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Recepção: 27 Julho 2018
Aprovação: 20 Setembro 2018
DOI: https://doi.org/10.20336/rbs.415
Resumo: Este artigo aborda a análise da profissão do arquiteto e seus espaços de atuação, buscando-se definir as circunstâncias sociais, institucionais e políticas de participação profissional em instâncias do mercado de trabalho. Nessa direção, percebe-se que a nova regulamentação profissional dos arquitetos trouxe à tona debates sobre confrontos extraprofissionais e estratégias de reserva de mercado em atividades inerentes à construção civil. Portanto, as discussões, em torno da instalação do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), possibilitam mostrar a luta pela definição dos investimentos para inserção profissional e ascensão na carreira.
Palavras-chave: Arquitetura e Urbanismo, Conflitos Extraprofissionais, Mecanismos Sociais.
Abstract: This article discusses the analysis of the architect’s profession and its spaces of action, seeking to define the social, institutional and political circumstances of professional participation in labor market instances. In this direction, it is noticed that the new professional regulation of the architects brought to the fore debates about extra-professional confrontations and strategies of market reserve in activities inherent to the civil construction. Therefore, the discussions about the installation of the Architecture and Urbanism Council (CAU) make it possible to show the struggle for the definition of investments for professional insertion and career advancement.
Keywords: Architecture and Urbanism, Extra-professional Conflicts, Social Mechanisms.
Introdução
Há décadas, existe uma explícita e divulgada disputa mercadológica entre vários atores, de especialidades distintas, envolvidos no ramo da construção civil no Brasil. São exemplos desses conflitos extraprofissionais: litígios, notas de repúdio, grupos de harmonização[1] e as próprias regulamentações profissionais editadas pelas categorias. Esses confrontos se intensificaram com a recente saída, em 2012, dos arquitetos do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA), e, dessa forma, tal contexto passou a configurar uma tentativa de consolidação do espaço de atuação profissional entre atividades envolvidas no ramo da construção civil. Uma das principais manifestações dessas lutas pode ser observada entre as categorias que fazem sombreamentos[2] de atividades, em que se encontram diversos registros de disputas litigiosas e mercadológicas no âmbito dos possíveis sombreamentos de atribuições. Portanto, nesse sentido, considera-se que tal situação envolve grupos de profissões e ofícios da construção, envoltos em conflitos extraprofissionais, acentuados após a edição da Resolução nº 51[3], de 12 de julho de 2013 do recém-criado Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR).
Nesse contexto, a proposta aqui busca contribuir quanto ao entendimento do jogo na luta pelo monopólio profissional e as possíveis relações políticas e sociais que servem como uma estratégia também de disputa entre grupos e atores, cuja finalidade é a prevalência de atuação no espaço social. Essa competição se intensifica, sobretudo, quando os critérios referentes à profissionalização do ofício estão vinculados ao conhecimento específico, ao credencialismo e à autonomia profissional, pois esses são os pilares que permitem identificar o poder das profissões. No entanto, entende-se que a atribuição da licença e do mandato não é um processo inteiramente pacífico, muitas vezes é uma das fontes principais de conflito e de competitividade ao nível do campo profissional e de ação política (RODRIGUES, 2002).
Diante do contexto de conflito extraprofissional, vê-se o certificado acadêmico como um importante instrumento de distinção dos grupos profissionais, que pode determinar as fronteiras do campo de trabalho de um saber específico. Esse tema ocupa um lugar central na condição de análise de mercado de trabalho dependente das determinações dos critérios de habilitação e exercício de uma específica atividade. Nessa perspectiva, tal investida nos encaminha para o entendimento das estruturas particulares da atividade de arquitetura e urbanismo, mostrando sua política de formação – como a exigência do diploma acadêmico, por exemplo –, que pode servir para garantir a qualidade dos serviços prestados, uma vez que os clientes não dispõem de competências específicas para apreciar o que está sendo oferecido (PARSONS, 1968).
Nesse sentido utilitário, a teoria funcionalista[4] traz o entendimento de um perfil de profissão com caráter indispensável à sociedade, devido aos profissionais serem detentores de conhecimentos técnico-científicos específicos. Dessa forma, segundo Dubar (2005), esse processo de interação utilitarista, que se estabelece entre profissional e cliente, gera a institucionalização do processo de profissionalização. Portanto, segundo a análise funcionalista das profissões, uma ocupação só ascende ao status de profissão se atender a alguns critérios mínimos, como a existência do diploma, a regulação a partir das associações profissionais e um consenso normativo, como um código de ética por exemplo (ANGELIN, 2010). Assim, a teoria funcionalista torna-se uma das linhas de estudo utilizadas como suporte complementar ao fundamento teórico desta pesquisa.
A linha interacionista também foi tomada como referência ao aporte de estudo para esta investigação, sobretudo ao destaque que a linha de estudo faz ao definir “grupos profissionais” dentro de um entendimento ampliado, em que as atividades de trabalho são associadas a interações sociais. Para Becker (1997), um dos autores que se destacam nessa abordagem, a análise do investimento na carreira profissional e da socialização profissional possibilita o entendimento dos perfis de carreiras característicos de um ofício. Além disso, ajuda na compreensão do alcance de tal socialização em relação ao acúmulo do conjunto de recursos específicos inerentes aos espaços de atuação. Entretanto, é fundamental associar tais recursos, adquiridos a partir da socialização profissional, com outros diversos, obtidos em espaços sociais variados, tais como movimentos sociais, partidos políticos e a família. Portanto, a análise dos trajetos sociais, escolares e profissionais dos arquitetos contribui para fornecer informações a respeito da importância que assume o diploma frente a outros recursos sociais acumulados a partir dos vínculos familiares, políticos e profissionais.
Portanto, este artigo tem como objetivo esmiuçar o espaço de atuação profissional do arquiteto e urbanista, a partir da compreensão de que esse é um espaço de luta por fatias no mercado de trabalho e, principalmente, da consideração da arquitetura como uma profissão que exerce a prática de monopólio e controle de competências. Logo, elegeu-se um duplo objeto empírico, que consiste, de um lado, nos arquitetos protagonistas atuantes e suas estratégias de investimento profissional, e, de outro, na entidade representativa de classe profissional e seus esforços no sentido de construir um espaço de atuação reservado aos arquitetos. Como protagonistas, entendemos aqueles que ocupam posição de destaque, gerenciamento ou chefia em diferentes espaços de atuação.
Para desempenhar tal tarefa, tornou-se fundamental submeter à análise crítica os arquitetos protagonistas no mercado de trabalho, considerando-se como referência do sentido de protagonismo as informações de cunho socioeconômico existentes no censo[5] do CAU. Para isso, foram consideradas as informações quanto às “atuações em campos profissionais” e “maiores remunerações individuais”. Tais dados são as diretrizes para configurar o caráter de notoriedade, ao que me refiro aqui como protagonismo. Logo, para atingir tal finalidade, procurou-se observar as peculiaridades sociais daqueles que investiram na arquitetura, em Aracaju/SE, em épocas diversas, situando como referência as características de dois grupos de profissionais. No total, foram entrevistados 14 arquitetos, entre julho a dezembro de 2017, dentre os quais, 7 estão no ranking de maiores emissores de RRTs[6] do CAU-SE, já os 7 restantes são arquitetos que possuem visibilidade social, através de destaques em mídias específicas da profissão – revistas, programas de TV, outdoors, anuários – e ocupam posições de chefias em órgãos públicos e empresas particulares.
Para realizar a análise do profissional e da atividade de arquitetura e urbanismo, discorreu-se, de forma breve, quanto a sociogênese da profissão, priorizando as peculiaridades do crescimento e posterior queda de autonomia da arquitetura no Brasil. Em seguida, colheram-se as informações do Censo do CAU para determinação dos atores protagonistas na capital sergipana e puderam-se obter, do Conselho, os dados quanto aos arquitetos que se enquadram num contexto de destaque em Aracaju. Tais dados foram obtidos a partir do levantamento dos Registros de Responsabilidade Técnica (RRTs), – emitidos pelos arquitetos na capital sergipana. Obteve-se, com os registros, a locação dos arquitetos nos postos do mercado de trabalho em Aracaju, o que permitiu realizar o cruzamento de informações com finalidade de determinar quem são os profissionais considerados como personagens principais a serem submetidos à abordagem de análise crítica.
A aplicação de entrevistas abertas, junto aos arquitetos protagonistas, e a pesquisa documental em instituições associativas foram as técnicas utilizadas para a obtenção de resultados quantitativos e qualitativos desta investigação[7]. Também, procedeu-se a observações e acompanhamentos das reuniões e dos eventos que são organizados pelos arquitetos em torno da sua representação profissional, situando as suas falas em contextos mais vastos. Portanto, o CAU, enquanto entidade associativa, estabelece-se como um espaço de relevância para a apuração acerca do seu papel enquanto agente de controle da profissão.
1 A Ascenção da Arquitetura e Posterior Perda de Autonomia Profissional
O espaço do mercado de trabalho da Arquitetura no Brasil tem seu momento de estabelecimento fincado nos períodos em que houve a transição da forma de governo imperial para o republicano. Após esse período, a arquitetura passou por uma fase de crescimento que se estendeu por décadas, culminando com a inauguração de Brasília, decorrendo de momentos de transição política e cultural atrelados às circunstâncias de desenvolvimento industrial, inovações tecnológicas e comportamentos artísticos de vanguarda.
Nesse período, antecedente ao regime militar, existia um aspecto otimista, em que se via uma afirmação profissional alcançada pela arquitetura modernista no Brasil. Em uma linguagem vanguardista, surgiu uma definição do perfil profissional, o que contribuiu no estabelecimento de notoriedade para a classe de arquitetos que se formava cada vez mais como um grupo coeso. Foi um período de hegemonia da arquitetura brasileira, num contexto de realizações de obras com caráter excepcional vinculadas ao Estado (DURAND, 1989).
Após a fase que culmina em Brasília, os arquitetos ocuparam bom número de postos em instâncias estatais direta ou indiretamente incumbidas da administração urbana. Mas essa foi uma fase de produção excessiva quanto à nova linguagem dos projetos que poderia estar sujeita às exigências do novo governo militar, às tecnologias industriais e a um mercado imobiliário que se apresentava cada vez mais crescente (DURAND, 1989). Essa circunstância favoreceu a infraestrutura capitalista de um certo número de construtoras de grande porte que podiam se estabelecer, vinculadas aos relacionamentos mercadológicos com o Estado. Com isso, há uma transferência de competências do arquiteto para as empresas e os diretores de canteiros, onde o arquiteto não podia mais negociar soluções técnicas inovadoras, visto que, a fim de resolver certas dificuldades do projeto, ele teve que aceitar as soluções propostas pelas grandes empresas burocratizadas (DURAND, 1989).
Nesse momento, consolidam-se as disputas entre arquitetos e engenheiros no período do regime militar, com a entrada das grandes empreiteiras e a “requisição” política de uma maior tecnicidade industrial do momento. A partir da constituição do CAU em 2010, acirra-se essa batalha e se estabelece uma disputa no âmbito dos questionamentos quanto às atribuições exclusivas do arquiteto, sobretudo à elaboração de projetos de arquitetura. Nessa disputa, as partes envolvidas buscaram analisar as estruturas curriculares dos cursos acadêmicos das duas esferas profissionais e, num fracassado esforço de entendimento entre os dois grupos profissionais, criou-se um litigioso confronto movido pela Federação Nacional dos Arquitetos (FNA) contra o sistema CONFEA/CREA.
Vale sobrelevar que, em alguns países da Europa, também ocorria o declínio de sobreposição da atividade de arquitetura e urbanismo sobre as demais envolvidas no processo construtivo, sobretudo na França, país de origem do sociólogo francês Florent Champy e local em que surgiu a primeira organização associativa e o primeiro código de conduta profissional dos arquitetos. Sociólogo, estudioso do trabalho profissional e das dificuldades inerentes a este, Champy (2011) faz abordagem sob um novo olhar das recentes trajetórias no trabalho, sobretudo quanto à autonomia dos profissionais. Ele tem várias análises sobre a arquitetura e, em seus estudos, apresenta algumas conjunturas do grupo profissional que podem caracterizar a redução do campo de atuação do arquiteto.
Vê-se na França o mesmo percurso ocorrido no Brasil, onde, no passado, o campo profissional era exclusivo dos arquitetos, mas que, gradativamente, foi passando a estabelecer um pé de igualdade com os parceiros das equipes que atendem às demandas de programação de um mercado repleto de especificidades. O ato de recorrer a esses outros atores justifica-se pela complexidade do projeto, que requer a aplicação de saberes que a arquitetura pode não dispor. Mas, mesmo se não houver a necessidade de tais saberes, os mesmos poderão ser impostos pelo gerenciador de projetos, caso ele os julgue imprescindíveis.
As intervenções especializadas conheceram uma ampliação notável, caracterizada pelo surgimento de tarefas de criação que não concernem mais apenas aos aspectos técnicos da construção, necessários à observância das exigências da construção, mas, também, aos aspectos atinentes à harmonia e ao equilíbrio das especificidades. Os engenheiros conselheiros e os escritórios de consultoria passaram a se unir, com frequência, aos paisagistas ou aos urbanistas, que se encarregaram de zelar pela boa integração do imóvel ao local; participa ainda, às vezes, um profissional da acústica ou mesmo um decorador para contribuir na definição dos ambientes. Esses novos parceiros adentram, portanto, cada vez mais, na zona restrita do arquiteto (CHAMPY, 2011).
2 Postos de Atuação em Aracaju
As informações, contidas no censo CAU/SE, quanto às “atuações em campos profissionais” (Figura 01) e “maiores remunerações individuais” (Figura 02), correspondem às diretrizes para configurar o caráter de notoriedade, ao que me refiro aqui como protagonismo. Sugiro esse critério para identificação do protagonismo pelo fato de estar diretamente relacionado com o tema dessa investigação que envolve uma categoria e sua relação com o mercado de trabalho, objeto de análise da pesquisa.
Na Figura 01, podemos observar as áreas de atuação dos arquitetos sergipanos. Assim, para se fazer um recorte mais claro dos requisitos de notoriedade definidos aqui, consideraram-se os sete maiores campos de atuação que possuem uma maior significância de representatividade das atividades da categoria. Portanto, conforme o censo CAU/SE, verificou-se que: 26,25% dos profissionais trabalham, majoritariamente, com concepção de projetos; um número menor, mas significativo, 15,52%, participa regularmente da fase de execução de obras; a arquitetura de interiores é também uma demanda frequente, com 18,15% dos profissionais dedicados a essa área; pequenas parcelas do total da categoria dedicam-se a atividades como planejamento urbano (5,40%), paisagismo (5,87%) e ensino (3,98%); e 8,10% são funcionários do serviço público.
Dos 14 entrevistados considerados, os dados revelam que: 2 recebem entre 5 – 10 salários mínimos mensais[8]; 7 recebem entre 10 – 15; 3 entre 15 – 20; 1 entre 20 – 25 e 1 acima de 30. Vale aqui uma distinção significante que está associada não só à forma de atuação, como também aos cargos assumidos pelo arquiteto. Os dados obtidos nas entrevistas revelam que os rendimentos mais elevados se concentram nos arquitetos que possuem escritórios de arquitetura. Entretanto, de acordo com o censo do CAU/SE, percebe-se que a grande maioria dos arquitetos não é composta por proprietários de empresas, mas por profissionais que trabalham como autônomos, sem estrutura formal de pessoa jurídica. Conforme demonstrado na Figura 03.
Na Figura 04, conseguem-se identificar, em destaque, as quatro fontes de renda de maior prática profissional dos arquitetos atuantes em Sergipe. Também se identifica, nesse levantamento, a relação das remunerações com alguns segmentos de atuação profissional. Tais atuações estão em foco neste artigo e confirmam a convergência de análise que está sendo realizada. Conforme a Figura 04, estes são os segmentos de atividades de maior atuação no estado: proprietários de empresas de arquitetura, funcionários públicos e profissionais autônomos.
Com os RRTs, foi identificada a locação dos arquitetos nos postos do mercado de trabalho em Aracaju; em seguida, realizou-se o cruzamento de informações com finalidade de determinar quem são os profissionais considerados como personagens principais a serem submetidos à abordagem de análise crítica. Realizou-se um diagnóstico sobre os questionários aplicados, com o intuito de compreender as trajetórias dos profissionais que ocupam posição de destaque no mercado de trabalho. Interpretou-se, assim, uma descrição das suas carreiras, buscando apreender aspectos biográficos e confrontando com as informações de distribuição dos arquitetos, fornecidas pelo CAU/SE, nos postos do mercado de trabalho de Aracaju.
3 Recursos de socialização e trajetos profissionais
A análise das trajetórias e dos relatos de vida dos arquitetos permite a articulação de temas de características objetivas – ocupação dos pais, escolaridade, cargos, inserção em outras esferas – com as questões de ordem subjetiva – relatos sobre as origens, sobre a entrada na arquitetura, motivos para a escolha do curso. Tais relatos estão relacionados a percepções mais gerais sobre a profissão e sobre a importância que assumem diferentes títulos para o exercício da arquitetura (DUBAR, 2005). A socialização familiar, a socialização profissional e outras formas de socialização constituem formas de acumulação de recursos sociais que podem permitir o acesso a posições profissionais e a ascensão interna na atividade. Assim, considera-se que as fontes de renda, aliadas às atividades de maior importância no universo da categoria, podem ser alcançadas a partir de vários mecanismos de recrutamento, que podem estar associados à criação de redes de relacionamentos, às posições de origens mais altas, à utilização do diploma como um instrumento de destaque social e ao investimento em atividades que produzem maior visibilidade social e retornos financeiros. Nesse aspecto, identificaremos, a seguir, as formas de utilização desses variados recursos que contribuem para a inserção e formação da hierarquia interna do mercado de trabalho do arquiteto e urbanista.
3.1 Origens sociais
Com relação à profissão do pai, os dados coletados apontam que: 50% são funcionários públicos, 40% são comerciantes e 10% são funcionários de empresas particulares. Quanto ao nível de escolaridade do pai, 57,1% têm o segundo grau, 28,6% o primeiro grau e 14,3% o nível superior. Já quanto à profissão da mãe, 64,3% são donas de casa, 21,4% funcionárias públicas e 4,33% são envolvidas com política; e quanto ao grau de escolaridade dessas, 78,6% possuem o primeiro grau, 14,3% terminaram o segundo grau e 7,1% têm ensino superior.
Esses dados mostram que a maioria dos arquitetos possui pais que exercem funções que não precisam de formação escolar e que no conjunto têm uma baixa escolarização. Contudo, para essas informações passarem a ter relevância no estudo da ocupação de cargos na arquitetura e urbanismo e ascendência na estrutura da profissão, é preciso estabelecer relações com a posição atual ocupada na arquitetura, em empresas privadas e no órgão público a que pertence o arquiteto. Daqueles que ocupam posição de cargo de livre provimento e chefia honorífica, 7 ao todo, 3 são filhos de comerciantes, e 4 são filhos de funcionários públicos. Desses profissionais que ocupam cargos de funcionalismo público, estão os 50% dos pais que possuem até o segundo grau de formação escolar. Do total, 14 casos, somente há 1 caso em que a mãe possui nível superior. Nesse caso, o profissional é ocupante de um dos maiores cargos públicos de relevância na cidade. Quanto à formação dos pais, 8 apresentam segundo grau completo, 5 deles são pais de arquitetos funcionários públicos.
Ademais, da circunstância dos pais com segundo grau completo representarem os ocupantes de cargos de chefia pública, faz-se necessário aliar esses dados ao órgão público ao qual esses profissionais estão vinculados. As instituições em que aparecem os arquitetos como ocupantes no quadro de chefias públicas são as seguintes: prefeituras – órgãos de licenciamento de obras, secretarias de planejamento etc. –, o Instituto Banese[9] e o CAU/ SE. Nessas instituições, existem 7 arquitetos cujos pais finalizaram o segundo grau completo e apenas 1 pai possui o primeiro grau. Isso indica que, quanto maior a posição ocupada pelo arquiteto nos órgãos públicos, maior são os níveis de formação escolar e de profissão dos pais dos ocupantes de cargos de chefia pública. Portanto, nota-se uma homologia entre a posição ocupada no espaço profissional e a posição de origem, como sugere Bourdieu (1989), ao ver determinados recursos que são associados à família, ao econômico e à política, como constituintes de um mecanismo de distinção social.
A socialização familiar exerce um papel fundamental para a obtenção de uma posição social e profissional elevada. Trata-se de uma condição de legado cultural adquirido pelos meios de “prestígio social” associados às origens sociais do arquiteto. Portanto, a família e a posição de origem podem contribuir não só na definição social do indivíduo, como também na seleção entre membros de um mesmo grupo social e familiar. Dessa forma, o reconhecimento das origens sociais pode constituir um artifício para compreender a ocupação de algumas posições de relevância profissional.
3.2 Mecanismos de inserção e atuação profissional
O estágio, em construtoras, órgãos públicos e escritórios de arquitetura, apresenta-se como uma importante etapa no trajeto de ingresso na carreira profissional, sobretudo a ser realizado na formação universitária, momento em que as redes de relacionamento têm uma tendência a serem estabelecidas. O estágio pode ser considerado como componente do conjunto de artifícios para as inserções sociais, pois ele contribui com o acúmulo de recursos que podem ser transformados em posições profissionais e destaques de oportunidades de trabalho. Portanto, o estágio é visto como um investimento na atmosfera de iniciação no mercado de trabalho e, dessa forma, pode se tornar de fundamental importância para a obtenção de recursos sociais que ajudam a ampliar os espaços de atuação profissional.
O relato abaixo, de um dos arquitetos entrevistados, ilustra a importância que assume a socialização profissional a partir do ingresso nos estágios, sobretudo quanto à constituição das redes de relacionamentos que contribuem tanto para a constituição da formação profissional, antes e após a titulação acadêmica, como para a projeção dos trabalhos de visibilidade no mercado de trabalho do arquiteto:
O estágio foi fundamental para eu me manter em Salvador. Eu estagiei e ganhava meio salário mínimo, pois eram quatro horas por dia, quando chegou nas férias eu comecei a trabalhar o dia todo e meu salário aumentou e ao retornar das férias permaneci nesse horário. Era estágio no escritório de Ricardo Freire[10], onde fiquei um ano e meio porque eu comecei a fazer meus projetos para amigos em Aracaju, foi quando fiz o meu primeiro projeto, como estudante ainda, para um funcionário do Banco do Brasil, que mostrou para os amigos, que gostaram da casa e me chamaram para fazer as casas deles também. [...]. Foi quando resolvi sair do estágio porque não estava mais dando conta de tanta coisa, foi quando ele disse que estava pensando em me propor sociedade no escritório, mas eu não queria. Eu estava projetando para os amigos de meus irmãos mais velhos que eram funcionários públicos e aí quando eu me formei eu já me sustentava tranquilamente, pois já tinha uma clientela e vivia por conta própria [...] (Entrevista 3).
Essa fala demonstra que os espaços são conquistados antes mesmo da obtenção do diploma e o fato de que, apenas a apresentação como um estudante de arquitetura, torna possível o ingresso em estágios que proporcionam um movimento expressivo na socialização do candidato ao ingresso na área. Dessa forma, essa socialização indica que não é apenas por meio do título acadêmico que se ocupam os espaços, pois quando se obtém o diploma já se tem um conjunto de relações e contatos definidos.
Os dados coletados mostram que uma forma muito comum de entrada na profissão e possível ascensão na hierarquia ocorre através de indicações para a ocupação de cargos públicos, como chefias e diretorias de instituições do estado. A procura por ocupação nessas funções é muito intensa, pois os salários são altos e a permanência no período de gestão política é garantida, já que as indicações para a posse dessas colocações são realizadas por amigos próximos e, em alguns casos, por parentes. O prestígio das redes de relacionamentos é considerado como uma abertura na inserção desse mercado e as “influências” quanto às amizades e conhecidos são uma via determinante para a ascensão de postos de atuação, como, por exemplo, o progresso de estagiário para ocupação direta em um cargo de chefia ou diretoria pública.
[...]. Eu entrei aqui, eu acho que estava no sexto período, coloquei o currículo debaixo do braço, vim fazer uma entrevista com a diretora, ela era coordenadora ainda, não era nem diretora na época, e aí conversando com ela, e ela percebeu meu nome, que é singular, e ela lembrou do pai e disse que conhecia meu avô, ela conhecia minha família e, aí, acho que ela se sensibilizou e deu a oportunidade de estagiar. Na mesma época, eu consegui um trabalho no tribunal de contas, onde recebia muito mais [...], mas eu preferi vir para cá que é minha área, vou ganhar menos, mas eu vou aprender e foi o que aconteceu, até hoje eu estou por aqui e hoje como diretor. (Entrevista 4).
Em muitos casos, são as necessidades comerciais que determinam a continuidade de ocupação no cargo público e são definidas via “atendimentos” de demandas que as relações de amizades estabelecem. Essas são situações que, corriqueiramente, acontecem em momentos de alternância da gestão pública, com a troca de secretários municipais. Por consequência, as indicações de “amigos” para as ocupações de cargos de confiança acontecem associadas aos favores que são concedidos em forma de contrapartida. Exemplo disso são as “desburocratizações” de processos, de empresas, dependentes de aprovações em órgãos públicos municipais.
Vejamos o que um dos entrevistados relatou quanto à sua experiência na ocupação de um cargo público de confiança e como ele lida com as questões de desburocratização na relação de trabalho. Vale destacar que o profissional interrogado ascendeu de cargo a partir de seu ingresso no estágio.
Eu acho que hoje eu cheguei aonde eu queria que é chegar à diretoria [...], você estar à frente [...] de estar comandando [...] aí você começa a sentir essa importância [...] se você disser: você tem influência? Eu vou dizer: tenho; não vou dizer que eu não tenho, hoje eu tenho influência, tanto é que eu continuei por influência, influência no meio político, porque a gente vai conhecendo as pessoas, eu sempre fui uma pessoa de me relacionar muito bem com todo mundo, não tenho inimigo. Minha rede de relacionamentos foi tudo fruto do trabalho das pessoas verem o trabalho andar, fluir, desburocratizar dentro da medida do possível. O que eu escuto muito deles é que [...] isso aqui não existe se não tiver o bom senso, senão trava [...] (Entrevista 4).
Conforme observado, o órgão público representa, para o universo da arquitetura e urbanismo, um potencial trajeto de inserção no mercado de trabalho, e, nessa perspectiva, a intenção de penetração nesse circuito da atmosfera pública torna-se cada vez mais forte, pois é um espaço envolto numa diversidade de agentes que produzem fortes possibilidades de ascensão profissional. Nessa direção, vários aspectos de crescimento profissional podem surgir, como por exemplo a estabilidade financeira dos escritórios de arquitetura e urbanismo, o encadeamento contratual com órgãos públicos e a inserção em grandes construtoras/empresas, para assumir cargos de chefia. O relato abaixo fornece alguns elementos para observarmos essa relação.
Eu mesmo, quando eu me formei, eu fui convidado para trabalhar no serviço público. Aí, fui contratado [...]. O chefe que me convidou era meu cliente e eu tinha feito a casa dele e ele me conheceu, gostou da casa e aí me chamou. Ele me contratou e viabilizou esse negócio porque pelo governo de estado não podia contratar porque tinha que ter o concurso. [...] eu me formei em dezembro de 1988, em março de 1989 eu já estava lá. Eu estava fazendo meus projetos em casa e não tinha capacidade para montar um escritório e tudo mais, e eu fazia em casa, não tinha despesa, estava começando e aí eu tinha esse receio, não sabia como era o mercado, então apareceu esse serviço e achei ótimo, eu tinha um emprego garantido ali [...]. Eu trabalhava o dia todo lá e à noite fazia meus projetos [...]. O “boom” do trabalho foi nesse sentindo, fazendo residências para funcionários públicos [...], aí eu pedi uma licença sem rendimentos pra me garantir, pra ver se ia dar certo. [...]. Então, pedi minha licença com validade de dois anos e me dediquei totalmente ao escritório, no término de dois anos eu pedi demissão. Não voltei mais e o escritório se estabeleceu. (Entrevista 3).
O caminho de chegada ao cargo público é estabelecido por várias possibilidades de acesso e, em muitos casos, o contato cotidiano do profissional com o órgão público torna-se, até certo ponto, inevitável devido à necessidade do aval técnico do Estado. Nesse sentido, os escritórios e construtoras, que têm a necessidade de interação com as regulamentações de ordem pública, precisam manter um intenso contato com as diretrizes de construção, que se originam desses órgãos. Nessa aproximação com os setores públicos em que estão envolvidas as atividades de arquitetura, o agente que faz a intermediação dos processos estabelece “conhecidos” que passam a compor uma rede de relacionamentos. Com isso, tal rede passa a contribuir com o agenciamento de uma possível inserção e ascensão da vida profissional do arquiteto dentro do órgão público onde foram criados diversos contatos.
[...] A Construtora ganhava a licitação e passava os trabalhos para eu desenvolver, na realidade eu fazia mais do que só projetar, [...]. Aí, eu comecei a ter contato com pessoas da prefeitura, [...], Samuel Vaca[11] era o presidente na época, ele gostou do meu trabalho e, ao invés de pagar a obra na Construtora, ele simplesmente me chamou para fazer o mesmo que eu fazia lá, só que eu fazia para a própria prefeitura, ao invés dele pagar para a empresa desenvolver, botou um profissional dentro da própria prefeitura que desenvolvesse isso. [...]. Eu era a técnica do setor, até depois disso, em alguns momentos, eu cheguei a exercer funções de chefia [...]. (Entrevista 1).
Soma-se aos critérios de formação para ocupação de cargos de relevância o fato de os arquitetos protagonistas possuírem uma origem social mais elevada vinculada a perfis de ordem política. Nota-se que a definição considerada fundamental para o exercício da profissão passa pela família e o que ela proporciona em termos de acesso a certos recursos. Mas existem recursos vinculados aos sobrenomes das famílias que perpassam pelas necessidades de avaliação para a entrada ou não nos cargos de ocupação pública. De qualquer forma, a família e suas relações se tornam importantes para o exercício da arquitetura. Ao ser questionado quanto à influência do sobrenome político em sua carreira, o entrevistado, cujo fragmento de entrevista é citado adiante, relata a importância da presença política para a imersão e ascensão na arquitetura e urbanismo.
[...] o meu sobrenome tem uma coisa aí meio dúbia, porque quando meu primo ainda não estava no poder queriam cercear a minha atuação porque diziam que meu sobrenome era da oposição, mas eu sempre soube lidar com isso e sempre tive o respeito das duas partes, da situação e da oposição, então mesmo no governo oposto eu trabalhei [...]. Não posso dizer que meu sobrenome me atrapalhou, mas incomodou muita gente [...], não só pelo fato de meu primo ter sido um expoente aqui em Sergipe, e eu acho que o nome dele sempre esteve associado também à seriedade, à honestidade, então eu acho que esse legado, [...] como ele foi a pessoa que mais se projetou na nossa família, ele deixou também esse legado para a gente. [...]. (Entrevista 5).
Para os profissionais com origens sociais mais baixas, a vivência na faculdade não é apenas o determinante para a formação de conhecimentos, mas também para se fazerem os primeiros contatos, com professores atuantes no mercado de trabalho, que o possibilitarão ingressar nos estágios que serão a porta de entrada para as efetivações em empregos e captação de futuros clientes. Vejamos um extrato do diálogo em que um dos entrevistados demonstra sua impressão quanto à formação acadêmica superior e a relação que ele faz com a prática profissional. Vale ressaltar que esse arquiteto permanece há treze anos trabalhando em cargo público comissionado.
[...]. Meu conhecimento em arquitetura e urbanismo [...] para dizer assim, de zero a dez [...], eu acho que quarenta por cento do meu conhecimento foi da Unit[12] e o restante daqui. O meu tempo todo foi dedicado aqui, e na Unit eu nunca fui desses alunos pra dizer que eu sempre fui dedicado, agora, a partir do momento que eu comecei a pagar minha faculdade, os valores são outros e aí você tem que correr atrás [...] e eu nunca tive dúvida de que o que eu quisesse ser ia depender do meu desempenho profissional [...], e também chega um momento que você vê que a faculdade já não agrega mais nada, só lhe consome, só lhe suga [...]. (Entrevista 4).
Aqueles que se colocam defensores do diploma como constituinte da qualificação e habilitação profissional indicam o currículo acadêmico como essencial para evitar a entrada de novos atores no mercado de trabalho, “restrito”, dos arquitetos e urbanistas. Constitui-se, então, como uma estrutura de poder para a profissão, poder baseado na expertise, garantido pelo controle profissional e renovado pela confiança entre o profissional e o cliente. Inclusive, nesse aspecto, há um discurso comparativo da trajetória da arquitetura com outras profissões que requerem uma especialização acadêmica ou profissional, como a medicina e o direito. Vejamos:
A importância da grade é imensa, mas o resultado prático tem sido nenhum, as faculdades não têm uma personalidade muito bem definida [...], por que que você acha que os médicos são valorizados? Uma coisa que eu sempre achei interessante é que realmente se a gente tivesse a prova de título, como tem uma OAB, como tem na medicina [...], é uma diferença que faz os médicos e os advogados serem mais respeitados inclusive, porque os advogados saem generalistas, mas normalmente ele vai buscar uma formação complementar para atuar em alguma área, você tem o advogado criminalista, civil, patrimonialista, de direitos autorais, enfim, você tem várias formações específicas dentro da área, dificilmente você encontra um escritório de advocacia generalista e normalmente escritório de arquitetura atira para todos os lados [...], essa competição antropofágica que a gente tem é complicada. (Entrevista 1).
Por fim, permite-se aqui mostrar o quanto as características daqueles que investiram em arquitetura, em termos de recursos sociais acumulados, contribuem para consolidar um capital de relações sociais fundamentais para a entrada na arquitetura. Dessa forma, por intermédio de modelos analíticos e resultados de investigações empíricas, destacam-se aqui abordagens fundamentais para a análise sociológica das profissões e das ocupações, apresentando os estudos aqui realizados como instrumentos importantes para a leitura das plurais recomposições sociais, econômicas e culturais que atravessam o mundo do trabalho nas atuais sociedades globalizadas.
4 A influência do CAU e a percepção dos Arquitetos quanto às questões de sombreamento e jurisdição profissional
Assim como o diploma, o conselho de classe também necessita de vinculações com outras esferas e instrumentos de recursos. Essa condição faz-se necessária para que esse órgão possa se estabelecer enquanto entidade de ações coletivas comunitárias que compartilha valores e ocasiona a união e valorização profissional. Portanto, a análise, que aqui tem merecido atenção, está relacionada com as relações macrossociais determinadas pelo CAU. Nesse aspecto, abordam-se questões que transformam a profissão em agente do poder e levantam-se questionamentos quanto aos processos que ocorrem no interior das associações, buscando-se entender os interesses que estão subjacentes.
A nova lei de regulamentação e suas recém-criadas resoluções – Resolução nº 51 CAU/BR e o código de ética – acirraram processos de divergências com outras profissões, como também consequentes divisões internas do grupo profissional de arquitetos e urbanistas. Dessa forma, percebe-se que as intenções quanto à criação do conselho vão além dos critérios que estabelecem as autarquias federais, mas também estão relacionadas com as questões de reserva de mercado e limite de jurisdição e poder.
As questões de sombreamento nas profissões e nas ocupações relacionadas à área de construção civil são discutidas há anos, mas as disputas litigiosas e consequente acirramento da discussão passaram a ocorrer a partir da existência do Conselho de Arquitetura e Urbanismo. Tal situação, já comentada no início deste artigo, tornou-se condição para enfrentamentos, sobretudo quando se tem a intenção de determinar os limites de atuação dos grupos de profissionais que se enveredaram nessa dinâmica.
Esse tema está envolto em opiniões favoráveis e contrárias quanto às possibilidades e necessidades de consenso extraprofissional, pois nessa condição estão acrescidos outros interesses que vão além da limitação de entrada de novos atores. Opostos ao posicionamento de tolher a inserção de outros atores em áreas consideradas restritas pelo Conselho de Arquitetura, existem aqueles que veem com naturalidade a diversidade de especialidades atuando em projetos de arquitetura. Esse posicionamento vem à tona a partir de um momento em que o mercado de arquitetura parece se tornar retraído por diversos fatores e que o tornaram cada vez mais restrito.
No grupo de entrevistados, 57,1% desses são favoráveis ao sombreamento; 28,6% são contra e 14,3% não opinaram nem a favor nem contra, mas consideraram que as atribuições devem ser delimitadas pelas entidades de classe.
Vale destacar as relações que a atribuição específica da atividade de arquitetura estabelece com as opiniões quanto às questões de sombreamento. Portanto, as formas de atuação são fundamentais na determinação de quem se posiciona contra ou a favor. Nesse aspecto, percebe-se que algumas atividades de arquitetura possuem uma ligação direta com as práticas de atividades articuladas com outras profissões. Assim sendo, vejamos como acontecem tais relações com as atividades realizadas pelos arquitetos entrevistados: dos casos favoráveis, 5 atuam com elaboração de projetos complementares, 2 trabalham com projetos de interiores e 1 é paisagista; dos casos em que não foi emitida qualquer opinião a respeito, todos os 2 são funcionários públicos; dos entrevistados que são contra, 1 trabalha apenas com projeto de arquitetura, 2 são professores universitários e são conselheiros do CAU/SE e 1 trabalha com arquitetura de interiores. Esse último declarou que sua atuação está reduzida em 80% por conta do sombreamento.
De 0 a 100, acho que caiu uns 80%, eu tinha um número fantástico de clientes, do início da carreira até uns três anos atrás, [...], tinha um número muito grande, tipo assim, vinte a trinta clientes por mês, hoje em dia tenho no máximo três clientes por mês, e os clientes estão cada vez mais exigentes, não é como antigamente, não é como antigamente que faziam orçamento com a gente e aí não tinha tanta opção como hoje tem, de profissional formado [...]. (Entrevista 7).
Esse mesmo entrevistado também afirma que, mesmo com a formação e estabelecimento da rede de relacionamentos, o contato com o cliente tem sido quebrado a partir da inserção de novos atores que articulam entrar no mercado de trabalho com valores de projetos mais baratos. Isso indica que o capital social nem sempre é o fator principal de permanência no mercado, já que os interesses financeiros se sobrepõem aos interesses utilitários e de relacionamentos.
[...] Na verdade, a gente foi em várias construtoras, mas a maioria fechou as portas para gente, nem deram importância, e aí essa construtora que foi a FFB, abriu as portas para a gente [...] eles já estavam com o empreendimento pronto, a gente se ofereceu a fazer esse decorado de graça, pois a gente queria mostrar nosso trabalho para eles verem o que iam achar [...]. A gente pegou uma amizade muito grande lá dentro, mas depois desse último empreendimento, a gente só fez uma parte dele e aí ele cismou, não teve jeito e ele deu continuidade com outro profissional mais barato [...]. (Entrevista 7).
Os entrevistados favoráveis ao sombreamento, todos, trabalham com atividades que não são restritas ao projeto de arquitetura, abrangendo atribuições que, no mercado de trabalho, também dialogam com outras áreas, como engenharia civil, decoração e paisagismo. Já os que são contra se dividem entre conselheiros estaduais do CAU/SE e atuantes na arquitetura de interiores. Portanto, é um grupo formado por ativistas na defesa da restrição de atribuições e por profissionais atuantes no segmento da arquitetura de interiores e que responsabilizam a retração de atuação ao sombreamento com os designers de interiores. Logo, percebe-se que, ao defenderem ou serem contra o sombreamento, os arquitetos estão defendendo o seu espaço de atuação individual, receando a redução de sua abrangência de trabalho. Um dos arquitetos que trabalha com arquitetura de interiores afirmou:
A pessoa que vai contratar um arquiteto não deve contratar um charlatão, tem que contratar uma pessoa que tenha conhecimento, quer dizer, teoricamente, que pelo menos passou na escola, recebeu o diploma. Eu acho que tem que existir o conselho. O CAU tem que trabalhar mais [...] começou recentemente [...], mas acho que o CAU tem que trabalhar mais no sentido de fortalecer a profissão e não perseguir. Tem que entender o mercado, como está o mercado e não simplesmente ficar num pedestal julgando e condenando. Tentar regularizar o mercado, é isso que precisa ser feito, isso é o CAU. (Entrevista 3).
A intenção de criação dos limites de jurisdição não parece ser um interesse coletivo de classe, pois o grau de importância dedicado às questões, relacionadas com os sombreamentos, é determinado a partir de requisitos individuais que podem afetar diretamente a forma particular de atuação do profissional de arquitetura. Dessa forma, dentro do grupo de profissionais arquitetos, são formados outros grupos que passam a se posicionar de acordo com as formas de atuação de cada grupo restrito. Portanto, a fonte de renda e a forma de atuação profissional são critérios fundamentais para determinarem as “bandeiras defendidas” quanto a ser contrário ou a favor do sombreamento.
Portanto, percebe-se que as informações a respeito das intenções profissionais individuais e das consequentes divisões internas da categoria dos arquitetos são as percepções quanto aos reais fundamentos básicos de conflitos sobre os sombreamentos das atividades inerentes ao campo da construção civil. Contudo, essa relação é associada às formas de atuação e fontes de renda dos profissionais, portanto existe uma conexão entre as trajetórias de atuação profissional e as vantagens pessoais profissionais que o ponto de vista ocasionará. Assim, tais informações levam a formular que a ideia segundo a qual, quanto maior o estabelecimento dos rendimentos financeiros e quanto maior a abrangência de atuação em diversas áreas da arquitetura, menos o sombreamento será um problema para a categoria.
Considerações finais
Este artigo constituiu-se na busca de uma contribuição para a Sociologia, no que concerne a ajudar a compreender mais acerca de questões atinentes à profissão de arquitetura e urbanismo, mais especificamente, no entendimento das dinâmicas sociais de formação do grupo profissional. Os confrontos extraprofissionais para imposição de atuação de atribuições de profissões distintas foram reveladores não apenas de uma luta por espaço no mercado de trabalho, mas também possibilitam mostrar uma divisão interna, entre os pares arquitetos, estimulada por diversificações de opiniões quanto às formas e condutas de atuação no mercado de trabalho. As declarações, nas entrevistas, foram também significativas, no sentido de que expuseram os reais interesses que estão por trás dos discursos de defesa e ataque à lei de regulamentação profissional dos arquitetos. Nessa esfera, o conselho de classe se apresentou como um instrumento de edição de recursos vinculados ao poder de determinação das relações no campo de atuação da profissão. Foi justamente, nessa condição, que as opiniões favoráveis e contra a nova lei de regulamentação se instalaram e, assim, as disputas internas foram evidenciadas.
A análise das trajetórias mostrou que o exercício da atividade de arquitetura e urbanismo apresenta-se associado à competência de aplicação em diversas áreas de atividade e que essa condição proativa é determinante para o êxito na trajetória profissional. Ademais, várias informações relevantes foram encontradas em um mesmo percurso em conjunto, o que permitiu compreender a história coletiva da arquitetura, e, dessa forma, reconhecer os recursos que descrevem os investimentos na profissão de arquitetura e urbanismo.
A profissão é um espaço de confronto por uma reserva de mercado e o local de disputa entre estruturas de atuação profissional; portanto, a análise dos conflitos, em torno do mercado de trabalho do arquiteto, permite mostrar que o que está em disputa é a definição das formas e condutas de atuação que podem ser utilizadas para inserção e ascensão na arquitetura. Mas vale ressaltar que não são apenas as afinidades de atuação que compõem esse grupo profissional, mas também os amigos ou conhecidos com os quais o arquiteto possui laços, ou seja, elos familiares ou as relações estabelecidas no período de estudo universitário e na trajetória de trabalho.
Com a saída dos arquitetos do CREA e a subsequente criação do CAU e da Lei 12.378/10, cria-se um cenário envolto em processos que a profissão articula para tentar controlar o mercado de trabalho. Além disso, existe também a expectativa de impor os recursos e as concepções legítimas da profissão. É o que acontece a partir da edição da Resolução nº 51, que estabelece as atividades privativas da atividade de arquitetura e urbanismo.
A compreensão das manifestações dos arquitetos a favor ou contra as ações do novo conselho permitiu mostrar que os propósitos profissionais individuais e de grupos específicos representam estratégias para ampliação dos espaços nos quais os arquitetos atuam no momento. Ou seja, o que determina os posicionamentos quanto ao novo conselho é o alcance de interferência da autonomia da autarquia e as possíveis consequências mercadológicas na profissão. As informações levantadas a partir da realização das entrevistas permitiram perceber que o discurso, em defesa da nova lei de regulamentação, está associado à necessidade de valorização profissional, bem como ao controle de entrada de novos atores no campo de atuação dos profissionais. Essa argumentação parece estar vinculada aos arquitetos com perfil mais de defesa nas suas questões regulamentares, dos seus vínculos empregatícios.
Conclui-se que a administração das relações é fundamental ao longo da vida profissional, e os recursos de inserção e ascendência profissional, referenciados anteriormente, são fundamentais para isso. Por meio da análise da carreira dos arquitetos e sua principal entidade representativa profissional, foi possível constatar a existência, no universo da profissão de arquiteto e urbanista, de um processo de reconversão de capital social, movido pelo exercício do saber técnico num âmbito político e de disputas. Tem-se também a concepção dos moldes capitalistas em elementos de produção da arquitetura, e que envolve o trabalho do arquiteto estabelecido no exercício de atividades que vão além de serviços de arquitetura.
Portanto, este estudo concedeu uma melhor perspectiva de compreensão da profissão de arquiteto e urbanista, e esse entendimento foi se tornando mais consistente muito em razão da escuta dos arquitetos entrevistados, que expuseram suas concepções a respeito das divergências nas formas de participação no mercado de trabalho, contribuindo assim para a reflexão da formação das profissões. Desse modo, este artigo constituiu colaborações significativas para a reflexão da composição das profissões e das teorias quanto à profissionalização e mercado de trabalho.
Referências bibliográficas
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RODRIGUES, Maria L. (2002), Sociologia das Profissões. 2 ed. Portugal: Celta.
APÊNDICE
LISTA DAS ENTREVISTAS
Organização das entrevistas realizadas por: sexo, idade, emprego, forma de atuação na arquitetura e urbanismo e data de realização da entrevista.
Entrevista 01: feminino, 56 anos, funcionária pública na Empresa Municipal de Obras e Urbanização de Aracaju, proprietária de escritório de arquitetura e urbanismo, outubro de 2017.
Entrevista 02: masculino, 63 anos, aposentado e proprietário de escritório de arquitetura e urbanismo, outubro de 2017.
Entrevista 03: masculino, 61 anos, aposentado e proprietário de escritório de arquitetura e urbanismo, outubro de 2017.
Entrevista 04: masculino, 36 anos, funcionário público na Empresa Municipal de Obras e Urbanização de Aracaju, novembro de 2017.
Entrevista 05: masculino, 42 anos, superintendente do Instituto Banese, proprietário de escritório de arquitetura e urbanismo, professor universitário na UNIT, novembro de 2017.
Entrevista 06: feminino, 64 anos, presidente do CAU/SE, professora universitária na UFS, novembro de 2017.
Entrevista 07: feminino, 37 anos, autônoma, novembro de 2017.
Entrevista 08: masculino, 39 anos, proprietário de escritório de arquitetura e urbanismo, conselheiro do CAU/SE, novembro de 2017.
Entrevista 09: masculino, 66 anos, proprietário de escritório de arquitetura e urbanismo, novembro de 2017.
Entrevista 10: feminino, 41 anos, funcionária pública em prefeitura do interior do Estado de Sergipe, proprietária de escritório de arquitetura e urbanismo, setembro de 2017.
Entrevista 11: masculino, 45 anos, funcionário público do Governo do Estado de Sergipe, proprietário de escritório de arquitetura e urbanismo, outubro de 2017.
Entrevista 12: masculino, 53 anos, proprietário de escritório de arquitetura e urbanismo, setembro de 2017.
Entrevista 13: masculino, 65 anos, aposentado, outubro de 2017.
Entrevista 14: masculino, 60 anos, funcionário público em prefeitura, setembro de 2017.
Notas