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Evidências de uma divisa racial de riquezas no Brasil urbano
Evidences of a racial wealth gap in Brazil
Revista Brasileira de Sociologia, vol. 6, núm. 13, pp. 178-194, 2018
Sociedade Brasileira de Sociologia

Artigos


Recepção: 15 Março 2018

Aprovação: 20 Maio 2018

DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.264

Resumo: Este artigo mostra que há uma diferença na riqueza entre famílias brancas e famílias negras de mesma renda total e renda per capita. Usando dados da PNAD de 2015, mostramos que uma família branca tem maior probabilidade de ter bens como celular, computador, Internet em casa, congelador etc. do que uma família negra de mesma renda. Mostramos também que uma família branca tem maiores possibilidades de ter casa própria e carro, que, se a casa é própria, ela terá em média um maior número de cômodos do que uma família negra de mesma renda. O artigo levanta algumas possíveis explicações para esta divisa racial de riquezas.

Palavras-chave: desigualdade, raças, patrimônio, riqueza.

Abstract: This paper shows that there is a difference regarding wealth between a White and a black family of the same total and per capita income. Using data from the 2015 PNAD we show that a White family has a higher probability of owning goods such as mobilephone, computer, Internet access, freezer, and soon than a black family with the same income. We also show that a White family hás higher probability of owning the house or a car, and that IF they own the house, it Will have on average more rooms that of that a black family with the same income. The paper raises some explanations for this wealth gap.

Keywords: inequality, races; wealth, PNAD.

Introdução

Em 2015, 62% das famílias brancas tinham computador em casa, segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostragem de Domicílios (PNAD), enquanto apenas 37% das famílias negras tinham este bem. Isto não é muito surpreendente dado que a mediana da renda mensal de uma família branca em 2015 era de R$2876,00, enquanto a mediana para uma família negra era de R$1588,00. A diferença de renda entre famílias negras e brancas (ou entre pessoas negras e brancas) é conhecida como a desigualdade de rendas (SILVA, 1985; HENRIQUES, 2001; BAILEY et al., 2013). Assim, é de se esperar que famílias negras, que na média têm menos renda do que famílias brancas, tenham menos bens, em particular computador em casa. Mas este artigo mostrará que, mesmo quando levamos em conta a renda da família (ou a renda per capita), ainda há uma diferença estatisticamente significativa entre a posse de bens de famílias brancas e negras. Ou seja, uma família negra terá menos probabilidade de ter computador em casa do que uma família branca de mesma renda (ou renda per capita). Isto é verdade para bens como carro, posse da casa onde moram, número de cômodos da casa etc.

Há um grande conjunto de artigos que discutem desigualdade entre raças no Brasil, por exemplo, a desigualdade de rendas (SILVA, 1985; HENRIQUES, 2001; BAILEY et al., 2013), a desigualdade quanto a saúde (SANTOS, 2011; BARATA et al., 2007; CHOR; LIMA, 2005; OLIVEIRA, 2002) ou a desigualdade quanto a resultados educacionais (HENRIQUES, 2001; RIBEIRO, 2011).

Pinheiro et al (2009) resume dados recentes sobre as diferenças socioeconômicas entre raças no Brasil, baseado na série histórica dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1993 a 2006. No que se refere à educação, por exemplo, segundo Pinheiro et al (2009), a proporção entre os alunos que deveriam estar matriculados no ensino fundamental e os que efetivamente estavam matriculados (isto é, a taxa de escolarização líquida) era de 95.7% para a população branca, e 94,2% para os negros, em 2006. Para o ensino médio, a taxa é de 58,4% e de 37,4%, respectivamente.

A diferença entre as taxas de escolarização é um resultado “esperado” dada a diferença entre a média ou mediana da renda de brancos e negros. O resultado é “esperado” no sentido de que o leitor pode construir uma teoria que explica a diferença entre as taxas de escolarização baseando-se na diferença de renda, por exemplo, uma vez que, em famílias mais pobres, há uma pressão para o jovem abandonar a escola e ajudar no orçamento familiar, ou ainda ir morar sozinho. Logo, como famílias negras são em média mais pobres do que famílias brancas, é de se esperar que a taxa de escolarização de jovens de famílias negras seja mais baixa. Da mesma forma, resultados sobre a diferença em saúde, em desempenho escolar etc., entre brancos e negros no Brasil, embora penosos, são potencialmente “explicados” pela diferença de renda.

Mas a grande maioria dos artigos anteriormente mencionados para neste ponto quando se mostram as diferenças entre raças no Brasil. Este artigo vai além e mostra que a diferença persiste mesmo quando a diferença de renda é levada em consideração (ou controlada).

1. Estudos de desigualdade controlados por renda no Brasil

Há um número limitado de trabalhos sobre desigualdades raciais no Brasil que analisam as diferenças entre raças controlando-as pela renda ou alguma medida similar.

Hasenblag (1985), usando dados da PNAD de 1976, estuda as diferenças raciais em mobilidade intergeracional, controlando-as não por renda, mas por estrato ocupacional, de trabalhadores rurais não qualificados até profissionais de nível superior e grandes proprietários. O estudo mostra que homens negros nos estratos superiores têm muito menor probabilidade de mobilidade ascendente (ter uma ocupação em um nível superior ao seu pai) do que homens brancos. Hasenblag e Silva (1998) atualizam a pesquisa para os dados da PNAD 1996, que também continha um suplemento sobre mobilidade social. As dificuldades de homens negros de estratos ocupacionais mais altos se mantêm, mas os autores localizam na educação o componente central da desvantagem dos negros – negros de cada um dos estratos têm menos anos de escola que homens brancos de mesma origem. Ribeiro (2006) usa os mesmos dados da PNAD de 1996 para analisar o componente racial da mobilidade social do filho controlando-o pela classe social (e não estrato ocupacional) do pai e chega a conclusões similares de que o componente racial é uma barreira para a ascensão social entre classes sociais mais altas, mas não nas mais baixas.

Santos (2011) estuda as desigualdades de saúde controlando-as pela classe social e baseando-se em dados da PNAD de 2008, em particular no questionário suplementar de autoavaliação do estado de saúde. Quando são incluídas, além da classe social, a renda familiar, a educação e a região, há uma redução de 84% das diferenças raciais na condição de saúde observadas. Ou seja, embora estas variáveis expliquem muito das diferenças encontradas, há ainda um pequeno componente da diferença na saúde da população negra que não é explicado por aquelas variáveis. Uma pessoa branca tem em média uma melhor autoavaliação de saúde do que uma pessoa negra com a mesma renda, escolaridade e que mora na mesma região.

Wainer e Covic (2010) estudam as diferenças raciais de inclusão digital medidas pela presença de computadores e Internet nos domicílios, quando controladas pela renda familiar per capita. O trabalho mostra que há uma diferença para menos de 7 pontos percentuais na probabilidade de uma família negra ter computador em casa em relação a uma família branca de mesma renda familiar per capita. A diferença na probabilidade em ter Internet é de 5 pontos percentuais. O trabalho mostra também que a diferença estatisticamente significativa permanece quando outras variáveis relevantes como presença de criança na família e nível de educação do chefe de família são levadas em consideração. O trabalho usa dados da PNAD de 2000 a 2004 e analisa também as diferenças regionais deste hiato digital racial.

Ribeiro (2011) estuda a desigualdade nos resultados educacionais, incluindo a variável raça como uma das variáveis usadas na análise. O estudo mostra que há pequenas diferenças raciais na probabilidade de alunos completarem as quatro primeiras séries do ensino fundamental, e completarem o ensino secundário, quando outras variáveis são controladas, tais como sexo, residência em região urbana, ocupação do pai e da mãe, educação do pai e da mãe, mãe trabalha fora ou não, riqueza dos pais, estrutura familiar, número de irmãos e tipo de escola.

2. Desigualdade racial de riquezas nos EUA

Embora os contextos raciais no Brasil e nos EUA sejam diferentes (DANIEL, 2007; MARX, 1998), o que leva até a definições diferentes do conceito de raças (TELLES, 2004; TRAVASSOS; WILLIAMS, 2004), a pesquisa em desigualdades raciais nos EUA é relevante a este estudo por causa do conceito de divisa de riquezas (wealth gap) (OLIVER; SHAPIRO, 1997).

Uma área de estudos recentes de desigualdade racial nos EUA centra-se no conceito de patrimônio líquido das famílias. Patrimônio líquido (net worth) é a soma dos bens da família, em particular o valor dos imóveis, o valor de carros, a soma dos depósitos e investimentos, menos as dívidas da família (hipoteca, empréstimos etc.). Por exemplo, um estudo recente da diferença de riquezas entre raças nos EUA (KOCHHAR; FRY; TAYLOR, 2011) revela, em 2009, que a mediana do patrimônio líquido de famílias brancas é de US$113.149,00, enquanto que para famílias negras é de US$5.677,00 (e US$6.325,00 para famílias hispânicas). Note-se que esta diferença é para a população como um todo e não é controlada por renda. Então, assim como no caso da taxa de escolaridade discutido acima, como famílias negras são em média mais pobres do que famílias brancas é de se esperar que a riqueza de famílias negras seja menor que a de famílias brancas. O que torna o fenômeno da divisa de riquezas “surpreendente” (em oposição a “esperado”) é que a mediana da renda anual de uma família branca, em 2009, era de US$51.861,00, enquanto que a de uma família negra era de US$32.584,00 (US CENSUS BUERAU, 2012 – Tabela 690). Ou seja, a diferença de riqueza é quase 20 vezes em favor de famílias brancas, enquanto que é de apenas 1,6 vezes para a renda! A divisa de riqueza nos EUA tem sido explicada por diferentes teorias (OLIVER; SHAPIRO, 1997; BARSKY et al., 2002; KEISTER, 2000; CHOUDHURY, 2001; KABA, 2011; WOLDOFF, 2008).

3. Métodos e dados

Usamos dados da PNAD de 2015. Consideramos que uma família é negra se seus membros se declaram “pretos” ou “pardos”, segundo as categorias raciais do IBGE, e uma família é branca se seus membros se declaram como “brancos.” Note-se que uma família pode ser negra se um membro se declarar como “pardo” e outro “preto”. Nesta pesquisa, portanto, trabalhamos apenas com famílias homogeneamente brancas ou negras. Famílias multirraciais e famílias homogeneamente amarelas e indígenas foram eliminadas da análise.

Esta pesquisa segue a linha de trabalhar com apenas dois grupos raciais, negros e brancos, em que negros são a combinação de pretos e pardos, o que tem sido a metodologia mais comum nas pesquisas raciais brasileiras. Mas estamos cientes das críticas a esta metodologia, principalmente as articuladas por Muniz (2010) e Lessa (2007). O sumário que Muniz (2010, p. 281) faz das pesquisas quantitativas: “A perversidade da abordagem estatística formal é relegar a raça a uma simplicidade dicotômica isenta de complexidades e significados. Brancos de um lado, pretos e pardos de outro, indígenas e amarelos ignorados” descreve de forma quase caricata a metodologia usada neste trabalho.

Nesta pesquisa, consideramos apenas os domicílios que continham uma só família. Desta forma, os bens que nos questionários da PNAD são atribuídos a domicílios, como geladeira, fogão, computadores etc., podem ser atribuídos às famílias analisadas.

Nesta pesquisa, consideramos os seguintes bens: celular, computador, congelador, fogão de 2 ou mais bocas, geladeira, lavadora, televisão colorida e rádio, e se a família possui caro e/ou motocicleta. Também consideramos se a família era dona do imóvel onde mora, o número de cômodos na casa e o valor da prestação do imóvel.

A distribuição dos valores da renda e renda per capita segue aproximadamente uma distribuição lognormal, ou seja, o logaritmo da renda e o da renda per capita seguem uma distribuição normal. Desta forma, para as análises estatísticas, utilizamos o logaritmo da renda e o da renda per capita. Para que possamos aplicar o logaritmo, eliminamos da análise as famílias que declaram ter renda zero.

Finalmente, removemos da análise os domicílios rurais (região censitária 4 ou maior nosdados da PNAD), pois é razoável que famílias vivendo em domicílios rurais tenham menos bens, principalmente bens que precisam de eletricidade. Assim esta pesquisa refere-se apenas a famílias urbanas.

3.1 Variáveis de interesse

Nesta pesquisa, estamos interessados em variáveis que indicam a riqueza de uma família. Neste sentido, usaremos as seguintes variáveis:

  • posse de carro – variável (V2032 da PNAD de 2015) que indica se a família tem ou não pelo menos um carro;

  • posse de motocicleta (V2032);

  • imóvel próprio – se a família possui o imóvel onde mora (esteja ele pago ou não) (V0207 com valores 1 e 2);

  • número de cômodos do imóvel, se próprio (V0205). Esta variável indica o tamanho e, portanto, indiretamente o valor do imóvel próprio;

  • prestação do imóvel – se próprio e ainda pagando (V0209). Esta variável indiretamente indica o valor do imóvel.

  • tecnologias – uma variável que conta a quantidade dos seguintes bens:

    • computador (V0231);

    • telefone celular (V0220);

    • geladeira (V0228);

    • fogão de 2 ou mais bocas (V0221);

    • congelador separado da geladeira (V0229);

    • máquina de lavar roupa (V0230);

    • TV colorida (V0226);

    • rádio (V0225);

Cada variável na lista acima assume valores 0, se não existe o item, ou 1 se existe pelo menos um item no domicílio. A variável tecnologias assume valores de 0 a 8.

Para verificar se há mudanças na divisa de riqueza desses bens recentemente, analisamos de forma similar à PNAD de 2005, que reflete a situação 10 anos antes. A maioria das variáveis usadas na análise da PNAD de 2015 está também disponível na PNAD de 2005, com a exceção da posse de carro e motocicleta. A escolha das variáveis de tecnologia também foi influenciada pela disponibilidade de dados em 2005. Por exemplo, em 2015, a PNAD colhe informações sobre acesso à Internet via banda larga e via celular, posse de televisores de tela plana, mas, em 2005, não há perguntas sobre TV de tela plana e há apenas uma pergunta genérica sobre acesso à Internet de casa (o que não consideramos como equivalente às várias perguntas sobre Internet em 2015). A seleção dos registros e o processamento dos dados de 2005 seguem as mesmas regras definidas acima para os dados de 2015.

3.2 Modelo estatístico

O modelo estatístico usado nesta pesquisa segue de forma geral o esquema de uma regressão linear generalizada:

onde:

  • y é variável de interesse.

  • a1 + a2 * log(ren) + D * raca é o preditor linear, isto é, uma combinação linear das variáveis independentes ou variáveis explicativas. a1, a2 e D são os coeficientes da combinação linear, e as duas variáveis independentes são:

    • ren: renda ou renda per capita da família. Usaremos as duas medidas indicadoras de renda.

    • raca: raça da família, 0 se branca, 1 se negra, segundo a regra descrita acima.

  • g–1 é uma transformação do preditor linear para a variável de interesse. Esta transformação é usualmente chamada de função de média (mean function), e a sua inversa, a transformação g, é chamada de função de ligação (link function). Diferentes funções de transformação geram diferentes regressões. De interesse neste trabalho, são as regressões linear, logística e de Poisson, onde a função g é a função identidade, a função logística (ou logit) e a função logaritmo, respectivamente.

O coeficiente a2 indica como a variável dependente de interesse (na verdade, a função de ligação aplicada à variável de interesse) varia de acordo com a renda (ou renda per capita) da família. Se a2 é positivo, então uma maior renda implica num maior valor para a variável dependente. a2 positivo deve ser o esperado para a grande maioria das variáveis de interesse: quanto maior a renda, mais provável é que a família tenha um carro, que more numa casa com mais cômodos etc.

O coeficiente D (de divisa) é o de maior interesse neste artigo e indica o quanto o fato de a família ser negra modifica o valor da variável de interesse para uma família de mesma renda. Se o coeficiente D é negativo, então há uma diminuição do valor da variável de interesse pelo fato de a família ser negra (já que raca é 1 para uma família negra). Um valor de D negativo que seja (estatisticamente) significantemente diferente de 0 (zero) indica que o efeito da raça é estatisticamente significante e que há uma divisa racial estatisticamente significante para a variável de interesse y, que não pode ser explicada pela diferença de renda (ou renda per capita) das famílias negras. Neste trabalho, reportaremos apenas o valor do coeficiente D e suas estatísticas.

Para as variáveis de interesse que são binárias, por exemplo, se a família possui carro, moto ou se a casa é própria, usaremos a regressão logística. Para variáveis que indicam um número inteiro, como o número de cômodos na casa e a variável tecnologia, usaremos a regressão de Poisson. E, finalmente, para a variável da prestação da casa, usaremos a regressão linear. Mas a variável prestação, como as variáveis de renda e renda per capita, tem uma distribuição aproximadamente lognormal, assim, faremos a regressão linear no logaritmo da prestação.

Para verificar como a divisa na variável de interesse evolui com o tempo, usaremos dados da PNAD de 2015 e 2005, na seguinte formulação estatística:

ou seja, uma regressão que envolve uma nova variável (ano2015) e os termos de interação entre as variáveis independentes anteriores e a nova variável. A variável ano2015 é 1 para os dados de 2015 e 0 para os dados de 2005. Se o coeficiente T (de tempo) na equação acima é negativo e D também é negativo, então a divisa da variável de interesse y está crescendo com o tempo (há uma soma de dois valores negativo em 2015 e apenas um deles em 2005). Se T é positivo e D negativo, então a divisa está decrescendo com o tempo.

Os cálculos estatísticos e de regressão levam em consideração que a PNAD tem uma amostragem complexa (ALBIERI; BIANCHINI, 2015) e foram feitos usando o pacote survey (LUMLEY, 2004) do programa R. O programa de análise dos dados está disponível em https://doi.org/10.6084/m9.figshare.6478529.

4. Resultados

Tabela 1 lista o número total de domicílios da PNAD 2015, o número de domicílios multifamiliares, o número de famílias com renda faltante ou zero, e o número de domicílios na zona rural removidos da análise. A tabela também lista o número final de famílias brancas e negras usado nesta análise.

Tabela 1


Quantidade total de domicílios na PNAD 2015; número de domicílios multi-familiares, número de domicílios com renda faltante, número de domicílios com renda zero e número de domicílios na zona rural removidos desta análise; e número restante de famílias brancas e negras.

PNAD 2015

Tabela 2.


Valor do coeficiente D na equação 1, que indica o tamanho da divisa racial para a variável de interesse.

Regressão indica o tipo de regressão efetuada. Renda per capita indica o valor de D e o erro padrão deste valor quando renda per capita é usada como indicador de renda. Renda total indica o valor de D e o erro padrão quando renda total é usada como indicador de renda. “***” indica que o coeficiente é significante com 99% (p.valor < 0.01).

Dados PNAD 2015 elaborados pelo autor.

Tabela 2 indica a divisa racial para as variáveis de interesse. Todas as variáveis que não a posse de motocicleta são negativas e significativamente diferentes de zero. Isto significa que para todas as variáveis (que não posse de motocicleta) há uma divisa racial onde famílias negras têm menos bens do que uma família branca de mesma renda (renda total ou renda per capita). Ou seja, uma família negra tem menos tecnologia em casa, tem menor probabilidade de ter um carro, tem menor probabilidade de morar numa casa própria, tem menos cômodos na casa e paga uma prestação menor se a casa onde mora é própria, do que uma família branca de mesma renda total ou de mesma renda per capita.

Embora não estejamos medindo diretamente o patrimônio das famílias negras em valores monetários, nossas variáveis são indicativas do patrimônio das famílias, e, por todas as medidas menos posse de motos, há fortes evidências de uma divisa racial de riquezas.

A regressão da variável posse de motocicleta usando a renda per capita é curiosa, porque o coeficiente para a renda per capita (a. na equação 1) é negativo. Ou seja, posse de moto decresce com o aumento da renda per capita, e não apresenta diferença para as raças. Mas, usando renda total como medida de renda, ambos coeficientes são positivos e significativos, ou seja, há um aumento de probabilidade com o aumento da renda total, e famílias negras têm uma maior probabilidade de ter motocicleta.

Tabela 3


Valor da divisa racial para as variáveis de interesse, para famílias brancas e negras com o valor mediano de renda per capita (R$ 858,00 por pessoa) e com o valor mediano de renda total (R$ 2026,00). Carro, moto e casa própria indicam a probabilidade da família ter esse bem. Prestação esta em salários mínimos.

Dados PNAD 2015 elaborados pelo autor.

Até agora usamos apenas o sinal do coeficiente . para analisar o resultado. A magnitude do coeficiente é mais difícil de interpretar, pois ela depende da renda. Tabela 3 mostra as diferenças nas variáveis de interesse para uma família com a renda per capita de R$ 858,00 por pessoa, que é a mediana da renda per capita para a amostra analisada neste trabalho, e para uma família com renda total de R$ 2026,00 (a mediana da renda total da amostra). A tabela mostra que, enquanto uma família branca com a renda per capita mediana tem (em média) quase 7 tecnologias em casa, uma família negra com a mesma renda per capita tem um pouco mais que 6. Uma família branca naquelas condições tem a probabilidade de 56% de ter um carro próprio, enquanto uma família negra nas mesmas condições tem 33% de probabilidade, e assim por diante. De modo geral, a diferença na posse de carro próprio parece ser a mais severa.

Valor do coeficiente T na equação 2, que indica a tendência da divisa racial na variável de interesse. Renda per capita indica o valor de T e o erro padrão deste valor quando renda per capita é usada como indicador de renda. Renda total indica o valor de T e o erro padrão quando renda total é usada como indicador de renda “***” indica a significância do coeficiente é de pelo menos 99% (p-valor < 0.01).

Tabela 4


Valor do coeficiente T na equação 2, que indica a tendência da divisa racial na variável de interesse. Renda per capita indica o valor de T e o erro padrão deste valor quando renda per capita é usada como indicador de renda. Renda total indica o valor de T e o erro padrão quando renda total é usada como indicador de renda “***” indica a significância do coeficiente é de pelo menos 99% (p-valor < 0.01).

Dados PNAD 2015 e 2005 elaborados pelo autor.

Resta a questão se a divisa de riqueza para as variáveis tecnologia, casa própria, número de cômodos e prestação estão aumentando ou não com o tempo. Para tanto, faremos a regressão conjunta dos dados de 2005 e 2015, como descrito na equação 2, e olharemos o coeficiente T. Tabela 4 reporta estes resultados.

Pelos valores da tabela, não é claro se, de forma geral, a divisa está aumentando ou diminuindo. Ela está diminuindo para tecnologias e para a probabilidade de ter casa própria, mas aumentando para as variáveis que indicam o tamanho da casa própria (número de cômodos e valor da prestação). Todos os resultados são significativos, mas isso é de se esperar dado que, com os dados de duas PNADs numa só regressão, qualquer diferença será significativa.

5. Discussão

Nossos resultados mostram que há fortes evidências de uma divisa de riquezas entre famílias brancas e negras de mesma renda (renda per capita e renda total) no Brasil. Os resultados são, ao mesmo tempo, mais fortes e mais fracos do que os resultados similares nos EUA, e até onde sabemos é a primeira vez que tal divisa é mostrada para o Brasil. Os resultados são mais fracos, porque estamos estudando variáveis que são indicativas do patrimônio das famílias, mas não estamos medindo o valor monetário deste patrimônio; são mais fortes, pois nossa análise é controlada pela renda, enquanto resultados americanos são agregados para toda a população.

Resta tentar explicar esta desigualdade. Por que uma família negra teria menos patrimônio do que uma família branca de mesma renda total ou mesma renda per capita?

Primeiro, é preciso afirmar que esta pesquisa não tem condições de responder a esta pergunta, só podemos levantar algumas possibilidades, que devem ser exploradas por outros pesquisadores.

Assim, a primeira explicação possível, e a mais provável na nossa opinião, é a transferência intergeracional, tanto positiva quanto negativa. Na transferência intergeracional positiva, a família recebe da geração anterior - seus pais - bens, heranças, ajudas que contribuem na acumulação do patrimônio. Na transferência negativa, a família atual contribui para a manutenção de seus pais, aumentando as despesas e diminuindo o potencial para a acumulação do patrimônio. Uma geração atrás, as diferenças de renda e patrimônio provavelmente eram ainda maiores que as atuais, e, portanto, é provável que a geração anterior de uma família branca é/tenha sido mais rica do que a geração anterior de uma família negra. Assim, é mais provável que famílias brancas tenham recebido mais doações de seus pais, o que contribuí para a construção do patrimônio. A diferença nas transferências de parentes é a explicação que Oliver e Shapiro (1997) e Shapiro e Kenty-Drane (2005) dão para a divisa de riquezas americana. De uma forma dual, pais mais pobres podem dificultar a acumulação de patrimônio por famílias negras, pois em alguns casos estas famílias precisam sustentar os pais, somando esta despesa na sua despesa mensal.

Outras hipóteses usadas para explicar a divisa de riquezas nos EUA parecem ser menos convincentes para explicar o fenômeno no Brasil. Por exemplo, Keister (2000), Choudhury (2001) e Weller (2009) argumentam que a divisa americana tem um componente importante devido ao acesso diferenciado de famílias negras a serviços financeiros, seja acesso a crédito ou a investimentos com maiores retornos. Não nos parece (mas não temos dados para provar ou refutar essa afirmação) que acesso diferenciado a serviços financeiros seja um fenômeno saliente no Brasil.

Uma outra possível explicação para o fenômeno é que ele não existe. Como dito acima, esta pesquisa avalia variáveis indicativas do patrimônio, mas não o patrimônio diretamente. Um componente do patrimônio que não medimos é a poupança familiar. Se famílias negras têm menos segurança, por exemplo, quanto à permanência num emprego, ou moram em regiões onde a posse de um carro é desvantajosa ou arriscada, onde a posse de tecnologia em casa é arriscada etc., as famílias podem optar por ter mais poupança e menos “coisas”. Assim, uma família negra pode converter uma maior parte da sua renda em poupança e menos nas coisas que medimos (casa, carro, tecnologias). Para demonstrar esta hipótese, seria necessário um estudo sobre diferenças raciais de poupança e investimentos.

Quanto à evolução da divisa de riquezas, há uma potencial explicação para os resultados mostrados na Tabela 4: com o barateamento de bens de tecnologia, é razoável que a divisa de riquezas diminua com o tempo, já que uma proporção menor da renda precisa ser usada para a compra destes equipamentos. O maior acesso à casa própria de famílias negras em 2015 seria o resultado de ações governamentais de casas populares (que, nesta hipótese, estariam beneficiando levemente famílias negras), mas essas casas populares são menores (e, portanto, há um aumento da divisa no número de cômodos) e mais baratas ou subsidiadas (e, portanto, há um aumento na divisa relativa à prestação da casa própria). Não temos como determinar se essa hipótese é verdadeira. Consideramos que a conclusão mais prudente é apenas que há evidências contraditórias em relação à evolução da divisa de riquezas (pelo menos nos 10 anos analisados).

5. Considerações finais

Este trabalho mostrou, pela primeira vez para o Brasil, que há indícios de uma divisa de patrimônio entre famílias brancas e negras quando controlamos pela renda total e renda per capita da família. Neste trabalho, não analisamos o valor monetário do patrimônio das famílias, mas algumas variáveis que indicam este patrimônio, como a presença de bens em casa, a posse da casa, de carro e de motocicleta, o número de cômodos e a prestação da casa. A não ser pela variável posse de motocicleta, todas as variáveis mostram uma desvantagem para famílias negras. Não há evidências fortes de que a desigualdade de patrimônio se modificou nos últimos 10 anos.

Parece-nos que a explicação mais provável para essa divisa é a transferência intergeracional de bens, tanto positiva como negativa. Na transferência positiva, a geração anterior das famílias transfere bens, heranças, etc. para a família, o que contribui na acumulação de patrimônio. Na transferência negativa, a família atual ajuda na manutenção da geração anterior, diminuindo a renda disponível para a construção do patrimônio. Dado que é provável (mas não demonstramos isso) que as diferenças de renda e de patrimônio sejam mais acentuadas para a geração anterior, isto explicaria que famílias negras provavelmente têm uma maior transferência negativa com a geração anterior, enquanto famílias brancas têm provavelmente uma maior transferência positiva. Esta hipótese demonstra concretamente como desigualdades no passado se transferem para o presente.

Agradecimentos

O autor gostaria de agradecer a Christina Sue (Universidade do Colorado) e Salvador Rivas (Universidade de Luxemburgo) por discussões que levaram a escrita deste artigo. O artigo também se beneficiou dos comentários do revisor anônimo. Erros e omissões são de responsabilidade única do autor.

Referências

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