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“Meu Deus! Meu Deus! Está Extinta a Escravidão?”: o Imaginário Político Brasileiro

“My god! My god! Is slavery extinct?”: The Brazilian political imaginary

Glória Diógenes
Universidade Federal do Ceará, Brasil
Paulo Henrique Martins
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil

“Meu Deus! Meu Deus! Está Extinta a Escravidão?”: o Imaginário Político Brasileiro

Revista Brasileira de Sociologia, vol. 6, núm. 14, pp. 178-200, 2018

Sociedade Brasileira de Sociologia

Recepção: 17 Abril 2018

Aprovação: 15 Julho 2018

Resumo: O artigo tem como objetivo identificar signos da transgressão do imaginário político brasileiro em suas conexões com a dimensão da festa. O texto tem por base o desfile da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti, do Rio de Janeiro, no carnaval de 2018. Consideramos que o desfile da Tuiuti produziu o que pode ser denominado de um “teatro do patético”, coreografando, no espaço da Sapucaí, imagens — que muitas vezes não são nítidas — da situação política do país. Parte-se do pressuposto de que a formação de esferas públicas participativas no Brasil nem sempre estiveram ligadas ao mundo do trabalho, às mobilizações sindicais e aos partidos supostamente comprometidos com práticas democráticas. A festa produz, no plano das ações instituintes, dispositivos que parecem colidir com a ordem social, traduzindo outros signos de produção de uma cultura política contestatória.

Palavras-chave: Escola de Samba Tuiuti, Festa, Imaginário político e democrático.

Abstract: The article aims to identify signs of the transgression of the Brazilian political imaginary, regarding the dimension of celebratory festivities. The text is based on the 2018 carnival parade of the Samba school Paraíso do Tuiuti, from Rio de Janeiro. We consider that Tuiuti’s parade at Sambadrome Marquês de Sapucaí produced what can be called a “theater of the pathetic”, conveying images of the country’s political situation that were not always clear. It is assumed that the formation of participatory public spheres in Brazil has not always been linked to the world of work, trade union mobilizations and political parties supposedly committed to democratic practices. The festivities produce, at the level of instituting actions, devices that seem to clash with the social order, translating other signs of production of a contestatory political culture.

Keywords: Tuiuti samba school, celebration, political and democratic imaginary.

Festa, poder e resistência

O enredo do desfile da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti, no Rio de Janeiro, neste ano de 2018, foi marcado por uma contundente crítica social e cujo título do samba-enredo foi “Meu Deus! Meu Deus! Está extinta a escravidão?”[1]. Ao denunciar cenas patéticas[2] da atual conjuntura brasileira[3] e de seus processos históricos, o desfile gerou entusiasmos e perplexidades. Por meio da festa, daquilo que poderia ser situado no âmbito do lazer e da brincadeira, a Tuiuti fez eclodir um texto eloquente sobre a atual política nacional. O texto carnavalesco teve êxito em fazer figurar, com imagens irônicas, comportamentos ambíguos de setores das classes médias, empresários e políticos, tendo ainda como destaque o atual presidente Michel Temer — fantasiado, na ocasião, de vampiro neoliberal[4].

O desfile da Tuiuti produziu um teatro do patético, “coreografando” imagens embaraçosas[5] da situação política do país na Sapucaí. A referida matéria da revista Carta Capital sobre o evento, revela dados contundentes que justificam o impacto do tema da escravidão e de sua atualidade. Nesta direção, os números da realidade social brasileira ratificam as denúncias apresentadas pelo enredo da escola vice-campeã do carnaval carioca (e também confirmada no desfile da Mangueira). Os dados apresentados pela Carta Capital são incontestáveis: 64% da nossa população carcerária é composta por pessoas negras. O genocídio da população negra, atestado pelas estatísticas do Atlas da Violência de 2017[6], lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), reverbera no fato de que a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil 71 são negras. Mais: enquanto a mortalidade de não-negras (brancas, amarelas e indígenas) caiu 7,4% entre 2005 e 2015, entre as mulheres negras o índice subiu para assustadores 22%.

Naturalmente, o caráter crítico da “encenação” do enredo da Escola provocou um efeito coletivo surpresa, na medida em que mexeu com estruturas do imaginário arcaico brasileiro. As reações contrárias se explicam pelas resistências das elites de confrontar os perigos da fratura social e histórica. Por isso, tais respostas visam desfigurar a carnavalização da política, como se devesse ser interditado às agremiações produzir desfiles que trouxessem como enredo central as chagas sociais do Brasil. A redução do carnaval ao pastiche cultural revela o caráter conservador de reações que buscam reduzir a festa a objeto de consumo, desconhecendo o valor desta na organização política da esfera pública.

O evento provocado pela Tuiuti convida a crítica sociológico-antropológica a deslocar sua perspectiva de interpretação para outro lugar que permita entender como — apesar da rejeição do autoritarismo à participação social — tem ocorrido, de fato, a emergência de esferas públicas democráticas nos centros urbanos ao longo dos séculos XX e XXI. Esse deslocamento implica em considerar que as possibilidades de formação de esferas públicas participativas, no Brasil, nem sempre estiveram ligadas ao mundo do trabalho, às mobilizações sindicais e aos partidos supostamente comprometidos com práticas democráticas.

Nesse tipo de sociedade pós-colonial, há outros lugares de produção da esfera pública ligados à dimensão estética e lúdica e que tornam o entendimento das lutas políticas, sindicais e associativas um jogo complexo de emoções e estratégias. Assim, a organização do público está relacionada, frequentemente, a táticas de resistências culturais e étnicas contra a imposição da crença na existência de uma única cultura nacional, inspirada nos valores das elites oligárquicas.

Tais deslocamentos, tal qual assinala Arjun Appadurai (2004, p. 48), têm a imaginação como prática social. Eles são decisivos para a sobrevivência de dispositivos de produção do pluralismo nacional e de diálogos mobilizadores de signos culturais populares e étnicos, ritualizando as memórias, as tradições e a criação e recriação coletiva do mundo urbano. A atual conjuntura política favorece, logo, a recodificação do público urbano, de vivências comunitárias construídas entre o campo e a cidade, entre religiosidades e tradições diversas. Onde faltaram as condições para uma cultura da dignidade do trabalho emergem, nesse quadro de recriação das instituições sociais, modos de fabulação e organização de práticas sociais fraternas centrados nos usos expressivos dos corpos, nas artimanhas da imaginação, na ocupação urbana e na invenção da cidade.

Frente a esse contexto de “golpe”, as estratégias populares de construção dos espaços de emancipação política passam, então, não apenas pelas lutas por melhorias no trabalho, mas, igualmente, pelo desenvolvimento do que Appadurai (2004) vai denominar de “mundos imaginados”. Na visão do referido autor, “a imaginação hoje é um palco para a ação e não apenas para a evasão” (2004, p. 20). A prática da imaginação permite, assim, deslocar nas ruas as divisões de classes e etnias, propiciando inusitadas conexões simbólicas nas esferas cultural, artística e política.

As escolas de samba em geral, e no caso mais específico do desfile da Tuiuti, contribuem para o entendimento de que as rebeldias dos grupos comumente alijados das decisões do poder apontam para outros lugares de invenção da política e que não se reduzem às lutas sindicais e arenas usuais de luta social. As rebeldias no âmbito das práticas culturais ativam “linhas de fuga” (DELEUZE; GUATTARI, 1995) no imaginário estético, sinalizando outro modo de se construir a esfera pública. Liberam emoções que comumente são reprimidas pelas regras e costumes que balizam os pactos e códigos da vida social.

Estas rebeldias apontam para vias de desconstrução do discurso oficial autoritário e disciplinar, que propõe uma política cultural de consumo utilitarista a qual desvaloriza o tempo da brincadeira solidária e descontraída. Contra essa orientação de uniformização cultural, surgem reações e novas construções imaginárias, que sublimam a dor da violência, as exclusões e as memórias das saudades para promover a alquimia da alegria e da irreverência mundana. Na passagem da dor para o humor, germinam os “húmus” das políticas de resistência. Esse é outro modo de se entender os fundamentos do bem público e do bem comum na luta contra as sombras da escravidão, devidamente assinaladas por Jessé Souza (2017), importante inspirador intelectual do desfile da Tuiuti.

Distanciando-nos das turbulências conjunturais provocadas pelo “golpe”, entendemos que o desfile da Tuiuti revela um acontecimento exemplar para orientar uma reflexão crítica sobre os caminhos próprios de manifestação da esfera pública e das vivências das práticas democráticas no Brasil. A natureza da política brasileira é um evento singular que não pode ser comparado a outros exemplos históricos, como aquele da formação do público democrático e popular nos Estados Unidos, entre os séculos XVIII e XIX, e que foi marcado por intensa participação dos indivíduos na organização da vida local — conforme retratou A. de Tocqueville (2005) no seu clássico A democracia na América. Ali, o pacto republicano nasceu de baixo para cima e a organização do Estado nacional e do sistema federativo foi resultado, nos seus primórdios, de imensas negociações entre os poderes central e local. Diferentemente, sociedades pós-coloniais como a brasileira, seguindo o modelo patrimonialista ibérico — que privilegia as elites oligárquicas, econômicas, políticas e burocráticas na organização vertical e autoritária da vida social —, sempre foram avessas a mobilizações populares independentes e autônomas, por verem nesta possibilidade uma ameaça ao poder oligárquico centralizado. É importante, portanto, introduzir algumas considerações sobre a natureza do pacto republicano no Brasil, para se entender como a emergência do público se realizou nas contradições da modernização e da conservação do poder.

A república do patético

Há de se convir que o capitalismo colonial, de modo geral, tem características diferentes de um capitalismo inspirado por uma ética protestante da realização da espiritualidade pelo trabalho produtivo e pela poupança como base do processo civilizacional coletivo, como vemos sugerido por M. Weber (2004). Nessas sociedades de base patrimonial, a organização do poder condiciona a cultura mercantilista do lucro aos hábitos e valores aristocráticos relacionados com o imaginário ibérico (MARTINS, 2002).

Além do mais, é de se ressaltar que a tradição patrimonialista de uma cultura da ostentação e do ócio sem criatividade é reforçada pelo caráter especulativo do capitalismo financeiro internacionalizado. A velha e a nova cultura oligárquica especulativa se encontram nas fronteiras abismais da modernidade ocidental.

Contudo, nos interstícios do sistema dominante — ali onde o imaginário instituído e decadente é confrontado pela nova criação, pelo instituinte não antes imaginado (CASTORIADIS, 1982) —, ressurgem movimentos sócio-históricos inéditos. Estes acontecem foradas esferas tradicionais da política, produzindo reversões de expectativas, revitalizando a participação popular e germinando paisagens múltiplas de construção de direitos, que instauram uma cultura celebratória e criativa. Nesse sentido, vale lembrar que, durante a dominada década “dos direitos” no Brasil (os anos de 1980), foram fomentadas “fora” do Estado e do parlamento múltiplas instâncias de lutas sociais, as quais não se referiam somente ao mundo sóbrio do trabalho produtivo, mas, igualmente, às mobilizações estéticas expressas nos processos de renovação da arte e da cultura nas ruas[7].

Esse encontro entre novas e velhas culturas oligárquicas é o contexto de aparecimento da república do patético, que sabota a moral clássica da república liberal, fundada na liberdade individualista e utilitarista, ao deslocar o imaginário político e cultural, revertendo a relação entre tradição e modernidade para enclausurar esta última na primeira. Nas origens da república do patético, o termo latino res publica, coisa pública, tem uma conotação alienígena. Ele não se encaixa facilmente na natureza do sistema de poder “republicano” criado no Brasil com o fim do regime imperial, no final do século XIX — um regime republicano, diga-se, presente na sua formalização jurídica, mas oligárquico e autoritário no seu modo prático de existir. Nas ruas desfilavam não as massas organizadas, mas senhores de sapatos lustrados e cavaleiros uniformizados.

Por ocasião da fundação da “República Velha”, inaugura-se o que, no corpo desse artigo, estamos denominando república do patético. Esta nasceu de um pacto entre elites oligárquicas, econômicas, religiosas e militares, no contexto da nova ordem econômica internacional e sem considerar os anseios das multidões, que, para a classe dominante, eram apenas grupos étnicos movidos por reclamações. A corrente abolicionista, tal qual aquela representada por Joaquim Nabuco (2000), entendia ser a escravidão um impedimento para o desenvolvimento do mercado de trabalho e para as políticas industrialistas e comerciais. Mas, mesmo entre os “liberais” da república, o tema da liberdade individual — fundamental para se pensar um sistema republicano e democrático — era objeto de muitas resistências culturais e étnicas, resultantes da tradição autoritária. Como explica José Murilo de Carvalho, o argumento da liberdade individual como direito inalienável era visto com muitas restrições pelas elites, que, influenciadas pela tradição ibérica, eram alheias ao iluminismo libertário e favoráveis ao entendimento religioso e católico da vida política, segundo o qual era mais importante “a supremacia do todo sobre as partes, a cooperação sobre o conflito e a hierarquia sobre a igualdade” (CARVALHO, 2002, p. 51)[8].

As mobilizações sociais e culturais na história republicana brasileira durante os séculos XX e XXI apresentam diferenças em relação ao surgimento de esferas públicas civis e comunitárias em sociedades liberais modernas, na medida em que a dominação oligárquica e escravista incluiu o constitucionalismo liberal apenas como retórica. No Brasil, as lutas pela democracia como participação da multidão organizada ocorreram nas franjas do sistema político e por iniciativa de setores populares[9] e da classe média articulados pelos mundos do trabalho e da cultura. Tais lutas eram vistas com resistências e suspeições pelas elites oligárquicas. Estas temiam que as mobilizações sociais se constituíssem em ameaça efetiva contra a grande propriedade e contra o sistema estatal autoritário e centralizado. Daí se entende a célebre frase atribuída a Washington Luís, presidente da república, em 1926: “A questão social é um caso de polícia”.

A falta de perspectivas de maior participação social nas decisões políticas e governamentais favoreceu, por outro lado, o uso da imaginação política coletiva nas expressões lúdicas, festas, danças e cantos. A rua, a praça e a ponte se tornaram o palco de articulações de indivíduos de classes, religiosidades e nacionalidades diferentes em torno da formação do espaço público compartilhado. A gestualidade corporal e os ritmos ocuparam o lugar da gramática política permitida pelas crenças religiosas e elitistas. Gargalhadas, escárnio, exibicionismos de toda ordem, irreverências se manifestaram como armas de contestação. Exemplo mais nítido deste processo de transfiguração da arte cênica e do lúdico em ação política é magistralmente representado pelo frevo de rua, que surgiu no final do século XIX, estetizando como manifestação coletiva supraracial as heranças da capoeira — tradição afro-brasileira que mistura esporte, arte marcial, música e cultura popular.

Lembra a pesquisadora Rita de Castro Barbosa de Araújo (1997, p. 205) que as elites recifenses pretendiam estilizar o carnaval e dominar as ruas a partir dos usos de máscaras e verves elaboradas e inspiradas nos carnavais de Veneza e de Paris, acessíveis apenas aos mais abastados.

Contrariada, a multidão que deveria ficar nas calçadas apenas assistindo aos carros alegóricos se insurgia, guiada por capoeiras, pelos “populares”, muitas vezes considerados desordeiros e valentões, que puxavam as bandas de músicas e os estandartes. As elites foram, assim, praticamente obrigadas a aceitar as manifestações populares como o frevo, o samba, as danças de roda e outras, que passaram a funcionar como dispositivos de integração de raças e classes. Onde faltava o espaço para a negociação política por partidos organizados, prosperou o espaço do divertimento, da celebração, da irreverência e da alegria, forjando outro modo de fazer política por meio da resistência estética.

C. Soares (1998) assinala que, até por volta do século XIX, operava aquilo que E. Hobsbawm (1982, p. 292-293) designou de “divertimento dos pobres”, em que muitos desses atores traziam o corpo como espetáculo.

Traziam o corpo como espetáculo. Invertiam a ordem das coisas. Andavam com as mãos, lançavam-se no espaço, contorciam-se e encaixavam-se em potes, em cestos, imitavam bichos, vozes, produziam sons com as mais diferentes partes do corpo, cuspiam fogo, vertiam líquidos inesperados, gargalhavam, viviam em grupos. Opunham-se assim ao novo cânone do corpo acabado, perfeito, limpo e isolado que a ciência construiria, de vida fixa e disciplinada que a ordem exigia (SOARES, 1998, p. 25).

O corpo, em situações de repressão e silêncio, parece atuar como suporte e código de outras possibilidades de imaginação da vida. Nesse clima de multiculturalismo colonial, o surgimento do regime republicano emoldurou o espaço da política de duas maneiras: por um lado, restringindo a participação da população no processo eleitoral; por outro, criando as brechas pelas quais as energias criativas populares se libertavam, ludicamente, na produção da vida coletiva.

As esferas públicas não nasceram no Brasil, prioritariamente, nos espaços do trabalho produtivo de indivíduos e familiares, os quais tanto valor tinham para as comunidades protestantes na Europa e nos Estados Unidos. No Brasil, tais esferas públicas surgem nas ruas, praças, ou mesmo nas intimidades das casas onde os blocos de músicos, dançarinos(as) e cantores(as) se revezavam nos momentos de preparação das festas públicas, cimentando, pelos corpos e cânticos, a unidade do popular. Política e festa continuam a caminhar juntas nos carnavais, páscoas, são joões e outras celebrações — organizando politicamente a mestiçagem, o sincretismo religioso, o pluralismo musical e de ritmos.

A reação dos críticos culturais, da mídia e de setores das elites com relação ao desfile da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti apenas parece revelar o profundo desconhecimento sobre o caráter estético e mágico das festas de rua no Brasil, bem como acerca de seu potencial político como emblema rebelde e de contestação da república do patético. No fundo, os estranhamentos revelam resistências das elites no que diz respeito à emergência do popular como expressão de rebeldia, de descontentamento e de impaciência com as injustiças social, étnica e racial.

Nessa perspectiva, o atual sobressalto da mídia e dos setores conservadores em relação à Tuiuti expressa o mesmo sentimento de desgosto das elites da “República Velha” no tocante à presença de grupos de populares nas ruas, as quais elas consideravam dever constituir espaços destinados ao desfile dos ricos. Contra essas atitudes discriminatórias, as manifestações das escolas de samba reavivam os sentidos rebeldes dos setores populares pelas escolas de frevo, de passistas inflamados pelas tradições dos quilombos. Apontam, desse modo, a irreverência e a imaginação como fomentadores de um outro lugar de produção do social, do cultural, do artístico e do viver coletivo.


Tuiuti: entre as memórias da escravidão e as sentinelas da libertação

Essa imagem da Paraíso do Tuiuti, publicada em 15 de março de 2018 no Instagram[10], foi uma das mais partilhadas nas redes sociais, ao lado daquela outra que destaca o “vampiro neoliberal”. A Escola de Samba retomou, neste ano, a temática da servidão, fazendo uma reflexão acerca dos 130 anos da Lei Áurea, que extinguiu a escravidão no Brasil.

A comissão de frente compareceu com um “grito de liberdade”, trazendo figurantes que interpretavam escravos negros sendo açoitados por um capataz. O carro abre-alas, intitulado “Quilombo Tuiuti”, enalteceu cenas de tribos africanas molduradas por animais como rinocerontes, representando a força e a determinação. Já outro carro reavivou a imagem de um navio negreiro atravessando correntes marítimas. O último carro teve como destaque um vampiro com uma faixa presidencial, fazendo uma alusão a Michel Temer. Outra ala evidenciou o trabalho informal, com participantes fantasiados de ambulantes, e uma terceira exaltou os “guerreiros da CLT”, com operários empunhando uma gigantesca carteira de trabalho.

Desse modo, o desfile da Escola Paraíso do Tuiuti acabou por condensar, de forma alegórica, um conjunto de imagens metamórficas que, para Jacques Rancière (2011, p. 36), sugere “um mostruário da presença que permite identificar as dissemelhanças da arte nos jogos da arqui-semelhança”. Com seus carros e alas, o desfile condensou tanto um efeito de verossimilhança com fatos da história política brasileira — um “mostruário de sua presença” —quanto mobilizou um jogo de dissemelhança, alternando e conectando, ao mesmo tempo, ilusão e veracidade, real e imaginário, festa e política, entre as memórias da escravidão e os sonhos da libertação.

A historiografia brasileira é rica de estudos voltados para explicar a importância do regime escravista na organização do nosso sistema cultural, social e político. Jacob Gorender (1978) propôs a existência de um modo de produção escravagista como sendo peculiar na formação histórica brasileira. Mais recentemente, Luis Felipe de Alencastro (2000), no seu Trato dos viventes, busca ressaltar a construção do império ultramarino português a partir das redes comerciais no Atlântico Sul, notadamente as do tráfico negreiro. Por sua vez, Jessé Souza (2017) costuma afirmar que a escravidão é o principal pilar da nossa formação histórica, e não os desvios éticos, comuns a todos os povos. Enfim, nas últimas décadas, diversos historiadores buscaram consolidar a escravidão como tema central para esclarecer o caráter conservador e autoritário de nossa formação social e cultural.

Matéria jornalística[11] assinada por Miguel Martins sinaliza que o tema da escravidão se traduz como um dos principais pilares da formação histórica brasileira, confirmando o que vem sendo destacado pela crítica acadêmica (SOUZA, 2017). Entrevista concedida pelo carnavalesco da Escola, Jack Vasconcelos[12], formado em Belas Artes, reforça o ponto de vista de Miguel Martins, ao considerar que o objetivo do desfile foi o de tornar “as pessoas mais espertas ao que chega de informação para elas”, colocando em xeque o que é comumente repassado pela mídia:

[...] o desfile desse ano teve seu conceito no interior da cultura brasileira, na sua raiz. Se as pessoas conseguiram perceber isso de alguma forma, diz ele, valeu a pena. Dessa maneira, Jack aponta que o carnaval sempre foi o espaço para esse tipo de ideia, para as pessoas colocarem para fora o que sentem, aquilo que querem gritar.[13]

Em contraposição à onda de entusiasmo que mobilizou o Brasil com a difusão das imagens da Tuiuti na Sapucaí, surgiram reações conservadoras, como é o caso do Movimento Brasil Livre (MBL)[14], que procurou descaracterizar o sentido rebelde do desfile, buscando criminalizar sua expressão estética[15]. As correntes conservadoras[16] buscaram depreciar o desfile da Tuiuti, acusando a Escola de propor uma “agenda militante”. Exemplo deste tipo de prática reacionária é revelada pela plataforma denominada Huffpost[17], que, em matéria sobre o desfile, criticou as referências à escravidão com o seguinte teor:

A agenda militante começa no próprio título do enredo: insinua-se que a fraca reforma trabalhista é a volta da escravidão. O desrespeito com a memória dos verdadeiros escravos, cujo sofrimento é banalizado ao ser nivelado com parcelar férias ou criar empregos de baixa carga horária, é gritante e sem escrúpulos.

No artigo “O que a esquerda tem a aprender com o desfile da Tuiuti”[18], Jessé de Souza reforça a importância da retomada do tema da escravidão para se conhecer o imaginário político brasileiro[19]. De acordo com ele, “após o golpe de 2016”,

A escola conseguiu retumbante sucesso ao contar a história da escravidão nos nossos dias produzindo um efeito de conhecimento acerca tanto da dimensão histórica quanto do esclarecimento dos mecanismos do momento político atual simplesmente sem paralelo desde o golpe de 2016.

Souza[20] sugere nessa matéria da Carta Capital que há linhas de continuidade entre a escravidão do século XIX com a dos nossos dias, “apenas travestindo-se, atualmente, de providenciais ‘máscaras modernas”.

O pintado e decantado quadro de horror da atual política brasileira traz para o centro do debate apreciações críticas que se reportam a uma possível morteou refluxo das conquistas democráticas no Brasil. Quais esferas de atuação e participação militantes estariam sendo canalizadas pelo desfile da Tuiuti? De que modo tais ações expressam o inconformismo e a revolta de setores expressivos da população brasileira com a estrutura social fragmentada e insegura?

Imaginário instituinte: a política toma conta da Sapucaí

Como já abordado no primeiro tópico deste artigo, observam-se mutações complexas nos modos de exercício da política no Brasil. Os movimentos sociais e as lutas sindicais que culminaram na organização da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e na criação do Partido dos Trabalhadores (PT), desde os anos de 1980, têm atravessado estremecimentos que põem em xeque grande parte das conquistas democráticas populares. Mas, em contraposição ao atual contexto do que poderíamos denominar de retração democrática provocada pelo “Golpe”, verificam-se algumas reações inusitadas, como no caso emblemático da Tuiuti, mobilizando dispositivos outros de socialidades e de produção de subjetividades.

Na perspectiva de Suely Rolnik e Felix Guattari (2010, p. 34), “as mutações de subjetividade não operam no registro das ideologias, mas no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de se articular com o tecido urbano, com os processos maquínicos do trabalho”. A questão central dos autores está em pensar os movimentos das minorias e suas práticas de resistências para além das máquinas sociais e de seus organismos de controle. Segundo eles, criam-se, ali, nas franjas, nas relações micropolíticas, práticas culturais que operam e dinamizam “novos agenciamentos coletivos de enunciação” (p. 34).

A construção da subjetividade política migra para outros lugares, produzindo novas práticas sociais, instaurando micropolíticas para além do modelo clássico de Estado e Parlamento. São lugares que revelam não só a revolta e o inconformismo, mas também o desconforto e a humilhação daqueles setores da sociedade que se sentem destituídos. São espaços de ressignificação da vida e da morte e em que se forjam experiências extremas nas quais a reinvenção da política atravessa fronteiras e emerge na textura de peles, danças, contravenções, revoltas — produzindo agenciamentos diversos daqueles que regulam e operam a “máquina social”, como diriam Guattari e Rolnik (2010).

Na denominada “década de direitos”, aquela dos anos de 1980, vale destacar a emergência dos movimentos sociais, os quais se revelavam como um drible ao Estado-fortaleza, que deve ser entendido, segundo C. N. Coutinho (1994), como aquele representativo do regime de poder criado com o golpe de 1964. Este autor, na obra Marxismo e política: A dualidade de poderes e outros ensaios (1994), inspirando-se em Gramsci, assinala que o processo de “fechamento” do Estado dentro da arena do governo e do parlamento, diante de dinâmicas de “socialização da política”, acaba por construir distâncias e linhas demarcadas entre o que é “sociedade” e o que é “política”.

Tais movimentos faziam surgir uma diversidade de lutas cotidianas, o que motivou alguns autores (SCHERER-WARREN; KRISCHKE, 1987) a indagarem se o recrudescimento dos mesmos sinalizaria uma “revolução no cotidiano”. Podemos indicar que estas são lutas em que “sobreviver é, por conseguinte, fugir ou romper o anonimato [...]” (CERTEAU, 1995, p. 92). Fora do campo das relações entre capital e trabalho que marcaram os movimentos sociais e as lutas sindicais e partidárias, irrompem mobilizações que mexem com as expressões psicológicas, morais e estéticas coletivas. As mais recentes delas atuam como “linhas de fuga” (DELEUZE; GUATTARI, 1997) de um cotidiano inseguro, massacrante, adornando como centelhas luminosas as fissuras do trágico. Didi-Huberman, no livro Sobrevivência dos vaga-lumes (2011, p. 27), retoma a indagação de Pasolini sobre as dificuldades dos intelectuais italianos de perceberem o alcance trágico do fascismo. Dizia o cineasta que “os intelectuais mais avançados e os mais críticos não perceberam que os vaga-lumes estão desaparecendo” (2011, p. 27). E, concluía, o verdadeiro fascismo é aquele que tem como alvo “os valores, as almas, as linguagens, os corpos do povo” (p. 29). Por esta razão, acreditamos que o desfile da Tuiuti pode atuar como um potente dispositivo de “sobrevivência dos vaga-lumes”. O desfile da política acabou por suscitar significativas pautas de debates acerca do papel dos sujeitos e da natureza de suas manifestações no atual cenário brasileiro.

O diálogo que estabelece Sloterdjik com Canetti, no livro “O desprezo das massas”, sobre a diferença entre povo e massa sugere que “entra em colapso a visão romântico-social do sujeito democrático, que poderia saber o que quer; dissipou-se o sonho do coletivo autotransparente” (2002, p. 16). Tal reflexão é oportuna para melhor caracterizar os sentidos das reações representadas pelo desfile da Tuiuti. Com a “necessidade de descarga da massa”, a festa do carnaval torna-se uma fervilhante esfera de visibilidade e de produção imaginária de outro modo de se conceber o poder. As ruas passam a constituir portais de liberação de emoções represadas, espelhando o esgarçamento da velha ordem política. Considerando que “ainda pode reunir-se e aparecer diante de si mesmo como multidão presente – com um tom singular, uma excitação singular e um ato singular”, pergunta Sloterdjik (2002, p. 19), o carnaval, no caso, a festa atuaria como um modo de reunião de uma “multidão presente”? Para o autor, a multidão, transfigurando-se no seu inconsciente coletivo, libera as emoções reprimidas e arcaicas como se estivesse navegando uma nau de sobreviventes:

Só em raros momentos quando em festivais populares a massa da felicidade é fundida num corpo coletivo extático, ainda brilha através da apatia pós-moderna uma centelha dos dionísios políticos e das reuniões da multidão lúcida despertada por si mesma – especialmente tão logo uma tonificante música pop, pronta para o uso, proporcione para os reunidos excitação e descarga (SLOTERDJIK, 2002, p. 24).

Como se os ritmos da festa, em raros e significativos momentos, atravessassem as camadas sutis do pensamento e do corpo para liberar o não-dito e o não-percebido. Vale lembrar que tanto a festa quanto o jogo atuam como dispositivos, tal qual sugere Duvignaud (1983, p. 68), “provindos fora do sistema”, para pôr em xeque a ordem social. A festa, atuando como suspensão da vida “ordinária”, possibilita que outros códigos e ritos se instalem nos labirintos dos sonhos e do cotidiano[21]. A vivência do extraordinário produz o prazer do horizonte onde se vive extaticamente os limites do sagrado e do profano, o que é bem destacado por Johan Huizinga:

Existem entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações. Ambas implicam uma eliminação da vida quotidiana. Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente, pois a festa também pode ser séria. Ambos são limitados no tempo e no espaço. Em ambos encontramos uma combinação de regras estritas (no segundo desfile foi pedido para ‘o vampiro Temer’ não usar a faixa presidencial) com mais autêntica liberdade (2001, p. 25 – parênteses nossos).

Por não se constituir em nenhuma finalidade causal e se revelar apenas como o paradoxo de si mesma, a festa atravessa o domínio da percepção racional e deixa emergir “dimensões ocultas”. No desfile da Tuiuti, ela fez eclodir cenas “invisíveis” da história do Brasil que não são levadas em conta pela narrativa do poder oficial, mas que constituem o horizonte em que se desenham as contestações.

A festa gera coragem onde não havia; transgressão onde estava o conformismo; raiva trêmula onde reinava o medo mortal. Transe vivido nas encruzilhadas do transitório, o carnaval é a festa em sentido pleno (DUVIGNAUD, 1983, p. 69): Cerimônia lúdica em que se libertam as fantasias escondidas e os corpos reprimidos, em que a política se transfigura não mais por discursos moralistas, mas por um fazer dramático aberto ao passado e ao futuro. A festa atinge aquilo que constitui a última finalidade das comunidades, isto é, um mundo reconciliado, uma entidade fraternal (DUVIGNAUD, 1983, p. 69). No caso do desfile, o efeito foi contrário a qualquer conciliação. Houve a “quebra” da ilusão do poder, uma cisão de qualquer suposto princípio de “entidade fraternal”, reação limite contra o desaparecimento da política convencional, gesto de denúncia contra as manipulações midiáticas que, muitas vezes, desviam o inconformismo para telas vazias.

Lembrando Giorgio Agamben (2007), podemos perguntar se a Escola de Samba Tuiuti “profanou” a imagem do poder. O termo profanação, para este autor, tem seu sentido mais destacado na religião, como sendo “aquilo que subtrai as coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada” (p. 65). É transgressão de espaço e de tempo aprisionados para que se possa recriar o prazer da desobediência onde ele tinha se escondido do imaginário autoritário[22]. São rituais que reinauguram a significação do viver coletivo, que dão sentido ao falado, ao imaginado, ao figurado, que religam o humano à sua pluralidade onírica, a qual é comumente omitida pela política do banal.

Indaga ainda Agamben se existe sociedade sem separação. Profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso, a brincar com elas (AGAMBEN, 2007, p. 75). Daí decorre a expressão multidão, conforme trabalhada por Michael Hardt e Antonio Negri (2005), fazer sentido no âmbito dessa abordagem na medida em que ela permite estabelecer, simultaneamente, a multiplicidade e a singularidade.

Dizem Hardt e Negri:

O povo é uno [...]. A multidão, em contraste, não é unificada, mantendo-se plural e múltipla. Por isto, seguindo a tradição dominante da filosofia política, é que o povo pode governar como poder soberano, e a multidão, não. A multidão é composta de um conjunto de singularidades – e com singularidades queremos nos referir a um sujeito social cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade, uma diferença que se mantém diferente (2005, p. 139).

Na festa, a multidão se desloca para a celebração coletiva da morte do rei ou da exaltação do novo messias. Entre o sagrado e o profano, entre a religião e a política, a figura de Dionísio[23] emerge como portador do cálice que liberta o imaginário estético popular oprimido. Contudo, a multidão, embora se mantenha múltipla, não é fragmentada, anárquica, incoerente. Daí ser importante contrastar este conceito com uma série de outros que designam entidades coletivas plurais, como a turba, as massas e o populacho, se bem entendemos a proposta de Hardt e Negri (2005, p. 140). Nas ruas, a multidão é a esperança de olhos frustrados. Ela libera a utopia de outros mundos, realça o prazer do sagrado e desfaz a castração do poder. Ela aponta na sua multidimensionalidade o imaginário instituinte, que se revela nas brechas do sistema de poder oficial e no calor das ruas, para desfazer o antigo imaginário instituído, o qual não pode mais conter a exuberância desta sociedade de emoções intensas.

Algumas linhas conclusivas: por onde ressoa o grito da escola?

O desfile da Tuiuti faz surgir um regime, para além do meramente representativo, que perfaz linhas de conexão entre estética e política. Lembra aquilo que Rancière (2009, p. 25) aponta como sendo a abolição “das relações entre o visível e o dizível, o saber e a ação, a atividade e a passividade”. O “regime estético”, ao contrário do estritamente representativo, segundo este autor (2009, p. 77), seria próprio do “ser da arte”, pois “precisa valorizar a potência surda de uma palavra do Outro, irredutível a toda hermenêutica”. Além “do visível” que ganha a avenida, o desfile da Tuiuti deixa óbvia a correlação entre “festa” e “política”; personagem como o “vampiro neoliberal” intensifica a potência do “inconsciente estético”, trazendo à luz do dia cenas marcantes e cruéis da história política brasileira.

A Tuiuti trouxe, nos adornos, máscaras, fantasias e adereços, detalhes de cenas da cultura política brasileira que parecem, usando reflexão de Rancière (2009, p. 59), dar “lugar à verdade do inconsciente que não é a de uma história individual, mas que é a oposição de uma ordem a outra, o figural sob o figurativo, ou o visual sob o visível representado”. Política e estética conectam-se na paisagem do enredoda Tuiuti, traduzindo significativas cenas da cultura brasileira que transpiram as formas rebeldes do imaginário barroco desta sociedade pós-colonial.

No imaginário coletivo, o vasto material gerado pelo impacto do desfile intitulado “Meu Deus! Meu Deus! Está extinta a escravidão?” sugere haver no ar algo mais do que a simples morte ou refluxo da democracia brasileira sob o peso do conservadorismo. As reflexões que procuramos desenvolver no presente texto sugerem ter recrudescido com a Tuiuti um tipo de dimensão tática, como diria De Certeau (1994), em oposição às estratégias de desmobilização da vida pública encetadas pelo Estado. Tal dimensão tática contribui para promover dispositivos de “politização do social” (COUTINHO, 1994), que explodem a velha maneira de organização da sociedade oligárquica fundada no culto do mandonismo e da subserviência. Para além do caráter meramente celebrativo da festa carnavalesca, a nova estratégia do público democrático emerge como imaginário instituinte por meio de signos estampados em carros e alas e nas emoções que conduzem os protagonistas da festa. A celebração potencializa, assim, novos fluxos do ato de experimentar e fazer política. O desencanto com a velha política parece possibilitar a insurgência de outros referentes imaginários expressos pela brincadeira carnavalesca[24].

O desfile da Tuiuti em 2018 evidencia a erosão da vida pública, num sistema político que desvaloriza o bem comum e assegura os privilégios das elites oligárquicas nacionais e internacionais. Isso nos leva a refletir, com Richard Sennett (1988, p. 18), sobre “quais os tipos de expressão de que é capaz o ser humano nas relações sociais” quando o cenário instaura um “declínio do homem público”. E, acrescentamos, declínio numa sociedade que, paradoxalmente, pouco conseguiu estabelecer o homem público como base de uma cidadania democrática. Portanto, a multiplicação dos signos de identificação do humano com os sonhos da liberdade nesse tipo de sociedade pós-colonial rompe a tese do politicamente correto permitido para instaurar novas ordens possíveis e, assim, reinventar a desordem produzida pela colonialidade. Nos enlevos da festa e nas táticas cotidianas, os ritos de rebeldia acabam por revelar desejos intensos de libertação do corpo individual e social e da produção de outros imaginários possíveis que acenam para uma abolição concreta, e não apenas formal da cultura da escravidão.

Enfim, vale pensar no desfile da Tuiuti como uma expressão da “cultura no plural” (CERTEAU, 1995, p. 95), até como um “ato violento que assinala a irrupção de um grupo” (p. 95). O desfile do carnaval autentica o querer-existir de uma minoria (no caso do Brasil, uma minoria-maioria) que procura se constituir em um universo em que ela é excedente porque ainda não se impôs. Na passagem do anonimato para a glória, a Tuiuti carregou nos seus ombros os fardos dos abandonados e as esperanças dos rebeldes. A Escola traduziu a violência que tem recortado a história do Brasil por meio de adereços, pinturas, algemas, chicotes, fantasias e máscaras.

Nos limites da rebelião estética, libera-se um tanto da alma incontida, revitalizando as memórias individuais e coletivas de tempos da escravidão, do esquecimento, dos sonhos frustrados, de vozes que gritam e rompem grilhões nos ecos de um samba-enredo: “Senhor, eu não tenho a sua fé, e nem tenho a sua cor/ Tenho sangue avermelhado/ O mesmo que escorre da ferida, mostra que a vida se lamenta por nós dois”. O que desfaz e o que instaura apenas o tempo dirá.

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Notas

[1] O samba da escola é de autoria dos compositores Moacyr Luz, Cláudio Russo, Dona Zezé, Aníbal e Jurandir. Segundo fontes consultadas, “As primeiras negociações para a criação da Paraíso do Tuiuti datam de 1952. Porém, a fundação da escola foi concretizada apenas em 1954, após a extinção da Unidos do Tuiuti. À época, a Paraíso da Baianas também enfrentava um declínio. Os moradores do morro, sem condições financeiras para acompanhar o carnaval das escolas de samba, preferiam participar de blocos carnavalescos como o Bloco dos Brotinhos, também do Tuiuti. Foi então que um grupo de sambistas se reuniu, entre eles Nélson Forró e Júlio Matos, e resolveu terminar com o bloco e, também, com a Paraíso das Baianas e criar uma nova escola de samba. O Grêmio Recreativo Escola de Samba Paraíso do Tuiuti foi fundado em 5 de abril de 1954 por Augusto Pirulito, Joaquim, Araquem, Armando, Murilo Aragão, Zeba, Orlando, José Orelhinha, Alcides Fornalha, Pedro Feneno, Duca, Zequinha, Álvaro, Conceição e Felícia”. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Para%C3%ADso_do_Tuiuti>. Consultado em: 26 mar. 2018.
[2] Utilizamos a terminologia “patético” no sentido empregado por Aby Warburg — ver obra Histórias de fantasmas para gente grande (2015, p. 11), na qual o autor indica ser a “fórmula do pathos” uma espécie de linguagem gestual, um tipo de “forma da memória social coletiva” — e rediscutido por Etienne Samain (2012, p. 56) no livro “O que pensam as imagens?”. Patético emerge do conceito de Pathosformel como sendo aquilo que condensa danças de medo e terror, desejo, paixão, sedução, sofrimento, crença, fé, segundo ele, imagens que assumem formas meio fantasmáticas, mapas que atuam como “uma enciclopédia de movimentos em constante andança no tempo” (p. 56).
[3] Em 31 de agosto de 2016, o Senado Federal aprovou o impeachment de Dilma Rousseff, presidente eleita em 2014, constando 61 votos favoráveis e 20 contrários. Segundo a imprensa, “a presidente afastada foi condenada sob a acusação de ter cometido crimes de responsabilidade fiscal nas chamadas ‘pedaladas fiscais’, no Plano Safra, e nos decretos que geraram gastos sem autorização do Congresso Nacional, mas não foi punida com a inabilitação para funções públicas”. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/processode-impeachment-de-dilma/noticia/2016/08/senado-aprova-impeachment-dilma-perdemandato-e-temer-assume.html. Consultado em: 26 mar. 2018. Assumiu em seu lugar o vicepresidente Michel Temer, confirmando a impressão de grande parte da opinião pública de um golpe político. Contra este processo de desestabilização institucional, surgiram intensos movimentos coletivos, nas ruas e nas redes, cujo o mote foi e continua sendo: “Fora Temer”.
[4] O vampiro foi representado pelo professor de história Léo Morais no último carro da escola, o navio “neo tumbeiro”. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2018/noticia/desfile-da-paraiso-do-tuiuti-tem-presidente-vampiro-de-destaque-eala-de-manifestantes-fantoches.ghtml. Consultado em: 26 mar. 2018.
[6] Disponível em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/2/2017. Consultado em: 29 mar. 2018.
[7] Na apresentação do livro Brasil urbano – Cenários da ordem e da desordem, A. C. Torres Ribeiro (1993, p. 11) aponta que os anos de 1980 significaram “a emergência de um complexo tecido social e político no país. Velhas e novas tendências encontram os rumos de sua articulação desafiando análises realizadas e exigindo das Ciências Sociais intenso esforço de renovação teórico-conceitual e empenho no desenvolvimento de pesquisa empírica”. Na nossa compreensão, esse justo esclarecimento conceitual da autora deve ser complementado pelo entendimento que a ordem e a desordem daquele período produziram igualmente novas articulações no imaginário estético.
[8] Tais observações são relevantes para se entender que os discursos colonialistas do poder se apropriam de inovações jurídicas e institucionais a fim de atualizar o conservadorismo, sob pressão das mutações do capitalismo colonial. Mas tal atualização não foi flexível o bastante para acolher a luta real pela formação de esferas públicas participativas nos planos locais no momento de extinção da ordem escravagista e de criação de um modelo de sociedade baseado no trabalho livre e na liberdade da cidadania democrática.
[9] Sobre a emergência dos movimentos sociais na década de 1980, ver o texto de Glória Diógenes intitulado “Modernidade, identidade e movimentos sociais”, publicado no livro Brasil urbano – Cenários da ordem e da desordem, Rio de Janeiro, 1993.
[10] Instagram é uma rede social online de partilha de fotos e vídeos entre seus usuários, que possibilita aplicar filtros digitais e compartilhá-los em uma multiplicidade de serviços de redes sociais, lançada em outubro de 2010, cujo proprietário, atualmente, é uma outra rede social, o Facebook.
[12] Disponível em: https://odia.ig.com.br/_conteudo/2018/02/diversao/carnaval/5513526carnavalesco-jack-vascon celos--tem-que-se-posicionar.html. Consultado em: 29 mar. 2018. Outra fonte indica que a ligação de Jack com a festa “vem da infância, quando a mãe, portuguesa, desfilava na ala das baianas da Estácio, tradicional escola do bairro onde ele cresceu e mora até hoje. Na adolescência, ele se ofereceu para trabalhar no barracão da escola, onde são confeccionadas alegorias e fantasias. Ganhou prática e virou aderecista, com passagens por algumas agremiações na função. Seu passo mais ousado ocorreu na década passada. Assinou como carnavalesco desfiles do Grupo de Acesso, a segunda divisão do samba, sem, no entanto, conseguir ascender para a elite”. Ver em: https://epoca.globo.com/sociedade/noticia/2018/02/leonardo-morais-o-vampiro-neoliberalista-da-tuiuti.html. Consultado em: 28 mar. 2018.
[13] Disponível em: https://odia.ig.com.br/_conteudo/2018/02/diversao/carnaval/5513526carnavalesco-jack-vasconcelos--tem-que-se-posicionar.html. Consultado em: 29 mar. 2018)
[14] O Movimento Brasil Livre (MBL), criado em novembro de 2014, em São Paulo, apoiou o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Ver em: http://mbl.org.br/. Consultado em: 29 mar. 2018.
[15] Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/mbl-apanha-nas-redes-depois-de-postcontra-o-desfile-da-paraiso-do-tuiuti/. Consultado em: 29 mar. 2018. “Com o propósito de desmoralizar o desfile da Tuiuti, o movimento havia publicado que o carnavalesco responsável pela apresentação, Jack Vasconcelos, ‘publicou mensagens de ódio’. As tais mensagens seriam posts contra Temer, a reforma trabalhista e demais ataques ao governo golpista. No entanto, o ponto alto da vergonha do MBL foi o compartilhamento da notícia do site Ceticismo Político cujo título é “A Tuiuti fingiu protestar contra a escravidão, mas defende as leis escravagistas da extrema esquerda”. Depois de uma série de críticas, o link foi apagado do site, mas na descrição do post na página do MBL chegam a dizer que “toda escravidão no capitalismo, na história moderna, foi pelo menos ajeitada pela extrema esquerda”. A publicação é do Esquerda Diário.
[16] Como é o caso de Luiz Guilherme Medeiros, diretor do Instituto Liberal do Centro-Oeste. Ver em: https://www.huffpostbrasil.com/luiz-guilherme-medeiros/a-paraiso-do-tuiutidesfilou-os-erros-do-fora-temer_a_23362865/. Consultado em: 29 mar. 2018.
[19] Jessé de Souza (2017), A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. São Paulo: Leya, 2017.
[21] Na festa, lembra Duvignaud (1983), há um jogo que aponta para uma evasão da vida “real” (p. 11). “A festa é tudo isto, quer utilizando provisoriamente os signos coletivos ou as classificações consagradas e, destarte, aproximando-se das experiências rituais, quer colocando-se de passagem, ou a serviço de um poder, quer atingindo o transe, o êxtase”. E complementa: “ela destrói ou abole, em sua vigência as representações, os códigos, as normas por meio das quais as sociedades se defendem contra a agressão natural” (DUVIGNAUD, 1983, p. 69).
[22] Citando Hubert e Mauss, Agamben reitera que “o que foi separado pode ser ritualmente restituído, mediante o rito, à esfera profana [...] A passagem do sagrado ao profano pode acontecer também por meio de um uso (ou melhor, de um reuso) totalmente incongruente do sagrado. Trata-se do jogo. Sabe-se que as esferas do sagrado e do jogo estão estritamente vinculadas” (2007, p. 66), acrescentando, assim como a esfera da festa.
[23] Dioniso, ou Dionísio, era o Deus grego equivalente ao deus romano Baco, dos ciclos vitais, das festas, do vinho, do delírio, mas, fundamentalmente, do excesso, do prazer e do êxtase.
[24] Tal qual alude S. Freud (1990), temos um quadro em que as pulsões de vida (eros) daquela parte da sociedade desencantada com os usos arbitrários do poder liberam-se para minimizar as pulsões de morte (tânatos), expressas nos suplícios da escravidão que ainda habitam dolorosamente as memórias das populações vulneráveis.
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