Artigos

Glosa sociológica sobre o filme A Revolução de Maio*

A sociological commentary on the film «The May Revolution»

Mauro Luiz Rovai
Universidade Federal de São Paulo, Brasil

Glosa sociológica sobre o filme A Revolução de Maio*

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 6, núm. 13, pp. 219-239, 2018

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 05 Fevereiro 2018

Aprovação: 19 Maio 2018

Resumo: A proposta deste texto é analisar o filme A Revolução de Maio (Portugal, 1937, direção de António Lopes Ribeiro), pontuando aproximações e afastamentos com relação ao filme italiano Camicia nera (Itália, 1933, direção de Giovacchino Forzano), obra que teria servido de inspiração ao filme português. O objetivo é discutir como estão construídas as imagens de Portugal pacificado, feliz, próspero e seguro sob o Estado Novo, por meio da análise de alguns aspectos formais presentes na composição do filme.

Palavras-chave: Sociologia do Cinema, Análise fílmica, A Revolução de maio (1937).

Abstract: The proposal of this text is to analyze the film The May Revolution (Portugal, 1937, directed by António Lopes Ribeiro), pointing out approximations and separations with the Italian film Black Shirt (Italy, 1933, directed by Giovacchino Forzano), which inspired the Portuguese film. The objective is to discuss how the images of a pacified happy prosperous and safe Portugal were constructed under the Estado Novo, through the analysis of some formal aspects present in the composition of the film.

Keywords: Sociology of Cinema, FilmAnalysis, The May Revolution (1937).

Introdução e metodologia

A proposta deste texto é analisar o filme A Revolução de Maio (Portugal, 1937, direção de António Lopes Ribeiro), pontuando aproximações e afastamentos com relação à produção italiana Camicia nera (Itália, 1933, direção de Giovacchino Forzano), obra que teria inspirado o filme português. A presença de Camicia nera servirá apenas para auxiliar a atingir nosso objetivo precípuo, qual seja, explorar como está construída, em A Revolução de Maio, a ideia de harmonia e completude em Portugal sob o Estado Novo. Em vista disso, os dois principais cuidados metodológicos a serem tomados são: ir ao filme, isto é, trabalhar com os elementos nele presentes depois de efetivamente visioná-lo, para, em seguida, empreender análises que tenham como ponto de partida a própria produção. Tais cuidados nos ajudam a não tomar os filmes apenas pelo que deles foi dito e, simultaneamente, afasta-nos da tentação de encontrar no filme o que era Portugal à época, como se o que víssemos na tela já não fosse uma encenação ou, se preferirmos, “diversas transposições da realidade” (SORLIN, 1985, p. 220).

Não se trata, contudo, de uma análise exaustiva de A Revolução de Maio, exercício que excederia os limites deste texto, mas, sim, de apontamentos analíticos sobre alguns aspectos formais do filme que colaboraram para a construção das imagens de Portugal pacificado, feliz, próspero e seguro sob o Estado Novo. Isso será feito levando em conta a maneira como Lisboa aparece na trama, o modo como as personagens são construídas, algumas das referências mobilizadas pelo diretor (que podem nos remeter a Griffith ou a Eisenstein) e a influência de Camicia nera.

A Revolução de Maio (e, talvez, menos ainda, Camicia nera) não é um filme muito conhecido entre nós[1]. Ambos são também menos conhecidos que as obras de Eisenstein e Vertov, associadas à revolução Russa, e a de Leni Riefenstahl, ao movimento nazista, entre outros. Se ouvimos falar deles, são como peças de propaganda - e não é nosso intuito defender que não o sejam. O que pretendemos é explorar algumas das “zonas de ruptura” (SORLIN, 1985, p. 62), entre os vários elementos de composição do filme (como enquadramentos, ângulos de tomada, sons, diálogos, os vários recursos textuais etc.), de modo a identificar como a ideia de completude e harmonia está construída em consonância com um estado policial, ideia que um revolucionário de esquerda está disposto a abraçar, como vemos na produção de 1937.

Em breve comentário a respeito do problema que envolvia as periodizações, Sorlin mencionava o cinema no fascismo. Para o autor, no século XX, sobretudo no período dos anos de 1930, fossem “totalitários ou liberais”, os estados se interessaram pelo cinema e viram nele um elemento político importante, investindo na realização de obras de propaganda. Isso não significa, contudo, que os filmes da era fascista - e a referência principal do autor, nesse ponto da sua discussão, é a Itália sob Mussolini - fizessem com que as produções do período também o fossem. “Evidentemente, nos filmes italianos ou alemães dos anos 1938 – 1942 encontram-se alusões, frases, tipos humanos que dão a impressão de que o poder emitiu ordens precisas, mas um estudo atento mostrará que a tomada, a montagem e a construção não evoluíram” (SORLIN, 1985, pp. 212-213).

Em filmes como A Revolução de Maio, por exemplo, além da clara encomenda do poder e mais do que alusões, temos a liderança política presente na tela – como também encontramos em Camicia nera e O triunfo da vontade – para ficarmos em apenas um dos espectros ideológicos. No entanto, tais presenças são construídas de maneiras diferentes, mobilizando padrões expressivos diversos. Em outros termos, mesmo com “ordens precisas” do poder a respeito dos temas de sua conveniência (na forma de texto escrito), estas passam por várias transposições quando construídas e organizadas no tempo e no movimento de determinada produção.

Em vista disso, nossa discussão não passará pelos filmes como produtos de propaganda encomendados pelo poder. Antes, nosso interesse é estudar como em um desses produtos, A Revolução de Maio, está construída uma “encenação do universo social”, dando particular atenção ao modo como ali aparece organizada “esta encenação” (SORLIN, 1985, p. 241). Se, como diz o autor, “pela maneira que escolhem, colocam em imagens e associam objetos, personagens, sistemas relacionais, ou dito de outra forma, por sua construção, um filme ou uma série de filmes definem uma maneira de conceber e de fazer inteligíveis as relações sociais” (SORLIN, 1985, p. 245), nosso intuito é ir ao filme e, a partir dele, para usar uma expressão de Pierre Sorlin, fazê-lo falar (1985, p. 62).

1. Da escolha dos filmes e de suas respectivas análises

O filme escolhido para ser analisado foi A Revolução de Maio. Como forma de estabelecer consonâncias e dissonâncias no interior da análise, no lugar dos filmes e dos cineastas mais conhecidos, optamos por trazer à luz a produção italiana de 1933, Camicia nera. O objetivo principal é identificar a maneira como estão construídas as imagens de Portugal pacificado e feliz sob a tutela de Salazar. Isso será feito em duas etapas. A primeira levará em conta os recursos expressivos mobilizados na construção de sequências selecionadas do filme, envolvendo alguns personagens e lugares que destacaremos da trama. A segunda se desenvolverá contrapondo a análise do filme de Ribeiro a alguns apontamentos, muito breves, do filme de Forzano.

Ainda que o filme de Ribeiro pudesse ser discutido sem que precisássemos lançar mão de um filme italiano como contraponto, a escolha por analisar A Revolução de Maio tendo como pano de fundo Camicia nera pareceu-nos incontornável em virtude da presença da obra de Forzano na de Ribeiro, assumida e declarada pelos realizadores deste último[2]. Além disso, certos elementos presentes em Camicia nera podem ser rapidamente identificados também na produção portuguesa, seja pelo aspecto de efeméride que envolve a produção de ambos (o filme italiano está associado à comemoração dos dez anos da marcha sobre Roma de Mussolini - Il decennale della marcia su Roma -, o outro, aos dez anos da Revolução de Maio de 1926 em Portugal), seja pelo uso da imagem do líder político na trama (Mussolini aparece no encerramento de Camicia nera, Salazar, no de A Revolução de Maio), seja pelo caráter didático e documental de algumas sequências normalmente associadas a cinejornais (discursos, inaugurações, homens trabalhando etc.), inseridas na trama do filme, pretendendo com isso mostrar, com números, dados e gráficos, a decolagem tecnológica da Itália sob Mussolini (mesmo recurso usado em A Revolução de Maio para provar os avanços de Portugal com Salazar).

Desse modo, ainda que o foco seja o filme A Revolução de Maio, a passagem por Camicia nera é não apenas uma exigência, pois os elementos que Forzano utilizou para construir uma Itália em pleno movimento rumo ao progresso serão, a seu modo, mobilizados também no filme português, mas uma oportunidade de identificar como, nas particularidades de A Revolução de Maio, ocorre a celebração, na tela, de uma nação apresentada como unida, harmônica e feliz sob um Estado policial[3].

2. A Revolução de Maio

Tomemos a sinopse de José de Matos-Cruz, presente no livro O cais do olhar:

César Valente, perigoso agitador, regressa do exílio para desencadear a insurreição de 28 de Maio, no décimo ano da Revolução Nacional. A polícia limita-se a vigiar, deixando-o agir livremente, até descobrir todos os pormenores da conspiração e os seus cúmplices. O conhecimento duma linda rapariga, Maria Clara, e a constatação das transformações sociais e econômicas operadas no país durante a sua ausência, suscitam enfim, em César Valente, o milagre da evidência... (MATOS-CRUZ, 1999, p. 55)

O filme conta a história de Manuel, codinome Cesar, que volta a Portugal após os eventos de 1926. Paulatinamente, ele reconhece as mudanças (para melhor) ocorridas no país nos últimos dez anos, as quais constata ao estudar os números oficiais no Instituto Nacional de Estatística (INE). Ao final do filme, além de desistir da missão, declarar seu amor a Maria e assumir posição pró-regime, ele voltará a ser Manuel.

Podemos identificar três aberturas em A Revolução de Maio. A primeira (e que propriamente abre o filme) traz algumas sequências de guerra ou escaramuças, em que dois grupamentos trocam tiros – de um lado, o que parece ser composto pelas forças do exército regular do Estado, e, de outro, misturados e armados, civis e militares. Tais sequências de conflito armado, provavelmente provenientes de cinejornais da época (assim nos parece), logo são abandonadas, sendo retomadas ao final do filme, numa matriz eisensteiniana de montagem de planos, quando as lembranças da violência de dez anos atrás (1936 - 1926) tomam de assalto, na forma de flashback, o pensamento de César Valente. Isso ocorre momentos antes da transformação vivida pela personagem, quando o barulho de fogos de artifício que comemoram a revolução remete-a aos disparos das metralhadoras ocorridos há uma década, em 1926. Os fogos de artifício, pois, fazem as vezes da madeleine proustiana, precipitando a decisiva mudança ideológica do filme: César Valente passa de “revolucionário” a “patriota”, retomando o seu nome verdadeiro: Manuel. Voltaremos a esta sequência mais abaixo, para destacar a menção ao O encouraçado Potenkin.

No bloco dessa primeira abertura, pode-se imaginar a vitória de um dos lados em virtude da chegada da cavalaria, que estava fora do campo e irrompe do canto baixo do enquadramento, em plano aberto, e da qual haverá uma tomada “cinematográfica” por excelência: a câmera no chão filma os cavalos, imponentes graças à tomada, que sobre ela avançam. Segue-se um plano em que uma metralhadora é apontada para a direção da câmera, a expressão “A revolução” aparece escrita na parte de cima da tela e, pouco depois, há a sobreposição de galhos de uma árvore em flor contra o céu claro, então, na parte de baixo, completando o título do filme aparece escrita a expressão “de maio”.

A forma pela qual o título do filme é apresentado, com a mudança de plano e uma separação temporal entre “A Revolução” e o “de maio”, aponta desde o início para uma quebra entre essas duas partes: “a revolução” é a violência da metralha, que, apontada diretamente contra a câmera e, por consequência, aos espectadores, remete aos enfrentamentos no interior da sociedade (da qual fazem parte os produtores do filme, sua equipe de realizadores e os próprios espectadores) e ao marco histórico ocorrido há dez anos; o “de maio”, por seu turno, sugere uma espécie de sensação de paz e harmonia, expresso no plano que mostra as flores contra um céu claro.

A segunda abertura tem início com esse plano em câmera baixa dos galhos da árvore em flor contra o céu. Surgem os primeiros créditos (planos em que aparecem, um a um, os membros do elenco, com letreiros indicando os seus respectivos papéis) e uma primeira aproximação da cidade de Lisboa feita por câmeras provavelmente acopladas a veículos marítimos.

A imagem produzida pelo movimento agenciado pela acoplagem câmera-veículo atravessa o bloco em que todos os créditos serão apresentados, invadindo a terceira abertura, que tem início após um longo aviso, de tela inteira, a informar, em resumo, que “as imagens documentárias (...) são autênticas reportagens cinematográficas, filmadas sem qualquer artifício de encenação”, e foram cedidas pelo Secretariado da Propaganda Nacional e pelo Ministério da Agricultura.

Neste terceiro bloco da abertura, dá-se o início efetivo do filme, em que o recurso do “era uma vez” (o letreiro diz “certa manhã de Lisboa, 1936”) é seguido da apresentação da cidade por meio de várias sequências em que os monumentos, os jardins e as construções serão mostrados em sua grandiosidade, imponência e placidez. A câmera dessa terceira abertura se afastou da zona portuária, barulhenta, cheia de energia e de veículos, inclusive aviões, que cruzam incessantes o céu sobre os navios, para mostrar outra Lisboa, a de dentro, monumental e bucólica, acompanhada por uma valsa que leva o mesmo nome da cidade.

É no porto, no entanto, que a trama efetivamente começa, pois é por mar que chega a Portugal César Valente, ou Manuel Fernandes, também chamado pelo policial que o espera, o comandante Moreira, nas várias vezes que lhe fizer referência, de “perigoso agitador”, “profissional da desordem”, “nosso homem” e “patife”. Tal evento dá início a uma perseguição em que a montagem de planos paralelos entre o barco chegando ao porto e as ações desempenhadas pelos policiais (o comandante Moreira, mais velho, é secundado por outro, mais jovem) para achar um binóculo, localizar o agitador, pegar um carro e surpreender o revolucionário (antes que este aporte) insere ritmo ágil a uma trama que parece a de um filme policial. Tais planos intercalados, associados à música, facilmente nos remete ao salvamento no último minuto de Griffith, determinando uma aceleração que contamina tanto os elementos do plano (carro, barco e pessoas correndo) quanto a justaposição desses, apagando o tom musical laudatório dos blocos anteriores da abertura.

Fixemos esses dois momentos do filme: o da montagem de planos que elabora as lembranças de César (e que recupera os planos da primeira abertura) e o da perseguição inicial. O primeiro, porque António Lopes Ribeiro mostra, em uma brevíssima sequência, que seria capaz, se o quisesse, de construir um filme português com planos que aprendemos associar a Eisenstein. De fato, é a única passagem em que há sangue, dor, sofrimento, desespero e, particularmente, dois vigorosos primeiros planos no sentido que Eisenstein lhe dava (Grande plano), e não de grande na tela, que era o modo como este caracterizava a sua diferença com relação a Griffith[4] (ver EISENSTEIN, 1990, p. 200-202). O segundo, pela agilidade que o filme ganha desde o momento em que o chefe de polícia Moreira reclama da falta de um binóculo (9”30) até o encontro de César / Manuel com Maria (aos 14”05), em meio a uma pequena multidão que acompanha o discurso pró-Salazar durante a entrega de um novo navio ao porto. Destacamos essas sequências por se tratar de duas referências fortes no campo do cinema, em que o diretor parece mostrar que domina, cita, mas não depende delas.

Em A Revolução de Maio, assim nos parece, a montagem paralela no âmbito da perseguição do início do filme consegue imprimir agilidade à trama, colocando em ação recursos expressivos para melhor contar uma história. O mesmo se passa com a referência a Eisenstein, quando, como a mostrar que seria capaz de fazer um Potenkin português, insere, na parte final do filme, nas lembranças que assaltam o revolucionário César, uma montagem que faz citação direta ao O encouraçado Potenkin, com direito, inclusive, ao som do grito que culmina no primeiro plano muito aproximado do rosto de uma mulher desesperada (o foco da câmera avança em direção ao objeto de destaque). A presença de uma montagem que nos remete a Griffith ou a Eisenstein nas duas pontas da trama não faz do filme um compromisso com um ou com outro – embora seja sabida a admiração de Lopes Ribeiro por Eisenstein[5]. Como é possível observar em A Revolução de Maio, tais protocolos servem para contar de maneira límpida (unilateral, sem desvios ou questionamentos) a guinada de uma personagem que, comunista, volta a Portugal, tal qual o filho pródigo da parábola, redescobrindo o país e a si mesmo, abandonando os ideais revolucionários que, no filme, estão associados ao sofrimento e à produção de cizânias no interior da nação, em favor de um patriotismo ideal, protegido pelo céu claro de maio e sob os cuidados de Maria, a moça pela qual se apaixona. Tal experiência de mudança (voltaremos a esse ponto no final) lança mão de citações a Griffith e a Eisenstein, mas tais peripécias não são as únicas decisivas para que o revolucionário volte a ser um patriota. Também o são a comemoração do 1º de Maio no interior, a paixão por Maria e, como veremos, a inestimável ajuda dos gráficos e números do Instituto Nacional de Estatística.

2.1 Um filme policial, que é comédia romântica musical

A Revolução de Maio terá disfarces, tocaias, senhas, códigos, cifras, engenhos criminosos e um eixo que gira em torno das ideias de estabilidade e de revolução. Somada a presença da polícia (não fardada) com a daqueles construídos como “bandidos”, há elementos suficientes para um filme policial. Graças ao jogo de mocinho e bandido, a calma Lisboa passa a correr riscos e cabe ao diligente policial encetar uma perseguição em que o elemento chave não é mais a corrida, mas a inteligência.

Vale a pena olhar de perto o modo como a figura das personagens foi composta. A do chefe Moreira é sóbria, com gestos contidos e de idade madura. Secundado por um jovem ajudante, impetuoso, Moreira é severo e prudente, como apontam o seu sobretudo abotoado, o cachecol arrumado e o chapéu ajeitado. Está sempre limpo. Ridículo nunca, embora ridicularize e repreenda os outros. Além disso, é esperto, seguro, sagaz, intuitivo e diligente. Tanto é capaz da corrida física quanto de táticas mentais para perseguir e prender os “bandidos” (no caso, os inimigos da nação, como são vistos os opositores do regime): como usar disfarces e se esgueirar pelas paredes para ouvir inconfidências. Há um tom paternal no modo como a personagem do chefe Moreira é construída, característica reforçada pela presença do outro policial mais jovem ao seu lado (sempre disposto a aprender), pelos comentários e admoestações que faz, e por não realizar a prisão, quando a oportunidade aparece, do revolucionário, como se este só precisasse de mais algum tempo para retomar o “bom” caminho.

Tais qualidades físicas e mentais do chefe de polícia, por outro lado, são fundamentais para construir a figura repulsiva dos revolucionários, que aparecem reunidos em ambientes escuros e sujos, são incontinentes, desleixados, inseguros, sorrateiros e, sobretudo, se parecem com adultos que agem como crianças, diferentemente do Moreira, sóbrio e sábio por excelência. Por outro lado, a caracterização dos policiais e dos revolucionários é crucial para promover a identificação de Moreira com a personagem César, que é inteligente, cordato, contido, fala outra língua (o russo), usa bem as palavras, prefere as obras às palavras e é, inclusive, capaz de se apaixonar. Talentoso, César é um pré-Moreira, como se a figura do policial espelhasse as qualidades do outro, qualidades que seriam o corolário de todo bom português, condição que o revolucionário comunista atingirá antes do final do filme. Em um filme repleto de homens sem esposas (as personagens femininas de destaque são Maria e a mãe), em que não se vê vedetes e prostitutas nem nos bares ou nos portos, César é o único que negocia com o sexo oposto – ainda que todas as figuras femininas tragam a marca da inocência (Maria e a mãe, já viúva, as moças festeiras no interior, as enfermeiras que cuidam das crianças recém-nascidas). Além de todas essas qualidades, César ainda canta. Dançar... não dança. Isso quem o faz é a personagem Barata, figura cômica responsável por um número musical, sozinho em seu quarto – um dos pontos altos do filme.

De outro lado, há o senhor Barata. Se há elementos em A Revolução de Maio para caracterizar o esquema típico de filmes policiais, também há os de comédia, e isso graças às habilidades físicas da personagem Barata, funcionário público, magro e desajeitado, inconveniente na fala e na vestimenta. Fartamente ridicularizado durante o filme (pela mulher que ama, Maria, por César, pelo policial), os movimentos do seu corpo (seja quando anda, quando dança, quando está deitado na cama ou esperando alguém na rua ou na mesa de um café) é puro desencaixe sensório-motor e, portanto, o oposto do par formado por Moreira e César. Desses desencaixe e desencontro presentes no senhor Barata, temos a deixa para possíveis risos. Os movimentos do seu corpo destoam também do fundo imponente e excessivamente claro da cidade de Lisboa, que parece ter sido feita para os passos seguros de Césares e Moreiras, a proteger crianças, marias e enfermeiras. Cabe a Barata, contudo, protagonizar duas sequências muito particulares: na primeira, que se passa em um café, vemo-lo semeando a intriga contra o regime e os programas do governo; a segunda, durante a transmissão radiofônica de um dancing carioca, quando dança sozinho em seu quarto. A personagem do senhor Barata, assim, parece construída sobre o signo da fragilidade, seja pelo movimento desajustado do seu corpo, seja por ter a sua figura desenhada entre a tagarelice e a intriga, a inocência e a insensatez. Se, por um lado, tais traços o aproximam da criança ou do mundo infantil, no sentido de que não é uma personagem que se deve levar a sério, por outro, ele também parece representar aquele homem ao qual não se reservou nenhum tipo de protagonismo na vida, incapaz de causar qualquer preocupação à polícia ou ter a simpatia de César (ainda que Barata seja apresentado como simpatizante dos que são contra o regime). Em suma, não sendo uma criança, mas também não sendo um adulto como Moreira, seu ajudante, César e Maria, e cuja inocência o afasta dos outros revolucionários, o senhor Barata oscila, como oscilante são seus passos, seus trejeitos, seu modo de se vestir.

Por fim, Maria Clara. Filha única, órfã de pai policial (que morreu nos enfrentamentos de 1926, dos quais César tomou parte), enfermeira e, tudo a indicar, futura esposa e mãe. Ela é descrita como inteligente (a inteligência prática para se adequar ao status quo), bonita, mas, principalmente, simples. A música que canta ao arrumar o seu quarto na primeira manhã em que César dorme na casa da família (ali ele alugou um quarto como hóspede) prenuncia a candura que envolve o seu papel e a relação que mantém com o revolucionário, relação pontuada por momentos singelos e que tem como pano de fundo uma Lisboa clara, arrumada e limpa sob o sol. Enfermeira (na Maternidade Alfredo da Costa, como nota Torgal, 1996, pp. 311-312), ela cuida. Impoluta e angelical, seus sorrisos estão longe da coqueteria e, mesmo quando está no mundo da rua, parece protegida e segura, como Lisboa e toda a nação depois de 1926. Não há também nenhuma figura feminina que se contraponha a Maria. Nem mesmo encontramos mulheres atuando ao lado dos revolucionários. Em A Revolução de Maio, a figura feminina é construída por meio dos papéis dentro de certa ordem bem conhecida, o de filha, trabalhadora e mãe, isto é, no interior da família, e desempenhando papéis associados ao cuidado (no caso do filme, o cuidado às crianças). Considerando o modo como Maria e as outras personagens femininas são apresentadas, é como se o novo momento político em que o país vive, além de ter recuperado as construções, investido na arquitetura, saneado as contas públicas, gerado empregos e construído escolas, entre outras benfeitorias, tivesse também apagado do espaço público todas as mulheres que, diferentes de Maria, pudessem mobilizar signos e artifícios de outra ordem. Na tela, no filme que celebra o “Tudo pela nação”, temos as trabalhadoras que cuidam da terra, das crianças e da casa.

3. Excurso pelo filme Camicia nera

Conforme apontado na introdução deste trabalho, a presença de Camicia nera em A Revolução de Maio é reconhecida pelos próprios realizadores portugueses. Além disso, certos elementos presentes na obra de Forzano podem ser identificados facilmente na produção portuguesa, seja pelo aspecto de efeméride envolvido (um está associado à comemoração dos dez anos da marcha sobre Roma de Mussolini, o outro, aos dez anos da Revolução de Maio de 1926 em Portugal), seja pelo uso da imagem do líder (Mussolini aparece em Camicia nera; Salazar, no encerramento de A Revolução de Maio), seja pelo caráter didático proporcionado pelas “reportagens cinematográficas” (que, inseridas na trama do filme, pretendem mostrar, com números e gráficos, a decolagem tecnológica da Itália sob Mussolini, mesmo recurso usado em A Revolução de Maio para provar os avanços de Portugal sob Salazar).

Nas palavras de Gian Piero Brunetta, para Il decennale della marcia su Roma foi realizado um concurso “para o melhor tema cinematográfico”, vencido por Gioacchino Forzano, que, além do sucesso como dramaturgo de obras fascistas, teve também a colaboração direta do próprio Mussolini, que, segundo o autor, escreveu o discurso de inauguração de Litoria especialmente para o filme (BRUNETTA, 2001, pp. 131-132). Segundo o autor:

Camicia nera é uma obra que, além da mediocridade do nível técnico, representa um esforço muito significativo de conjugação epicizzante entre uma história rural exemplar e a história nacional que cobre quase um quarto de século, desde as vésperas da Primeira Guerra mundial até o presente [no caso, 1933]. (BRUNETTA, 2009, p. 119 – colchetes nossos).

Conforme informações contidas na sua abertura, trabalham no filme “cidadãos da Maremma e homens nascidos do povo de cada região da Itália”. Três blocos dividem o filme. Nos dois primeiros, faz-se o contraponto entre a dimensão individual e cotidiana, de um lado, e a social, política e nacional de outro. No terceiro, apresenta-se a pétrea autoridade do fascismo e a aglutinação em torno da figura de Mussolini.

Camicia nera trata da Itália e de seus problemas, da sua história e do seu destino, do seu povo e do seu líder. Diferentemente do filme português, não estamos no maio eterno, mas no meio da ferida aberta no mapa da Europa, que se bate em batalhas e faz referência à Grande Guerra (1914 – 1918). O nome Mussolini é citado várias vezes e, desde o início, associado a uma criança, no caso, ao filho do ferreiro (fabbro, personagem que, ferida na guerra e após passar um tempo se recuperando em um hospital austríaco por ter perdido a memória, recupera suas lembranças ao ouvir música italiana e assistir a um cinejornal).

Antes do final do filme, temos os discursos de Mussolini para a comemoração dos dez anos da marcha sobre Roma. Seguem-se imagens aéreas de espaços públicos (em Turim, Monza, Brescia, Ancona, Forlí e Roma) completamente tomados pela população, reunidas em apoio a Mussolini - o que se ouve em uníssono é a expressão Duce repetida seguidas vezes. Um camicia nera (o fabbro) hasteia a bandeira na torre da cidade que acaba de se erguer sobre o que antes era pântano. A imagem de Mussolini discursando em Litoria é, então, acompanhada de várias tomadas de rostos, primeiros planos de pessoas presentes na multidão, perfazendo um jogo de campo e contracampo entre Mussolini e os seus seguidores, compenetrados e sérios, diante do líder cheio de trejeitos. Essa espécie de tomada em campo e contracampo, utilizando planos do rosto do líder e o dos rostos de alguns dos presentes no comício de Litoria (fossem eles pessoas mais velhas ou crianças), pode insinuar um diálogo entre o chefe e os seus seguidores, aspecto bastante presente, por exemplo, em O triunfo da vontade (1934 - 1935), de Leni Riefenstahl. Tal aspecto, contudo, está ausente no filme português, como se no discurso de Salazar, em A Revolução de Maio, as palavras que usa, as frases que constrói e o tom que a elas imprime já fossem, em si, uma efeméride. Não discursos, mas ensinamentos. Não há uma tentativa de associar o líder (e sua posição de destaque, o lugar destacado de onde fala para os seus seguidores) e aqueles que, misturados na massa, o escutam - como com Hitler, no filme de Riefenstahl, ou com Mussolini, no de Forzano. Notemos que não é a figura de Salazar que importa, propriamente, mas o conteúdo da sua fala. Consequentemente, a não presença de tomadas que simulavam um diálogo entre líder e seguidores parece deixar segundo plano, no filme português, a unidade expressa na tríade “líder, povo, nação”, como acontece em O triunfo da vontade e Camicia nera. No entanto, a ênfase em A Revolução de Maio no lema “Tudo pela nação. Nada contra a nação”, ainda que não dê tal destaque ao homem, a um homem (notemos que existia à época outra figura política de destaque, a do General Carmona, cuja foto, vale sublinhar, vemos ao lado da de Salazar no gabinete do chefe Moreira), é a voz característica de Salazar que dá contornos à desejada completude harmoniosa promovida pela nação.

Todavia, o que chama atenção na aproximação entre os dois filmes é o uso da estatística para provar como o país mudou nos últimos dez anos. Ainda que as duas obras tenham núcleo de ficção (uma trama está inserida completamente na história do avanço do fascismo na Itália, a outra apontando para a nação como entidade, o Portugal eterno) e tragam para o plano, como observamos, a figura de seus respectivos líderes, o aspecto comum determinante é o uso dos dados e tabelas como motores da ação, pois são eles que mostram/provam seja o avanço industrial, que é físico e de enfrentamento com a natureza, como em Camicia nera, seja o movimento “mental”, que leva o revolucionário César a se descobrir “patriota”, depois de convencido, pelos números, do avanço do país. Trata-se de uma espécie de prestação de contas que os dois regimes realizam ao fim de dez anos. E a fazem por meio da estatística, quando quadros, tabelas e porcentagens não apenas aparecem na tela, mas ganham ritmo, entram no movimento do filme e ajudam a contar a história.

Camicia nera faz o balanço dos últimos dez anos (1922 a 1932), além de projeções de crescimento futuro. A diferença é a montagem que se acelera paulatinamente e a música saliente e nervosa, o que pode nos fazer lembrar Vertov[6], diferente do ritmo mais calmo de A Revolução de Maio, que acompanha César nas suas minuciosas pesquisas no Instituto Nacional de Estatística. Aliás, no filme italiano não há destaque para o instituto de estatística, nem há um personagem a ser convencido pelos números, mas uma louvação às conquistas após o sofrimento da nação com a Grande Guerra. A imagem de números sobrepostos a sequências filmadas de grandes empreendimentos em construção, em movimento, em marcha, difere da experiência vivida por César / Manuel (no filme de Lopes Ribeiro, as sequências que envolvem construções e homens trabalhando são apenas as do Porto de Leixões, em Matosinhos), que pacientemente anota dados e sobre eles medita. No filme italiano, as pessoas presenciam e se espantam ante o milagre da engenharia de Mussolini. Ao fim e ao cabo, é como se a Itália estivesse a se levantar, curada, depois de retomar a sua história assim como o ferreiro, no hospital, recobrara a memória. O motivo condutor do filme – alicerçado na forte ligação entre a criança, filha do ferreiro, inocente e corajosa, e a figura de um Mussolini (também ele filho de ferreiro), que nunca está com ela no mesmo quadro ou plano (mas sempre em uma citação do extracampo) - torna Camicia nera um filme atravessado por afetos, diferentemente de A Revolução de Maio, uma trama policial, às vezes comédia romântica, às vezes musical. Nas palavras de Pasquale Iaccio, em Storia e Cinema, Camicia nera “... antecede o mito de Mussolini ao período da Primeira Guerra de modo a unir, de modo a fazer desta o elo entre Risorgimento e fascismo” (IACCIO, 1998, pp. 32-33). Repleto de slogans e palavras de ordem, o filme, diz, “renuncia quase totalmente à dramatização (...)”, apresentando-se mais como uma “longa sucessão de imagens, de cantos, de frases de Mussolini (...)” (IACCIO, 1998, pp. 38-39)[7].

A frase pronunciada por Mussolini e aplaudida pela população – “É essa a guerra que nós preferimos” – reforçada pelas imagens de tratores e homens trabalhando, como se fosse uma artilharia avançando sobre o inimigo, dimensiona a retomada pela Itália do seu destino histórico. Erguendo uma nova Roma sobre o que era pântano, está em ação a civilização tecnológica, marcada pela audácia de um homem (o seu líder) e levada a cabo pelos jovens da nação. O inimigo a ser vencido é a terra infértil, a fome, as doenças, o atraso, a natureza. Nas palavras de Brunetta, “O palude e a necessidade do saneamento são tòpoi recorrente na produção propagandística daqueles anos (...), que se combinam dialeticamente com visões de natureza, de novas gerações em atividade, da eficiência produtiva e do desenvolvimento industrial” (BRUNETTA, 2009, p. 79).

A placidez em A Revolução de Maio contrasta com um Camicia nera, em que o passado recente italiano é encenado como sofrimento, fragilidade de lideranças, humilhação e egoísmo que corroem o país. Mussolini é o lume, a clareza e a disciplina, personagem que derrotou a dor e o sofrimento do povo italiano e que, como vedete, reivindica seu lugar no filme e na história. Nem mesmo as sequências na maternidade e o cuidado com as crianças, que estão nos dois filmes, são as mesmas. No italiano, trata-se de curar a raça, em A Revolução de Maio, a brandura e o carinho das mãos das enfermeiras, afáveis como as de Maria. Tal brandura do filme português não combinaria com o milagre erguido pela engenharia fascista do Decennale. As fortes imagens de Camicia nera ficam evidenciadas nas cenas de multidão, na das bandeiras, na das batalhas sobrepostas ao mapa da Europa e da Itália, e no uso recorrente da imagem da criança. O par engenharia e progresso também está presente em A Revolução de Maio, mas o avanço fundamental, no filme, dá-se, por sua vez, em outro tipo de movimento, em que acompanhamos César, paulatinamente, voltar a ser Manuel.

A inserção de um bloco com a presença mais concentrada de Salazar no final do filme, com as “imagens documentárias” oficiais entre as sequências que compõem o seu encerramento, serve, pois, como fecho ao movimento vivido por César / Manuel. Nesse bloco, a primeira aparição da imagem de Salazar é em uma foto de jornal com o qual César embalara a bandeira comunista. Esta foto, tomada em primeiro plano, ganha animação e então vemos surgir o plano de Salazar, acompanhado de Carmona, em que são “aclamados com delírio na cidade de Braga”. São aproximadamente seis minutos (entre o 120 e o 126) mostrando o passeio de carro de ambos com várias tomadas das ruas repletas de pessoas. Seguem-se três minutos de um discurso de Salazar, antes que o filme retorne a Cesar, agora Manuel, fazendo juras de amor e de patriotismo a Maria Clara. Após novas sequências de cinejornal, com destaque particular à imagem de Salazar, assistimos à decolagem de um hidroavião e, na sequência, uma série de veículos náuticos iluminados, posicionados no porto de Lisboa sob a noite. Ao fundo, um discurso. Trata-se da voz, sem imagem, de Salazar.

Considerações finais

Paul Virilio via o cinema, para além do seu uso na propaganda, como arma de guerra, “parente pobre da sociedade militar-industrial” (VIRILIO, 1993, p. 48), associado à guerra como espetáculo, decorrente, entre outros aspectos, da acoplagem entre câmeras, metralhadoras e avião (VIRILIO, 1993, pp. 8291 – ver fotos, principalmente, p. 85). Um dos vencedores desse novo momento artístico, que passa pela “seleção diante do aparelho”, como alertara Benjamin (1980, p. 17; 1996, p. 183) em seu texto sobre a obra de arte na era de suas técnicas de reprodução, seriam as lideranças políticas, ou, ainda, na leitura de Virilio, políticos que atuariam como grandes dramaturgos, “ditadores taumaturgos que já não governavam, mas comportavam-se como diretores” (1993, p. 126 – itálicos do autor), cineastas, tal qual o “Hitler cineasta” que Deleuze explorara no final do Imagem-tempo (1985, pp. 342-366 – principalmente, p. 344), quando recupera e distingue Kracauer e Benjamin.

Mussolini, como aponta Jean Gili, não gostou do resultado, e, de modo geral, não apreciava esse tipo de filme. Nas palavras de Vittorio Mussolini, por exemplo, embora fosse realizado por um de seus amigos, o “duce” não apreciou Camicia nera, pois “... parecia que era algo forçado, pouco crível”[8] (GILI, 1990, p. 216). No caso português, pelas informações de Yves Léonard, o filme que mais parece ter agradado ao governo foi Feitiço do império, de 1940, também de Ribeiro (LÉONARD, 2008), e não A Revolução de Maio, em que Salazar e a sua voz aparecem com certo destaque. Importa pouco, do ponto de vista deste texto, que Mussolini ou Salazar tenham ou não apreciado o resultado na tela. Importa, por outro lado, a mudança operada ao longo da trama e que leva “César” de volta a “Manuel”.

Sobre a experiência de mudança vivida pela personagem, Luís Reis Torgal explora em seus textos a ideia de “conversão” (TORGAL, 1996; 2007). E, sem dúvida, a noção de conversão serve bem à análise da personagem do revolucionário que afinal se converte em patriota. Ainda seguindo com o autor, dentro da concepção do Estado Novo, a propaganda deveria cumprir o papel de “consolidar a fé dos crentes e converter os descrentes” (TORGAL, 1997, p. 285) e, de modo geral, “a ‘conversão’ foi um dos estados de espírito mais presentes na moral e na cultura do Estado Novo” (TORGAL, 1997, p. 288), como, por exemplo, o prêmio dado ao padre Vasco Reis (e que deixou A Mensagem, de Fernando Pessoa, em segundo lugar), “que mostrava a conversão de um ‘Bolchevista’ por ação de Santo Antonio” (TORGAL, 1997, p. 288).

Todavia, de modo a nuançar a noção de conversão, é interessante notar ao menos dois aspectos que aproximam o retorno da personagem a Portugal à parábola do Filho Pródigo (Lucas 15: 11 – 32). O primeiro é a ideia de viagem de volta para o país de origem (César estava no estrangeiro e retorna a Portugal); o segundo é a presença do pai misericordioso que ancora a narrativa da parábola, o que, no filme, sugere que César apenas está desviado do bom caminho, diferente dos outros revolucionários que se escondem na tipografia, acerca dos quais não conhecemos o destino, ainda que o imaginemos – afinal, trata-se de um regime que suprimira a liberdade de reunião e reorganizara a censura[9]. Na trama, quem dá voz ao papel paterno é o chefe Moreira, que, tendo a prisão de César nas mãos e diante da insistência do seu jovem ajudante, reluta em efetuá-la, certo de que é uma questão de tempo para que aquele bom filho a casa torne. A fala de César Valente, mais ao final do filme, depois que volta a ser Manuel Fernandes, é tão clara, tão encaixada no movimento do filme, quanto assustadora: “Se me prenderem, não fazem mais do que o seu dever; eles é que têm razão”.

Notemos que o retorno a Portugal do revolucionário e o encontro amoroso com Maria, a enfermeira, são mostrados em planos nos quais Lisboa aparece segura, ensolarada e repleta de jardins e monumentos, como se fosse um chamado à inocência e à infância perdida. Trata-se, pois, de uma história simples, com personagens clichês (mesmo o “milagre da evidência” só traz à tona o que César sempre foi: Manuel, patriota e filho da nação), vivendo em um país de conflitos finalmente apaziguados, em que aqueles que cuidam da segurança são pacientes e estão prontos a perdoar. E, ainda que o filme traga imagens de arquivo que registram o avanço tecnológico, econômico e social do país, além de inserir discursos feitos por Salazar (assim como no de Forzano, que trazia Mussolini), a trama de A Revolução de Maio não deixa de apontar para uma fantasia de completude em que a ausência de enfrentamentos revela forte matiz regressivo.

O problema, pois, não é apenas a propaganda, contra o qual somos capazes de aprender a identificar e resistir. O problema é a geração contínua de clichês, inclusive os clichês por meio dos quais fazemos a crítica da propaganda. A Revolução de Maio fez mais do que expressar as ideologias reacionárias do Estado Novo. Mais importante, produziu conjuntos de informações bem ajustadas, simples, inteligíveis, de tal modo que qualquer César, diante delas, saísse convencido, envolvido, aquecido, protegido. Nesse sentido, as situações encenadas em A Revolução de Maio não apenas fazem do filme uma peça ideológica, em que um bom português percebe o seu erro e, em tempo, adere ao estado das coisas vigente em seu país. Antes, apontam para uma produção que explora, com zelo, as conquistas técnicas e estéticas no interior do cinema, de modo a construir uma imagem de Portugal em que estatísticas, gráficos, levantamento de dados ajudam a justificar o estado policial expresso no lema “Tudo pela nação. Nada contra a nação”. Sai o desejo de mudança, entra o de adequação. Sai o pensamento que nos interpela e aponta para o desajuste e para novos ajustes possíveis, entra a informação, que nos reconforta. E ponto.

Em A Revolução de Maio, é como se o mundo sem conflitos e enfrentamentos não estivesse apenas no discurso ou nas palavras de ordem afeitas ao Estado Novo, mas na maneira como, no filme, ele é colocado em relação com os hábitos de César (a um passo de se tornar Manuel). Não há nada de secreto na trama do filme, nem mesmo a polícia ou as fichas que esta possui de cada cidadão. Tudo está às claras e sob o sol na Lisboa iluminada em um final de inverno cálido que antecede o sol da primavera de maio. A Revolução de Maio mostra o “Manuel” que se apodera de “César”, o factual que torna indistinto o acontecimento, o hábito que tomou conta do pensamento.

Referências

BENJAMIN, Walter. (1996), A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. 7. ed. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense. pp. 165-196.

BENJAMIN, Walter. (1980), A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: ARANTES, Paulo Eduardo (consultor.). Os Pensadores. Trad. José Lino Grünnewald. São Paulo: Abril Cultural. pp. 3–28.

BRUNETTA, Gian Piero. (2009), Il cinema italiano di regime: da “La canzone dell’amore” a “Ossessione”: 1929 – 1945. 1. ed. Roma-Bari: Editori Laterza.

BRUNETTA, Gian Piero. (2001), Storia del cinema italiano. Il cinema del regime : 1929 – 1945. Roma: Editori Riuniti.

BRUNETTA, Gian Piero. (2007), Cent’anni de cinema italiano, vol. 1. Dalle origini alla Seconda Guerra Mondiale. 7. ed. Roma-Bari: Editori Laterza.

DELEUZE, Gilles. (1985), Conclusions. In: DELEUZE, Gilles. L’Image-temps. Cinéma 2. Paris: Les Éditions de minuit. pp. 342-366.

EISENSTEIN, Sergei. (1990), “Dickens, Griffith e nós”. In: EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme.Rio de Janeiro: Jorge Zahar. pp. 173-216.

GILI, Jean. (1990), Le cinema italien a l´ombre des faisceaux (1922 - 1945). 1. ed. Perpignant: Institut Jean Vigo.

IACCIO, Pasquale. (1998), Cinema e Storia. Percorsi, immagini, testimonianze. 1. ed. Napoli: Liguori Editore.

LANDY, Marcia. (1986), Fascism in film: The Italian Commercial Cinema, 1931-1943. 1. ed. Princeton; New Jersey: Princeton University Press.

LÉONARD, Yves. (2008), Portugal 1928 - 1974. Sous l´oeil de Salazar. In: MULLER, Raphaël; WIEDER, Thomas. Cinéma et regimes autoritaires au XXe Siècle. Écrans sous influence. Paris: PUF (Éditions Rue D´Ulm). pp. 8198.

MATOS-CRUZ, José. (1999), O cais do olhar. 1. ed. Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.

PENA RODRÍGUEZ, Alberto. (2009), El icono cinematográfico del Estado Novo Salazarista: A Revolução de Maio (1937). Revista Historia y Comunicación social, v. 14, pp. 295-312. Disponível em: http://revistas.ucm.es/index.php/HICS/article/view/HICS0909110295A/18864. Acesso em: 18 de novembro de 2017.

PENA RODRÍGUEZ, Alberto. (2008), La creación de la imagen del franquismo em el Portugal salazarista. In: TORGAL, Luís Reis; PAULO, Heloísa. Estados autoritários e totalitários e suas representações. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. pp. 183-198.

PIMENTEL, Irene. (2011), A Polícia Política do Estado novo português – PIDE/DGS. História, justiça e memória. Acervo, v. 24, n. 1, pp. 139-156.

SORLIN, Pierre. (1985), Sociología del cine. 1. ed. México: Fondo de Cultura Economica.

TORGAL, Luís Reis. (2007), “A Revolução de Maio”. In: FERREIRA, Carolin (org.). O cinema português através dos seus filmes. Porto: Campo das Letras. pp. 39-45.

TORGAL, Luís Reis. (1996), Cinema e propaganda no Estado Novo: a “conversão dos descrentes”. Revista História das Ideias, v. 18. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. pp. 277-337. Disponível em: http://hdl.handle. net/10316.2/41932. Acesso em: 24 de dezembro de 2017.

VIRILIO, Paul. (1993), Guerra e Cinema. 1. ed. São Paulo: Scritta.

Filmes trabalhados

A Revolução de Maio. António Lopes Ribeiro. Portugal, 1937, P&B, 134 minutos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bfwfEYBTxnU. Acesso em: 24 de janeiro de 2018.

Camicia nera. Giovacchino Forzano. Itália, 1933. P&B, 100 minutos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Z-aCzRpbYjQ. Acesso em: 24 de janeiro de 2018.

Filmes ou audiovisuais citados

O Encouraçado Potenkin. Sergei M. Eisenstein. Ex-União Soviética, 1925, P&B, 75 minutos.

Feitiço do Império. António Lopes Ribeiro. Portugal, 1940, P&B, 146 minutos.

O Triunfo da vontade. Leni Riefenstahl. Alemanha, 1935, P&B, 100 minutos.

A Pide antes da Pide. Dir. Jacinto Godinho. Produção Eduardo Ricou e Frederico Wiborg (RTP), Lisboa, 2007 (vários episódios).

Notas

* Este texto resulta das discussões ocorridas nosEncontros da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), realizados em 2010 e 2011, no âmbito do seminário temático “Cinemas em Português – aproximações, relações”.
[1] Segundo Alberto Pena Rodríguez, o filme estreia em 06 de junho de 1937, “impulsionado por uma campanha publicitária estendida a toda a imprensa diária portuguesa, que continuou posteriormente graças aos dispêndios econômicos do SPN [Secretariado de Propaganda Nacional]” (2009, p. 301). Ainda segundo o autor, o filme foi exibido em Bruxelas em novembro do mesmo ano, numa “ofensiva propagandística” cujo objetivo “era mitigar os efeitos da propaganda anti-salazarista dos movimentos democráticos europeus e, em particular, dos exilados portugueses” (Ibidem, p. 302). O SPN continuou a divulgar o filme pelo mundo, sobretudo na Espanha “rebelde”, onde “alcançou grande êxito de público” (loc. cit. – ver também PENA, 2008, p. 187). No Brasil, diz José de Matos-Cruz, o filme foi reexibido com o título Redenção em 1947 - “nova versão com cortes, incidindo nos aspectos mais datados ou propagandísticos” (MATOS-CRUZ, 1999, p. 55).
[2] António Ferro, diretor à época do SPN, reconhecia, em 1935, que se planejava começar a filmar em Portugal “uma obra dinâmica, com fins semelhantes” ao Camicia nera, e ajuntava: “É bom notar que falei em fins semelhantes, pois não só a nossa política é diferente da italiana, como o nosso filme também será diferente (...)” (FERRO, apud TORGAL, 2007, p. 40). Como destaca Luís Reis Torgal, “produzido com todos os apoios oficiais, durante a Guerra Civil de Espanha e em tempo de manifestações anticomunistas, a finalidade propagandística de A Revolução de Maio é evidente, em todos os seus aspectos” (Ibidem, p. 40). Vale também apontar que o argumento do filme é de Jorge Afonso e Baltazar Fernandes, na verdade, António Ferro e António Lopes Ribeiro (Ibidem, p. 41).
[3] O filme se passa em Portugal sob o Estado Novo (1933 – 1941). A polícia, à época, criada em 1933, quando Salazar já era Presidente do Conselho de Ministros (1932 – 1968), é a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado).
[4] Nas palavras de Eisenstein: “Dizemos: um objeto ou rosto é fotografado em ‘grande plano’, ou seja, grande na tela. Os norte-americanos dizem: near ou close-up. Estamos falando do lado qualitativo do fenômeno, vinculado a seu significado (...). Entre os norte-americanos, o termo está ligado à visão. Entre nós – ao valor do que é visto” (1990, p. 200).
[5] Segundo Yves Leonard, António Lopes Ribeiro visitou os estúdios de Moscou e manifestou admiração por Eisenstein (2008, p. 83). Como aponta Torgal, “Antonio Lopes Ribeiro foi, sem dúvida, o cineasta mais sensível a esta campanha de propaganda através do cinema e o mais bem preparado tecnicamente, devido ao facto de ter contactado com o cinema soviético e os seus grandes realizadores” (1996, p. 298 – ver também foto em que aparece ao lado de Dziga Vertov, em Moscou, 1929).
[6] As obras de Vertov e Eisenstein, mas não apenas dos dois diretores, eram referências incontornáveis à época. Como aponta Brunetta,“ao final da primeira parte de Camicia nera estão mesclados módulos visuais e de montagem tomados de Vertov e Léger, Dulac e L’Herbier” (BRUNETTA, 2007, p. 218). Na mesma página, o autor cita Ezra Pound, para reforçar que a ideia à época era superar Pudovkin, Eisenstein e Ruttmann (há mais informações sobre Forzano nas páginas 170-171).
[7] Outra autora, Marcia Landy, estabelece um corte entre filmes como Camicia nera, que deve ser contado entre aqueles filmes que mostravam diretamente a face do fascismo, e aqueles produzidos na Itália no período entre 1931 e 1943, de « alta qualidade industrial ». Ela retoma discussão de Adriano Aprà e Patrizia Pistagnesi sobre o tema, e cuja ideia era a de que já havia no cinema comercial italiano da época a “(...) subordinação da mensagem ao entretenimento” (para todas essas informações, ver LANDY, 1986, pp. 5-6).
[8] Além da entrevista de Vittorio Mussolini, ver também as de Eitel Monaco e Ivo Perilli (GILI, 1990).
[9] Segundo Irene Pimentel, a PVDE é “polícia secreta com atividade instrutória e poderes administrativos e penais quase sem regulação legal” (PIMENTEL, 2011, p, 140), com funções de vigilância e repressão, além das “atribuições prisionais, relativas à emigração clandestina bem como à vigilância de fronteiras e de estrangeiros”, que ocorre a partir de junho de 1934 (PIMENTEL, 2011, p. 139). No filme, entretanto, se o caráter de vigilância da polícia parece destacado, o que reforça o tom paternal do chefe Moreira, o repressivo não o é em nenhum momento. A respeito da história da polícia secreta em Portugal, suas vítimas e suas práticas, sobretudo após maio de 1926, cito, entre outros, o trabalho de reportagem de Jacinto Godinho, A Pide antes da Pide, em particular o episódio 7, que aborda não apenas o período do filme, como toma algumas sequências deste para discutir aspectos da atuação da polícia à época.
HMTL gerado a partir de XML JATS4R por