria ser o lugar por excelência da formação dos docentes mais qualificados academicamente do ensino superior, a sua existência seria fundamental para melhorar os cursos de graduação. Face ao caráter inovador que a pós-graduação deveria ocupar no contexto do ensino superior, o GT destacava a necessidade de se promover uma política nacional de pós-graduação capaz de coordenar os esforços e de mobilizar recursos materiais e humanos para viabilizá-la. A execução dessa política deveria ser de iniciativa e responsabilidade do governo federal em função do volume de recursos necessários e do impacto que se desejava alcançar no contexto do ensino superior no país.
As propostas do GT foram formalizadas na Lei 5540/68 que fixou as normas de organização e funcionamento do ensino superior. Apesar da Reforma Universitária de 1968 ter sido construída num contexto de autoritarismo político, conduzida por uma postura nitidamente refratária a uma participação de atores e instituições diretamente interessados em sua elaboração e implementação, tais como as universidades, institutos de pesquisa e representantes da comunidade científica, deve-se assinalar que determinadas medidas propostas por ela modernizaram certos aspectos do ensino superior do país. Na verdade, ela institucionalizou, através de mecanismos centralizadores, antigas reivindicações que vinham sendo perseguidas por parte da comunidade acadêmica e também pelo movimento estudantil, anseios esses que foram esboçados inicialmente pelos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, e que vinham sendo continuamente (re)atualizados por diferentes atores que buscavam a renovação do ensino superior no país. Nesse sentido, deve-se assinalar, por exemplo, que o GT de 1968 propôs a extinção das cátedras e sua substituição pelos departamentos, assim como a institucionalização da carreira docente, estabelecendo os princípios da indissolubilidade entre o ensino e a pesquisa, bem como a criação da dedicação exclusiva como um de seus componentes fundamentais[20].
Ao regulamentar os cursos de pós-graduação, a Lei 5540/68, em vários de seus artigos, incorporou os princípios e recomendações que encontravam-se contidas no Parecer 977/65. Dessa forma, por exemplo, o artigo 17 separou claramente os cursos de pós-graduação stricto sensu da modalidade dos cursos de especialização e aperfeiçoamento, que foram incluídos na categoria lato sensu. Nessa mesma direção, o artigo 24 fortaleceu o papel legal do Conselho Federal de Educação com relação à regulamentação e supervisão dos cursos de pós-graduação stricto sensu, nos termos propostos pela 16ª conclusão do Parecer 977/65[21].
Tudo leva a crer que a Lei 5540/68 deu um impulso ao crescimento futuro da pós-graduação na medida em que estabelecia, no seu artigo número 31, que a titulação acadêmica seria considerada como um dos critérios principais para ingresso e promoção na carreira docente. Em outro artigo, o de número 36, estipulava também que os programas de aperfeiçoamento de pessoal docente deveriam ser estabelecidos pelas universidades dentro de uma política nacional e regional definida pelo Conselho Federal de Educação e promovida pela CAPES e pelo CNPq. Ou seja, esses dispositivos estabeleceram um elo fundamental entre carreira docente e posse de títulos de mestre e doutor, assinalando a necessidade de uma política nacional de pós-graduação voltada para o aperfeiçoamento de quadros docentes, que deveria ser conduzida por agências de fomento do governo federal.
Se os Pareceres 977/65 e 77/69 tiveram uma importância na definição conceitual e na moldura legal da pós-graduação, os Planos Nacionais de Pós-Graduação (PNPG) constituíram um outro elemento crucial na construção do sistema, imprimindo uma direção para sua consolidação e institucionalização. Através deles realizaram-se diagnósticos sobre a situação da pós-graduação e foi formulado um conjunto de metas e de ações que em grande parte foram cumpridas. É, no contexto da execução desses planos, que a CAPES, que se transfere para Brasília em 1974, se conformaria e fortaleceria enquanto agência de fomento da pós-graduação[22].
Deve-se assinalar que o I PNPG (1975-1979) foi elaborado num momento de abundância de recursos provenientes do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), do qual a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) era a Secretaria Executiva e executora de fomento, sendo a CAPES e o CNPq seus usuários. Esses recursos permitiriam a expansão dos programas de bolsas de estudo e a criação de inúmeros cursos de pós-graduação.
O I PNPG partia da constatação de que o processo de expansão da pós-graduação havia sido até então parcialmente espontâneo, pressionado por motivos conjunturais, e que, a partir daquele momento, deveria se tornar objeto de planejamento estatal, considerando a pós-graduação como subsistema do sistema universitário e este, por sua vez, como parte integrante do sistema educacional. Deveria estar articulado com as políticas de desenvolvimento traçadas pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) bem como pelo II Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PBDCT).
Destacam-se duas questões centrais nesse primeiro plano: o desenvolvimento econômico do país necessitava de recursos humanos de nível superior para alavancar os setores modernos da economia e havia a necessidade de integração das atividades da pós-graduação dentro da própria universidade.A capacitação docente era fundamental na medida em que o ensino superior era considerado um setor de formação de recursos humanos para os demais níveis de ensino e para a sociedade, enquanto que à pós-graduação cabia a formação de recursos humanos para o ensino superior. Também a integração da pós-graduação na universidade era essencial, dado o isolamento e a desarticulação das suas atividades iniciais em função da diversidade de fontes e formas de financiamento, geralmente externos ao orçamento da universidade.
Como o objetivo central era a expansão da pós-graduação visando à capacitação docente das instituições de ensino superior, as metas principais eram o aumento da titulação e das vagas nos cursos de mestrado e de doutorado. Também se ressaltava que, na distribuição regional e setorial dos novos cursos, deveria ser considerado o papel estratégico representado pelas áreas científicas básicas das quais dependeria toda a potencialidade do ensino superior e da produção científica. Para a execução dessas metas, eram propostas a concessão de bolsas de tempo integral para alunos, a criação do Programa Institucional de Capacitação Docente (PICD) e a admissão de docentes, de forma regular e programada, pelas instituições universitárias em função da ampliação da pós-graduação.
A CAPES passou a desempenhar um papel importante na implantação da política de pós-graduação delineada pelo I PNPG, na medida em que assumiu a responsabilidade de organizar o Programa Institucional de Capacitação Docente (PICD), que possuía o objetivo de estimular as instituições de ensino superior a desenvolver seus recursos humanos por meio de cursos de pós-graduação stricto sensu. Esse programa induziu as instituições que desejassem participar a criar uma Pró-Reitoria de Pós-Graduação, que deveria planejar as áreas acadêmicas nas quais pretendia concentrar a formação de seus recursos humanos[23].
O contexto de elaboração e execução do II PNPG (1982-1985) coincide com uma forte crise econômica no país, o que implicou numa retração de recursos de financiamento da pós-graduação. Apenas para se ter uma referência, no ano de 1983, o PIB caiu 5% e a inflação atingiu o patamar de 211%. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico foi esvaziando-se gradativamente, de tal modo que houve um comprometimento da distribuição de recursos que se fazia anteriormente no sistema CAPES/ CNPq/FINEP de tal maneira que, num certo momento, a CAPES passou a não receber mais nenhum recurso proveniente do FNDCT. Nesse sentido, ele distanciou-se da estratégia expansionista do Plano anterior.
O II PNPG foi elaborado em consonância com as orientações do III Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) e do III Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PBDCT). A sua ênfase recai sobre a qualidade do ensino superior e, mais especificamente, da própria pós-graduação. Propõe-se a consolidação da avaliação que já existia desde 1976 e a participação da comunidade científica nas decisões sobre a política de pós-graduação e no processo de avaliação, visando à criação de bases seguras para o desenvolvimento futuro da pós-graduação. A ênfase na qualidade dependeria do aumento gradativo da eficiência e confiabilidade dos sistemas de informação e avaliação do desempenho dos programas de pós-graduação, bem como do estabelecimento de critérios e de mecanismos de avaliação conhecidos e aceitos pela comunidade científica[24].
O segundo problema que o II PNPG pretendia solucionar era a adequação do sistema às necessidades do país, seja em termos de sua produção científica, seja em função do aumento da capacidade tecnológica e produtiva, aparecendo pela primeira vez, no planejamento da pós-graduação, a vinculação com a questão tecnológica e com o setor produtivo. O sistema deveria melhor se dimensionar tendo em vista as especificidades de cada área de conhecimento, os tipos de qualificação requeridos e as necessidades regionais. Além de manifestar uma preocupação com a formação de recursos humanos para o mercado de trabalho não-acadêmico, o II PNPG dava uma certa ênfase nos cursos de pós-graduação lato sensu nas diferentes áreas, com o objetivo de criar alternativas para os alunos e para atender a demanda de mão-de-obra altamente especializada.
A consolidação do processo de avaliação, que, efetivamente, veio a ocorrer e cujo aprimoramento constante passou a ser uma preocupação recorrente dos dirigentes da CAPES, constitui um outro elemento fundamental – ao lado da moldura legal dos Pareceres 977/65 e 77/69, dos Planos nacionais de pós-graduação – na configuração da pós-graduação nacional. Por outro lado, a avaliação conduzida pelas Comissões de Consultores Científicos, portanto pela comunidade científica, permitiu a CAPES assumir, de forma gradativa, uma centralidade na condução da política de pós-graduação nacional[25].
Apesar do progresso na implantação da pós-graduação e do referencial de qualidade por ela estabelecido, o III PNPG (1986-1989), que contou com a participação do Conselho Técnico Científico da CAPES na sua elaboração, alertava também para a necessidade de uma maior articulação entre agências de fomento governamentais com interface à pós-graduação, especialmente CAPES e CNPq. Acrescentava também a necessidade de institucionalização da pesquisa como elemento indissociável da pós-graduação e sua integração ao sistema nacional de ciência e tecnologia. Estabelecia também a universidade como ambiente privilegiado para a produção de conhecimento, enfatizando-se o seu papel no desenvolvimento nacional. Os objetivos desse Plano eram a consolidação e a melhoria do desempenho dos cursos de pós-graduação, a institucionalização da pesquisa nas universidades para assegurar o funcionamento da pós-graduação e a sua integração ao setor produtivo[26].
As ações implementadas pelos PNPGs possibilitaram a construção de um amplo sistema de bolsas no país e no exterior que contribuiu de forma efetiva para a capacitação de docentes e de pesquisadores que atuam no ensino superior do país, bem como para a organização de uma política de auxílio financeiro aos programas de pós-graduação. No bojo das recomendações desses Planos, ocorreu também a implantação e ampliação gradativa das comissões de consultores científicos para avaliar os pleitos das áreas, o que envolveu por parte da CAPES a prática de estabelecer uma consulta à comunidade acadêmica para a sua composição.
O planejamento inicial da pós-graduação, consubstanciado fundamentalmente nos três PNPGs iniciais, permitiu seu crescimento de forma ordenada, ao contrário do que ocorreu com a graduação nacional, que, de forma geral, estruturou-se a partir de uma relação oferta e procura de demanda de acesso ao ensino superior. Os PNPGs continuaram a oferecer um suporte para a expansão da pós-graduação no país. Nessas últimas seis décadas, a pós-graduação tem se constituído o instrumento fundamental de modernização do ensino superior no país, alterando profundamente a sua fisionomia e forma de ser. Através dela, instalou-se uma competência acadêmica por todo o país e, na sua esteira, ocorreu também o processo de institucionalização da pesquisa no interior de determinadas universidades. Não seria incorreto dizer que a pós-graduação, pelos resultados apresentados e pelo seu padrão de qualidade, constitui a dimensão mais exitosa do sistema de ensino no país.
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Notas